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XIX

ISSN 1413-6651
São Paulo - 2008

1
Editora Responsável Institucional
Marilena de Souza Chaui
N. XIX, JUL-DEZ DE 2008 – ISSN 1413-6651
Editora Responsável
Tessa Moura Lacerda

Comissão Editorial
Celi Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.

Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo Pire-
sAurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de
Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofo-
lini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de
Lyon).

Pareceristas
Pareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Eduardo de Carvalho
Martins, Eduino José de Macedo Orione, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana
Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho,
Sérgio Xavier Gomes de Araújo.
Ficha Catalográfica
Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII
Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVII
Universidade de São Paulo
São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2008. Reitora: Suely Vilela
Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651 Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo

FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Diretor: Gabriel Cohn
Vice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini

Departamento de Filosofia
Chefe: Moacyr Novaes
Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino
Coord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de
Ávila Zingano
Endereço para correspondência:
Profa. Marilena de Souza Chaui
A/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431
e-mail: cadernos.espinosanos@gmail.com
site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos

Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// Tiragem: 1000 exemplares

A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões
de mudanças.
3
APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade


de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades
foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa,
tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os
Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão


dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade,
expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do
período sempre estiveram presentes a cada edição.

O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos


sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e
pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos,


tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros
projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores
brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele


período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a
comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando,
inclusive, outrosdepartamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento
deste trabalho.
Franklin Leopoldo e Silva

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SOBRE ESTE NÚMERO

Os Cadernos Espinosanos, dedicados a publicar trabalhos sobre filósofos


seiscentistas, apresenta desta vez um número inteiramente dedicado a Espinosa.
Boa leitura!

Os Editores

7
SUMÁRIO

IMANÊNCIA E AMOR NA FILOSOFIA DE ESPINOSA


José Ezcurdia..............................................................................11

A NOÇÃO DE CONTEMPLAÇÃO NO LIVRO II DA ÉTICA DE ESPINOSA


Luís César Oliva...........................................................................47

BACON E ESPINOSA: A CIÊNCIA, PARA QUE SERVE?


Marcos F. de Paula.....................................................................65

O CONATUS DE SPINOZA: AUTO-CONSERVAÇÃO OU LIBERDADE?


Rafael Rodrigues Pereira............................................................73

SOBRE A DEFINIÇÃO DE DEMOCRACIA NO TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO


André Menezes Rocha...............................................................91

IMAGINAÇÃO E SUPERSTIÇÃO NO TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO


(Cap. I ao XV)
Rogério Silva de Magalhães......................................................102

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES.........................................................121

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IMANÊNCIA E AMOR NA FILOSOFIA DE ESPINOSA*

José Ezcurdia**

Resumo: O texto apresenta uma interpretação pouco comum da filosofia de Espinosa, pois recupera
não só os elementos propriamente modernos sobre que ela se constitui, mas também a peculiar
apropriação que o filósofo realiza de conceitos ligados à tradição neoplatônico-cristã como vida,
amor Dei intellectualis, caridade ou a própria figura de Cristo consignados em sua correspondência.
Neste sentido, a explicitação do conteúdo e da relação entre os conceitos de imanência e de amor
surge como ponto de apoio para sublinhar que a doutrina de Espinosa articula-se ao levar a cabo
uma renovação de algumas das mais arcaicas posições religiosas judaico-cristãs — a concepção
do amor ao outro como divinização do homem em Deus e como realização de Deus no homem,
fundamentalmente —, que satisfazem as diretrizes de uma Modernidade que na afirmação da
autonomia do sujeito encontra um dos pilares que asseguram sua emergência.
Palavras-chave: vida, caridade, Cristo, imanência, amor.

É, por sob a massa de conceitos aparentados ao cartesianismo e


ao aristotelismo, a intuição que foi a de Espinosa, intuição que
nenhuma fórmula, por mais simples que seja, será suficientemente
simples para exprimir. Digamos, para nos contentar com uma
aproximação, que é o sentimento de uma coincidência entre o
ato pelo qual nosso espírito conhece perfeitamente a verdade e a
operação pela qual Deus a engendra, idéia de que a “conversão”
dos alexandrinos, quando se torna completa, é a mesma coisa que a
“processão”, e que quando o homem, que saiu da divindade, chega
a reentrar nela, somente percebe um movimento único onde havia
visto primeiramente dois movimentos inversos de ir e de retornar
— a experiência moral encarregando-se aqui de resolver uma
contradição lógica e de fazer, através de uma brusca supressão do
Tempo, com que voltar seja um ir.
(Bergson 1, p. 1351)

O pensamento de Espinosa, por sua profundidade, riqueza e dinamismo, há

* Tradução de Homero Santiago.


** Professor da Universidade de Guanajuato (México).
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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

séculos tem sido fonte das mais diversas interpretações e dos mais acalorados debates. No texto que ora apresentamos, abordamos duas noções fundamentais no
Vários dos autores maiores da tradição filosófica, explícita ou tacitamente, beberam da sistema espinosano — tempo e amor — que, a nosso ver, podem constituir-se como
filosofia de Espinosa no momento de construir suas próprias doutrinas. Basta recordar os chaves interpretativas para assinalar a forma e o lugar que ele ocupa no elenco da tradição
casos emblemáticos de Leibniz, Hegel e Nietzsche, que viram na doutrina desse filósofo filosófica: Espinosa, justamente mediante a noção de imanência, ao mesmo tempo em que
um espaço interessante de reflexão. Inumeráveis ao longo dos séculos foram os autores, desarma a estrutura da filosofia aristotélico-tomista relança a posição religioso judaico-
investigadores e estudiosos da filosofia que se aproximaram da doutrina espinosana cristão mais arcaica do amor como caridade, no qual o amor ao outro, a própria caridade,
para realizar uma interpretação de conjunto ou assinalar um ou outro aspecto dela. No é tanto plenificação do homem em Deus como realização de Deus no homem. De nossa
pensamento contemporâneo, a obra de Gilles Deleuze, Espinosa e o problema da expressão perspectiva, Espinosa faz da noção de imanência não o princípio de uma ruptura radical
(Deleuze 5), ocupa um lugar capital. Deleuze, nesta obra, analisa a transformação das com a tradição filosófica neoplatônico-cristã, mas o fundamento da determinação da
noções de emanação e participação na noção de imanência, tão cara ao sistema espinosano. autonomia de um homem moderno que, na construção de uma sociedade amorosa e justa,
Neste espaço não seria apropriado tentar realizar um inventário dos investigadores que alcança a exata afirmação de sua forma. Tradição judaico-cristã e Modernidade encontram
dedicaram seus esforços a analisar e explicar o pensamento de Espinosa. Textos como A uma mútua promoção na doutrina de Espinosa, ao passo que o vínculo do homem com
anomalia selvagem de Antonio Negri (Negri 17), que sublinha o caráter fundamentalmente Deus — vínculo baseado no amor a Deus como amor ao homem — traduz-se na afirmação
revolucionário e libertador do pensamento desse autor; ou A estratégia do conatus de da autonomia do próprio homem, a qual se faz capital na determinação do próprio mundo
Laurent Bove (Bove 2), que realiza uma fina análise do papel da memória, da imaginação moderno. As noções de imanência e amor constituem eixos fundamentais na doutrina
e do amor como mecanismos de afirmação e resistência ético-política do sujeito, são, de Espinosa, na medida em que permitem resolver as tensões que se estabelecem entre
entre muitas outras, obras sugestivas que nas últimas décadas contribuíram para tecer a os elementos judaico-cristãos e propriamente modernos que aparecem em sua doutrina.
rica rede de estudos sobre Espinosa. Ultimamente textos como “Hábito, conhecimento e Repassemos estas posições mais de perto.
virtude em Espinosa”, de Syliane Malinowsky-Charles (Malinowsky-Charles 16), que
mostra o vínculo e o sentido dessas noções no sistema espinosano, ou O suicídio: desejo ***
impossível ou o paradoxo da morte voluntária em Bento de Espinosa de Diana Cohen
(Cohen 4), que faz do estudo do tema do suicídio uma via de acesso ao pensamento e à É patente aos estudiosos da História da Filosofia que Espinosa é um autor
deliberação ética em Espinosa, dão mostras do amplo horizonte de reflexões que nosso moderno que desmonta o andaime conceitual da filosofia aristotélico-tomista, na medida
filósofo suscita. Como dizíamos, pela profundidade, riqueza e dinamismo que caracterizam em que estabelece uma noção de imanência em que Deus ou a substância identifica-se
a filosofia de Espinosa, é difícil sequer resumir sumariamente a variedade de autores com a Natureza. Para Espinosa, Deus se determina como uma causa que se constitui ao
com enfoques divergentes que lhe dedicam sua atenção: hegelianos e nietzschianos, manifestar-se em infinitos atributos infinitos e perfeitos (entre os quais se encontram o
racionalistas e intuicionistas, materialistas e espiritualistas, místicos e ateus, entre outras pensamento e a extensão) que exprimem a essência absolutamente infinita dele. Estes
escolas filosóficas, historicamente disputaram-se tanto a herança intelectual como o mais atributos, por sua vez, são o âmbito de atualização de uma série de leis da natureza ou
categórico repúdio à doutrina de nosso autor. O pensamento de Espinosa, atrevemo-nos modos infinitos que se afirmam como tais ao exprimir-se num domínio de ilimitados
a sugerir, poderia caracterizar-se como uma máquina produtora de sentido, pelo que é modos finitos. Substância e atributos (Natureza Naturante, Natura naturans) e modos
natural que se torne terra fértil para o afazer e as polêmicas dos filósofos. infinitos ou leis naturais (Natureza Naturada, Natura naturata) apresentam uma relação

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de causalidade imanente, isto é, uma relação causal em que a causa manifesta-se no efeito explicam a absoluta perfeição e a essência dela, a partir da produção de uma multiplicidade
e, ao manifestar-se nele, constitui-se como tal. ilimitada de modos em cada atributo infinito, que se vê determinada como tal graças à
Espinosa nos diz na Ética: ordem das leis naturais. Neste sentido, a própria passagem da unidade à multiplicidade
— a explicatio da tradição neoplatônica — é um momento fundamental da ontologia
Deus é causa imanente de todas as coisas, e não causa transitiva. espinosana, dado que a substância se determina como causa imanente, isto é, como causa
Tudo o que existe, existe em Deus e deve ser concebido por
que atua, justamente ao exprimir-se e realizar-se em seus efeitos.2
Deus; pelo que Deus é causa das coisas que nele existem […] Em
Para Espinosa, Deus, ao constituir-se no objeto de sua expressão, a própria
seguida, fora de Deus não pode dar-se nenhuma substância, isto é,
uma coisa que, fora de Deus, exista em Deus […] Por conseguinte, Natureza, solapa os fundamentos de toda metafísica em que Deus apresenta um caráter
Deus é causa imanente de todas as coisas, e não causa transitiva. transcendente relativamente a sua criação. Deus na metafísica de Espinosa não é diferente
(Espinosa 7, E, I, prop. XVIII e dem.)1 de sua manifestação, na medida em que ele se constitui como causa imanente dela: as
noções de transcendência, eminência, participação ou criação, próprias da metafísica
Todas as coisas são em Deus, na medida em que Deus mesmo se realiza nelas. A aristotélico-tomista, caem ante uma concepção do real em que Deus ou a substância
Natureza Naturante determina-se como tal enquanto se exprime e se constitui na Natureza identifica-se com a natureza entendida como um ilimitado domínio de modos sujeitos a
Naturada. Na doutrina desse filósofo, o Uno, a substância e seus atributos, afirma-se na leis. A noção de causa final e a hierarquia dos seres características da filosofia escolástica
medida em que se manifesta ou se exprime no múltiplo, entendido como uma série de leis — Deus, os anjos, o homem, as substâncias animal e vegetal, o acidente, por exemplo —
ou modos infinitos, que se realizam na ordem de uma multiplicidade ilimitada: vêem-se substituídas por uma ontologia do pleno em que primam os motivos da igualdade
e da univocidade, e em que a noção moderna de lei natural regula as relações entre os
Da necessidade da Natureza divina devem seguir-se infinitas
objetos ou modos finitos.
coisas em infinitos modos, isto é, tudo o que pode cair sob um
Segundo nosso autor, a substância, ao manifestar-se na Natureza, constitui-se
intelecto infinito.
Esta proposição deve ser evidente a quem quer, se pelo menos atentar como ordem imanente, enquanto as leis naturais que determinam a ordem da multiplicidade
nisto: da definição dada de uma coisa qualquer, o intelecto conclui surgem como o âmbito de sua atualização. Para nosso autor, a noção moderna de lei natural
várias propriedades, que efetivamente seguem-se necessariamente surge como o coração de Deus ou da natureza, substituindo as categorias metafísicas de
dela (isto é, da própria essência da coisa), e conclui tanto mais
forma e matéria, substância e acidente, próprias da lógica de gêneros e espécies.
quanto a definição da coisa exprime mais realidade, isto é, que a
Espinosa aponta no Tratado teológico-político:
essência da coisa definida envolva mais realidade. Como, porém,
a natureza divina possui absolutamente infinitos atributos, cada
um dos quais exprime uma essência infinita no seu gênero, é de Por governo de Deus, entendo a ordem fixa e imutável da natureza,
conseqüência que da sua necessidade devam seguir-se infinitas ou seja, a concatenação das coisas naturais. Já dissemos, e
coisas em infinitos modos, isto é, tudo o que pode cair sob um demonstramos algures, que as leis universais da natureza, segundo
intelecto infinito. (Espinosa 7, E, I, prop. XVI e dem.) as quais todas as coisas são feitas e determinadas, não são outra
coisa senão os eternos decretos de Deus, os quais implicam sempre
eterna verdade e necessidade. Dizer, portanto, que tudo acontece
A substância divina possui infinitos atributos infinitos que exprimem ou
segundo as leis da natureza é o mesmo que dizer que tudo é

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ordenado por decreto e por orientação de Deus. (Espinosa 12, TTP, graças à noção de vida. A vida é precisamente a capacidade expressiva ou explicativa pela
III, 45-46) qual a substância dá lugar à manifestação em que se constitui como tal:

O Deus de Espinosa surge como uma série de leis naturais, que se realizam A força pela qual Deus persevera em seu ser nada mais é do que
sua essência; falam bem aqueles que dizem que Deus é a Vida.
enquanto ordem necessária de toda multiplicidade. Deus, ao constituir-se em sua
(Espinosa 8, CM, VI, 260)
manifestação, na Natureza Naturada, determina-se como os modos infinitos ou leis
naturais em que esta se constitui.3 Deus, enquanto poder de existir, é vida que se afirma satisfazendo sua essência
Ora, é precisamente no momento da explicação do Uno no múltiplo que a como força e atividade. Deus, ao determinar-se como causa imanente, aparece como vida
substância de Espinosa adquire uma de suas significações fundamentais não só como lei que se constitui em sua própria atividade, na forma da própria multiplicidade que aparece
natural e ordem imanente, mas também como força e potência de existir, já que é só na como seu âmbito expressivo.
medida em que a substância se manifesta e exprime no domínio da Natureza Naturada que Como dizíamos, para nosso autor as noções de poder de existir e imanência
se determina precisamente como substância. às quais se articula sua noção de substância não implicam o estabelecimento de uma
Ao passo que a Natureza Naturante se realiza ao exprimir-se na Natureza ontologia da mediação, da participação ou da emanação, em que os diferentes domínios
Naturada, a causação imanente e infinita desta última, a força que lhe dá fundamento, do real estruturar-se-iam numa relação hierárquica ordenada em função de causas finais.
surge como princípio de sua determinação: Pelo contrário, a noção de lei natural junto de uma concepção da substância como poder
de existir implicam uma ontologia do pleno, exprimem a forma de Deus enquanto causa
Tenho para mim que mostrei assaz claramente que da suma potência
de Deus, ou seja, da sua natureza infinita, fluem necessariamente, imanente. Os diferentes momentos da ontologia deste autor — substância e atributos
ou se seguem com a mesma necessidade, infinitas coisas em (Natureza Naturante) e modos infinitos ou leis naturais e modos finitos (Natureza
infinitos modos, isto é, tudo: da mesma maneira que da natureza do Naturada) — são apenas regiões e relações no ser que exprimem uma mesma potência e
triângulo se segue desde toda a eternidade que os seus três ângulos
uma mesma realidade.5
são iguais a dois retos. Pelo que a onipotência de Deus esteve
em ato desde toda a eternidade e permanecerá para a eternidade
igualmente na mesma atividade. Destarte, a onipotência de Deus ***
é estabelecida de uma maneira muito mais perfeita, pelo menos a
meu parecer. (Espinosa 7, E, I, prop. XVII, esc.). Até aqui se deu conta da ontologia de Espinosa com base nas noções de poder
de existir ou vida e de lei natural. Neste sentido, parece que a noção de imanência seria o
A manifestação e realização da Natureza Naturante na Natureza Naturada supõe
princípio para estabelecer a concepção de Deus ou a Natureza como uma força cega que
a determinação da substância como força ou poder de existir, já que o ato mesmo de
se resolve em sua própria estrutura e em sua própria afirmação. A noção de imanência
sua manifestação é o princípio da afirmação de sua forma. Desta maneira, as noções
teria assim por objeto restituir ao real sua forma como uma atividade necessária sujeita a
de causalidade imanente e potência de existir vinculam-se e surgem como traços
leis que não apresentaria nenhum tipo de hierarquia entre seus elementos constitutivos.
fundamentais do conceito de Deus de nosso autor.4
A ontologia espinosana seria deste modo o exato reverso da metafísica aristotélico-
Esta determinação da substância como força ou poder de existir ganha conteúdo
tomista e para dar conta de sua estrutura bastaria apenas opor à noção de transcendência

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e seus conceitos subsidiários — hierarquia, participação, causa final, por exemplo — A incomunicabilidade dos atributos aparece como uma doutrina do espinosismo,
a de imanência e as noções de poder de existir e lei natural: a negação de um Deus derivada de uma concepção da substância como o absolutamente infinito, que se exprime
transcendente bastaria para rastrear a orientação da moderna ontologia espinosana, na em infinitos atributos infinitos, que se concebem como substâncias em seu gênero e,
medida em que essa negação permite estreitar a emergência da própria concepção de justamente por isso, não podem estabelecer relação alguma.
Deus ou a Natureza como poder de existir e lei natural. Aqui cabe assinalar que esta doutrina da incomunicabilidade dos atributos
Neste ponto cabe assinalar que estas afirmações são imprecisas. A ontologia de encontra-se acompanhada da teoria da correspondência na ordem causal dos mesmos. A
Espinosa estabelece uma concepção de Deus ou substância que se articula não só pelas ordem causal que exprime a atividade ou potência de existir divina nos diferentes atributos
mencionadas noções de poder de existir e lei natural, mas também por aquela de um amor permite estabelecer uma correspondência na articulação dos modos de cada um. Assim,
em que se atualiza um autoconhecimento e uma autocriação em que Deus ou a substância por exemplo, a cadeia causal e a lei nas quais se ordena a multiplicidade do atributo
determina-se como tal: para Espinosa, Deus ou a substância articula-se não só como um pensante correspondem à ordem e à lei que prevalecem nos modos do atributo extenso,
poder de existir, mas também como um amor que faz deste um poder de pensar. Espinosa justamente por ter um mesmo princípio e ordem imanente, a própria substância:
introduz em sua concepção imanentista do real um elemento proveniente das tradições
A ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão
judaico-cristã e neoplatônica, que coexiste com os elementos propriamente modernos
das coisas. (Espinosa 7, E, II, prop. VII)
estabelecidos em sua doutrina: a substância aparece não unicamente como uma força
cega e ordem natural, mas adquire também uma consciência que se faz possível tanto pela Esse par de teses, ou seja, a doutrina da incomunicabilidade dos atributos
autogeração como pela apropriação que, em seu intelecto infinito ou nas leis do atributo (derivada da noção da substância como o absolutamente infinito) e a da correspondência
do pensamento, tem de si mesma. A substância espinosana conhece-se a si mesma em da ordem causal deles (que tem sua base na teoria da substância como causa e ordem
sua expressão, a Natureza, que no intelecto infinito de Deus devolve-lhe sua imagem, imanente), encontra a determinação de seu lugar na ontologia de Espinosa ao constituírem
atualizando sua forma justamente como amor. Vejamos isso mais de perto. aspectos derivados da concepção de uma substância una. Esta concepção faz da existência
Espinosa assinala que a manifestação da substância em seus diferentes atributos dos atributos, e da ordem imanente comum a todos eles, não estruturas contraditórias,
estabelece uma incomunicabilidade entre eles, já que cada um exprime uma essência mas momentos interiores entre si da manifestação em que a substância se constitui como
infinita, que se concebe como uma substância em seu gênero. tal. Desta maneira, a ordem prevalecente no atributo pensante divino é uma só e a mesma
Dado que cada atributo implica uma essência, que é uma infinita forma de que a ordem do atributo extenso, só que compreendida sob a perspectiva da essência que
perfeição em si mesma, nenhum atributo com seus modos pode ser determinado nem lhe compete:
concebido por outro:
É necessário que aqui, antes de prosseguirmos, recordemos o
Com efeito, cada atributo é concebido por si, sem nenhum outro. Pelo que acima demonstramos: que tudo o que pode ser concluído por
que os modos de cada atributo implicam o conceito do seu atributo, um intelecto infinito como constituindo a essência da substância
mas não o de outro; e assim têm Deus por causa apenas enquanto ele é [os infinitos atributos] pertence a uma única substância, e, por
considerado sob esse atributo de que eles são modos, e não enquanto é conseqüência, a substância pensante e a substância extensa são
considerado sob qualquer outro. (Espinosa 7, E, II, prop. VI, dem.) uma e a mesma substância, compreendida ora sob um atributo, ora
sob outro. (Espinosa 7, E, II, prop. VII, dem.)

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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

Para Espinosa o real não é como uma série de parcelas - os diferentes atributos do pensamento, síntese da ordem que rege os modos dos infinitos atributos:
- que careceria de um fundamento comum. A extensão, o pensamento e o restante dos
Quanto à questão principal, considero ter demonstrado de maneira
atributos são regiões de uma unidade una que, ao determinar-se como ente perfeito que
bastante clara e evidente que o intelecto, embora infinito, pertence
possui toda forma de realidade, isto é, como o absolutamente infinito, exprime-se neles e
à Natureza Naturada, e não à Natureza Naturante. (Espinosa 6, Ep.
constitui-se a si mesma. IX, 45).
Ora, dado que todos os atributos incomunicáveis apresentam uma mesma raiz e
ordem imanente, encontram seu comum denominador precisamente no intelecto infinito A criação imediata da Natureza Naturada consiste no princípio pelo qual Deus
de Deus, quer dizer, nas leis da natureza que regem os modos do atributo pensante. O se conhece, já que tal Natureza, expressão da substância divina, encontra sua forma
intelecto infinito de Deus possui a idéia ou forma, não só de todos os modos do atributo no intelecto infinito de Deus, que mostra a Deus sua própria forma: Deus, como num
pensamento, mas também a de todos os modos de todos os atributos, na medida em que espelho, conhece-se em seu intelecto infinito e nesse conhecimento é que se determina
guarda uma correspondência com eles, fundada numa mesma ordem imanente e, em como infinito poder de pensar. Para Espinosa, a causalidade imanente se desdobra não
última instância, na participação imediata de todos os atributos num princípio uno. Assim, só no plano do absoluto poder de existir como no do absoluto poder de pensar, já que a
este princípio uno e imanente, o intelecto infinito de Deus, é síntese ou complicatio de existência mesma de Deus ou da Natureza Naturada implica uma forma ou idéia em que
todos os infinitos atributos e seus modos, e determina-se, por isso, como um infinito poder este exprime-se, recupera-se, conhece-se e determina-se como tal.
de pensar: Deus se conhece como causa que está totalmente presente em seu efeito, como
pensamento que se cria e se conhece a si mesmo, na medida em que seu intelecto infinito
Vês, portanto, como e por que considero o corpo humano como
complica toda forma dos ilimitados atributos existentes, que exprimem ou explicam sua
uma parte da natureza. E também considero a alma humana como
essência divina:
uma parte da natureza. Estabeleço, com efeito, que há na natureza
uma potência infinita de pensar que, enquanto infinita, contém em
É o que certos hebreus parecem ter visto como que através de um
si objetivamente toda a natureza e cujos pensamentos se encadeiam
nevoeiro, os quais afirmam que Deus, o intelecto de Deus e as
do mesmo modo que a natureza, seu objeto pensado (ideatum).
coisas por ele compreendidas são uma e a mesma coisa. (Espinosa
(Espinosa 6, Ep. XXXII, 173)
7, E, II, prop. VII, esc.)

