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Resumo: Este artigo tem o objetivo de apresentar a relação entre a focalização e a voz nar-
rativa, conforme propostas de Gerárd Genette, na sua obra Figures III, que se veicula nos
estudos da teoria literária, mais especificamente na área da narratologia.
Palavras-chave: Narrador; Focalizador; Genette; Discurso; Narratologia.
Abstract: This article aims to present the relationship between focus and narrative voice,
as proposed by Gérard Genette, in his work Figures III, which conveys the studies of literary
theory, specifically in the area of narratology.
Keywords: Narrator; Focuser; Genette; Speach; narratology.
Introdução
Dos conceitos propostos por Gérard Genette (1995) interessam a este artigo, so-
bretudo, aqueles referentes à focalização e à voz. A diferença entre ambas, no que se
refere à comunicação narrativa, em alguns casos, não é detectável facilmente. As duas
categorias podem confundir-se, como irmãs gêmeas, até o limite da indiferenciação apa-
rente. A desigualdade é, no entanto, uma realidade e deve ser identificada.
Analisando as categorias narrativas de tempo, modo e voz, Gérard Genette propõe,
justamente, a necessidade de se considerar essa separação e indica um caminho para mi-
norar a confusão comum que se faz entre focalização e voz. Antes de expor as posições
genettianas sobre essas categorias, importa lembrar, brevemente, as bases de sua teoria
veiculadas em Discurso da narrativa (1995), até se alcançarem suas considerações sobre a
perspectiva ou focalização e a voz.
Realidade narrativa
Genette (1995, p. 23-25) inicia seu estudo, definindo cada um dos três aspectos da-
quilo que denomina “realidade narrativa”. Os aspectos são a história, a narrativa e a narração.
A história diz respeito à diegese, isto é, ao significado, ao conteúdo narrativo que
pode ser real ou imaginário. A história é composta pela sucessão de acontecimentos. Me-
lhor ainda, ela constitui a “matéria-prima” da narrativa.
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Doutor em Literatura Brasileira e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (Unesp). Atualmente trabalha como professor e diretor de Graduação no Centro Universitário
Adventista de São Paulo (Unasp). Atua como professor-orientador no Leadership Program da Andrews University.
E-mail: afonso.cardoso@unasp.edu.br
AFONSO LIGÓRIO CARDOSO
Construção do sentido
Fica latente, nessa parte introdutória das reflexões de Genette, que não é possível
– ou pelo menos fica limitada – a interpretação do discurso narrativo só pelo enunciado
em si, sem relacioná-lo à história, por exemplo. Em contrapartida, o discurso narrativo é
o único que se oferece diretamente à análise textual, pois é o único instrumento de que se
dispõe no campo da narrativa literária para tanto.
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Ancorar simplesmente a narrativa em documentos ou circunstâncias exteriores ou
na biografia do autor não é a via de acesso para a análise do discurso. Isso não quer dizer
que o conteúdo narrativo não possua nenhuma relação com o contexto histórico-cultural
e com a vida do autor. Genette (1995, p. 25) propõe, no entanto, que essa relação não seja
de ordem tal que se possam utilizar elementos externos à obra para uma análise rigorosa
dos internos. Na verdade, ele adverte para ao risco de se fazer o inverso disso também,
ainda que a obra em si, ultimada, seja o único objeto que se tem à mão.
A narrativa, terrível como a esfinge, simplesmente pronuncia o discurso enigmático
e cala-se. A decifração viabiliza-se pelo estudo das relações desse discurso enunciado com
a história e a narração. Genette (1995, p. 27) demonstra a interdependência entre esses
três níveis da realidade narrativa:
História e narração só existem para nós, pois, por intermédio da narrativa. Mas,
reciprocamente, a narrativa, o discurso narrativo não pode sê-lo senão enquanto
uma história, sem o que não seria narrativo […] e porque é proferido por alguém,
sem o que […] não seria, em si mesmo, um discurso.
Modo da narrativa
Contar uma história (real ou fictícia) é a função essencial da narrativa. O interesse
genettiano dirige-se para a maneira, isto é, para o modo como a história é produzida e
chega ao leitor. Essa preocupação é estudada na categoria denominada de modo.