O intelecto infinito de Deus aparece como princípio imanente e síntese da forma


Deus se constitui em sua manifestação, na Natureza Naturada, concebida como
em que se articulam os modos dos ilimitados atributos que exprimem a forma divina. O
um intelecto infinito que complica toda diversidade que exprime e manifesta sua própria
intelecto infinito de Deus é causa e nervo no qual Deus manifesta e recupera sua natureza.
forma, satisfazendo sua essência como vida e atividade. Deus se determina como absoluto
Tal intelecto exprime, por isso, a infinita potência de pensar de Deus.
poder de pensar, na medida em que seu intelecto infinito condensa a forma de infinitos
Nesse ponto cabe sublinhar que o intelecto infinito, enquanto lei e idéia de todos
atributos que manifestam sua essência dinâmica.
os modos finitos e infinitos de todos os atributos, realiza-se na Natureza Naturada. Assim
O conhecimento que Deus tem de si, a idéia em que se realiza, traduz-se também
como a potência de existir de Deus satisfaz-se na produção de ilimitados modos sujeitos
no amor infinito que tem de si mesmo, na medida em que se conhece justamente como sua
a leis, sua infinita potência de pensar encontra cumprimento exatamente no modo infinito
própria causa. Segundo Espinosa, Deus, ao conhecer-se, conhece-se como causa de si, e

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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

esse conhecimento traduz-se numa apropriação e numa plenitude que atualizam um amor poder de existir de Deus com sua vontade, e o poder de pensar, com sua inteligência:
que aparece como sua forma:
[…] a natureza da vontade de Deus, a qual não se distingue do
intelecto divino a não ser na perspectiva da nossa razão; quer dizer,
Deus se ama a si mesmo com um amor intelectual infinito.
a vontade de Deus e o seu intelecto de Deus são, na realidade,
Deus é absolutamente infinito, isto é, a natureza de Deus goza de
uma e a mesma coisa, distinguindo-se apenas do ponto de vista das
uma perfeição infinita, e isto acompanhado da idéia de si mesmo,
idéias que nós fazemos a respeito do intelecto divino. (Espinosa
isto é, da idéia da sua causa; e foi isto que nós dissemos que era
12, TTP, IV, 62.)
o amor intelectual, no corolário da proposição 32 desta parte.
(Espinosa 7, E, V, prop. XXXV e dem.)
Na Ética, ele assinala expressamente:

Espinosa, além de conceber Deus como força absoluta de existir, vê também A potência de pensar de Deus é igual à sua potência atual de agir.
nele uma potência absoluta de pensar. Este poder de pensar, toda vez que se constitui Isto é, tudo o que se segue formalmente da natureza infinita de
como a síntese dos atributos que exprimem a perfeição divina, constitui, no intelecto Deus segue-se também em Deus objetivamente na mesma ordem e
infinito de Deus, a idéia em que Deus se conhece como causa de si e se ama a si mesmo. com a mesma conexão da idéia de Deus. (Espinosa 7, E, II, prop.
VII, cor.)
O fato de que nosso autor não reconheça em Deus uma forma transcendente,
que se constitua como causa final e que seja diferente da Natureza, não implica que não
A concepção de Deus como potência de existir passa a ser incluída como
veja nele um Deus que se conhece e se ama na medida em que se conhece como causa de
momento da determinação total de Deus como poder de existir e poder de pensar.
si, determinando-se como um Deus que se relaciona consigo mesmo, quer dizer, como
A forma divina realiza-se no ato de sua manifestação, pelo que sua manifestação é
um Deus que é pessoa, afirmando-se precisamente não só como poder de existir, mas
idêntica a sua própria forma. Intelecto e vontade, causa formal e eficiente, são idênticos
também como poder de pensar: poder de existir e poder de pensar surgem como aspectos
na ontologia de Espinosa: o intelecto infinito de Deus é a Natureza Naturante que se
correlativos de uma mesma concepção de Deus imanente ou Natureza Naturada, na
constitui na Natureza Naturada, fazendo da idéia de Deus, de Deus que se cria, conhece-
medida em que sua existência não se concebe sem uma forma — a idéia que Deus tem
se e ama-se a si mesmo, a satisfação de Deus mesmo como vida. O Deus de Espinosa,
de si —, e sua forma não se realiza senão na existência. Existência e pensamento são
apesar de identificar-se com a Natureza Naturada, não aparece só como força, mas
como momentos de um Deus que é causa de si e determina-se como pessoa justamente ao
também como amor e consciência.6
conhecer-se e amar-se como causa de si mesmo.
Como antecipamos, apesar da negação das noções de transcendência,
Esta afirmação encontra sua expressão numa identificação das causas formal e
causa final, criação a partir
eficiente na natureza divina.
do nada, Espinosa concebe um Deus que se conhece a si mesmo e se determina
Deus é potência absoluta, que se constitui como existência, enquanto
como consciência absoluta.
desdobramento e explicação de infinitos atributos e leis, que manifestam a perfeição
Neste sentido a própria vida, a força e o alento que sustentam o homem e o
divina. Deus é um pensamento que se realiza como tal, enquanto síntese e complicação
mundo, é para este filósofo a vida de um Deus-consciência, que não é alheio ao Deus da
de toda forma exprime como poder de existir.
tradição judaico-cristã7:
Em algumas passagens do Tratado teológico-político, Espinosa identifica o

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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

O espírito de Deus significa a própria alma ou a inteligência do ao sujeito uma autonomia que é fundamental na emergência do mundo moderno.
homem, como em Jó: “E o espírito de Deus estava em minhas Espinosa, a partir de sua ontologia imanentista, possibilita uma recuperação da
vísceras”, por alusão à passagem do Gênesis, ou seja: “que Deus
posição originária religiosa judaico-cristã fundamental, já que impulsiona um vínculo do
infundiu no homem uma alma viva” Assim, Ezequiel, profetizando
homem com Deus que se satisfaz mediante a realização do reino de Deus na ordem humana
aos mortos, diz: “Dar-vos-ei o meu espírito e vivereis, quer dizer,
devolver-lhes-ei a vida”. (Espinosa 12, TTP, I, 25) e não pela negação da própria ordem humana, no interesse do próprio vínculo do homem
com Deus. É a partir dessa perspectiva que, em nosso juízo, é possível compreender por
O Deus de Espinosa é um Deus vivo no sentido da tradição judaico-cristã, no que é que Espinosa emparelha à própria concepção de Deus como amor e consciência a
qual a própria vida se traduz tanto em fonte de existência como de uma consciência que tese imanentista: o homem, ao afirmar Deus em si mesmo, promove não só seu vínculo
não é mais que autoconhecimento e amor. O Deus espinosano é um Deus-consciência, com Deus como também a determinação de um sujeito em que a marca da autonomia
na medida em que, uma vez que é causa de si, constitui-se ao conhecer-se e amar-se é constitutiva. Modernidade e religiosidade se entrelaçam no pensamento de Espinosa,
precisamente enquanto causa de si mesmo. na medida em que ele, ao restituir à posição religiosa judaico-cristã — justamente com
o concurso da noção de imanência — seu sentido fundamental de uma divinização do
*** homem a partir da realização da ordem divina no humano, colhe uma autonomia humana
que é capital na emergência do próprio mundo moderno.
Neste ponto podemos perguntar: Que significação tem o fato de Espinosa Repassemos as noções espinosanas de conhecimento adequado e verdade, assim
emparelhar em sua concepção ontológica as noções de imanência e amor? Tem sentido como as de perseverar no ser, conatus e virtude, para tornar explícitas estas concepções.
vincular uma concepção imanentista do real em que Deus se identifica com a Natureza a
outra em que Deus se ama a si mesmo e se determina como pessoa? Acaso a convivência ***
de ambas as perspectivas metafísicas constitui um reflexo de alguns vestígios — a própria
concepção de Deus como amor e consciência —, produto da formação religiosa juvenil Espinosa assinala que o sujeito, enquanto modo finito do atributo pensante,
de nosso autor? As noções cartesianas de pensamento e extensão, as próprias noções de determina-se fundamentalmente por sua capacidade de conhecer. O conhecimento surge
Deus como força e lei natural, não logram acaso estabelecer uma ontologia plenamente como forma do sujeito, ao ser este um modo em que o atributo divino do pensamento se
moderna na medida em que se desenvolvem sobre o fundo de uma concepção em que a exprime e se constitui como tal.
substância surge não só como poder de existir, mas também como poder de pensar? Neste
A essência do homem é constituída por certos modos dos atributos
sentido poderíamos afirmar que a ontologia de nosso autor é presa de uma incongruência
de Deus; a saber, por modos de pensar: a idéia de todos esses
de fundo? Será que Espinosa estabelece uma concepção moderna da substância como lei
modos é anterior por natureza e, sendo ela dada, os outros modos
natural que arrasta com dificuldade certos elementos da filosofia medieval? (aqueles a que a idéia é anterior por natureza) devem dar-se no
É aqui que a nosso ver as concepções éticas espinosanas podem dar resposta a tais mesmo indivíduo e, portanto, a idéia é o que constitui o ser da alma
perguntas. Espinosa estabelece uma ética que, por seu corte e sua orientação, ao mesmo humana. (Espinosa 7, E, II, prop. XI, dem.)

tempo em que restitui à posição religiosa um sentido e uma viabilidade que o caráter
O sujeito é uma modificação do atributo do pensamento, quer dizer, uma idéia
hierarquizante e estatizante da filosofia aristotélico-tomista terminara por anular, outorga
pela qual é possível o conhecimento, em termos de princípio e apreensão de diversas
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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

representações. A idéia aparece como forma da alma, ao ser o princípio de todas as Por idéia adequada entendo a idéia que, enquanto é considerada
representações e atos do pensamento como lembranças, volições, etc., a partir das quais em si mesma, sem relação com o objeto, tem todas as propriedades
ou determinações intrínsecas de uma idéia verdadeira. (Espinosa
o sujeito afirma sua própria capacidade de conhecer. Neste sentido, o próprio sujeito,
7, E, II, def. IV)
justamente enquanto modo do atributo pensante, não pode conhecer mais que idéias e
representações, dado que cada atributo se concebe como uma substância em seu gênero
O autor vê no sujeito uma potência de pensamento capaz de criar idéias que são
e, por isso, não mantém comunicação com nenhum outro. Nosso filósofo aponta que o
objetos de seu conhecimento. Na medida em que essas idéias tenham os traços próprios
objeto de conhecimento do sujeito são conceitos ou idéias, já que não poderia conhecer os
da idéia adequada serão, verdadeiras e não requererão uma correspondência com uma
modos de outros atributos, dado que existe uma incomunicação entre eles. Espinosa não
forma transcendente para determinarem-se como tais.
vê no intelecto uma prancha de cera, na qual se imprimiriam as formas provenientes da
É aqui que Espinosa utiliza os conceitos cartesianos de clareza e distinção
sensibilidade e se articulariam em imagens sensíveis e conceitos universais, mas vê nele
como critério fundamental para determinar a verdade intrínseca ou o caráter adequado
uma força pensante, um pensamento vivo e ativo como o atributo do qual é modificação
das idéias. Toda idéia que seja simples, que se conheça em si mesma e se distinga de
e expressão, capaz de criar seus próprios objetos.
todas aquelas com as quais guarda relação, em suma, toda idéia que seja clara e distinta,
A concepção do atributo como potência e atividade é o princípio para determinar
é objeto de um conhecimento imediato e, por isso, fonte de verdade. Pelo contrário, toda
a essência dos modos pensantes como formas capazes de criar os objetos em que dão
idéia obscura e confusa é princípio do erro, da ficção ou da dúvida:
cumprimento a sua essência justamente como conhecimento:
Portanto, de nenhum modo se deve temer que finjamos algo, desde
Por idéia entendo um conceito da alma, que a alma forma por ser que percebamos uma coisa clara e distintamente […] não podendo
uma coisa pensante. a idéia fingida ser clara e distinta, mas somente confusa, e como
Digo conceito de preferência a percepção porque a palavra toda confusão procede de que a mente conhece só em parte a coisa
percepção parece indicar que a alma padece em virtude do objeto; íntegra ou composta de muitas, não distinguindo o conhecido do
em troca, conceito parece exprimir uma ação da alma. (Espinosa desconhecido, além de que olha conjuntamente e sem nenhuma
7, E, II, def. III e exp.) distinção para os múltiplos elementos contidos em cada coisa.
(Espinosa 10, IE, II, 24)
O sujeito, ao ser modificação do atributo pensante que exprime a força divina,
pode criar os objetos nos quais realiza sua forma como idéia. O sujeito determina-se como A análise das idéias, sua redução aos elementos simples em que se compõem e
idéia que atualiza sua forma na produção de conceitos, que são objeto de seu conhecimento.8 a determinação de seu caráter claro e distinto, são o princípio para satisfazer cabalmente
Deste modo, numa primeira instância, a posição epistemológica espinosana cai dentro de um a forma ativa do intelecto e produzir idéias adequadas, idéias que possuem a verdade
enfoque idealista em que o objeto de conhecimento do sujeito são seus próprios conceitos como forma intrínseca. A adequação das idéias tem seu fundamento no método de
ou representações e ele não precisa mais do que destes para determinar a verdade. Assim, a sua determinação e na força criativa do sujeito, dado que Espinosa estabelece uma
tradicional definição de verdade como a adequação ou correspondência do intelecto à coisa incomunicabilidade de atributos, que exclui toda contrastação, seja empírica ou em
é deslocada pela coerência entre as idéias e a noção de idéia adequada. Para Espinosa o relação a uma forma transcendente, que ultrapasse a forma do atributo pensante.9
conceito de adequação assinala a certeza interna e a verdade intrínseca da idéia:

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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

Ora, apesar de a epistemologia espinosana poder ser abordada a partir de uma como conhecimento enquanto modo do atributo pensante do qual é expressão, e no qual
concepção do sujeito como modo do atributo pensante que não guarda vínculo algum tal atributo afirma sua forma.
com nenhum modo de outro atributo, ela também pode ser iluminada a partir da teoria Estas teses relativas à autonomia epistemológica do sujeito cobram um contexto
da correspondência dos atributos. Partindo dessa teoria — que se funda na participação de inteligibilidade mais amplo quando analisadas a partir das noções de conatus e
imediata dos próprios atributos numa mesma ordem imanente —, toda verdade determinada perseverar no ser. Segundo Espinosa o homem caracteriza-se como uma força que tende
em função das idéias ou essências objetivas encontra seu paralelo nas coisas físicas ou a afirmar sua existência através dos modos dos atributos extenso e pensante em que se
essências formais. Na medida em que a ordem e a conexão das idéias é a mesma que a constitui. Esta força não possui nada em si mesma que limite sua própria forma como
ordem e a conexão das coisas, a determinação de uma idéia adequada é idêntica à forma poder de existir.
de um modo do atributo extenso:
Toda coisa se esforça, quanto está em si, por perseverar no seu ser.
Entre a idéia verdadeira e a adequada, não reconheço nenhuma As coisas singulares, com efeito, são modos pelos quais os atributos
outra diferença a não ser esta: o termo verdadeira tem em conta de Deus se exprimem de modo certo e determinado, isto é, coisas
somente a concordância da idéia com seu objeto (pensado) e o que exprimem de modo certo e determinado a potência de Deus, em
termo adequada, em troca, a natureza da idéia em si mesma; de virtude da qual ele existe e age, e nenhuma coisa tem em si nada por
modo que, em realidade, entre a idéia verdadeira e a adequada não que possa ser destruída, isto é, que suprima a sua existência, mas, ao
há nenhuma diferença, afora essa relação extrínseca. (Espinosa 6, contrário, ela opõe-se a tudo o que poderia suprimir a sua existência;
Ep. LX, 270) portanto se esforça, tanto quanto pode e está em seu poder, por
perseverar no seu ser. (Espinosa 7, E, III, prop. VI e dem.)

Toda idéia adequada ou essência objetiva corresponde a uma essência formal dos
O esforço com que cada coisa persevera em seu ser é idêntico a sua própria
modos dos diferentes atributos, dado que existe uma correspondência entre os próprios
essência. Cada modo dos ilimitados atributos determina-se como tal enquanto sua
atributos, fundada em sua comum sujeição às leis da natureza. A adequação espinosana
essência caracteriza-se como conatus ou perseverar no ser, justamente como um conatus
não é o princípio de uma verdade que seria refém de um mero solipsismo, mas sim,
por afirmar sua forma que de maneira alguma pode negar-se a si mesma. A própria vida
pela presença em todo atributo de uma mesma ordem imanente, a própria verdade se
do corpo, a qual dá lugar à capacidade de agir e ser afetado, ou a da alma, fundamento
abre à determinação das essências formais ou coisas físicas, articuladas nas próprias leis
da caracterização do sujeito como ser racional capaz de produzir idéias adequadas e
naturais.
verdadeiras, traduz-se num perseverar no ser que constitui a essência do próprio sujeito.
Espinosa estabelece uma concepção epistemológica em que o sujeito, ao
Neste contexto Espinosa assinala que o perseverar no ser que determina a forma
atualizar seu princípio imanente, produz as idéias adequadas que são objeto de seu
do homem articula-se no desejo. O desejo é o princípio pelo qual a essência do sujeito
conhecimento. A concepção de imanência, destarte, restitui ao sujeito uma autonomia
realiza-se, justamente enquanto perseverar no ser. Seja como ser racional, seja como
epistemológica que a metafísica aristotélico-tomista terminara por anular: o sujeito, da
corpo que atua e é afetado, o sujeito afirma-se e constitui-se, ao possuir um desejo que o
perspectiva de nosso autor, não tem que dobrar seus conceitos à forma de um suposto
impele a existir:10
princípio transcendente para colher a verdade. Para Espinosa a verdade é assunto humano
e só humano, na medida em que é produto da atividade do homem que satisfaz sua forma
Este esforço, quando se refere só à alma, chama-se vontade, mas
quando se refere ao mesmo tempo à alma e ao corpo, chama-se
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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

apetite. O apetite não é senão a própria essência do homem, de Este autor não vê no valor uma forma transcendente a partir da qual o homem
cuja natureza se segue necessariamente o que serve para a sua oriente seu desejo e determine o valor das coisas concretas. Segundo ele, as coisas valem
conservação; e, portanto, o homem está determinado a fazer essas
porque são desejadas. Assim, o bem e o mal são produtos da capacidade racional do
coisas. Além disso, entre o apetite e o desejo não há nenhuma
sujeito, que encontra a orientação de seus julgamentos na afirmação de seu corpo e de sua
diferença, a não ser que o desejo se refere geralmente aos homens
quando têm consciência do seu apetite e, por conseguinte, pode alma e na satisfação de seu próprio desejo.11
ser assim definido: o desejo é o apetite de que se tem consciência. Ora, nesse contexto Espinosa aponta que o sujeito, ao afirmar seu princípio
(Espinosa 7, E, II, prop. IX, esc.) imanente, dá lugar às afecções ativas que exprimem com exatidão a atualização de sua
essência. Quando deixa de fazê-lo, padece aquelas afecções que minam a afirmação da
O sujeito determina-se como uma natureza essencialmente desejante, já que o
mesma. As afecções alegres e a apreensão de objetos que afirmam a forma do sujeito como
próprio desejo é o princípio a partir do qual se realiza como conatus. O desejo é a essência
conatus são para Espinosa sinônimo de vida, na medida em que consistem na atualização
do homem, enquanto este torna patente sua natureza como poder de existir em que se
de sua própria forma enquanto poder de existir. As afecções passivas ou tristes, pelo
satisfaz o caráter ativo da substância que surge como seu princípio imanente.
contrário, são resultado de uma disposição passiva do corpo e da imaginação que brindam
Neste sentido, o desejo mesmo é o princípio para determinar o que é o bem e
ao sujeito objetos que são nocivos para sua forma.
o que é o mal, já que sua satisfação, mediante a apreensão e posse de diversos objetos,
Neste sentido, nosso autor assinala que, ao serem a alma e o corpo aspectos
é o fundamento para dar cumprimento à forma do homem como perseverar no ser.
do conatus em que se determina o homem como perseverar no ser, as afecções ativas se
Enquanto os objetos satisfazem cabalmente o desejo do homem, são bons e, enquanto o
identificam com as idéias adequadas da razão — idéias que se caracterizam por ter um
contrariam, são maus, já que o impedem de promover seu conatus e afirmar sua forma
caráter claro e distinto —, já as afecções passivas ou paixões, com as idéias mutiladas e
como poder de existir.
confusas da imaginação:
Para Espinosa, as coisas não são boas nem más em si mesmas, mas tão-somente
na medida em que são objeto do desejo humano: A nossa alma, quanto a certas coisas, age, mas, quanto a
outras coisas, padece, isto é, enquanto tem idéias adequadas, é
É, portanto, evidente, em virtude de tudo isso, que não nos necessariamente ativa em certas coisas; mas, enquanto tem idéias
esforçamos por fazer uma coisa que não queremos, não apetecemos inadequadas, é necessariamente passiva em certas coisas.
nem desejamos qualquer coisa porque a consideramos boa; mas, Daí se segue que a alma está sujeita a um número de paixões tanto
ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para maior quanto maior é o número de idéias inadequadas que tem; e,
ela, porque a queremos, a apetecemos e desejamos. (Espinosa 7, E, ao contrário, é tanto mais ativa quanto mais idéias adequadas tem.
III, prop. IX, esc.) (Espinosa 7, E, III, prop. I e cor.)

O desejo e a sua satisfação são o princípio para a determinação do valor. O sujeito determina-se como perseverar no ser que vê nas idéias adequadas e nas
Tudo aquilo que favoreça a potência de agir do homem, entendido como conatus afecções ativas a satisfação de sua essência. O homem, enquanto conatus, faz de seu corpo e
que consta de corpo e alma, será bom. Pelo contrário, tudo aquilo que impeça seu de sua mente, das idéias e das afecções em que se constitui, aspectos de uma mesma afirmação
perseverar no ser, será mau. a partir da qual dá cumprimento ao desejo que o impele a permanecer na existência.12
É aqui que Espinosa utiliza a noção de virtude. A virtude é o incremento do

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conatus do sujeito, graças à afirmação de seu princípio vital e à posse de tudo aquilo que sujeitos que compartilham uma natureza comum. Neste indivíduo superior cada sujeito
é útil para promover sua permanência no ser: vê potencializada sua forma, justo ao identificar-se e nutrir do poder de existir de todos
aqueles que o compõem.
Por virtude e potência entendo a mesma coisa, quer dizer, a virtude,
enquanto se refere ao homem, é a própria essência ou natureza
Com efeito, se, por exemplo, dois indivíduos, absolutamente da
do homem, enquanto tem o poder de fazer algumas coisas que
mesma natureza, unem-se um ao outro, formam um indivíduo duas
só podem ser compreendidas pelas leis de sua própria natureza.
vezes mais potente que cada um deles separadamente. Portanto,
(Espinosa 7, E, IV, def. VII)
nada mais útil ao homem que o homem. Os homens, digo, não
podem desejar nada mais vantajoso para conservar o seu ser do
Quanto mais cada um se esforça e pode procurar o que lhe é útil,
que estarem todos de tal maneira de acordo em tudo que as almas
isto é, conservar o seu ser, tanto mais é dotado de virtude; e, ao
e os corpos de todos formem como que uma só alma e um só
contrário, quanto mais cada um omite conservar o que é útil, isto
corpo, e que todos, em conjunto, o quanto possam, se esforcem
é, o seu ser, tanto mais é impotente. (Espinosa 7, E, IV, prop. XX)
por conservar o seu ser e que todos, em conjunto, procurem o útil
comum a todos. (Espinosa 7, E, IV, prop. XVIII, esc.)
A virtude consiste na afirmação da essência do sujeito, que torna atual sua
natureza como conatus que consta de alma e corpo. A virtude é a realização da essência do O objeto mais útil ao homem é, segundo Espinosa o próprio homem, pois,
sujeito, enquanto poder de agir e existir, que se afirma na produção de múltiplas afecções ao concordar em natureza, permite-lhe construir um indivíduo superior na qual verá
alegres e idéias adequadas e na posse de tudo aquilo que é útil para promover sua própria promovida e acrescida a afirmação de seu conatus. O indivíduo superior é o objeto que
forma. O autor não concebe a virtude como a sujeição do corpo e da conduta do sujeito mais convém ao homem, pois nele verá potencializada e afirmada sua natureza, superando
a uma lei ou valor imposto a partir de sua exterioridade e que se articulasse sob a forma a própria limitação característica de sua essência individual. Para Espinosa o homem não
de um Deus transcendente. A virtude não é tampouco o cumprimento de um imperativo é o lobo do homem, muito pelo contrário, para este filósofo, o homem é para o homem um
categórico ao qual a variabilidade sensível se tenha que dobrar vendo-se negada, nem Deus. É no amoroso reconhecimento ao homem que o próprio homem gozará do objeto
o resultado de uma ética que tenha como centro o cumprimento do dever pelo dever. A que melhor afirma sua natureza, na medida em que este se identifica plenamente com ela,
virtude é a afirmação da vida, entendida a própria vida como o incremento do poder de permitindo-lhe formar um indivíduo superior, que nutrirá e afirmará seu próprio conatus.
existir do corpo e da alma do sujeito.
13
As idéias adequadas da razão, as afecções ativas e ditosas, têm no amor ao homem a
Neste contexto cabe assinalar que para nosso autor a virtude se satisfaz com forma de um conatus que se afirma e cresce, pois encontra a possibilidade de constituir
exatidão na construção do que ele denomina o indivíduo superior. É precisamente na uma unidade de existência mais potente que a sua própria e que passa a ser o âmbito de
construção do indivíduo superior — construção fundada no amor como caridade — que sua atualização.
o sujeito, toda vez que tem que encontrar o objeto adequado pelo qual verá precisamente Aqui cabe assinalar que a relação imediata entre os sujeitos, que é justamente
afirmada sua essência — o próprio homem —, vincular-se-á a seu princípio imanente princípio do indivíduo superior, torna-se possível enquanto aprofundam o que é comum
e realizará a forma mesma de Deus na ordem do humano, conseguindo ele próprio sua a eles, isto é, sua própria essência. Assim, na medida em que o sujeito afirma sua própria
própria divinização essência como vida e poder de existir, traz à tona aquilo que permite sua correspondência
Para Espinosa o indivíduo superior constitui-se como a soma de uma série de ou comunhão com outros homens: a participação imediata do sujeito em seu próprio

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princípio, o intelecto infinito de Deus, as leis do atributo pensante — que é síntese das vê a realização de sua essência na vivência imediata de sua forma como existindo em
leis ou modos infinitos de todo atributo — é o fundamento para fundar uma relação Deus. Nosso autor assinala que o sujeito é capaz de autoconhecer-se e autodeterminar-se
intersubjetiva em que os homens se realizam ao constituir um indivíduo superior. através das idéias e emoções em que se exprime sua alma, até o ponto em que faz desta o
Espinosa, na Reforma do intelecto, assinala como o cumprimento da essência âmbito onde emerge outro conhecimento de si mesmo mais amplo e mais profundo, em
do homem dá-se na união dela com seu princípio imanente, o intelecto infinito de Deus que se determina como idêntico ao conhecimento que Deus tem de si justamente em seu
ou a natureza universal. Este intelecto infinito é o fundamento da união dos homens em intelecto infinito.
uma unidade superior a eles mesmos: Este conhecimento, que surge como conhecimento do terceiro gênero, mostra
ao sujeito sua forma como a idéia em que Deus se conhece e se constitui a si mesmo, e é,
Nada, considerado em sua natureza, será dito perfeito ou imperfeito;
à diferença da razão que surge como conhecimento do segundo gênero, e a experiência
principalmente depois que soubermos que tudo o que acontece
sensível, do primeiro, conhecimento intuitivo ou visão intuitiva em que o sujeito, ao ser
observa uma ordem eterna e obedece às leis fixas da Natureza.
Como, porém, a fraqueza humana não alcança aquela ordem pelo em Deus, descobre-se eterno e infinito14:
seu conhecimento, e, entretanto, o homem concebe uma natureza
humana muito mais firme que a sua atual e, vendo, ao mesmo A nossa alma, na medida em que se concebe a si mesma e ao
tempo, que nada obsta a que adquira tal natureza, sente-se incitado seu corpo do ponto de vista da eternidade, tem necessariamente
a procurar-se os meios que o conduzam a tal perfeição. Tudo o que conhecimento de Deus e sabe que existe em Deus e é concebida
possa ser meio para chegar a isso chama-se verdadeiro bem; o sumo por Deus.
bem, contudo, é chegar ao ponto de gozar com outros indivíduos, A eternidade é a própria essência de Deus, enquanto esta envolve
se possível, dessa natureza. Qual, porém, seja ela mostraremos em a existência necessária. Portanto, conceber as coisas do ponto de
seu lugar, a saber, o conhecimento da união da mente com toda vista da eternidade é conceber as coisas enquanto são concebidas
a natureza. Este é, portanto, o fim ao qual tendo: adquirir uma pela essência de Deus como entes reais, ou seja, enquanto, pela
natureza assim e esforçar-me por que muitos a adquiram comigo; essência de Deus, envolvem a existência; e, por conseguinte, a nossa
isto é, pertence também à minha felicidade fazer com que muitos alma, na medida em que se concebe a si mesma e ao seu corpo do
outros entendam o mesmo que eu, a fim de que o intelecto deles ponto de vista da eternidade, tem necessariamente conhecimento
e seus apetites convenham totalmente com o meu intelecto e o de Deus e sabe, etc. (Espinosa 7, E, V, prop. XXX e dem.)
meu apetite. E para que isso aconteça, é preciso entender tanto
da Natureza quanto baste para adquirir semelhante natureza […]. O sujeito, na medida em que se vincula imediatamente a seu próprio princípio, o
(Espinosa 10, IE, I, 8) intelecto infinito de Deus, toma consciência de si como existindo nele, pois se reconhece
como idêntico à idéia pela qual Deus se conhece e determina como causa de si mesmo. O
A edificação do indivíduo superior radica na participação imediata do homem
conhecimento intuitivo ou do terceiro gênero — conhecimento sub specie æternitatis — é
em seu princípio imanente, o intelecto infinito de Deus. Esta participação imediata dá
para Espinosa um conhecimento supra-racional em que a afirmação do conatus humano
lugar ao vínculo dos homens a partir da realização de sua natureza comum, o próprio
desdobra-se no intelecto infinito de Deus enquanto síntese de Deus mesmo como poder
intelecto divino, no qual os homens verão realizada e potencializada sua essência. Neste
absoluto de pensar e poder absoluto de existir.15
contexto, Espinosa aponta que a função da razão e a produção de afecções ativas surgem
Neste contexto, Espinosa retoma a noção neoplatônica do amor Dei intellectualis,
como a ante-sala para chegar a uma forma de conhecimento não racional em que o sujeito

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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

no qual o sujeito encontra a plena satisfação de sua essência na medida em que participa Deus, que se manifestou em todas as coisas e, sobretudo, na alma
plenamente do amor e conhecimento que Deus tem de si, enquanto se conhece como humana e, mais que nenhuma outra coisa, em Jesus Cristo. Mas
sem essa sabedoria ninguém pode chegar ao estado de beatitude,
causa de si mesmo16:
já que só ela ensina o que é o verdadeiro e o falso, o bom e o mau.
E como, conforme foi dito, essa sabedoria manifestou-se, acima
Deus ama-se a si mesmo com um amor intelectual infinito.
de tudo, em Jesus cristo, por isso seus discípulos a pregaram tal
Deus é absolutamente infinito, isto é, a natureza de Deus goza de
como foi revelada por ele e mostraram que poderiam glorificar-se
uma perfeição infinita, e isto acompanhado da idéia de si mesmo,
mais que ninguém do espírito de Cristo. (Espinosa 6, Ep, Carta
isto é, da idéia da sua causa; e foi isto que nós dissemos que era o
LXXIII)
amor intelectual, (Espinosa 7, E, V, prop. XXXV e dem.)

O amor intelectual da alma relativamente a Deus é o mesmo Espinosa vê a completa afirmação da essência do sujeito na criação de idéias
amor de Deus, com que ele se ama a si mesmo, não enquanto é adequadas, afecções ativas e a assimilação de tudo que concorda com sua natureza. Esta
infinito, mas enquanto pode explicar-se pela essência da alma afirmação tem como resultado a criação de unidades de ser mais amplas e culmina no
humana, considerada do ponto de vista da eternidade; isto é, o
vínculo do homem com Deus, com o próprio intelecto infinito de Deus, Cristo, no qual
amor intelectual da alma relativamente a Deus é parte do amor
Deus mesmo se autogera, se conhece e se ama a si mesmo.
infinito com que Deus se ama a si mesmo. (Espinosa 7, E, V, prop.
XXXVI) Neste sentido, como adiantamos, Espinosa vê no amor ao outro, na ágape,
o princípio da construção de uma ordem intersubjetiva que, dentro ou fora do Estado,

Graças ao amor intelectual a Deus, o homem participa plenamente do amor que ao favorecer uma ordem social justa ou em oposição a um tirano, constitui-se como

Deus tem a si, pois sua alma exprime a forma mesma de Deus, que se satisfaz em seu a construção do indivíduo superior, como a afirmação de Deus enquanto Cristo ou o

intelecto infinito, que surge precisamente tanto como a causa imanente do homem, quanto intelecto infinito pelo qual Deus mesmo se reconhece como causa de si. O amor ao outro

como a idéia em que Deus se reconhece e se ama enquanto causa de si mesmo. O amor ou caridade é o amor que Deus tem a si mesmo, enquanto se atualiza no homem e que

intelectual de Deus é tanto amor do homem a Deus quanto amor de Deus a si mesmo que também é o vínculo do homem com Deus. O amor ao outro é a via para realizar a própria

engloba o homem.17 essência do sujeito em Deus ou para atualizar a ordem divina no humano.

Espinosa não aceita o dogma da encarnação nem as noções de queda e redenção, O filósofo, referindo-se ao caráter do ensino dos profetas, assinala que acertam

o que não impede que veja em Cristo, na Vida ou no Verbo divino, a idéia na qual Deus ao afirmar que o amor do homem pelo homem, a caridade ou ágape, é fundamental para

se conhece e constitui a si mesmo. Cristo ou a vida surge tanto como a forma de Deus, conhecer Deus:

quanto como princípio imanente da natureza humana, que nele encontra sua afirmação
É altura de passarmos então ao segundo ponto, isto é, de mostrar que
precisa18:
Deus não exige aos homens, através dos profetas, que conheçam
dele outra coisa que não seja a sua divina justiça e caridade, quer
E para exprimir mais claramente minha opinião […] digo finalmente
dizer, aqueles atributos que os homens podem imitar mediante
que para salvar-se não é absolutamente necessário conhecer Cristo
uma certa regra de vida. É o que Jeremias ensina em termos
segundo a carne; de forma muito distinta, entretanto, há-se de opinar
absolutamente claros. Diz ele, falando do rei Josias, no Cap. XXII,
sobre aquele filho eterno de Deus, ou seja, a sabedoria eterna de
15, 16: “na verdade, o teu pai comeu e bebeu; foi reto e fez justiça,

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Cadernos Espinosanos XIX José Ezcurdia

e por isso prosperou; atendeu aos direitos do pobre e do indigente, não tem que gerar uma adequação entre seus conceitos e certas essências transcendentes
e por isso prosperou; porque isso é conhecer-me, disse Jeová”. Não para assegurar a forma mesma da verdade. Neste sentido ainda, a própria noção de
menos claro é o que vem no cap. IX, 23: “mas cada um vanglorie-
imanência é a bússola que permite a nosso autor orientar suas concepções éticas com
se apenas de conhecer e de saber que eu, Jeová, pratico a caridade,
relação à estrutura do valor moral: o valor moral é expressão de um homem que ao
a retidão e a justiça sobre a terra, porque é isso que me agrada”.
(Espinosa 12, TTP, XIII, 170-171) praticar a virtude faz de seus juízos de valor e de suas afecções ativas a afirmação de
seu conatus. A virtude não é concebida como a sujeição do homem a uma lei ou um
Segundo Espinosa, a satisfação da essência humana não se traduz numa via valor transcendente que lhe sejam impostos desde sua exterioridade. Espinosa rechaça
negativa que tenha como meta o desprendimento do mundo da multiplicidade para toda moral heterônoma que não reconheça o poder criativo do sujeito, poder criativo
possibilitar ao homem seu vínculo com o Uno. A participação num princípio transcendente que surge como horizonte constitutivo das idéias adequadas e as afecções ativas em que
e a conseqüente negação da Natureza Naturada não é para Espinosa o fundamento da este se constitui como tal. Espinosa, graças à noção de imanência, devolve ao sujeito
completa atualização da forma humana. Pelo contrário, é na realização do reino de Deus uma autonomia epistemológica e moral que a metafísica da transcendência, se não tinha
na Terra, entendida como a construção de uma ordem intersubjetiva justa, baseada no terminado por anular, limitara significativamente. A noção de imanência é a via pela qual
amor — ordem oposta a toda concepção metafísica e social fundada nas noções de Espinosa recupera para o sujeito uma autonomia epistemológica e moral que contrasta
transcendência e hierarquia — que o sujeito há de alcançar a vivencia do indivíduo nitidamente com as concepções que a tal respeito a filosofia aristotélico-tomista da
superior e a completa promoção de sua essência. A justiça como expressão da caridade é baixa Idade Média apresenta. Neste mesmo horizonte de reflexões faz-se evidente que
a manifestação efetiva da construção de um indivíduo superior em que o sujeito tornará para nosso autor a sociedade não tem que se constituir numa estrutura hierárquica que
certa a atualização de seu princípio imanente, a vida ou o intelecto infinito de Deus, reproduza a pretensa estrutura também hierárquica do real, mas tem que impulsionar a
alcançando assim a exata afirmação de sua forma humana. construção de um indivíduo superior — fundado na caridade e na justiça—, que é cabal
expressão do exercício da autonomia humana.
*** Ora, neste contexto, novamente, cabe perguntar: por que Espinosa emparelha
suas concepções de corte ontológico, epistemológico e ético, às próprias concepções de
Espinosa, graças à noção de imanência, situa-se inteiramente tanto no moderno conhecimento intuitivo ou visio Dei Intellectualis e intelecto infinito de Deus como Cristo?
problema do conhecimento como nas modernas reflexões sobre a noção de lei natural que Por que Espinosa sublinha com tanta força a forma do conhecimento do segundo gênero,
fazem estourar as concepções metafísicas da Idade Média e seu correlato na determinação quando a cabal afirmação da forma humana está dada pelo conhecimento do terceiro
de um cosmos hierarquizado: a natureza, enquanto ordem necessária sujeita a leis, tem gênero? Por que nosso autor outorga tanta importância à autonomia moral, quando é em
que ser conhecida por uma função racional que garanta a produção de certeza graças aos Deus que o sujeito encontrará seu máximo bem? Em suma, por que Espinosa põe o relevo
critérios cartesianos de claridade e distinção, e não pelo exercício da lógica de gêneros na autonomia humana e em seu exercício na construção do indivíduo superior, se em
e espécies que supõe uma gradação dos seres e que se determina segundo a distância ou última instância sua doutrina inscreve-se no contexto de um posicionamento religioso?
a proximidade deles com relação a um primeiro princípio. A razão, ao ser expressão do Como adiantamos, em nosso julgamento é exatamente a recuperação do sentido
atributo pensante que é seu princípio, possui a faculdade de criar os conceitos que, por sua fundamental da posição religiosa judaico-cristã, a partir da noção de imanência, o princípio
adequação e sua coerência interna, apresentam a verdade como critério intrínseco. Esta que permite tornar inteligível a convivência dos elementos propriamente modernos e

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neoplatônico-cristãos na filosofia de nosso autor. É graças à afirmação da autonomia Referências bibliográficas


humana que o homem vincula-se ao divino, dando lugar à realização da ordem divina na
1. Bergson, H. La pensée et le mouvant, “L’intuition philosophique”. In: Œuvres.
ordem humana. Como Deus, o homem ganha, ao fazer nascer Deus no homem. Espinosa
Paris: PUF, 1991.
estabelece uma relação dialética em que a autonomia do homem e seu vínculo com o
2. Bove, L. La stratégie du conatus. Paris: Vrin, 1996.
divino se promovem e enriquecem reciprocamente, pois o homem vincula-se com Deus a 3. Cassirer, E. “Spinoza”. In: El problema del conocimiento. México: FCE, 1965.
partir unicamente da propagação da caridade e da justiça, e a conseguinte construção do 4. Cohen, D. El suicidio: deseo imposible o la paradoja de la muerte voluntaria en
reino de Deus na Terra: para nosso autor a imanência e a autonomia humana encontram Baruj Spinoza. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2003.
5. Deleuze, G. Spinoza y el problema de la expresión. Barcelona: Mario Muchnik,
sua expressão mais elevada no amor a Deus, e o amor a Deus só se afirma a partir de uma
1975.
imanência e uma autonomia que se traduzem na própria afirmação — epistemológica,
6. Espinosa. Correspondencia. Madri: Alianza, 1988.
ética e política — do homem. 7. _____. Ética. México: FCE, 1958.
Espinosa desmonta a arquitetura interna da filosofia aristotélico-tomista, 8. _____. Pensées métaphysiques. Trad. Charles Appuhn. Paris: Garnier-Flammarion,
precisamente para restituir à posição religiosa judaico-cristã seu sentido mais arcaico 1965.
9. _____. Tratado breve. Madri: Alianza, 1988.
como uma mútua promoção do homem e Deus que entranha a exigência de um sujeito
10. _____. Tratado de la reforma del entendimiento. Madri: Alianza, 1998
autônomo. Espinosa filosofa no contexto de uma modernidade que conhece sua emergência
11. _____. Tratado político. Madri: Técnos, 1985.
e que justamente graças à decidida afirmação da autonomia humana, pode recolocar-se o 12. _____. Tratado teológico-político. Madri: Alianza, 1990.
problema religioso: tradição judaico-cristã e modernidade fecundam-se reciprocamente 13. Ezcurdia, J. Spinoza ¿místico o ateo? Inmanencia y amor en la naciente Edad
no pensamento de Espinosa, pois toda vez que a intuição faz-se vínculo do homem com Moderna. Guanajuato: Instituto de Investigaciones en Educación, Universidad
de Guanajuato, 2005.
Deus, faz-se também o princípio de uma autonomia do sujeito que é fundamental no
14. Gebhardt, C. Spinoza. Buenos Aires: Ed. Losada, 1940.
mundo moderno.
15. Kaminsky, G. Spinoza: la política de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1990.
Espinosa não precisa renegar ao homem sua condição humana: quiçá a 16. Malinowsky-Charles, S. “Habitude, connaissance et vertu chez Spinoza”.
singularidade e a perene vigência de seu pensamento radiquem-se nisso. Sendo porta-voz Dialogue, XLIII, 2004.
de uma Modernidade que busca ganhar sua forma, ele afirma uma imanência pela qual o 17. Negri, A. La anomalía salvaje. Ensayo sobre poder y potencia en B. Spinoza.
Barcelona: Antropos-UAM Iztapalapa, 1993.
homem constrói o seu próprio caráter. Nisso se pode resumir o que é divino no homem.
18. Preposiet, J. “L’élément irrationnel dans le spinozisme”. Philosophique, 1998.
Como dizíamos noutro trabalho (Ezcurdia 13), nisso radica a preocupação espinosana de
19. Rousset, B. “L’être du fini dans l’infini dans la philosophie de Spinoza”. Revue de
elaborar uma ética, sendo fiel assim à velha tarefa do filosofar. philosophie, 18, 1986.
20. Tosel, A. “De la ratio à la scientia intuitiva ou la transition éthique infinie selon
Spinoza”. Philosophique, 1998
21. Zac, S. “Vie, Conatus, Vertú. Rapport de ces notions dans la philosophie de Spinoza”.
Archives de la philosophie, 1963.
22. _____. L’idée de vie dans la philosophie de Spinoza. Paris: PUF, 1963.

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Immanency and love in Spinoza’s philosophy não parcial, mas totalmente em seu efeito. O efeito não é, assim, uma degradação da
causa, mas sim a expressão em que se constitui como tal. Espinosa, ao adotar a noção de
Abstract: The following text presents a non-common interpretation of Spinoza’s philosophy, as it imanência, ao mesmo tempo em que adere à tradição neoplatônica, renova-a e outorga-
recovers not only the modern elements in which this philosophy lays, but the peculiar appropriation lhe uma nova orientação. Cf. Deleuze 5, p. 15: “Quanto à emanação, é certo que dela, tal
that Spinoza does of the concepts linked to the Neoplatonic-Christian tradition, such as life, amor
como da participação, achar-se-ão traços em Espinosa. Precisamente a teoria da expressão
Dei intellectualis, charity or the figure of Christ itself that appears in Spinoza’s correspondence.
e da explicação, tanto no Renascimento como na Idade Média, formou-se em autores
In this sense, the explicitation of the content and the relation between the concepts of immanency
and love, appears as a helping point to remark that Spinoza’s doctrine is articulated on making a
fortemente inspirados pelo neoplatonismo. Resta que [Espinosa] teve por meta e por efeito
renovation of some of the most archaic Judaeo-Christian religious approaches — the conception of transformar profundamente esse neoplatonismo, abrir-lhe vias totalmente novas, afastadas
loving the fellow human being as the divinization of the man in God and, at the same time, as the da emanação, inclusive se ambos os temas coexistiam […] É a idéia de expressão que
realization of God in the man, fundamentally —, that satisfy the guidelines of a Modernity that finds pode mostrar como o neoplatonismo evoluiu até mudar de natureza, em particular como a
in the affirmation of the autonomy of the subject, one of the bases that guarantees its emergence. causa emanativa tendeu mais e mais a converter-se em causa imanente”.
Keywords: life, charity, Christ, immanency, love 3. Cf. Deleuze 5, p. 100: “Há uma ordem no que Deus produz necessariamente. Esta
ordem é a da expressão dos atributos. Primeiro, cada atributo se exprime em sua natureza
NOTAS: absoluta: um modo infinito imediato é, pois, a primeira expressão do atributo […] O
atributo se exprime de uma maneira certa e determinada ou, antes, de uma infinidade
de maneiras que constituem os modos existentes finitos. Este último nível permaneceria
1. As citações de Espinosa apresentam-se com a notação de C. Gebhardt: obra, livro inexplicável se os modos infinitos, no gênero de cada atributo, não contivessem leis ou
e página, por exemplo: (TTP, III, 45-46); à exceção da Ética, que apresenta a notação princípios de leis segundo as quais os modos finitos correspondentes são eles mesmos
própria deste texto: livro, proposição, demonstração, corolário: (Ética, I, prop. XVI e determinados e ordenados”.
dem.). Para assinalar as obras da Espinosa citadas, apresentam-se as abreviaturas utilizadas 4. Cf. Deleuze 5, p. 112, relativamente à determinação da essência divina como poder
por Atilano Domínguez em suas edições da Alianza Editorial: CM=Cogitata Metaphysica de existir na filosofia de Espinosa: “A expressão se apresenta aqui como a relação da
(Pensamentos metafísicos); E=Ethica (Ética) Ep=Epistolæ (Correspondência); IE=T. de forma e do absoluto: cada forma exprime, explica ou desenvolve o absoluto, mas o
Intellectus Emendatione (Tratado da reforma do intelecto) ; KV= Korte Verhandeling absoluto contém ou ‘complica’ uma infinidade de formas. A essência absoluta de Deus é
(Tratado breve); PPC=Pr. Philosophiæ Cartesianæ (Princípios de filosofia cartesiana); potência absolutamente infinita de existir e atuar; mas, precisamente, se afirmamos esta
TTP=Tractatus teologico-politicus (Tratado teológico-político). [Sempre que possível, primeira potência como idêntica à essência de Deus é sob a condição de uma infinidade
procedendo a certos ajustes, utilizarammos as traduções de Espinosa disponíveis em de atributos formal ou realmente distintos. Potência de existir e atuar é, pois, a essência
português: a do Teológico-político por Diogo Pieres Aurélio, Martins Fontes, e as da formal-absoluta [de Deus].
coleção Os Pensadores; N. do T.]. 5. Cf. Rousset 19, p. 232: “Em resumo, segundo a ontologia da primeira parte da Ética, o ser
2. Cf. Deleuze 5, p. 171, onde o autor assinala os nexos históricos da expressão e infinito e único, na infinidade de suas ordens infinitas de existência [atributos], é, segundo
da imanência, em função da determinação de sua forma e relação no pensamento da as modalidades infinitas das determinações de sua existência [leis], nas modalidades
Espinosa. A respeito, ele assinala: “A idéia de expressão dá conta da verdadeira atividade finitas de seu ser que são as concreções [modos], extrinsecamente determinadas, mas
do partícipe e da possibilidade da participação. É na idéia de expressão que o novo capazes de receber determinações intrínsecas das modalidades infinitas de determinação.
princípio da imanência afirma-se. A expressão aparece como a unidade do múltiplo […] Nesse edifício impressionante não há mediação a encontrar, pois não há mediação a
O próprio Deus se exprime no mundo; o mundo é a expressão, a explicação de um Deus buscar; não há mediação porque as relações dos termos não são relações entre os seres,
[…] que é o ser ou do Uno que é” mas relações do ser no ser, suas ordens de existência e suas modalidades de existência,
Deleuze situa a noção de explicatio no pensamento de Espinosa na linha de um conceito suas leis infinitas e sua concreção no infinito; é precisamente isso que significa a
de emanação neoplatônica que evoluiu rumo à imanência. Deus como causa aparece determinação de uma substância una e única, ao mesmo tempo que infinita, a redução