Genette (1995, p.160) discorre a respeito do modo da narrativa, tomando empres-
tado de Littré, o sentido gramatical de modo: “nome dado às diferentes formas do verbo
empregadas para afirmar mais ou menos a coisa que se trata, e para exprimir… os dife-
rentes pontos de vista dos quais se considera a existência da ação”. 61
Da expressão “afirmar mais ou menos”, conclui-se que, da mesma forma, a infor-
mação narrativa tem seus graus. Assim, a narrativa pode: 1º) fornecer ao leitor mais ou
menos pormenores, de forma mais ou menos direta; 2º) parecer manter-se à maior ou
menor distância daquilo que conta e 3º) escolher o regulamento da informação que dá,
segundo a capacidade de conhecimento da parte interessada na história, isto é, da perso-
nagem ou do grupo de personagens.
A narrativa pode, portanto, adotar ou fingir adotar a “visão” ou o “ponto de vista”
da “parte interessada”, parecendo tomar esta ou aquela perspectiva em relação à história.
Distância e perspectiva são, pois, as duas modalidades essenciais da regulação da infor-
mação narrativa. A perspectiva procede da escolha (ou não) de um ponto de vista restritivo.
Desde o fim do século XIX, lembra Genette, estudos notáveis têm sido publica-
dos sobre a técnica narrativa da perspectiva, como os de Percy Lubbock (1990), Wayne
C. Booth (1980), Wolfgang Kayser (1985), F. K. Stanzel (1990), Jean Pouillon (1974),
Norman Friedman (2002), só para nomear alguns. Tais estudos, incluindo os de Gérard
Genette (1995), parecem ter como traço comum procurar compreender as técnicas con-
feccionais relativas à perspectiva e aos efeitos que geram na obra narrativo-literária.
A maior parte desses trabalhos teóricos, todavia, não se preocupa com os sentidos
distintos da focalização narrativa e da voz e encerra tais categorias na do narrador. Os te-
óricos que tratam da perspectiva narrativa pecam por uma confusão entre o que Genette
denomina do modo e da voz, isto é, entre as perguntas “qual é a personagem cujo ponto
Pode ser ainda, na focalização interna, uma informação incidente sobre os pensamentos
de uma personagem que não a focal.
É preciso que se pensem essas duas alterações (a paralipse e a paralepse) em ter-
mos de efeito – como, de resto, todos os recursos salientados por Genette – e não só em
termos do domínio de técnicas da constituição da narrativa. O narrador pode fazer uso
da paralipse, ainda que num trecho muito breve, para criar, muitas vezes, um efeito de
interpretação maior que a informação omitida.
Voz no discurso
A voz é considerada a instância que designa as relações entre narração e discurso e,
ao mesmo tempo, entre narração e história.
Genette (1995, p. 212) toma emprestados, à gramática do verbo, os conceitos para
estudar a gramática narrativa. Assim, a voz é o aspecto da ação verbal considerada nas suas
relações com o sujeito. Para a comunicação narrativa, o sujeito pode ser aquele que realiza
ou sofre a ação, ou ainda, aquele que a relata e, eventualmente, os partícipes nessa atividade
narrativa. A voz revela-se, portanto, pela instância produtiva do discurso, isto é, pela narração.
O estudo da voz deve sempre se religar às categorias do tempo da narração, do
nível da narrativa e da “pessoa”, isto é, às relações dessas categorias com o narrador e
com a história que conta.
O tempo da narração – “relação temporal da narração com a suposta ocorrência do 63
evento” (REIS; LOPES 1988, p. 112) – é de capital importância para se entender as mudan-
ças de “visão de mundo” entre o eu personagem e o eu narrador. A principal determinação
temporal da instância narrativa é, dessa maneira, a sua posição relativa à história. Assim,
distinguem-se quatro tipos de narração, do simples ponto de vista da posição temporal.
Primeiramente, Genette (1995, p. 216) aponta a narração ulterior. Denomina-se
assim a instância produtiva que acontece posteriormente à ocorrência do evento. Parece
óbvio que a narração não pode existir senão depois daquilo que conta ter acontecido, mas
tal evidência é desmentida pela existência da narrativa preditiva, que é o segundo tipo. Um
exemplo bem conhecido é o que vem relatado no Gênesis, na história da origem do povo
judeu. A Abraão foi narrada preditivamente a história de sua vida e de toda sua descen-
dência. Quatrocentos e trinta anos depois, várias gerações passadas, portanto, verifica-se
o cumprimento daquela narrativa, numa espécie de narrativa duplicada. A narrativa pre-
ditiva caracteriza-se por isso.