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das substâncias cartesianas [extensão e pensamento] ao ser atributivo, a redução dos exclusivamente a utilidade do homem”.
indivíduos substanciais ao ser modal, e a promoção das leis da natureza à categoria 12. Aqui é pertinente assinalar que Espinosa faz da psicologia e da ética o domínio de
de modos eternos; é por isso também que o ser do finito no infinito, em seu ser real, aplicação do método. As afecções são, para o autor, idéias que, ao serem conhecidas
positivo e ativo, não é um ‘participar’, mas um ‘ser parte de’.” clara e distintamente, apresentam uma adequação que possibilita a exata construção ou
6. Cf. Zac 22, p. 126: “A consciência é do mundo. Não há dois setores, a consciência e a realização da essência do sujeito, segundo as leis em que articula sua própria natureza.
natureza. A consciência que Deus tem de si mesmo, Espinosa o repete em múltiplas ocasiões, 13. Cf. Zac 21, p. 426, em que se assinala a forma da virtude como manifestação da
pertence à Natureza Naturada; a Natureza desvela-se a si mesma tal como ela é”. própria vida enquanto princípio imanente do sujeito, que não atende mais que a si mesma
7. A respeito, cf. Zac 22, p. 38: “Ao ligar a idéia de causalidade imanente de Deus à idéia para realizar-se como tal: “Enfim, embora o homem dotado de virtude procure o útil
de Vida, o pensamento de [Espinosa] integra-se na tradição judia. Deus é a Vida e a fonte para si mesmo, a própria virtude é incondicional: ninguém, com efeito, esforça-se por
de Vida. A vida de Deus dá conta da existência e da essência das coisas”. conservar seu ser por causa de outra coisa. Ao procurar aquilo que é útil à vida, vida do
Neste contexto, igualmente, cf. Preposiet 18, p. 58: “No universo espinosano, todos os corpo e vida da alma, a vida busca-se a si mesma. Espinosa está de acordo com o rei
seres — e não somente os homens — são dotados de alma (omnia animata), ainda que em Salomão que a virtude é sua própria recompensa, o que ele pensa é que a virtude é uma
diferentes graus. E mais, Espinosa reteve do judaísmo, que foi sua formação primeira, não conquista da vida e que o signo dessa conquista é o gozo que a define como o passo de
o esqueçamos, a idéia de um Deus não somente vivente, mas que é a própria vida”. uma perfeição menor a outra maior”.
8. Cf. Cassirer 3, p. 23: “Neste tipo de conhecimento, o intelecto já não é algo condicionado, Cf. Bove 2, p. 25, em que o autor sublinha o caráter essencialmente ativo do conatus, ao
mas o elemento condicionante. A ‘idéia’ adquire agora a significação e a importância que assinalar o suicídio como resultado da imposição sobre este de uma série de imagens mais
o sistema maduro de Espinosa a atribui. A idéia não deve ser depreciada como se fosse a potentes que ele mesmo e que conduzem a sua negação. O sujeito não pode suicidar-se
imagem muda pintada num quadro, mas sim nasce na afirmação ou na negação. É, pois, senão perdendo contato com sua própria natureza ativa: “No caso da alma de um corpo
antes um conceito que uma imagem, deve ser chamada de ‘conceptus’ e não ‘perceptio’, esgotado, arrebentado por forças exteriores, impotente para realizar novas contrações, ela
já que só assim exprimimos que não é algo que seja dado de fora, mas que deve sua contempla no processo de dissolução do corpo mesmo a imagem de sua desesperança,
origem pura e exclusivamente ao espírito.” quer dizer, sua tristeza definitiva. Entretanto é um postulado fundamental do espinosismo
9. Cabe aqui assinalar que Espinosa, na Reforma, não distingue expressamente o erro da ficção afirmar que não existe nada que busque, por sua própria natureza, sua própria destruição
e da dúvida, mas assinala tão-somente sua origem comum: a passividade do intelecto. e que assim o homem jamais pode desejar morrer ou estar triste e que todo seu esforço
10. Kaminsky sublinha a importância do desejo no sistema filosófico de Espinosa como essencial é suportar a depressão e a tristeza, ainda que este esforço seja freqüentemente
estrutura a partir da qual o sujeito, enquanto perseverar no ser, determina-se como tal. Cf. vencido. Há por que conceber o suicídio como uma derrocada do desejo e não como uma
Kaminsky 15, p. 43: “As modificações que [o homem] pode experimentar não são todas das vias do desejo enquanto tal: a morte jamais é desejada por si mesma”.
necessariamente nocivas; pelo contrário, sua potência de agir pode ser aumentada e esse é 14. Cf. Preposiet 18, p. 63: “Porém, a sabedoria ainda não é a salvação. A comunidade
o desejo essencial do humano. O perseverar pode ser bem definido como paixão de ser”. dos seres racionais não é o terreno da felicidade suprema. A vida segundo a razão é
11. Cf. Deleuze 5, p. 238: “O que é o mal? Não há outros males que a diminuição de nossa uma condição necessária, mas não suficiente para alcançar a beatitude. É somente do
potência atual e a decomposição de uma relação. Inclusive a diminuição dessa potência conhecimento do terceiro gênero que nascerá a maior satisfação do espírito. E Espinosa
de atuar não é um mal senão porque ameaça e reduz a relação que nos compõe. Reter- recorda que, quanto mais se é capaz deste gênero de conhecimento, mais se é consciente
se-á, pois, do mal, a seguinte definição: é a destruição, a decomposição da relação que de si mesmo e de Deus. Com efeito, a idéia de si mesmo, acompanhada da idéia de
caracteriza um modo. Em conseqüência, o mal não pode supor-se senão do ponto de vista Deus como causa, tal como a intuição a mostra, conduz Espinosa à consciência de sua
particular de um modo existente: não há bem nem mal na Natureza em geral, porém há o eternidade em Deus, fazendo nascer o que ele chama o amor intelectual a Deus”.
bom e o mau, o útil e o prejudicial para cada modo existente. O mal é o mau do ponto de 15. Cf. Zac 22, p. 191: “Quando os homens seguem o itinerário que Espinosa indica, eles
vista desse ou daquele modo. Sendo nós mesmos homens, julgamos o mal de nosso ponto se salvam, porque vivem no e pelo intelecto infinito de Deus. Produz-se então uma união
de vista, e Espinosa recorda com freqüência que fala do bom e do mau considerando de consciências, um acordo de intelectos no intelecto infinito de Deus, que faz pensar

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nisso que os teólogos cristãos chamam a comunhão dos santos”. A NOÇÃO DE CONTEMPLAÇÃO NO LIVRO II
16. Cf. Tosel 20, p. 202: “O amor intellectualis Dei se dirige a Deus na medida em que
nasce do conhecimento das coisas (e do próprio corpo), sub specie æternitatis, ou seja, DA ÉTICA DE ESPINOSA
das coisas consideradas em seu elo de identidade necessária com Deus. Tal é a beatitude,
a alegria que nasce da e que se identifica com a compreensão das individualidades que não Luís César Oliva*
cessam de produzir-se e de suas leis de produção, compreensão que inclui a singularidade
de cada espírito-idéia de um corpo determinado”.
17. Cf. Gebhardt 14, p. 31, em relação aos ascendentes doutrinais do Deus espinosano: Resumo: O trabalho investiga o conceito de contemplação no livro II da Ética de Espinosa,
“Leão Hebreu, do platonismo renovado pelo Renascimento, extrai uma concepção do levantando os usos do termo, bem como seu sentido preciso, nos contextos de cada um dos gêneros
de conhecimento propostos pelo filósofo. A análise destes casos indica que Espinosa utiliza o termo
mundo apoiada no amor como força cósmica. Espinosa orientou sua teoria dos valores
para indicar o conhecimento de singulares, seja no terreno da inadequação (primeiro gênero) ou
na de Leão Hebreu; ele desenvolve a combinação do conceito de uma razão universal
da adequação (terceiro gênero). As aparições do termo nas proposições sobre o segundo gênero
com a teoria das idéias do Platão, sobre a qual se funda a teoria do conhecimento de
(conhecimento de propriedades gerais) não comprometem a hipótese, pois não visam ao objeto
Leão Hebreu, em sua teoria da razão infinita e das essências […] Finalmente, Espinosa propriamente dito deste gênero de conhecimento, mas a uma etapa prévia deste.
toma, em conceito e fórmula, a teoria de Leão Hebreu da fusão do amor de Deus e o Palavras-chave: Espinosa, contemplação, imaginação, razão.
conhecimento de Deus no amor intelectual do espírito a Deus. Se Maimônides oferece a
Espinosa o primeiro esquema da teoria escolástica do ser, Leão Hebreu lhe proporciona
o mito de um mundo dinâmico adequado ao novo sentido de vida de sua época”. Este trabalho é o início de uma investigação a respeito do termo
18. Cf. Zac 22, p. 191: “O intelecto infinito de Deus é como Cristo, ‘Filho eterno contemplação na Ética de Espinosa. Não havendo, até onde eu sei, um trabalho prévio
de Deus’, porque não se lhe poderia separar. Ele é a sabedoria universal, porque é o sobre isso, a investigação se justificaria naturalmente, desde que, é claro, houvesse
conhecimento adequado de Deus mesmo e de tudo o que dele se deriva e, ao mesmo indícios de que o referido termo tem um papel relevante no percurso argumentativo da
tempo, fonte de vida e comunhão”.
obra. Os trechos abaixo selecionados acompanham as ocorrências freqüentes do termo no
Igualmente, cf. Deleuze 5, p. 295, em que se distingue o conhecimento do segundo gênero,
capaz de dar conta das noções comuns, do conhecimento do terceiro gênero, capaz de dar livro II da Ética e meus comentários buscam mostrar que se trata de um uso específico e
conta da figura de Cristo: “Esta condição de nosso conhecimento não é uma condição não de um mero recurso a um sinônimo de “ver” ou “considerar”, ao mesmo tempo em
para todo conhecimento: o verdadeiro Cristo não passa pelas noções comuns. Adapta, que tentam explicitar qual é este uso. Quanto à relevância de tal termo para a filosofia de
conforma às noções comuns o ensino que ele nos dá; mas seu próprio conhecimento Espinosa (a qual só poderá ser plenamente estabelecida após estudos similares das partes
é imediatamente do terceiro gênero; a existência de Deus lhe é pois conhecida por si
III e V), podemos encontrar indício suficiente para ela na demonstração da proposição 36
mesma, como todas as essências e a ordem das essências. É por isso que Espinosa diz:
diferentemente de Cristo, nós não conhecemos a existência de Deus por si mesma”. da parte V:

O Amor intelectual da Mente a Deus é o próprio Amor de Deus pelo


qual Deus ama a si próprio, não enquanto é infinito, mas enquanto
pode ser explicado pela essência da Mente humana considerada
sob o aspecto da eternidade, isto é, o Amor intelectual da Mente a
Deus é parte do amor infinito pelo qual Deus ama a si mesmo.

* Professor do Departamento de Filosofia da USP.

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Cadernos Espinosanos XIX Luís César Oliva

Demonstração: dá em seu objeto. Por ser idéia do corpo, a Mente percebe o que se passa nele, já que
ele é causa (ainda que parcial) disto que se passa nele e, portanto, ser idéia do corpo
Este Amor da Mente deve ser referido às ações da Mente (pelo é ser idéia também deste poder causal. Nos termos do corolário da proposição 9 (que
corol. da prop. 32 desta parte e pela prop. 3 da parte III), e por isso
fundamenta a demonstração da prop.12), o que quer que aconteça no objeto singular de
é a ação pela qual a Mente contempla a si própria conjuntamente à
uma idéia qualquer, disso é dado o conhecimento em Deus apenas enquanto tem a idéia
idéia de Deus como causa (pela prop. 32 desta parte e seu corol.),
isto é (pelo corol. da prop. 25 da parte I e corol. da prop. 11 da desse objeto. Ora, como mostrará o corolário da prop.11, em Deus, “ter a idéia do corpo”
parte II), a ação pela qual Deus, enquanto pode ser explicado pela é constituir a mente humana; logo, se Deus conhece aquele acontecimento singular por
Mente humana, contempla a si próprio conjuntamente à idéia ter a idéia do corpo, isto significa que a mente conhece aquele mesmo acontecimento
de si; por isso (pela prop. preced.) este Amor da Mente é parte
singular.
do amor infinito pelo qual Deus ama a si próprio. CQD. (grifos
Voltando à demonstração da prop.17, é dito que “por quanto tempo o
meus)
Corpo humano é assim afetado, por tanto tempo também a Mente humana (pela prop. 12

desta parte) contemplará esta afecção do corpo”. Ou seja, contemplar a afecção do corpo
O amor intelectual de Deus é, nas palavras do escólio da mesma proposição,
significa que a mente percebe ou tem idéia de um acontecimento singular (a afecção)
nossa salvação ou beatitude ou liberdade, portanto é elemento fundamental da conclusão
ocorrido no corpo. Até aqui, a contemplação é portanto esta idéia ou modo de pensar singular
da parte V. Ora, esse amor é inseparável da contemplação de si mesmo, como fica claro na
pelo qual a mente percebe o que se passa em seu objeto. No entanto, o corpo não é a única
demonstração citada. Isto nos parece bastante como estímulo para iniciar a investigação.
causa do referido acontecimento, não estamos no terreno da adequação. Ao contrário, a
No decorrer desta, reuniremos paulatinamente os elementos oferecidos para a compreensão
afecção do corpo é a maneira como o Corpo humano é afetado por corpos externos, ou
do conceito de contemplação.
seja, ao perceber que o corpo foi afetado, a mente também percebe que o corpo, onde se
deu a afecção, não é a causa única da afecção. De fato, como se demonstrara na prop.16,
CONTEMPLAÇÃO E IMAGINAÇÃO
“a idéia de cada maneira como o Corpo humano é afetado por corpos externos deve
envolver a natureza do Corpo humano e simultaneamente a natureza do corpo externo”.
Se excetuarmos a aparição no escólio da proposição 10, em termos que
As propriedades comuns dos corpos expostas na pequena física o garantem. Sendo assim,
só poderemos compreender mais à frente, a introdução do verbo “contemplar” se dá na
a contemplação, como modo de pensar singular, retrata um acontecimento singular, mas
proposição 17. Diz o enunciado: “Se o Corpo humano é afetado de uma maneira que
não simples, bem como a mente e o corpo são coisas singulares, mas de modo algum
envolve a natureza de um Corpo externo, a Mente humana contemplará esse mesmo corpo
simples. De maneira que a mente contempla, simultaneamente com a afecção, os corpos
externo como existente em ato ou como presente a si, até o Corpo ser afetado por uma
externos causadores.
afecção que exclua a existência ou a presença daquele mesmo corpo”. A demonstração
Mas ainda há um elemento essencial da idéia de contemplação que não
invoca a proposição 12 para comprovar que a afetação do corpo humano por um corpo
abordamos e que dará azo ao corolário seguinte. A mente não contempla o corpo externo
externo envolve a contemplação pela Mente desta mesma afecção. Na prop.12, Espinosa
de uma maneira qualquer, mas sim “como existente em ato ou como presente a si, até o
dizia que o que acontece no objeto da idéia que constitui a Mente humana deve ser
Corpo ser afetado por uma afecção que exclua a existência ou a presença daquele mesmo
percebido pela Mente humana, ou seja, a Mente terá idéia deste acontecimento que se
corpo”. Se a idéia do corpo externo envolvida pela idéia da afecção permite à mente

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Cadernos Espinosanos XIX Luís César Oliva

contemplar o corpo externo, isto significa que tal idéia é uma afirmação da existência do diretamente a essência do Corpo do próprio Pedro, e não envolve a existência senão
corpo externo, entendida como presença dele. Ou seja, a contemplação é a afirmação de enquanto Pedro existe; a segunda, porém, indica mais a constituição do corpo de Paulo do
presença, seja da própria afecção, seja do corpo externo, que só compartilha a afirmação que a natureza de Pedro, e por isso, enquanto durar essa constituição do corpo de Paulo,
de existência da afecção enquanto sua idéia é envolvida pela idéia da afecção. Por isso a a Mente de Paulo, ainda que Pedro não exista, contudo o contemplará como presente a
existência ou presença do corpo externo pode ser negada se uma nova afecção a excluir. si”. Se até aqui a proposição havia destacado o envolvimento de corpos externos nas idéias
A contemplação do objeto como presente não depende, porém, da existência das afecções do corpo, com base sobretudo no corolário 1 da prop.16 (a Mente humana
presente efetiva do objeto. Daí a necessidade do corolário seguinte: “A Mente poderá percebe a natureza de muitíssimos corpos junto com a natureza de seu corpo), agora
contemplar, como se estivessem presentes, os corpos externos pelos quais o Corpo invoca-se o corolário 2 da prop.16 (as idéias que temos dos corpos externos indicam mais
humano foi afetado uma vez, ainda que não existam nem estejam presentes”. Em a constituição do nosso corpo do que a natureza dos corpos externos), o que destaca as
primeiro lugar, poderíamos nos perguntar se isto não rompe a identidade entre a ordem limitações daquele envolvimento da natureza dos corpos externos. A saber, a necessidade
e conexão das coisas e das idéias. A contemplação do corpo externo quando este não de uma causa externa para a afecção é objeto de uma idéia (a da causa) inseparável da idéia
está presente seria uma idéia sem objeto? Não, a contemplação tem por objeto a afecção da afecção, mas o conteúdo da primeira idéia não pode afirmar, da causa, mais do que sua
corporal e sua causa. Se esta última está ou não presente não é importante, desde que operação de afetar o corpo1. Afirmar a existência atual ou presença da causa, que é o que se
ela tenha sido a causa do efeito. Presente ou ausente, continua envolvida na idéia da dá na contemplação, é desconsiderar o fato de que as idéias dos corpos externos indicam
afecção, visto que esta afirma sua causa e nunca poderá deixar de fazê-lo enquanto mais uma constituição do nosso corpo do que a natureza dos corpos externos. Ou seja, a
o efeito for atual. No fim da parte II, a identificação entre idéia e volição explicará afirmação da existência do corpo externo contida na idéia da afecção não pode extrapolar
por que a contemplação não pode separar-se da afirmação da existência, mas a ordem a afirmação de existência de uma dada constituição do nosso corpo, a qual, como efeito,
demonstrativa não permite que Espinosa use este argumento agora. Por isso, o filósofo aponta para uma causa, mas não garante sua presença ou existência atual. Por isso a idéia
fará a demonstração a partir das propriedades dos corpos apresentadas na pequena de Pedro no sentido mais forte, a qual explica a essência do corpo de Pedro, difere da idéia
física. Quando os corpos exteriores determinam as partes fluidas do Corpo a incidir de Pedro em Paulo, que é a idéia que Paulo tem de Pedro por ter sido afetado por ele ou, em
sobre as moles de modo a deformar suas superfícies, o movimento das partes fluidas outros termos, a contemplação de Pedro por Paulo. A idéia de Pedro afirma a existência de
será refletido da mesma maneira sempre que reencontrar tais superfícies. Disso resulta Pedro. Já a contemplação de Pedro, na medida em que não cai em erro, afirma a existência
a mesma afecção sobre o corpo que ocorrera antes, embora a causa externa não esteja de uma determinada constituição do corpo de Paulo, a qual, enquanto durar, fará a Mente
mais presente. Pela proposição 12, a mente perceberá este acontecimento singular e de Paulo ter a idéia de Pedro presente como causador desta constituição.
contemplará o corpo externo como presente. De fato, ele está ausente, mas seu efeito É este tipo de constituição que permitirá a Espinosa, na continuação do escólio,
(no caso, a deformação das superfícies) permanece presente, e o envolvimento de uma explicar a imaginação: “Ademais, para empregarmos as palavras usuais, chamaremos
causa externa continua necessariamente ligado à idéia da afecção. imagens das coisas as afecções do Corpo humano cujas idéias representam os Corpos
O escólio torna ainda mais clara a explicação: “Ademais (pelo corol. preced. externos como que presentes a nós, ainda que não reproduzam as figuras das coisas. E
e corol. 2 da prop. 16 desta parte), inteligimos claramente qual diferença há entre uma quando a Mente contempla os corpos desta maneira, diremos que imagina”. Ou seja,
idéia, por ex. a de Pedro, que constitui a essência da Mente do próprio Pedro, e a idéia do a imaginação é a capacidade da Mente humana de contemplar corpos externos como
próprio Pedro que está em outro homem, digamos Paulo. Com efeito, a primeira explica presentes a partir das afecções do corpo, as quais, enquanto implicam a exterioridade, são

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imagens. Em resumo, a longa proposição 17 usa o termo “contemplação” para introduzir sim a idéia que está na mente de um homem (no caso, o próprio Pedro), indicando mais
e explicar a imaginação enquanto afirmação da presença de coisas singulares externas. a constituição atual do seu corpo do que a natureza dele. Ou seja, o conhecimento que
Pedro tem de seu corpo é tão imaginativo quanto o conhecimento que dele tem Paulo. Por
A CONTEMPLAÇÃO DA MENTE E DOS CORPOS isso não é absurdo dizer, embora Espinosa não use estas palavras, que pelas idéias das
afecções a Mente contempla seu próprio corpo como existente em ato.
As proposições 19, 23 e 26 não trazem o termo contemplação (exceto na Na proposição 23, o mesmo se dá no conhecimento que a Mente tem
demonstração do corolário da última), mas contêm todos os elementos que constituem a de si própria: “A Mente não conhece a si própria senão enquanto percebe as idéias
noção. As três se referem a um conhecimento que a Mente tem de um certo objeto singular das afecções do Corpo”. Igualmente se inicia a demonstração pela refutação de um
(respectivamente o Corpo humano, a própria mente e o corpo externo) exclusivamente por conhecimento adequado da Mente sobre si mesma. Depois, ela afirma o conhecimento
meio das idéias das afecções do Corpo. Ora, este é o mecanismo próprio da contemplação imaginativo da Mente. Afinal, se as idéias das afecções do corpo envolvem a natureza do
imaginativa, cuja explicitação está a cargo destas três proposições. próprio corpo humano, elas convêm com a Mente, que nada mais é do que a idéia do corpo.
Vejamos o enunciado da prop.19: “A Mente humana não conhece o Logo, as idéias das idéias destas afecções (ou o conhecimento delas, que a proposição 22
próprio Corpo humano nem sabe que ele existe senão pelas idéias das afecções pelas quais provara estar na mente) devem envolver a idéia da idéia do corpo humano, ou seja, o
o Corpo é afetado”. Na demonstração, depois de uma primeira parte em que Espinosa conhecimento da mente. Embora mais tortuoso, o itinerário desta proposição chega a um
mostra por que a Mente não pode ter conhecimento adequado do Corpo humano, vemos: resultado análogo ao da prop.19: a Mente só pode ter um conhecimento imaginativo de si
“Mas as idéias das afecções do Corpo estão em Deus enquanto constitui a natureza da mesma, ou seja, contemplar a si mesma por meio das idéias das afecções do corpo.
mente humana, ou seja, a Mente humana percebe essas afecções (pela prop. 12 desta A proposição 26 não precisa provar que a Mente contempla o
parte) e, conseqüentemente (pela prop. 16 desta parte), o próprio Corpo humano, e este corpo externo como existente por meio das afecções porque isto já estava na prop.17,
(pela prop. 17 desta parte) como existente em ato; logo, a Mente humana percebe o que apresentara a imaginação. Restava agora provar que esta era a única maneira de
Corpo humano apenas nessa medida”. O itinerário começa repetindo a demonstração da contemplar a existência do corpo externo. E a demonstração é curiosa: “Se o Corpo
prop.17: a passagem pela prop.12 garante que a Mente percebe todos os acontecimentos humano não é afetado de nenhuma maneira por um corpo externo, então (pela prop. 7
singulares em seu corpo, e a passagem pela prop.16 atesta que tais idéias das afecções desta parte) nem tampouco a idéia do Corpo humano, isto é (pela prop. 13 desta parte),
envolvem a natureza do corpo humano e a do corpo externo. Ora, assim como antes isto a Mente humana é afetada de alguma maneira pela idéia da existência desse corpo, ou
propiciava a contemplação do corpo externo como existente em ato, agora é o próprio seja, não percebe de nenhuma maneira a existência desse corpo externo”. Aqui a parte
Corpo (também causa parcial da afecção) que é contemplado como existente em ato, negativa (ou melhor, restritiva) da demonstração não passa pelo conhecimento que Deus
mesmo que o filósofo não use os termos “contemplar” ou “imaginar”. Não se trata do tem enquanto constitui a Mente humana. Tudo fica no registro das relações de afecção: se
conhecimento que a Mente tem do Corpo por ela ser conhecimento do Corpo. A primeira a ordem e a conexão das idéias é a mesma e o Corpo não é afetado por um corpo externo,
parte da demonstração serve justamente para mostrar que o conhecimento que a Mente é então a Mente também não é afetada pela idéia da existência deste corpo externo, isto é,
não é o conhecimento que a Mente tem. Este último, em relação ao Corpo humano, é tão não o percebe. Por uma vez Espinosa parece não basear sua demonstração na condição
imaginativo quanto em relação aos corpos externos. Nos termos do escólio da prop.17, que tem a alma de ser parte do intelecto infinito de Deus (corolário da prop.11), mas na
a idéia de Pedro em Pedro não é a idéia que constitui a essência da Mente de Pedro, mas relação necessária que há entre a idéia de que o Corpo é afetado e o reconhecimento da

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existência de um corpo afetante. Mais do que nas outras proposições, aqui a existência e oposições entre as coisas a partir da contemplação simultânea de muitos singulares.
é explicitamente identificada com a presença de algo à Mente, ou seja, com a “idéia de Fazendo isto, ela contemplará clara e distintamente. Note-se que neste caso a contemplação
Pedro em Paulo”, a qual indica apenas a manutenção de uma determinada constituição está no ponto de partida. Posteriormente voltaremos ao texto deste escólio para melhor
do corpo humano. A diferença é que agora está explicitamente descartada a percepção delimitar este novo uso de “contemplação”, mas pode-se antecipar que o que está em
da existência efetiva do corpo externo, aquela que o corpo externo tem como objeto de jogo aqui é a saída do campo da estrita imaginação.
uma idéia existente e que se confunde com sua essência. Por isso toda existência externa,
inclusive a da Mente e do corpo humano, é apenas imaginada. O termo “contemplar” é O SEGUNDO GÊNERO DE CONHECIMENTO
retomado na demonstração do corolário justamente para apontar que toda esta percepção
da exterioridade é imaginativa. Esta retomada confirma a suposição de que o termo estava As próximas aparições do termo “contemplar” estarão no contexto da
implícito nas demonstrações da prop.19, 23 e 26. Razão, não mais da imaginação, o que nos dará a chance de verificar o que há de comum
na utilização do termo em gêneros de conhecimento diversos. À primeira vista, o termo
A DETERMINAÇÃO EXTERNA contemplar estaria deslocado no terreno da razão e isso porque, ao menos até agora,
a contemplação esteve ligada ao conhecimento (imaginativo) de um singular por meio
Não por acaso, as três proposições são retomadas no corolário da das idéias das afecções do Corpo. Como a razão é o terreno do comum, não do singular,
prop.29, visando apresentar a chamada ordem comum da natureza. As proposições 19, não haveria espaço para a contemplação. Mas vejamos como surge o conhecimento do
23 e 26 haviam mostrado que a Mente só percebe seu corpo, a si própria e aos corpos comum na prop.38 (O que é comum a todas as coisas e está igualmente na parte e no todo
externos por meio das idéias das afecções do corpo. Em outras palavras, ela os contempla não pode ser concebido senão adequadamente). A demonstração parte do fato de que a
como existentes percebendo suas imagens no Corpo. Todo este campo de conhecimento ordem e a conexão das idéias e das coisas é a mesma. Sendo assim, aquilo que é comum
(que as prop.25, 27 e 29 mostraram não ser adequado) constituirá a ordem comum. Por a todos os corpos será objeto de uma idéia adequada em Deus tanto enquanto tem a idéia
isso Espinosa diz no escólio: “a Mente não tem de si própria, nem de seu Corpo, nem do Corpo humano (ou seja, enquanto constitui a Mente humana), como enquanto tem as
dos corpos externos conhecimento adequado, mas apenas confuso e mutilado, toda vez idéias das afecções dele (pelas quais a Mente conhece a si e aos corpos), afecções que
que percebe as coisas na ordem comum da natureza, isto é, toda vez que é determinada envolvem a natureza do Corpo humano e dos corpos externos. Ora, o que na prop.25 e
externamente, a partir do encontro fortuito das coisas, a contemplar isso ou aquilo”. 27 era motivo de conhecimento inadequado, dado que o conteúdo das idéias das afecções
Mais um elemento é acrescentado a esta primeira noção de contemplação: perceber por não esgotava o conteúdo de conhecimento do corpo humano e dos corpos externos, aqui
idéias das afecções é ser determinado externamente a contemplar um singular. O encontro aponta para a inevitabilidade do conhecimento adequado. Entenda-se: o fato de que a
fortuito das coisas, ou seja, a causalidade externa que nossas afecções atestam mas que idéia da afecção envolve a natureza do corpo afetado e do afetante não é uma limitação
a Mente não pode conhecer adequadamente, nos faz perceber algo e afirmá-lo como quando se trata de conhecer não um corpo singular mas algo presente em todas as partes
existente, porém tal existência não pode ir além do imaginário. de ambos os corpos. Pois seja enquanto envolve a natureza do afetante, seja enquanto
No entanto o mesmo escólio nos mostra como o contemplar pode envolve a natureza do afetado, a idéia da afecção envolve a mesma propriedade A (por
extrapolar o campo da ordem comum: quando, em vez de ser determinada externamente a hipótese). Por conseguinte, quando a Mente contempla um singular externo por meio
contemplar um singular, a Mente é determinada internamente a inteligir as conveniências de uma afecção, ou seja, quando imagina, ela não tem conhecimento adequado daquele

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singular contemplado, mas concebe adequadamente a propriedade comum a seu corpo e a diferença reside apenas no grau de confusão. Neste último caso, a força de imaginar
ao externo, desde que a afecção tenha ocorrido por meio da propriedade2. Deste modo, não é inteiramente superada, porém perde a capacidade de diferenciar os singulares,
embora a contemplação não se aplique diretamente ao comum, é por meio dela, ou pelo imaginando distintamente apenas aquilo em que eles convêm ao afetar o corpo. Daí
menos simultaneamente a ela, que ocorre o conhecimento racional. surgem Homem, cão, etc. Mas a maneira de organizar estes singulares não é universal,
Contudo é nos escólios da prop.40 que o termo “contemplar” e sim dependente do tipo de afecção sofrida por cada um, ou seja, da ordem comum da
efetivamente aparece. Curiosamente isto se dá no espaço dedicado à crítica dos natureza. “Por exemplo, os que mais freqüentemente contemplaram com admiração a
universais. Qual é, segundo Espinosa, a gênese dos termos transcendentais como estatura dos homens, inteligem sob o nome de homem o animal de estatura ereta; os
Ser e Coisa? Vejamos no escólio 1: “Estes termos se originam de o Corpo humano, que, porém, se acostumaram a contemplar outra coisa, formarão outra imagem comum
visto que é limitado, ser capaz de formar em si distintamente e em simultâneo apenas dos homens, a saber, o homem é um animal que ri, um animal bípede sem penas, um
um certo número de imagens (expliquei o que é imagem no escol. da prop. 17 desta animal racional; e assim quanto ao restante cada um formará imagens universais das
parte), excedido o qual, estas imagens começam a se confundir; e, se este número de coisas de acordo com a disposição de seu corpo”.
imagens que o Corpo é capaz de formar em si distintamente em simultâneo é excedido E por que a razão não sofre do mesmo vício? Retomemos o escólio
grandemente, todas se confundirão por completo entre si. Sendo assim, é patente pelo da prop.29. Lá, Espinosa havia dito que a Mente pode ter conhecimento adequado
corol. da prop. 17 e pela prop. 18 desta parte que a Mente humana poderá imaginar “toda vez que é determinada internamente, a saber, a partir da contemplação de muitas
distintamente em simultâneo tantos corpos quantas imagens possam ser formadas coisas em simultâneo, a inteligir as conveniências, diferenças e oposições entre elas”.
simultaneamente em seu próprio corpo. Ora, quando as imagens se confundirem Estar internamente disposta não significa dispensar completamente a contemplação
completamente no corpo, também a Mente imaginará confusamente todos os corpos de singulares existentes. Ao contrário, é a partir da contemplação de muitos em
sem qualquer distinção e os compreenderá como que sob um único atributo, a saber, simultâneo que a Mente inteligirá as propriedades comuns. Mas, em primeiro lugar, esta
sob o atributo do Ser, da Coisa etc.” Será que o mesmo mecanismo que permite à contemplação não pode cair na idéia totalmente confusa dos transcendentais, nem sequer
Mente, a partir da contemplação dos singulares, perceber o que há de comum entre na idéia parcialmente confusa que ignora as diferenças e só imagina distintamente o que
seu corpo e eles pode também descambar para a produção imaginativa de universais? mais afetou o corpo. É preciso que a contemplação simultânea não dilua a distinção dos
De fato não, embora as similaridades saltem aos olhos. A diferença começa pelo uso singulares contemplados. Do contrário, não será possível inteligir as conveniências e
das expressões “formar distintamente” e “em simultâneo”. diferenças, visto que os singulares terão sido perdidos para o conhecimento. No lugar
Dada a limitação de nosso Corpo, não é possível acumular deles, só restaram propriedades, as quais não se impuseram pelo que têm de comum com
muitas imagens distintas umas das outras sem que estas se confundam. Adquiridas os homens e sim por aquilo que difere em cada um, o impacto afetivo.
gradativamente, elas permitem, isoladamente ou em número limitado, a contemplação Em segundo lugar, a razão não cai no vício da produção de transcendentais
(conhecimento inadequado, é bom lembrar) de singulares. É isso que significa “imaginar porque, se o conhecimento racional pode ser desencadeado pela contemplação de um
distintamente”. Acontece que a produção de Universais depende de uma contemplação singular externo por meio de uma afecção, nem por isso foi a imaginação que produziu
simultânea. Quando isto ocorre e o número de imagens é excessivo, a contemplação a noção comum. Por ocasião das afecções, a Mente, por meio das noções comuns que
de singulares distintos dá lugar a uma idéia confusa, à qual a Mente tende a atribuir possui, concebe adequadamente o que há de comum entre ela e os objetos contemplados.
existência, assim como fizera para os singulares3. Entre os transcendentais e as espécies, Como diz Gueroult: “É o que decorre imediatamente da natureza mesma da noção

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racional que, sendo em nós adequada, absoluta e perfeita (cf. prop. 34), só pode ser afasta-se da razão e aproxima-se agora da contemplação por ser um conhecimento de
produzida por nosso entendimento de maneira absoluta, ou seja, espontaneamente de singulares (como é dito no escólio 2 da prop.40, “este gênero de conhecimento procede
dentro, e não recebida passivamente de fora como o resultado, confusamente registrado, da idéia adequada da essência formal de alguns atributos de Deus para o conhecimento
das percepções imaginativas. Por isso nós compreendemos que, assim que ela aflora adequado da essência das coisas”). Sendo assim, poderíamos interpretar o enunciado
na consciência imaginativa, deve completar-se autenticamente, não somente de maneira da prop.44 como afirmando que não é da natureza da Razão (seja enquanto segundo ou
conforme à sua natureza, por um ato do entendimento puro, mas ainda de maneira terceiro gênero) contemplar as coisas como contingentes, dado que seu conhecimento é
conforme à natureza de seu objeto, o qual, não sendo condicionado pela série infinita verdadeiro e não há coisas contingentes; é, no entanto, da natureza da razão (enquanto
das causas singulares, é fundado de maneira incondicionada, ou seja, absolutamente, no terceiro gênero, visto que o segundo não conhece coisas singulares) contemplar as coisas
atributo que lhe subjaz” (Gueroult 3, p.355). Assim vimos como a contemplação, mesmo como necessárias. A contemplação seria portanto um conhecimento de singulares, seja
mantendo seu caráter imaginativo e produzindo-se pela ordem comum da natureza, pode inadequado (no caso da imaginação) ou adequado (na ciência intuitiva).
ter um papel no conhecimento racional, que escapa à ordem comum4. Vejamos se tal interpretação pode ser confirmada pelos corolários e
escólio. O corolário 1 afirma que é só pela imaginação que contemplamos as coisas,

A PROPOSIÇÃO 44 sejam passadas ou futuras, como contingentes. O famoso escólio que o explica passa-
se integralmente no terreno da imaginação, portanto não há dúvida de que o termo

Até agora, apesar dos usos diversos (no primeiro e segundo gêneros), o contemplação, aqui, se referirá ao uso já largamente apresentado de um conhecimento

significado do termo “contemplação” foi o mesmo, sempre referindo-se ao conhecimento inadequado de singulares por intermédio das idéias das afecções do corpo. Já o

imaginativo de singulares (mesmo na formação de universais, estes são tomados pela corolário 2 passa ao registro da razão e da adequação, dizendo, por oposição ao terreno

imaginação como singulares). Ainda que o conhecimento do segundo gênero parta de uma temporal e imaginativo do escólio, que “é da natureza da razão perceber as coisas

contemplação distinta e simultânea, esta última, em si mesma, pertence ainda ao primeiro sob algum aspecto de eternidade”. A demonstração aqui parece pôr em risco nossa

gênero. Na proposição 44, porém, parece haver uma mudança significativa: “Não é da hipótese (embora o enunciado não trouxesse o termo “contemplar”) pelo fato de passar

natureza da Razão contemplar as coisas como contingentes, mas como necessárias”. explicitamente pelas proposições (37 e 38) que fundamentam o conhecimento do segundo

A razão, conhecimento adequado do comum, contempla? Minha hipótese de trabalho gênero. O termo “contemplar” seria então usado indiferentemente para o conhecimento

é que a razão propriamente dita, o conhecimento do segundo gênero, não contempla, imaginativo de singulares ou para o conhecimento adequado de propriedades comuns

mas por outro lado não é exclusivamente ela o objeto da proposição mencionada. A (segundo gênero) ou essências singulares (terceiro). Mas analisemos com cuidado: o

demonstração, de fato, parte do caráter verdadeiro do conhecimento da razão, baseando- início da demonstração simplesmente retoma o caminho argumentativo da demonstração

se para isso na prop.41. É de notar, todavia, que prop.41 não se limita ao segundo gênero da prop.44. Lá Espinosa havia passado do conhecimento verdadeiro da razão (p. 41)

(O conhecimento do primeiro gênero é a única causa da falsidade, o do segundo e para a conveniência da idéia verdadeira com seu ideado (I, ax. 6), isto é, a razão conhece

do terceiro, por outro lado, é necessariamente verdadeiro). Isto significa que o termo as coisas como são. Ora, as coisas são necessárias (I 29), logo a razão contempla as

“Razão”, na prop.44, refere-se ao conjunto do conhecimento adequado, ou seja, razão e coisas como necessárias. No corolário 2 , Espinosa igualmente parte da conclusão de

ciência intuitiva. Se os dois últimos se aproximam por ambos serem conhecimentos não- que a razão contempla as coisas como necessárias, e o faz verdadeiramente (prop.

imaginativos (embora pelo menos a razão possa partir da imaginação), a ciência intuitiva 41), logo as coisas são em si necessárias. A novidade surge quando o filósofo passa a

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investigar a natureza desta necessidade. Na prop.31, quando o que estava em jogo era o não “contemplar coisas”. Também o laço com a eternidade é enfraquecido, pois em vez
conhecimento da duração, não da eternidade, Espinosa nos remeteu ao escólio de I 33, de invocar I 16 (a qual fala de coisas), limita-se a apontar o caráter não-singular dos seus
que havia definido os termos necessário, contingente e impossível. Ali dizia o filósofo objetos, que por isso não teriam relação com o tempo. Sem o mesmo peso ontológico
que uma coisa é necessária seja por sua essência, seja por sua causa: “a existência de da demonstração anterior, esta conclusão deve limitar-se ao vago “sob algum aspecto
uma coisa segue necessariamente ou de sua própria essência e definição, ou de uma de eternidade”, em vez do mais forte “sob este aspecto de eternidade”. O enunciado
dada causa eficiente. Ademais, também por esses motivos uma coisa é dita impossível. do corolário, de sua parte, fazendo uma afirmação geral sobre todo o campo da razão
Não é de admirar, seja porque sua essência ou definição envolve contradição, seja (segundo e terceiro gêneros), teve que acompanhar a conclusão mais fraca, e por isso
porque não é dada nenhuma causa externa determinada a produzir tal coisa. Ora, por dispensa “contemplar” e “sob este aspecto”.
nenhum outro motivo uma coisa é dita contingente, senão com relação a um defeito Tal dissociação de campos na demonstração do corolário 2 da prop.44,
de nosso conhecimento. Com efeito, uma coisa cuja essência ignoramos envolver reservando o termo “contemplar” apenas para o campo intuitivo, é de certo modo
contradição, ou da qual sabemos bem que não envolve nenhuma contradição e de cuja confirmada pelas proposições seguintes, que fazem a dedução do terceiro gênero. Ali se
existência, contudo, não podemos afirmar nada de certo porque a ordem das causas mostra como cada idéia de coisa existente, em função da imanência das coisas a Deus
nos escapa, tal coisa nunca pode ser vista por nós nem como necessária, nem como (I 15), envolve a essência eterna e infinita de Deus. Como a Mente tem idéias de coisas
impossível, e por isso chamamo-la ou contingente ou possível”. existentes (e para comprová-lo prop.47 invoca justamente as proposições que traziam
Ora, não é esse o caminho seguido por Espinosa no corolário 2 da a contemplação de si, do corpo e dos corpos externos), ela também tem conhecimento
prop.44, até porque, se o fizesse, não poderia concluir pelo conhecimento adequado da adequado da essência de Deus. No entanto, a existência da coisa, cuja idéia envolve a
necessidade das coisas (inseridas na ordem das causas). Ao contrário, após apresentar essência divina, não é a mera duração. No escólio da prop.45, Espinosa diz que está se
a necessidade das coisas racionalmente conhecidas, Espinosa diz: “(pela prop. 16 da referindo “à própria natureza da existência, que se atribui às coisas singulares porque
parte I) essa necessidade das coisas é a própria necessidade da eterna natureza de da necessidade eterna da natureza de Deus seguem infinitas coisas em infinitos modos
Deus”. Invocando I 16 (Da necessidade da natureza divina devem seguir infinitas coisas (ver prop. 16 da parte I). Falo, insisto, da própria existência das coisas singulares
em infinitos modos (isto é, tudo que pode cair sob o intelecto infinito)), o autor vincula enquanto são em Deus. Pois, ainda que cada uma seja determinada por outra coisa
diretamente a necessidade das coisas singulares com a necessidade da produção eterna singular a existir de maneira certa, todavia a força pela qual cada uma persevera no
dos infinitos atributos de Deus. Ora, isto nada mais é do que proceder “da idéia adequada existir segue da necessidade eterna da natureza de Deus”. De fato, a existência atual
da essência formal de alguns atributos de Deus para o conhecimento adequado da da coisa, enquanto decorrente da inteira ordem das causas, necessariamente escapa à
essência das coisas”, ou seja, conhecer pelo terceiro gênero. Portanto, pode-se afirmar nossa limitada capacidade cognitiva, a qual limita-se a um conhecimento inadequado
que a frase subseqüente da demonstração do corolário 2 da prop.44 (“é da natureza da (como demonstrado nas prop.30 e 31). Tal conhecimento não nos dá acesso à eternidade.
Razão contemplar as coisas sob este aspecto de eternidade”) é uma conclusão parcial Mas enquanto estas mesmas coisas singulares inadequadamente conhecidas são em
que destaca o campo intuitivo da razão e, por sua vez, o uso do termo “contemplar” se Deus, pode-se ver a necessidade da existência delas como efeito da atividade produtiva
limita a singulares. A parte final da demonstração, então, se referiria ao campo da razão do atributo. Ora, para falar desta natureza do existir em Deus, base do conhecimento do
que corresponde ao 2º gênero, em que o que é conhecido são propriedades comuns, e não terceiro gênero, Espinosa não se utiliza das noções comuns ou de um vago aspecto da
coisas. Daí que sua conclusão (também parcial) mencione apenas “conceber noções” e eternidade, mas sim da força ontológica de I 16, a mesma que definira o campo intuitivo