O emprego de um tempo do pretérito basta para designar a narração ulterior, sem,
por isso, indicar a distância temporal que separa o momento da narração do da história.
Na narrativa clássica (na terceira pessoa), essa distância é geralmente indeterminada, mar-
cando o pretérito uma espécie de passado sem idade.
Apesar dessa indeterminação da distância, pode-se apreendê-la – mesmo o discur-
so não vindo datado empiricamente – através de modificações no regime temporal da
narrativa, pela acentuação ou diminuição do ritmo, por exemplo.
Sem nenhuma relação explícita entre os dois níveis narrativos em estudo, as fun-
ções de distração e obstrução objetivam enredar a personagem principal da diegese, por
meio de narrativas encadeadas na metadiegese, de interesse da narrativa primeira, prote-
lando o retorno definitivo à diegese no conjunto da obra. Nessas duas últimas, a relação
com o discurso é o próprio ato da narração que desempenha uma função na diegese.
Fechando as propostas genettianas sobre os níveis, é bom lembrar que a passagem
de um nível narrativo para outro só pode ser assegurada, em princípio, pela narração – ato
que consiste em introduzir numa situação, por meio de um discurso, o conhecimento de
outra situação (GENETTE, 1995, p. 233).
Colocadas essas ideias quanto às relações da voz com as categorias do tempo e do
nível da narrativa, passa-se agora à da pessoa.
Narrador da história
Na teoria genettiana, o uso das formas clássicas “narrativa em primeira pessoa” e
“em terceira pessoa” não desvela atitudes narrativas. As duas atitudes narrativas (de que as
formas gramaticais são apenas uma consequência mecânica) são: fazer contar uma história
por uma das “personagens” ou por um narrador estranho a essa história. A presença de ver-
bos na primeira pessoa num texto narrativo pode, pois, reenviar para duas situações muito
diferentes, que a gramática confunde, mas a análise narrativa deve diferençar: a designação
do narrador e a identidade de pessoa entre o narrador e uma das personagens da história. 65
Existem, pois, dois tipos de narrativas: uma, de narrador ausente da história que
conta, nomeado, por Genette (1995, p. 243-244), de narrador heterodiegético, e outra de
narrador presente como personagem da história que conta, nomeado de homodiegético.
O narrador heterodiegético comporta-se como um demiurgo em relação à história
que narra. Pode exprimir-se tanto em terceira como em primeira pessoa, sendo que a
predominância é em terceira pessoa.
O narrador homodiegético pode aparecer narrando sua experiência pessoal, na posição
de personagem principal dessa história (narrador autodiegético), ou numa posição secundária,
isto é, narrando uma experiência da qual faz parte, no papel de observador ou de testemunha.
Se se definir o estatuto do narrador, ao mesmo tempo, pelo nível narrativo (extra- ou
intradiegético) e pela relação com a história (hetero- ou homodiegético), pode-se figurar qua-
tro tipos fundamentais de estatuto do narrador: 1) extradiegético-heterodiegético, narrador
do primeiro nível que conta uma história da qual está ausente; 2) extradiegético-homodie-
gético, narrador do primeiro nível que conta a sua própria história; 3) intradiegético-hete-
rodiegético, narrador do segundo grau que conta história da qual está geralmente ausente;
4) intradiegético-homodiegético, narrador do segundo grau que conta sua própria história.
Considerações finais
A proposta de Gérard Genette (1995) centra-se na diferença entre narrador e fo-
calizador. Não custa insistir no óbvio: o narrador narra; o focalizador focaliza. São duas
instâncias da narrativa que, na maioria das vezes, fundem-se numa que podemos denomi-
nar de narrador-focalizador. Essa distinção enriquece a leitura e interpretação do crítico e
estudioso da literatura. Entender o modo como essas instâncias se relacionam favorece o
entendimento e os efeitos de sentido que a obra propõe.
Referências
BLIN, G. Stendhal et les problèmes du roman. Paris: José Corti, 1998.
BROOKS, C.; WARREN, R. P. Understanding fiction. Nova York: Rolt, Rinehart and Winston, 1979.