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da contemplação na primeira parte da demonstração da prop.44. Era portanto apenas Referências bibliográficas
deste gênero de conhecimento que Espinosa falava quando dissera que era da natureza
1. Espinosa. Ética. Tradução do Grupo de estudos espinosanos {em andamento].
da Razão contemplar as coisas “sob este aspecto de eternidade”. Na parte V (prop. 18), é
2. _______. Tratado da correção do intelecto [TIE]. in Os Pensadores. São Paulo: Abril
também com relação a este tipo de conhecimento (ressaltado pelo uso das proposições II
Cultural, 1973.
46 e 47, e não pelas proposições do segundo gênero) que o filósofo diz que contemplamos 3. Gueroult, M. Spinoza. Vol. II, l´Âme, Paris, Aubier-Montaigne, 1974.
Deus: “A idéia de Deus que é em nós é adequada e perfeita (pelas prop. 46 e 47 da parte
II); e por isso, enquanto contemplamos Deus, nesta medida agimos”.(grifos meus)
The notion of contemplation in the book two of Spinoza’s Ethics
Contemplar Deus é conhecer Deus como um singular5 e só nesta medida
tal ação se aproxima da contemplação do primeiro gênero. Como se dará a passagem de Abstract: This paper investigates the concept of contemplation in the book two of Spinoza ´s Ethics,
um tipo de contemplação a outro é o que ainda precisamos investigar, analisando o uso do examining the uses of that term, as much as its precise sense, in the contexts of each one of the
three kinds of knowledge proposed by the philosopher. The analysis of these passages indicates that
termo contemplar nas outras partes. É certo que V 43 interdita que o desejo de conhecer
Spinoza uses the term to signify the knowledge of singular things, either in the field of inadequacy
as coisas pelo terceiro gênero nasça do primeiro, mas entre a contemplação do primeiro (first kind of knowledge) or of adequacy (third kind). The appearances of the term in propositions
e do terceiro, há ainda aquela contemplação imaginativa que coincide com o ponto de on the second kind (knowledge of general properties) do not invalidate the hypothesis, because they
don´t aim at the object itself of this kind of knowledge, but at a previous condition of it.
partida do segundo gênero. Também entre “contemplar as coisas imaginativamente”
Keywords: Spinoza, contemplation, imagination, reason.
e “contemplar Deus”, há a “contemplação de si mesmo e de sua própria potência de
agir”, cujo papel no movimento dedutivo da Ética é fundamental. Mas mesmo antes NOTAS
de percorrer todo o caminho que une as partes II e V, desde já temos indicações para
compreender o significado preciso da primeira aparição do termo na parte II (por nós 1. Neste sentido, veja-se a primeira frase da demonstração da prop.25: “Mostramos (ver
deixada propositalmente de lado) no escólio 2 da prop.10, quando Espinosa nos fala prop. 16 desta parte) que a idéia de uma afecção do Corpo humano envolve a natureza
do corpo externo apenas enquanto o corpo externo determina o próprio Corpo humano
dos que não seguiram a verdadeira ordem do filosofar: “a natureza divina, que deviam
de maneira certa”.
contemplar antes de tudo, já que é anterior tanto por conhecimento quanto por natureza, 2. Como diz o filósofo na demonstração da prop. 39: “Suponha-se agora o Corpo humano
acreditaram ser a última na ordem do conhecimento, e as coisas chamadas objetos dos ser afetado por um corpo externo mediante o que tem em comum com ele, isto é, por A; a
sentidos, as primeiras; donde ocorreu que, enquanto contemplavam as coisas naturais, idéia desta afecção envolve (pela prop. 16 desta parte) a propriedade A, e por isso (pelo
em nada tenham pensado menos do que na natureza divina, e quando depois dirigiram o mesmo corol. da prop. 7 desta parte) a idéia desta afecção, enquanto envolve a propriedade
A, será adequada em Deus enquanto afetado pela idéia do Corpo humano, isto é (pela prop.
ânimo para a contemplação da natureza divina, em nada puderam pensar menos do que
13 desta parte), enquanto constitui a natureza da Mente humana; e por isso (pelo corol. da
em suas primeiras ficções sobre as quais haviam construído o conhecimento das coisas prop. 11 desta parte) esta idéia é adequada também na Mente humana.”
naturais, dado que aquelas em nada podiam ajudar para o conhecimento da natureza 3. É o que também confirma o parágrafo 63 do TIE: “toda confusão procede de que a
divina; e por isso não é de admirar que a cada passo tenham caído em contradição”. mente conhece só em parte a coisa íntegra ou composta de muitas, não distinguindo o
conhecido do desconhecido, além de que olha conjuntamente e sem nenhuma distinção
para os múltiplos elementos contidos em cada coisa.”(grifos meus) (Espinosa 2, p. 65).
4. Resta, no entanto, uma objeção que a citação de Gueroult poderia favorecer: tal
apresentação do segundo gênero de conhecimento não incide em um kantismo avant la

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Cadernos Espinosanos XIX

lettre? A resposta,porém, é negativa. A aproximação de Espinosa com Kant na passagem


do primeiro ao segundo gênero só é factível esquecendo-se que a mente é idéia do corpo.
BACON E ESPINOSA: A CIÊNCIA, PARA QUE SERVE?*
Como idéia do corpo, ela não pode comportar conceitos vazios, sem conteúdo (na hipótese
em questão, as noções comuns do 2º gênero), que seriam preenchidos por um múltiplo
externo integralmente dado de fora (1º gênero) e apenas organizado pelos conceitos. Marcos Ferreira de Paula**
Na verdade, em Espinosa, a mente, quando o corpo é afetado, por um lado (1º gênero)
imagina o corpo afetante como existente em ato e também a afecção por ele produzida Resumo: O objetivo deste artigo é mostrar que o papel e o valor da ciência, em Bacon e em
como um acontecimento singular no seu corpo. De outro lado (2º gênero), por ocasião do Espinosa, diferem segundo o papel e o valor que cada um deles atribui à metafísica como ramo do
efeito (a afecção) ela conhece seu corpo como co-produtor do efeito juntamente com o conhecimento. Em Bacon, o valor da ciência é grande na medida mesma em que o valor da metafísica
é nenhum. Em Espinosa, esses valores se invertem. Mas enquanto a teoria do conhecimento em
outro co-produtor externo. Ora, tudo aquilo que ela conhece de seu corpo e do externo é a
Bacon obedece a pressupostos teológicos, e portanto, em última instância, à fé, em Espinosa o
propriedade comum a ambos por meio da qual o efeito foi produzido. Logo, não há, como
valor da metafísica e da ciência nasce das próprias concepções metafísicas, fruto de um trabalho de
em Kant, dados externos e uma organização dos dados interna; o que há é o conhecimento
conhecimento que obedece, não à fé, mas ao próprio intelecto.
por mim (pelas noções comuns) de algo em mim comum com o externo, cuja comunidade Palavras-chave: ciência, conhecimento, metafísica, natureza, felicidade.
comigo só se revela quando meu corpo é afetado singularmente. Todavia, como a mente
só conhece a si mesma e a seu corpo pelas idéias das afecções, não há outra maneira de
1
conhecer propriedades senão como co-produtoras de um efeito (a afecção em mim) junto
com as mesmas propriedades em indivíduos externos.
5. Ainda que não se possa dizer que Deus é uma coisa singular, dado que esta se define Em A sabedoria dos antigos, Bacon interpreta Orfeu como um representante
como finita, ele é um singular por oposição às propriedades comuns, ou melhor, ele é uma da “Filosofia Universal”. Os poderes do canto de Orfeu seriam de duas ordens: de um
essência singular. lado, diz Bacon, seu canto “propicia as potências infernais”, e é o que permite a Orfeu
convencer os demônios do Hades a lhe entregarem de volta, e viva, a amada Eurídice;
de outro, “comove as feras e os bosques”, e é o que permite a Orfeu, depois do intento
malogrado, permanecer entre animais maus que, de outro modo, lhe arruinariam a vida.
O primeiro canto representaria a “filosofia natural” ou “ciência”; o segundo, a “filosofia
moral e política” (Bacon 1, p. 46-49).
Por que a descida de Orfeu ao Hades para recuperar a esposa morta representa
a “ciência”? E por que essa filosofia natural não obtém êxito? É porque a busca
de Orfeu representa o objetivo máximo da “ciência” tal como Bacon a entende: a
“restauração das coisas corruptíveis” ou a “preservação dos corpos no estado atual”,
retardando sua “dissolução e corrupção”, ou seja, a morte. Mas isso é muito difícil de
se obter. É um trabalho condenado à frustração por um motivo aparentemente muito
simples: frustra-se, diz Bacon, “em razão dos arroubos de curiosidade prematura

*Esta é uma versão ligeiramente modificada do texto apresentado nas Jornadas Bacon, em 29 de Maio de
2007, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, em São Paulo.
**Doutorando em Filosofia - USP.
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Cadernos Espinosanos XIX Marcos Ferreira de Paula

desencadeado pela impaciência e solicitude” (Ibidem). Dizer que a ciência deve servir à utilidade do nosso bem estar, às nossas ações,
Inicialmente, poderíamos pensar que o malogro deve-se tão-só a um problema à nossa vida prática, mas também, e antes de tudo, ao conhecimento das leis universais da
de método. Mas, de fato, é um problema moral que está em jogo aqui. A “impaciência e natureza para que, com isso, possamos agir e produzir tal como a natureza, percebendo,
solicitude” de Orfeu o leva a uma “curiosidade prematura”: antes de atingir os “umbrais consequentemente, que “saber é fazer” – tudo isso é certo, mas é preciso relacionar tais
da luz”, Orfeu não se contém e volta-se para contemplar Eurídice, quebrando o pacto afirmações ao pressuposto teológico que lhes subjaz. “Por seu pecado”, diz Bacon ao
com as potências infernais e desencadeando assim a sua queda. Queda moral, pois desde final do segundo livro do Novum Organum, “o homem perdeu seu estado de inocência
então Orfeu sofrerá com a solidão e com o rancor em relação às mulheres, até ser enfim e seu comando sobre as coisas criadas. Entretanto, ambas as perdas podem ser até certo
aniquilado pelas invejosas trácias (ibidem). ponto reparadas ainda nessa vida, a primeira pela religião e pela fé, a última pelas artes e
Essa interpretação de Bacon torna-se mais inteligível se lembrarmos de uma ciências” (Bacon 2, § 52, p. 447). Portanto, as ciências devem permitir a recuperação de
outra, muito semelhante, que o filósofo faz a respeito do mito de Adão. Mas aqui, um poder perdido. Esse poder é aquele que a mente humana tinha antes da queda, poder
veremos, a interpretação, escapando ao campo da alegoria, tem a força de um dogma de ser um espelho perfeito que refletia a natureza tal como ela era, sem deformações,
e diz respeito mesmo a uma crença que é o pressuposto teológico subjacente à teoria desvios ou superstições (Bacon 3, p. 21). O objetivo supremo do conhecimento é restaurar
baconiana do conhecimento. Já nos inícios do primeiro livro sobre “O Progresso e recuperar esse poder sobre as coisas naturais, que são as obras de Deus. Para isso,
do Conhecimento”, Bacon, ao fazer a defesa da busca e desenvolvimento do saber, não basta contemplar a natureza; é preciso “atormentá-la”, agir sobre ela e com ela para
rejeita a tese de que a aquisição de conhecimento teria levado ao pecado original. Na produzir efeitos tal como estes são produzidos naturalmente através de causas secundárias
verdade, segundo ele, não foi o “conhecimento puro da natureza” que levou à queda do (a causa primária é Deus). A ciência, ou filosofia natural, tal como Bacon a propõe, deve
homem, mas o conhecimento moral do bem e do mal, com o qual o homem se daria a então conhecer a natureza tal como ela é, sem preconceitos (ou Ídolos), para ter sobre ela
si mesmo uma lei, sem depender dos mandamentos de Deus (Bacon 3, p. 21). O erro o poder que ela tem naturalmente, e assim poder ter o máximo de controle sobre a vida. A
de Adão, ao comer do fruto da árvore do conhecimento, foi, ipso facto, querer alcançar Nova Atlântida, com sua “Casa de Salomão”, é o lugar onde Bacon imagina utopicamente
o conhecimento dos desígnios e mandamentos divinos, que são verdadeiros mistérios a realização plena desse objetivo da ciência.
de Deus. A punição adâmica decorreu deste fato, pelo qual Adão quis ser Deus. A
“natureza universal das coisas” é dada ao conhecimento humano; mas o homem não 2
pode, diz Bacon, ter “...a presunção de, pela contemplação da natureza, alcançar os
mistérios de Deus” (idem, p. 22). Em Espinosa, o papel da ciência, se comparado àquele que acabamos de ver em
A natureza não tem mistérios, para Bacon. Os mistérios estão no Criador. Tentar Bacon, parece quase nada. Espinosa estabelece como fim último da filosofia a conquista da
conhecê-los é um trabalho inútil, não tanto porque são mistérios, mas porque são divinos. liberdade, que é também felicidade ou beatitude. Todos os outros tipos de conhecimento
Daí a condenação de todo e qualquer conhecimento especulativo. Se Bacon representa o estão de algum modo subordinados a este fim, servindo-lhe como meios.
início da modernidade, então a modernidade representa, não só o início da ciência, mas No início do Tratado da Emenda do Intelecto, Espinosa considera que,
também o fim da metafísica. Nessas condições, nas quais, numa palavra, não podemos “observada em sua natureza” (in suâ naturâ spectatum), nenhuma coisa pode ser dita
conhecer Deus, o que resta ao homem senão o conhecimento das coisas naturais? O que “boa” ou “má”, “perfeita” ou “imperfeita”, porque as coisas ocorrem e são o que são
lhe resta senão a filosofia natural? Mas para quê? Para que serve a ciência, em Bacon? devido a uma “ordem eterna” e “segundo leis imutáveis da natureza” (Espinosa 5, §12).

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Cadernos Espinosanos XIX Marcos Ferreira de Paula

Em seguida, o filósofo afirma que “o pensamento humano, em sua fraqueza”, embora não a esta substância, isto é, uma maneira de ser da própria substância, uma modulação de
chegue, de início, a “alcançar aquela ordem”, ele, no entanto, “concebe uma certa natureza sua existência e, portanto, somos nela de forma imanente; sendo nela imanentemente,
humana superior a sua” (idem, §13). O fim da filosofia é permitir que o indivíduo goze somos enfim uma “parte” ou um “grau” de potência da potência absolutamente infinita
dessa natureza superior, esforçando-se para que outros indivíduos também a adquiram da Substância. O nosso pensamento se inscreve nessa ordem de fatos metafísicos. Se a
(idem, §14). Isso é o que Espinosa chama de “sumo bem”, e tudo o que serve como meio felicidade é o fim último de todo conhecimento, é porque ela é uma maneira de ser na qual
para se alcançar esse fim, incluindo a ciência, o filósofo chama de “verdadeiro bem” nós desenvolvemos nossa máxima potência de pensar e agir, enquanto modo imanente
(idem, §13). Para Espinosa, portanto, o papel e o valor da ciência consistem em servir da Substância absolutamente infinita1. Compreendemos, então, por que todas as coisas
de meio para a conquista da liberdade e da felicidade, que são os efeitos necessários e devem servir de meios para a conquista dessa felicidade, liberdade ou beatitude. A ciência
imanentes do “conhecimento da união da mente com a Natureza inteira” (idem, §13), algo ou filosofia natural está entre estas coisas
que Espinosa só deixará mais claro na Parte V da Ética. Na passagem a seguir, o filósofo
é inequívoco quanto ao papel das ciências: 3

Já se pode ver que desejo dirigir todas as ciências a um só fim, um Nós poderíamos imaginar que Bacon está muito próximo de Espinosa, neste
só escopo, a saber, o de alcançar aquela suma perfeição humana de
último aspecto, já que também para ele a ciência deve servir apenas como meio para o
que falamos e, assim, deve ser rejeitado por inútil tudo aquilo que,
alcance da felicidade neste mundo. A Nova Atlândida seria uma prova disso, já que nela,
nas ciências, não contribua de algum modo para aproximar-nos
de nosso fim ou, para dizer tudo em uma palavra, todas as nossas como sabemos, Bacon imaginou um Estado onde reinaria a felicidade dos homens através
ações assim como todos os nossos pensamentos devem tender a da Casa de Salomão, na qual trabalhariam os sábios cientistas responsáveis por toda a
esse fim (idem, §13). organização, eficiência e eficácia na vida econômica e social. Não é, com efeito, totalmente
incorreto pensar assim. Entretanto, há uma importante diferença. Em Bacon, a ciência
Mas se a felicidade é o objetivo máximo da filosofia, Espinosa, contudo, não proporciona felicidade somente na medida em que, possibilitando o conhecimento das
é um filósofo hedonista. Não só porque sua noção de felicidade não se reduz ao gozo leis da natureza, permite-nos dominá-las, de tal modo que possamos produzir os efeitos
dos prazeres, mas sobretudo porque a busca da liberdade está em estreita ligação com sociais e econômicos necessários a nossa felicidade. A ciência leva à felicidade, portanto,
a ontologia e a metafísica que ele desenvolve. Para Espinosa, filosofia e felicidade são quando ela é dominação, eficiência e eficácia. Para Espinosa, por si só a ciência não pode
inseparáveis porque o próprio pensamento é uma ação ontologicamente determinada na e trazer felicidade, porque esta não depende do conhecimento que permite a dominação
pela atividade infinita da Substância, na qual o pensamento humano é um modo imanente da natureza, mas do conhecimento que nos leva à sua compreensão e à compreensão de
do atributo pensamento. A filosofia é então para Espinosa o desenvolvimento mesmo nossa ligação mais íntima e necessária à Natureza inteira. Nossa felicidade não depende
do Ser absolutamente infinito em uma de suas infinitas determinações finitas – no caso, dos efeitos objetivos da ciência, embora tais efeitos possam servir de meio à conquista da
o pensamento humano. Embora não possamos desenvolver aqui toda a metafísica que liberdade. Mas essa não é a principal diferença nas visões de Bacon e Espinosa sobre o
Espinosa elaborou na Parte I de sua Ética, devemos destacar algumas de suas teses, para valor e o papel da ciência.
compreender melhor a relação entre filosofia e felicidade. Segundo a metafísica espinosana, Há uma outra, muito mais importante, diretamente relacionada às distintas
somos modo de uma substância que existe necessariamente; somos um modo intrínseco visões que ambos os filósofos têm sobre a noção de conhecimento ou filosofia em geral.

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CadernosEspinosanos
EspinosanosXVII
XIX Marcos Ferreira de Paula

Dissemos acima que, para Bacon, o conhecimento deve permitir a restauração dos efeitos se pelos sentidos, estando sempre ancorado neles, e a idéia de que, por isso mesmo,
maléficos causados pela queda de Adão. Mas por que houve a queda? Inútil perguntar, só podemos ter idéias positivas das qualidades das coisas, mas jamais da substância,
diria Bacon, porque mesmo antes dela, quando a mente do homem ainda era um espelho substratum ou essência delas, tem início, talvez, com Bacon2. Por traz de todas essas
que refletia todo o Universo, o homem, embora conhecesse limpidamente a natureza e teorias do conhecimento parecem estar aqueles mesmos pressupostos teológicos judaico-
suas leis, não conhecia contudo a vontade e os propósitos de Deus ao criar o mundo. cristãos: a criação e a queda.
Não conhecia antes, não conhece agora e nem vai conhecer um dia. A ciência não serve Na modernidade, entre o espírito protestante e o avanço das ciências, situa-
para isso. O que significa esse factum theologico? Significa que, para Bacon, a ciência é se essa escola de pensamento iniciada por Bacon. São três elementos inseparáveis de
tudo, porque é todo o conhecimento possível. A ciência especulativa, a metafísica, é vã um mesmo processo histórico. O espírito protestante determina um novo modo de
filosofia. Não é só que não podemos conhecer Deus ou fazer metafísica: nós também não pensar o conhecimento, que, ao legitimar o saber empírico como a principal forma de
devemos, porque, como dissemos, foi justamente esse tipo de conhecimento que causou a conhecimento, impulsiona as ciências, tornando-as o saber por excelência. Não é por
queda e a ruína humanas. Em suma: para Bacon, a ciência é tudo, porque a metafísica não acaso que, com Kant, a filosofia torna-se teoria do conhecimento e da ciência. Também
é nada. Ou, como sugere Bernardo Jefferson de Oliveira, as “razões da impossibilidade do não é por acaso que, entre os modernos, Espinosa, esse filósofo para quem a ciência não
conhecimento metafísico” são também razões para que Bacon se empenhe tanto mais no é o mais importante, será por um bom tempo rejeitado e esquecido, até ser finalmente
seu projeto de uma ciência certa e segura, operativa e pragmática (Oliveira 6, p. 84). resgatado pela posteridade.
Em Espinosa, dá-se o quase contrário disso. Quase: porque, para ele, se
a metafísica é o principal, a ciência não chega a ser um nada, uma vez que a ciência Bacon and Spinoza: science what for?

pode inclusive permitir o conhecimento de Deus, já que Deus é a própria a Natureza. De Abstract: This paper shows that the role and value of science in Bacon and Espinosa differ
fato, enquanto permite o conhecimento das coisas singulares e das leis que regulam sua according to the role and value that either attaches to metaphysics as branch of knowledge.
produção necessária, a ciência pode levar, por isso mesmo, a um maior conhecimento In Bacon the value of science is big while the same value of metaphysics is none. In Spinoza,
the figures are reversed. But while the theory of knowledge in Bacon obeys theological
de Deus, ou seja, da própria Natureza. Daí a proposição 24 da Parte V da Ética afirmar assumptions, and therefore, ultimately, the belief, in Spinoza the value of metaphysics and
que “Quanto mais compreendemos as coisas singulares, mais compreendemos a Deus” science is born of his metaphysical concepts, the result of a work of knowledge that follows
(Espinosa 5). Contudo, só a metafísica pode proporcionar um pleno conhecimento da not the faith but the own intellect.
Keywords: science, knowledge, metaphysics, nature, happiness
Natureza, uma vez que seu objeto é o próprio infinito, e o infinito não pode ser demonstrado
empiricamente. Tudo, porém, que Espinosa demonstra sobre Deus ou a Natureza, ele o
faz racionalmente e antes de qualquer coisa. Ele inicia a filosofia pelo conhecimento da Referências bibliográficas:
Causa prima, e não por um pressuposto teológico a seu respeito.
1. BACON, F. A sabedoria dos antigos. Tradução: Gilson C. C. de Souza. São Paulo:
Em Bacon, é justamente a existência dos pressupostos teológicos da criação
Editora Unesp, 2002.
transcendente e da queda adâmica que organiza toda a sua teoria do conhecimento e,
2. BACON, F. Novum Organum. In: The Oxford Francis Bacon – XI, The Instauratio
consequentemente, sua visão sobre o valor e a função da ciência. Nesse sentido, na magna Part II: Novum organum and Associated Texts. Edited by Graham Rees.
modernidade, é talvez Bacon quem inaugure toda uma escola de pensamento, representada New York: Oxford University Press, 2004.
posteriormente sobretudo por Locke, Hume e Kant. A idéia de que o conhecimento inicia- 3. BACON, F. O progresso do conhecimento. Tradução e notas: Raul Fiker. São Paulo:

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Cadernos Espinosanos XIX

Editora Unesp, 2007.


4. ESPINOSA, B. de. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
O CONATUS DE SPINOZA: AUTO-CONSERVAÇÃO OU LIBERDADE?
5. ESPINOSA, B. de. Tratado da Reforma da Inteligência. Trad. e Notas de Lívio Teixeira.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
6. OLIVEIRA, B. J. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia.Belo Rafael Rodrigues Pereira*
Horizonte: Editora UFMG/Humanitas, 2002.
7. ZATERKA, L. A filosofia experimental na Inglaterra do século XVII: Francis Bacon e
Resumo: Este trabalho pretende discutir uma aparente ambigüidade da ética spinozista, que ora é
Robert Boyle. São Paulo: Fapesp/Humanitas, 2003.
descrita como uma ética da auto-conservação, ora como uma ética da liberdade. Após mostrar por que
fracassam as tentativas de diversos comentadores em conciliar estes dois aspectos, argumentaremos
NOTAS que a única maneira de resolver o problema é considerar que o que deve ser mantido na existência
não é o indivíduo empírico do senso comum, mas sim a “individualidade”, que estaria ligada à
1. As 15 primeiras proposições da Parte I da Ética realizam um percurso demonstrativo proporção das relações de movimento e repouso, correspondendo à essência singular de cada ente.
pelo qual somos confrontados com os aspectos essenciais da substância: que ela é causa Para sustentar esta posição, faremos uma análise da noção de conatus em Spinoza, mostrando que
de si, única, una, indivisível, existe necessariamente infinita e consta de infinitos atributos este não se reduz a elementos físicos, sendo também um princípio metafísico, que relaciona os seres
infinitos em seus gêneros. Ou seja, elas demonstram o que é da essência da substância. finitos à potência de Deus. Somente a partir desta dimensão formal seria possível compreender
porque o esforço primordial de auto-preservação desemboca em uma ética da liberdade.
A proposição 16 inicia a dedução do que segue necessariamente dessa essência, isto é,
Palavras-chave: Spinoza, ética, conatus, auto-conservação, liberdade.
inicia a dedução dos modos produzidos pela e na Sustância. Na proposição 18, Espinosa
demonstra a imanência de Deus às coisas: ou seja, que tudo isso que Deus produz
necessariamente, ele o produz em si mesmo, isto é, nele mesmo e não há nada fora
dele, não há outra substância além dele; portanto, tudo o que é, é nele e sem ele nada Spinoza introduz sua noção de conatus na parte III da Ética – destinada, em
pode ser nem ser concebido. Há então, na metafísica espinosana, unicidade substancial
princípio, ao tema dos afetos. Após dizer, no prefácio deste capítulo, que vai tentar
e causalidade imanente, isto é, presença imanente da Causa em seus efeitos. E é nesse
descrever as ações e apetites humanos como se fossem uma questão de “linhas, superfícies
campo metafísico que Espinosa compreende o pensamento humano como modo do
atributo Pensamento, a Filosofia como um modo do pensamento humano e a Felicidade e corpos”, e de expor, nas primeiras proposições, questões relativas à passividade/
como efeito afetivo necessário da Filosofia. atividade da mente e do corpo, o filósofo holandês afirma, na proposição III-6, que “cada
2. Persiste, contudo, em Bacon, a tentativa de conhecer os constituintes últimos da coisa esforça-se, à medida que existe em si, por perseverar em seu ser” (Spinoza 13, EIII,
matéria, a sua “forma” primordial ou a “constituição interna” da matéria. Quanto a
P6, p. 173-175). Na proposição seguinte, Spinoza chama este esforço de “essência atual”
isso, Bacon teria sido influenciado, segundo Luciana Zaterka, sobretudo pela tradição
de cada coisa. O conatus, assim, se refere diretamente às essências dos modos singulares,
renascentista químico-alquímica e pelos adeptos da idéia dos mínima naturalia. Cf.
ZATERKA 7, cap.3. que estão contidas nos atributos divinos, e que devem ser entendidas como potências que
expressam, de maneira certa e determinada, a potência de Deus.1 Voltaremos a este ponto
mais adiante.
Como deve ser entendido esse “esforço de perseverança em seu ser” que
caracteriza os entes finitos? Há várias formas de fazê-lo, nem sempre facilmente
compatíveis entre si. À primeira vista, o conatus parece ser descrito como o esforço de

* Doutorando PUC-RJ.

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Cadernos Espinosanos XIX Rafael Rodrigues Pereira

preservação de um determinado estado, o que acaba sendo entendido, em geral, como a como dissemos, no segundo caso. Assim, esforço de aumento da própria potência pode
tentativa de permanecer na existência, ou seja, de não morrer (Chauí 3, p. 3082). Trata- ser entendido, em última instância, como uma maneira de nos tornarmos cada vez mais
se de uma visão que se aproxima da concepção de outros autores, como Hobbes. Por ativos, ou seja, sermos causa adequada de nossas próprias ações, ao invés de agirmos
outro lado, o conatus spinozista também parece ser um princípio de expansão e de por coação de forças externas. Ora, Spinoza entende a liberdade, justamente, como auto-
aprimoramento, ou seja, de busca de uma maior “perfeição”, o que se traduz por um determinação, e assim esse esforço acaba desembocando no que poderíamos chamar de
esforço contínuo de aumento da própria potência do indivíduo. O filósofo holandês define “ética da liberdade”, que domina a parte final da Ética.
a “alegria” como uma paixão pela qual passamos a uma perfeição maior, e “tristeza” O conatus, portanto, parece remeter ora a um esforço de auto-conservação, ora
quando ocorre o contrário (Spinoza 13, EIII, P11, p. 177).3 Neste sentido, o esforço de expansão e aprimoramento pessoal. Alguns comentadores consideram difícil conciliar
relativo ao conatus pode ser visto como um esforço em nos tornarmos cada vez mais esses dois aspectos, enxergando neste ponto uma possível incoerência de Spinoza (Alquié
alegres, o que implica em sempre buscarmos aquilo que nos é útil, ou seja, que convém 1, p. 282). Outros falam da “passagem” de uma tendência à outra.6 A maioria tende a
à nossa natureza (Spinoza 13, EIV, P30-31, p. 297). Ora, “bom” é definido, justamente, lidar com essa questão afirmando que o conatus não é “apenas” um princípio de auto-
como aquilo que nos é útil, e “mau” o que nos impede de desfrutar de algo bom, e, conservação, mas “também” de aprimoramento.7 A nosso ver, trata-se de uma má solução,
portanto, estas noções podem ser entendidas como aquilo que nos causa alegria e tristeza, pois pressupõe que essas duas qualidades sejam compatíveis (ou seja, que possam ser
respectivamente (Spinoza 13, EIII, P39, E, p. 209). Desta forma, consideramos como acrescentadas ou sobrepostas), o que não é necessariamente o caso. Uma boa forma de
“bom” aquilo que desejamos, ou seja, o que nos aparece como útil, ou seja, o que aumenta resolver esse problema, também adotado por muitos autores, consiste em considerar
nossa potência, ou seja, o que nos causa alegria, e este processo pode ser compreendido que um aspecto está implicado no outro: ou seja, o aumento da própria potência seria
a partir do esforço primordial do conatus. É preciso considerar que muitos afetos alegres necessário para garantir, justamente, a auto-preservação, já que diminui a possibilidade
são passivos (neste caso, a causa do aumento de nossa potência é, sobretudo, externa, de sermos destruídos por forças externas (Curley 4, p. 115).
através das paixões – Spinoza 13, EIV, P5, p. 275). Spinoza considera, no entanto, que Esta é uma solução interessante, mas, a nosso ver, insuficiente. Vimos, de fato,
sob efeito das paixões nosso conhecimento é apenas imaginativo (Spinoza 13, EIII, P3, p. que o esforço de aprimoramento leva a uma ética da virtude e da liberdade. Ora, há
173). A compreensão adequada do que nos é verdadeiramente útil (o que o autor chama importantes diferenças entre esse tipo de concepção e a mera “auto-conservação”, onde o
de “conhecimento verdadeiro do bem e do mal” – EIV, P14-15, p. 283), nos mostra que mais importante é a permanência na existência. É fácil conceber situações onde a fraqueza
o esforço relativo ao conatus é mais bem sucedido através do cultivo da razão.4 Podemos e a passividade são estratégias mais eficazes para garantir a sobrevivência do que a força e
considerar que isso se deve, em parte, à inconstância – termo muitas vezes repetido por a atividade: um escravo, por exemplo, terá mais chances de continuar em vida se sempre
Spinoza – da vida submetida às paixões. Este aspecto também está relacionado ao fato obedecer às ordens de seu senhor e suportar de forma passiva a opressão. A ameaça de
de que somente quando pensamos adequadamente somos ativos, ou seja, nossas ações morte, em geral, é o instrumento preferido pelos tiranos para exercer o seu domínio. Se
decorrem de nossa verdadeira natureza ou essência (Spinoza 13, EIII, P3, p. 173).5 Desta entendermos a auto-conservação, assim, como um simples desejo de “permanecer vivo”,
forma, embora não haja uma relação necessária entre as coisas “boas” que buscamos então é difícil conciliá-la com uma ética da liberdade, que Spinoza claramente defende.8
em nosso cotidiano e o verdadeiro “bem”, ligado à virtude e ao conhecimento de Deus A nosso ver, essa conciliação se dá se nós tivermos uma visão menos vulgar
(Spinoza 13, EIV, P23-24, p. 291; EIV, P28, p. 295), podemos considerar que o impulso do que seria o “indivíduo” para Spinoza. Tentaremos mostrar, de fato, que este último só
que nos leva a procurá-los é sempre o mesmo, sendo que este é mais bem sucedido, pode ser compreendido a partir de uma determinada proporção de movimento e repouso

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Cadernos Espinosanos XIX Rafael Rodrigues Pereira

das partes constituintes de seu corpo, proporção essa que corresponde à sua essência. e objetos - que existem na duração.
Desta forma, a “auto-conservação” do indivíduo depende da preservação desta proporção, Outro ponto importante demonstrado na parte I da Ética, que nos interessa
remetendo, assim, a uma dimensão formal que chamaremos de “individualidade”. diretamente, é a idéia de que a potência de Deus é a sua própria essência (Spinoza 13, EI,
É fundamental para esta discussão, portanto, o fato de que o conatus spinozano não é P34, p. 63). Esse aspecto está diretamente ligado à relação causal que existe entre Deus e
constituído apenas de elementos físicos, remetendo, também, a um princípio metafísico. seus modos. Como diz Alquié, Spinoza substitui a visão de um Deus criador pela de um
Isto significa que, para compreendermos devidamente esta questão, precisamos de certos Deus “causador”, que “produz” suas criaturas (Alquié 1, p. 147; Cf. Delbos 6, p. 63). É
pressupostos ontológicos e epistemológicos discutidos nos primeiros capítulos da Ética. assim que, na proposição 16 da parte I da Ética, vemos que “da necessidade da natureza
Falaremos rapidamente destes pressupostos. divina devem se seguir infinitas coisas, de infinitas maneiras” (Spinoza 13, EI, P16, p.
A tese principal da ontologia spinozista, como sabemos, é a de que só 37). Quando a substância única “causa” seus modos, ela está, de certa, forma, causando
há uma substância. Podemos ver neste princípio uma espécie de correção de algumas a si mesma. Esse princípio decorre diretamente, assim, da auto-suficiência que, como
proposições cartesianas,9 a partir de uma das principais características da concepção vimos, costumava ser atribuída à noção de substância pelos racionalistas modernos, e
moderna de substância, que é a auto-suficiência. Partindo deste princípio (já estabelecido que Spinoza traduz afirmando que Deus é causa de si (Spinoza 13, EI, P7, p. 19). Essa
na definição 3 da parte I da Ética), o filósofo holandês mostra que substâncias com é, a nosso ver, a melhor forma de compreender o que está dito na preposição I-34: Deus
atributos diferentes são totalmente independentes umas das outras, tanto do ponto de vista “produz a si mesmo”, e nesse sentido é que sua potência é sua própria essência.13
conceitual quanto causal (Spinoza 13, EI, P2 e P3, p. 15-17). Analisa, então, de que forma A co-relação entre essência e potência afeta a maneira pela qual os modos
substâncias com o mesmo atributo podem ser realmente distinguidas entre si, chegando à finitos são concebidos. Embora dependam ontologicamente da substância, estes
conclusão de que não podem – ou seja, é impossível haver mais de uma substância com modos possuiriam essências individuais, contidas nos atributos (Spinoza 13, EI, P25,
o mesmo atributo (Spinoza 13, EI, P5, p. 17). Ora, Deus, entendido como uma substância p. 49; Cf. EII, P8, p. 89). Contrariando grande parte da filosofia tradicional, Spinoza
absolutamente infinita – portanto comportando todos os atributos que exprimem uma acredita que as essências são singulares e não universais – não se pode falar, assim da
essência eterna e infinita (Spinoza 13, EI, D6, p. 13) -, existe necessariamente.10 Como é essência “das cadeiras” de forma geral, mas sim desta cadeira, que será diferente da
impossível haver mais de uma substância com o mesmo atributo, e Deus os possui todos, de uma outra cadeira.14 Estas essências são produzidas por Deus, e também devem ser
é possível afirmar que Deus é substância única.11 entendidas como potências. Elas são, de certa forma, expressões da potência divina
Além dos atributos, que “constituem” a essência da substância única, esta (Spinoza 13, EIII, P6, p. 173-175).15
também possui “modos”, que seriam, por assim dizer, seus “modos de ser” (Bennet 2, Essas considerações afetarão diretamente a questão ética, que começa a ser
p. 92; Cf Lévy 10, p. 258). Os modos podem ser infinitos imediatos, infinitos mediatos analisada de forma mais explicita, como vimos, na parte III da principal obra de Spinoza.
ou finitos. Embora Deus possua todos os atributos possíveis, só conhecemos dois – Passaremos rapidamente pela parte II, que trata, sobretudo, da epistemologia spinozista,
extensão e pensamento -, e, portanto, podemos falar somente sobre estes. No caso do expondo a famosa tese do paralelismo e os três gêneros de conhecimento. O ponto que
Pensamento, o “modo infinito imediato” seria o intelecto divino, ou seja, o conjunto de mais nos interessa é a demonstração de que a alma humana é uma idéia complexa cujo
idéias produzidas e concatenadas segundo a essência de Deus. O modo infinito imediato objeto é o corpo (Spinoza 13, EII, P13, p. 97).16 O indivíduo, assim, é caracterizado por
da Extensão são as relações de movimento e repouso,12 o que afetará, como veremos, o uma mente e um corpo que não possuem relação causal entre si, mas um isomorfismo
assunto de que estamos tratando. Os modos finitos seriam as coisas singulares - idéias garantido pelo paralelismo entre os atributos Pensamento e Extensão. Outro ponto

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importante, demonstrado na parte II, é a caracterização da “individualidade” a partir da variáveis entre as partes” (Lévy 10, p. 314). O conjunto seria então organizado (e não um
proporção de relações de movimento e repouso entre as partes constituintes do corpo – simples agregado), e com isso exprimiria uma essência (ibidem, p. 306). A essência ou
voltaremos abaixo a essa questão. forma, uma vez atualizada, “obriga” as partes a manter suas relações recíprocas (ibidem,
Podemos, agora, retornar à noção de conatus, procurando compreendê-lo à p. 303). Podemos assim afirmar que o “esforço para perseverar em seu ser” consiste em
luz dos pressupostos ontológicos e epistemológicos que acabamos de abordar. Como um esforço de preservação desta proporção. Deste modo, embora o conatus spinozista
já comentamos, a caracterização desta noção como uma “essência atual” dá a entender ainda contenha elementos físicos, ele os ultrapassa em direção a um princípio formal que
que não se trata apenas de um princípio físico, mas também metafísico, ainda que é mais fundamental ontologicamente, não se confundindo mais, como ocorria em Hobbes
imanente. No entanto, o conatus claramente possui uma dimensão física: vimos que e Descartes, com a simples inércia.20
o filósofo holandês entende a individualidade a partir de uma determinada proporção Podemos, agora, discutir de que forma este aspecto contribui para resolver o
entre as relações de movimento e repouso das partes constituintes do corpo (Spinoza problema que estamos discutindo, ou seja, a conciliação da auto-conservação com a ética
13, EII, P13, L3, D, p. 101). Spinoza considera, de fato, que o indivíduo é caracterizado da liberdade. Como comenta Deleuze, as essências singulares dos modos finitos são como
pela concorrência de todas as suas partes para um mesmo efeito (Spinoza 13, EII, D7, graus de potência, que estabelecem a capacidade de ser afetado de cada ente singular.
p. 81), o que dependeria da manutenção desta proporção. Neste sentido, o esforço Esse “poder de ser afetado” estaria diretamente ligado, assim, à forma do indivíduo, ou
spinozista de “perseverança em seu ser” parece remeter a Hobbes e Descartes, que seja, à proporção das relações de movimento e repouso, sendo aquilo que permanece
definem o conatus a partir da inércia, ou seja, a tendência dos objetos em manterem constante (por corresponder, justamente, à essência), enquanto o que varia é a proporção
suas relações de movimento e repouso.17 Este tipo de concepção claramente entende a entre afecções passivas e ativas (que “preenchem” o poder de ser afetado).21 Só nas
auto-conservação da maneira que assinalamos acima - ou seja, como um esforço vulgar afecções ativas, no entanto, o conatus se realizaria de forma adequada, pois a essência é
de permanecer na existência, de não morrer. uma potência de agir (Deleuze 7, p. 202; p. 205).22
No entanto, existe uma diferença entre a visão de Spinoza e a destes autores, A partir do momento em que se compreende, portanto, que a “perseverança
que, embora pareça sutil, tem grandes conseqüências: trata-se da ênfase na proporção no ser” se refere a esta dimensão formal, fica mais fácil perceber porque este aspecto
das relações de movimento e repouso, e não apenas na sua “relação”.18 Esta proporção é desemboca em um esforço contínuo de aumento da própria potência. O que deve ser
necessária, como dissemos, para a concorrência de várias causas para um mesmo efeito, mantido na existência não é aquilo a que chamamos de indivíduo no senso comum (eu,
que é a maneira pela qual Spinoza entende a individualidade. É neste ponto que o conatus você etc), mas sim a individualidade que corresponde à essência, e que é comprometida
spinozista aponta para uma dimensão mais formal: vimos, de fato, que cada ente finito pela passividade e tristeza referentes às influências externas. Em última instância, assim,
possui uma essência singular, e que esta deve ser entendida como uma potência, portanto o conatus deve ser entendido como um esforço para nos tornarmos causa adequada
como uma instância produtora de efeitos. Ora, como acabamos de comentar, a produção de nossas ações, ou seja, sermos ativos, e, portanto, livres, pois Spinoza entende a
de efeitos está ligada à disposição das relações que as partes de um corpo mantêm entre liberdade a partir da auto-determinação.23 Se retornarmos ao exemplo do escravo, citado
si. Podemos considerar, assim, que a essência de um individuo se liga intrinsecamente a anteriormente, podemos afirmar que o esforço relativo ao conatus terá sido mais bem-
essa “proporção” que o caracteriza. Spinoza a chama de “forma” do indivíduo (Spinoza sucedido no primeiro caso - uma pessoa que morre mais cedo por se recusar a aceitar a
13, EII, P13, L4,5,6), o que confirma a dimensão formal deste conceito.19 Como diz opressão - do que no segundo – a que vive mais às custas do medo e da passividade.
Lévy, a forma é uma “relação de relações”, ou seja, “uma relação que articula as relações A chave para compreendermos esta questão está, portanto, na distinção entre

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aquilo que chamamos de “indivíduo” no senso comum - que é uma noção meramente no sentido estrito, e isto é estranho, pois o pensamento de Spinoza - a começar pela
empírica -, e aquilo que Spinoza chama de indivíduo, que só pode ser compreendido a própria estrutura da Ética - deixa claro que a liberdade é que deve ser considerada o
partir da dimensão formal da individualidade. Podemos entender este último conceito conceito central. A solução que estamos propondo, a nosso ver, concilia perfeitamente
– aqui, seguindo uma simples definição de dicionário – como “aquilo que faz com que os dois aspectos: faz sentido, de fato, que para preservar nossa individualidade nós
um indivíduo seja um indivíduo”. Para Spinoza, trata-se da concorrência de causas para precisemos vencer as influências externas sobre nós, nos tornando, assim, ativos e auto-
um mesmo efeito, formulação que deixa claro a relação intrínseca desta noção com a determinados. Os dois esforços, desta forma, se confundem.
de “atividade”, o que é fundamental para compreendermos como a auto-conservação É preciso considerar que a individualidade, embora seja um conceito formal,
se liga à liberdade. De fato, esta forma de compreender a individualidade mostra que não deve ser compreendida como algo independente da existência. Obviamente, não
o indivíduo spinozista é necessariamente ativo, e esta dimensão se perde no senso faz sentido que o que deva ser preservado na definição do conatus seja a essência do
comum, onde simplesmente olhamos para uma pessoa e a chamamos de fulano ou indivíduo enquanto contida nos atributos divinos (ou seja, “concebida sob a perspectiva
cicrano. A auto-conservação do indivíduo, assim, consiste em uma conservação de sua da eternidade” – EV, P29). A individualidade de que estamos falando é a forma
capacidade de ser ativo, ou seja, de sua individualidade, e, portanto, faz sentido que esta “concreta” do modo finito, ou seja, a proporção das relações de movimento e repouso das
auto-conservação implique em um esforço de aumento da própria potência, já que este partes constituintes do corpo de um ente singular, existente na duração. Neste sentido,
esforço, quando bem-sucedido, nos leva a sermos cada vez mais ativos. Deste modo, o justamente, é que Spinoza chama o conatus de “essência atual” de cada coisa. Podemos
indivíduo, entendido no sentido spinozista, só pode se “auto-conservar” se conseguir assim considerar que aquilo que é visado na preservação da individualidade é a existência
preservar sua individualidade, o que depende, diretamente, do aumento de sua potência. do indivíduo, ou seja, a sua permanência na duração. Nossa argumentação consiste apenas
Retomando nosso exemplo, podemos dizer que o homem corajoso e racional24 que em apontar que o significado de “se manter na existência” se torna bem mais complexo
morreu prematuramente preservou melhor sua individualidade (portanto o “indivíduo” se nós considerarmos não o indivíduo do senso comum, mas sim o indivíduo spinozista,
entendido no sentido próprio), ao passo que o covarde passional que chegou à velhice que só pode ser compreendido a partir da referência a uma dimensão formal. A definição
terá mantido apenas a “pessoa” do senso comum. 2 da parte II da Ética deixa claro, de fato, que a essência é “aquilo sem o qual a coisa não
Esta maneira de conciliar a auto-conservação e a liberdade nos parece mais pode existir nem ser concebida” (EII, Def2). Dessa forma, o indivíduo só pode se manter
adequada do que as outras soluções que citamos anteriormente: por um lado, evita na existência se conseguir preservar sua individualidade, e, portanto, não estará se “auto-
enxergarmos qualquer tipo de contradição em Spinoza. Falar da “passagem” de um conservando” de maneira adequada se manter-se vivo à custa de afetos passivos tristes,
aspecto ao outro, ou que os dois se “acrescentam”, também não é, como dissemos, embora nosso senso comum tenda a achar, erroneamente, que sim.
uma boa saída, pois minimiza a consistência do pensamento do autor, e ainda abre Poderíamos ficar tentados, aqui, a considerar o “desejo de permanecer vivo”
espaço para possíveis contradições. A melhor solução que havíamos encontrado, de como uma condição necessária, mas não suficiente, para a realização do conatus. Esta
implicação – o aumento da potência individual contribuiria para a auto-conservação não é, no entanto, uma boa solução, pois implica, mais uma vez, em uma cisão entre
– ainda havia se mostrado fraca, pois diversos exemplos mostram que uma coisa não a ética da auto-conservação e a ética da liberdade, com isso separando aquilo que, a
está necessariamente ligada à outra, sobretudo se entendermos a auto-conservação da nosso ver, não é separável para Spinoza. Para que nossa argumentação faça sentido, é
maneira vulgar, como mera manutenção do indivíduo empírico na existência. Além do preciso que as ações que parecem visar a mera sobrevivência estejam, de alguma forma,
mais, esta última interpretação tende a submeter a noção de liberdade à de conservação contidas no esforço geral de preservação de nossa individualidade, sendo, por assim

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dizer, uma conseqüência deste. encontra totalmente bloqueado e sem possibilidade de se realizar. Nestas circunstâncias,
A nosso ver, esta relação pode ser elucidada da seguinte forma: o conatus, o risco de destruição implicado na luta pela liberdade pode parecer um mal menor,
entendido como um apetite (Spinoza 13, EIII, P9, S) que visa a preservação de nossa como dissemos, do que a escravidão.
“forma”, nos leva a sempre buscarmos o que aumenta nossa potência, ou seja, o que nos é Deste modo, o esforço que nos faz buscar nossa subsistência em situações mais
útil. Isso se deve ao fato de que as afecções passivas comprometem nossa individualidade, simples é exatamente o mesmo esforço que nos leva a lutar pela liberdade. O que muda,
sobretudo as tristes, pois, como já dissemos, as alegres aumentam nossa potência, apenas, são as circunstâncias em que nos encontramos – ou seja, o jogo relativo entre
contribuindo para a realização do conatus, embora isto ocorra de forma mais adequada os diversos “bens” e “maus”, além do nível de potência do indivíduo em questão (uma
através da razão. Ora, a busca do que nos é útil (ou seja, do que nos aparece como “bom”) pessoa passional pode, de fato, preferir a opressão ao risco de morte, mas isso se deve
leva a uma série de atividades que visam nossa sobrevivência estrita, como, por exemplo, ao fato de que ela tem uma compreensão inadequada do que lhe é verdadeiramente útil,
a alimentação. São justamente essas atividades que podem dar a falsa impressão de que o levando-a a preferir um bem menor a um maior). A visão superficial deste jogo complexo
conatus se refere à mera preservação do indivíduo do senso comum. Isso se deve ao fato entre potência e valores nas diversas situações é que pode dar a impressão de que existem
de que a maioria das situações de nosso cotidiano são relativamente simples, o que acaba dois esforços diferentes atuando no conatus, um relativo à mera sobrevivência e outro
mascarando, por assim dizer, a verdadeira complexidade do conatus. visando a virtude. Vimos que isto teria levado vários comentadores a discutir como é
Podemos considerar, de fato, que nossa interação com o mundo gera uma possível conciliar os dois aspectos. Esta impressão é reforçada, como dissemos, pela
complexa rede interligada de coisas boas e más para nós, e, como diz o filósofo noção empírica de “indivíduo” que temos no senso comum. No entanto, uma análise
holandês, sempre preferiremos o que nos parece ser um bem maior a um bem menor, mais apurada da concepção spinozista de indivíduo, a partir da dimensão formal que lhe
e um mal menor a um mal maior (Spinoza 13, EIV, P65, p. 341). Isso explica porque, é intrínseca, nos leva a perceber que a auto-conservação deste consiste em um esforço de
em determinadas situações, o aumento de nossa potência dependa, como dissemos, de preservação de sua individualidade, e que é sempre este mesmo esforço que está por trás
coisas simples e comuns, que parecem visar apenas nossa sobrevivência – alimentação, das diferentes manifestações do conatus.
sustento etc. Essas atividades, no entanto, já estão a serviço do esforço de preservação Spinoza é, com freqüência, visto como um mecanicista. Essa afirmação é até
de nossa individualidade, pois é este esforço que nos leva a sempre buscar o que é útil, certo ponto correta, pois a descrição que faz do atributo Extensão, cujo modo infinito
ou seja, o que aumenta nossa potência. imediato, como já dissemos, são as leis de movimento e repouso, claramente visa fornecer
A dimensão primordial do conatus se torna visível em situações mais extremas uma base de justificação para a ciência moderna. No entanto, vimos no decorrer deste
e complexas, como, por exemplo, a do escravo, em que a simples sobrevivência entra em trabalho que sua concepção vai além do mero mecanicismo, a partir, sobretudo, da noção
conflito com sua liberdade. Neste caso, a opressão sofrida compromete tão seriamente de potência de Deus, que se expressa nas essências singulares dos modos finitos. O plano
sua individualidade que o risco de morte pode parecer um mal menor do que a aceitação ético talvez seja aquele em que esta superação seja mais clara: em autores como Hobbes,
passiva desta opressão. É preciso considerar que, na teoria spinozista, não podemos conforme já comentamos, a oposição que todo ente realiza àquilo que pode destruí-lo é
nunca buscar propositadamente a morte, pois isso seria uma contradição lógica com fruto das tendências mecânicas relativas à inércia. Em Spinoza, essa tendência é fruto de
a própria definição da essência (Spinoza 13, EIV, P18, S; EIII, P4). No entanto, a características intrínsecas da própria noção de essência, remetendo, assim, a princípios
compreensão do indivíduo a partir da dimensão formal que estamos discutindo mostra metafísicos, como a impossibilidade de auto-destruição, e de que da natureza de uma
que a permanência naquela situação já é uma forma de “morte”, pois o conatus se coisa devem necessariamente se seguir determinados efeitos (Spinoza 13, EII, P4, p. 173;

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EI, P36, p. 63).25 O conatus spinozista, assim, não pode ser explicado somente a partir das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
relações que caracterizam o mecanicismo da ciência moderna.
1. ALQUIÉ, F.: Le Rationalisme de Spinoza, Paris, P.U.F., 2005.
É possível assim afirmar que Spinoza tenta superar aquilo que poderíamos
2. BENNET, J.: A Study of Spinosa’s Ethics, Cambridge, Cambridge U.P., 1984.
chamar de “limitações éticas do naturalismo moderno”. Neste sentido, há em sua obra
3. CHAUÍ, M. de S.: Política em Espinosa. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
um movimento de retomada da estrutura aretaica e eudamônica das éticas naturalistas 4. CURLEY, E. M.: Behind the Geometrical Method. A Reading of Spinosa’s Ethics,
antigas. Este movimento se torna particularmente visível na oposição do autor à dimensão Princeton, Princeton U.P., 1988.
deontológica da moral religiosa tradicional – por exemplo, quando nos diz, no Tratado- 5. DESCARTES, R.: Princípios da Filosofia. Lisboa, Edições 70, 1997.
6. DELBOS, V.: O Espinosismo. Curso proferido na Sorbonne em 1912-1913. São Paulo,
Teológico Político, que é um erro confundir os decretos divinos com “ordens de um
Discurso Editorial, 2002.
príncipe” que devem ser obedecidas, sendo vistas, assim, como “obrigações” (Spinoza
7. DELEUZE, G. - Spinoza et le Problème de l’Expression. Paris, Minuit, 1998.
14, TTP 4, p. 76). Muitos comentadores consideram, justamente, que o caráter prescritivo 8. GLEIZER, M.: Espinosa e a Afetividade Humana. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.
das éticas modernas – como a kantiana e a utilitarista – é uma herança, em certa medida, 9. HOBBES,: Leviatã. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
da religião judaico-cristã (Ralws 11, p. 9-10; Tugendhat 17, p. 67-68; Statman 16, p. 4). 10. LÉVY, L.: O Autômato Espiritual – a subjetividade moderna segundo a Ética de
Espinosa. Porto Alegre, L&PM, 1998.
No entanto, ao mesmo tempo em que faz este tipo de oposição e procura
11. RAWLS, J.: História da Filosofia Moral. São Paulo, Martins Fontes, 2005.
retomar elementos da visão dos antigos, Spinoza claramente adapta estas concepções
12. SPINOZA: Correspondência. In Os Pensadores: Spinoza. São Paulo, Abril Cultural,
a características modernas. É assim que, embora seu sistema supere, como dissemos, 1980.
o mecanicismo estrito, ele reserva um espaço para a viabilização deste último, e, 13. ________: Ética. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2007.
portanto, da ciência moderna. Embora seu naturalismo se inspire parcialmente nos 14. ________: Tratado Teológico-Político. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
15. ________: Pensamentos Metafísicos – in Os Pensadores: Spinoza. São Paulo, Abril
gregos e romanos – por exemplo, no hilozoísmo dos pré-socráticos e dos estóicos26
Cultural, 1980.
-, por outro lado renega o caráter teleológico destas concepções. Finalmente, vimos
16. STATMAN, D.: Virtue Ethics – a Critical Reader. Washington D.C, Georgetown
que Spinoza combate a dimensão deontológica que viria a ser predominante nas éticas University Press, 1997.
modernas, buscando retomar o aretaismo eudamônico antigo, mas, ao mesmo tempo, 17. TUGENDHAT, E.: Lições de Ética. Petrópolis, Editora Vozes, 2003.
lhe acrescenta um elemento tipicamente moderno, que é, como mostramos, central em 18. YOVEL, Y (Ed).: Desire and Affect – Spinoza as Psychologist. New York, Little
Room Press, 1999.
sua filosofia: a noção de liberdade.
Nosso objetivo, neste trabalho, foi justamente o de demonstrar a centralidade
desta noção: somente a partir dela é possível compreender a auto-conservação contida
The conatus in Spinoza: self-preservation or liberty?
na definição do conatus. Procuramos argumentar, assim, que o que deve ser preservado
não é o indivíduo empírico do senso comum, mas sim um princípio formal que remete à Abstract: The aim of this paper is to discuss an ambiguity of Spinoza’s conatus, that seems to
sustain, at the same time, a “self-preservation” and a “liberty” ethics. We start by showing why the
essência dos entes finitos, que traduzimos pelo termo “individualidade”. Desta forma, o
attempts of several authors to conciliate these two aspects fail, and then we argue that the only way
esforço de “perseverar em seu ser” é um esforço em ser livre. to solve this problem is to consider that what must “stay in existence” isn’t the empirical individual
of the common sense, but his “individuality”, related to a specific proportion of motion and rest that
corresponds to his essence. To sustain this thesis, we’ll analyse Spinoza’s conatus, showing that it

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can’t consist only of physical elements, but it’s also a metaphysical principle, relating finite beings natus to Conatus Intelligendi”, acredita que o conatus spinozista é, inicialmente, apenas
to the power of God. Only from this formal concept it would be possible to understand why the um esforço pela sobrevivência, mas este impulso é modificado quando trabalhado pela
primordial striving for “self-preservation” leads to an ethics of liberty. razão, tornando-se então um desejo de virtude (Yirmiyahu Yovel, “Transcending Mere
Keywords: Spinoza, ethics, conatus, self-preservation, liberty
Survival: From Conatus to Conatus Intelligendi”, in Yovel 18, p. 45-59). Trata-se, obvia-
mente, de uma interpretação que aproxima Spinoza dos estóicos, embora o autor não o
NOTAS admita explicitamente.
7. “O conatus humano, portanto, não é apenas um princípio de auto-conservação, mas
também de auto-expansão e realização de tudo o que está contido em sua essência singular
1. Esse aspecto é citado diretamente na demonstração da proposição III-6, que, como
(Gleizer 8, p. 31 [grifos nossos]; Cf,. Curley 4, p. 114-115).
vimos, estabelece o princípio do conatus. A demonstração se basearia, em parte, no fato
8. Esta visão mais estrita da auto-conservação – como o simples desejo de evitar
de os modos exprimirem a potência de Deus, e em parte na oposição que fazem a tudo
a morte - também é incompatível com uma série de declarações de Spinoza, feitas
que pode destruí-los (EIII, P4), o que pode ser entendido, para Spinoza, como um esforço
sobretudo nas partes IV e V da Ética, quando é desenvolvida sua ética da liberdade.
para perseverar em seu ser.
Na proposição IV-67, por exemplo, temos: “não há nada em que o homem livre pense
2. É preciso considerar que para a autora o conatus não se reduz apenas ao esforço para menos que na morte, e sua sabedoria não consiste na meditação da morte, mas da
permanecer na existência (ver nota 22). vida” (Spinoza 13, EIV, P67, p. 343).
3. Após definir o conatus como “esforço de perseverança em seu ser”, na proposição 9. Para Descartes, haveria três tipos de substância: a divina, que se confunde com Deus,
III-6, Spinoza descreve, nas proposições seguintes (sobretudo III-9 a III-12), como este as pensantes e as extensas. As duas últimas dependem, para existir, da primeira - daí
esforço leva nossa mente e nosso corpo a sempre procurarem passar a uma perfeição o próprio filósofo francês ter afirmado que somente Deus pode ser considerado uma
maior, ou seja, aumentar sua potência de pensar e de agir, respectivamente. A alegria substância no sentido próprio do termo (Descartes 5, I-§51, p. 45). Descartes proporia um
é definida como a paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior, e a tristeza sentido forte de substância e um sentido fraco: neste último caso, as substâncias depen-
aquela pela qual passa a uma perfeição menor. Essas duas paixões, juntamente com o deriam “apenas” de Deus.
desejo - esforço relativo ao conatus, quando referido à mente e ao corpo de forma cons- 10. Spinoza 13, EI, P11, p. 25. Esta demonstração se basearia em três aspectos: primeiro,
ciente - seriam os três afetos primários. Deus é por definição uma substância, portanto auto-suficiente do ponto de vista causal e
4. Ver, por exemplo, o Tratado Teológico-Político, onde o autor primeiramente afirma que conceitual, o que implica (EI, P7) que existe necessariamente. Segundo, não pode haver
“tudo aquilo que um indivíduo (...) julga que lhe é útil, seja em função da reta razão ou da nenhuma causa externa a Deus que implique em sua não-existência (pois não pode haver
violência das suas paixões, está no pleno direito natural de o cobiçar e pode licitamente causalidade entre substâncias de atributos diferentes). Finalmente, argumenta que é absurdo
obtê-lo”, para, logo depois, considerar que “posto isso, é igualmente incontroverso ser que seres finitos existam e um ente absolutamente infinito não exista, já que a potência de
muito mais útil para os homens viverem segundo as leis e os rigorosos ditames da razão, existir deste último é maior (Spinoza considera óbvio que nós existimos – esta seria, assim,
que apontam, como já dissemos, apenas para o que lhes é verdadeiramente útil” (Spinoza uma prova a posteriori). O fato de não ser contraditório que uma substância possa conter
14, TTP 16, p. 240). Podemos ver nisto a diferença entre o que é meramente “bom” (as todos os atributos já tinha sido demonstrado anteriormente (Spinoza 13, EI, P10).
“coisas boas” que desejamos e procuramos obter em nosso cotidiano) e o conceito de 11. Para defender esta tese, assim, Spinoza precisa sustentar que uma única substância
“bem”, que implica em um conhecimento do que é verdadeiramente útil (Spinoza 13, pode possuir mais de um atributo, o que vai contra as concepções tradicionais. O seu
EIV, Def 1-2, p. 267). principal argumento neste sentido é que cada atributo deve ser concebido por si mesmo:
5. O homem, de fato, pode não ser causa total de suas ações, mas apenas parcial, o que dessa forma, não pode haver contradição entre eles, e, portanto, é possível uma substância
implica em uma passividade, fruto de coações externas (Spinoza 13, EIII, D2, p. 163). possuir mais de um, ou mesmo todos. Esse aspecto gera toda uma polêmica sobre o
Esse aspecto resulta da interferência mútua entre os diversos conatus. estatuto ontológico dos atributos – alguns autores, como Gueroult e Alquié, consideram
6. Yirmiyahu Yovel, por exemplo, em seu artigo “Transcending Mere Survival: From Co- que estes últimos devem ser considerados substâncias, visão contestada por outros

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comentadores, como Bennet. (Chauí 3, p. 132). Delbos comenta, nesse sentido, que “a individualidade, com o esforço
12. Bennet comenta que o modo infinito imediato da Extensão não pode ser simplesmente que lhe pertence, não é um simples encadeamento de fatos: ela é uma definição singular
as relações de movimento e repouso, mas também as leis que as governam, ou seja, as que se realiza” (Delbos 6, p. 124).
leis da física (Bennet 2, p. 107). O modo infinito mediato da Extensão é a “face total do 20. Podemos considerar que, nos objetos comuns, o conatus acaba se confundindo com a
universo”, ou seja, o conjunto dos objetos da Extensão e das relações que estes mantêm inércia, devido à simplicidade destes corpos, que faz com que o seu ser se confunda com
entre si. Não fica claro qual seria o modo infinito mediato do pensamento, mas podemos seu estado (Gleizer 8, p. 31).
considerar que se trata do equivalente da “face total”, ou seja, a representação de toda a 21. “Um poder de ser afetado permanece constante para uma mesma essência, seja ele
physis pelas idéias do intelecto divino. preenchido por afecções ativas ou afecções passivas” (Deleuze 7, p. 205, tradução nossa.
13. A demonstração desta proposição faz referência direta, justamente, à noção de “causa Cf. ibidem, p. 202). Mais adiante, Deleuze desenvolve um pouco mais este argumento,
de si”, estabelecida na definição I-1: decorre diretamente da essência de Deus que este considerando que o próprio poder de ser afetado pode variar (por exemplo, na velhice). A
seja causa de si e de todas as coisas, e é por sua potência que existe e age, portanto esta relação direta deste poder com a essência é, no entanto, mantida, pois esta variação cor-
potência é a própria essência de Deus. responderia a uma “variação metafísica” da essência: “as variações expressivas do modo
14. Como diz Delbos, “as próprias essências das coisas individuais são individuais” finito não se constituem somente, portanto, em variações mecânicas das afecções experi-
(Delbos 6, p. 71). mentadas, elas se constituem ainda em variações dinâmicas do poder de ser afetado, e em
15. “As coisas singulares (...) são coisas que exprimem de uma maneira certa e determi- variações ‘metafísicas’ da própria essência” (ibidem, p. 205, tradução nossa).
nada a potência de Deus”. Spinoza se refere, nesta afirmação, ao corolário da proposição 22. “A potência de agir, somente ela, exprime a essência, e as afecções ativas, somente
I-24 – pela qual as coisas particulares são modos que exprimem os atributos de Deus de elas, afirmam a essência” (Deleuze 7, p. 205, tradução nossa). Como diz Chauí, “a po-
forma certa e determinada -, e à proposição I-34, que estabelece, como vimos, que a es- tência do conatus não se encontra apenas em sua capacidade para vencer os obstáculos
sência de Deus é a sua potência. exteriores, pois tal capacidade é apenas efeito de uma causa muito mais profunda: sua
16. Sobre a complexidade da mente, ver Spinoza 13, proposição II-15. capacidade para desenvolver em seu próprio interior as partes fortes, aumentando-lhes a
17. Sobre Descartes, ver Princípios da Filosofia, II-37 e III-56 (Descartes 5, p. 76; p. intensidade e minimizando, com isto, a atuação das partes fracas” (Chauí 3, p. 310).
115). Curley comenta como o conatus cartesiano deriva da inércia: “conatus (...) has a 23. A nosso ver, é possível compreender esta “ética da liberdade” a partir da relação dos
technical use in Cartesian physics (...) to refer to the tendecy bodies have to persist in a modos finitos com Deus. Deus é, de fato, absolutamente livre e ativo (Spinoza 13, EI,
state either of rest or of uniform motion in a straight line” (Curley 4, p. 107). Sobre Hob- P17, p. 39) (neste sentido não possui conatus, pois não precisa “se esforçar” para ser
bes, ver, por exemplo, no Leviatã: “Estes pequenos inícios de movimento, no interior do livre). Ora, vimos que as essências dos entes finitos exprimem de uma maneira certa e
corpo do homem, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e em outras ações determinada a potência de Deus. Desta forma, nosso esforço primordial em sermos livres
visíveis, chama-se geralmente ESFORÇO. Esse esforço, quando vai na direção de algo e ativos decorre diretamente do fato de Deus ser absolutamente livre e ativo.
que o causa, chama-se APETITE ou DESEJO” (Hobbes 9, p. 47). É interessante observar 24. Para Spinoza, a virtude é sempre fruto da razão (Spinoza 13, EIV, P23 e P24). Este
que Descartes não chega a fazer a passagem do conatus como princípio físico para ético, aspecto decorre do fato de que só somos “ativos” quando temos idéias adequadas, e a
o que Hobbes obviamente faz. virtude pressupõe a atividade, pois se confunde com a potência do indivíduo, ou seja,
18. Como diz Chauí, a ruptura da física spinozista com a cartesiana se dá na distinção dos com sua essência (Spinoza 13, EIV, D8). Dessa forma, só se pode falar de “coragem”
corpos “não pela substância ou pela matéria, nem apenas pelo movimento ou repouso, no sentido próprio quando agimos de forma racional: a coragem seria uma forma de
mas por proporções de movimento e repouso” (Chauí 3, p. 133). “firmeza” (animositatem), por sua vez uma das formas de “fortaleza” (fortitudinem),
19. Como diz Alquié, para Spinoza a forma do indivíduo se mantém, mesmo que suas à qual se remete às ações que se seguem dos afetos relacionados à mente quando ela
partes se renovem (Alquié 1, p. 274). Para Chauí, a definição da individualidade como compreende (Spinoza 13, EIII, P59, S).
“unidade causal” faz com que o individuo não seja determinado apenas extrinsecamente 25. Em Hobbes, a liberdade é entendida apenas como ausência de impedimento externo
(uma reunião de componentes), mas sim intrinsecamente (uma união de constituintes) (Hobbes 9, II-14, p. 146). Podemos considerar que essa diferença em relação à concepção

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Cadernos Espinosanos XIX

spinozista de liberdade – como auto-determinação - reflete, justamente, o fato de neste úl-


timo o conatus não poder ser entendido apenas a partir do princípio de inércia, remetendo SOBRE A DEFINIÇÃO DE DEMOCRACIA NO TRATADO
a uma “essência”. Como diz Chauí, “a definição do conatus como esforço de manutenção TEOLÓGICO POLÍTICO
da proporção interna para vencer as forças externas e adversas [grifo nosso] e para
compor com elas, quando concordantes com a essência e potência individuais, revela que
André Menezes Rocha*
a noção de conflito não pode ser circunscrita à relação com o exterior, mas deve também
ser encontrada no interior de cada indivíduo complexo” (Chauí 3, p. 308).
26. O hilozoísmo – literalmente, “matéria animada” – pode ser compreendido como uma Resumo: Este texto examina, com brevidade, o sentido definição de democracia no capítulo 16 do
concepção pela qual o universo inteiro seria uma coisa viva. Podemos encontrar esse Tratado Teológico-Político. Num primeiro momento, faço uma pequena história dos estudos, no século
princípio em diversos autores antigos, como em Heráclito e nos estóicos. Spinoza clara- passado, acerca da forma do discurso político do TTP. Em seguida, passo à interrogação do sentido
da definição de democracia e da lógica geométrica que estrutura o discurso político de Espinosa. Com
mente abraça esta concepção, que, de certa forma, inverte a visão da ciência moderna:
fundamento no décimo sexto capítulo, podemos dizer que a essência da democracia é anterior tanto
os seres vivos não devem ser entendidos como “seres inanimados complexos”, mas, ao
ontológica como históricamente às essências dos outros regimes e que esta anterioridade, no caso do
contrário, os objetos comuns é que seriam “seres vivos simplificados”. É assim que, nos
exame da história hebraica, também é cronológica. Isso pode significar que, desde o Tratado Teológico-
Pensamentos Metafísicos, Spinoza afirma que “entendemos, pois, por vida a força pela Político, toda a política de Espinosa está fundamentada na definição da essência da democracia.
qual as coisas perseveram em seu ser, e, como essa força é distinta das próprias coisas, Palavras-chave: discurso, política, definição, democracia, poder.
dizemos propriamente que as coisas têm vida. Mas como a força pela qual Deus persevera
em seu ser nada mais é do que sua essência, falam bem aqueles que dizem que Deus é a
vida” (Spinoza 15, CM, II, 6, p. 30). No escólio da proposição II-13 também vemos que
não só os homens, mas todos os indivíduos, ainda quem em graus variados, são animados
Desde a tese de Leo Strauss sobre a maneira de ler o Tratado Teológico-Político
(Spinoza 13, EII, P13, S, p. 97). Curley comenta que “I believe Spinoza does really think
it appropriate to conceive of all things as living” (Curley 4, p. 73; Cf. Bennet 2, p. 138). de Espinosa, os estudiosos discutiram muito pouco a forma do discurso político de
Espinosa. Quero chamar a atenção sobre o estudo de Strauss, pois é com ele que a forma
do discurso político de Espinosa começa a ser interrogada.
Strauss examina a distinção estabelecida por Espinosa entre as regras
necessárias à exegese de livros inteligíveis e de livros hieróglifos. A distinção foi
estabelecida por Espinosa no capítulo 7 do Tratado Teológico Político [TTP], capítulo em
que apresenta as regras que elaborou para a interpretação das Escrituras. Strauss argumenta
que a distinção e as “regras hermenêuticas” apresentadas por Espinosa não servem para
interpretar o TTP1 e que para este propósito ele, Strauss, apresentará as regras.2 Quais
são as regras? Strauss recorre à distinção entre a apresentação “exotérica (ou aberta)
e a apresentação esotérica (ou enigmática)” (Strauss 7, Página. 237) que segundo ele
também foi usada por Descartes e Hobbes, cuja formulação moderna e recomendação se
encontrava numa passagem do Advancement of learning3 de Bacon. De maneira sumária,

* Doutorando USP.

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Cadernos Espinosanos XIX André Menezes Rocha

a chave de leitura do TTP se encontra, para Strauss, nesta distinção. Cumpre observar diferenciado segundo diversos métodos de raciocínio aplicados pelo autor ...”
que Strauss se dedica, no que se refere aos conteúdos, ao exame dos capítulos do TTP (Akkerman 3, P.381). Examinando o capítulo 12, por exemplo, Akkerman encontra
voltados às questões teológicas. Debalde o leitor encontrará um exame, por exemplo, do dois métodos: “o método racionalista, dedutivo, e o método empírico, indutivo.”
capítulo 16 do TTP, embora seja possível encontrar conclusões políticas do exame da (Akkerman 3, p. 382). Mas esta parte racionalista não é fundada em noções claras
teologia no texto de Strauss. e distintas, porém em noções veiculadas pela tradição clássica e aceitas pelos
Entre os comentadores posteriores que se dedicaram ao conteúdo da seiscentistas que foram educados no humanismo. Em última análise, assim, de acordo
política do TTP, por sua vez, encontramos poucos que consideram a questão da forma com Akkerman, o TTP segue a retórica aristotélica e se funda nas opiniões aceitas
do texto como importante para a compreensão do TTP. Não queremos com isto dizer pelos leitores cultivados para, partindo destas opiniões, persuadi-los.
que pouco foi feito entre 1952 e os dias atuais. Certamente houve avanços consideráveis A tese de Leo Strauss, dispensando qualquer indagação acerca de
no campo dos conteúdos de certas teses características do discurso político de Espinosa. fundamentos lógicos do discurso, levou-o a supor que a chave de leitura do texto estava
Aqui frisamos é que poucos estudiosos questionaram seriamente a tese de Strauss sob a em buscar duas camadas de sentido: uma esotérica, oculta e só decifrável por sábios,
forma da escrita e a maneira de interpretá-la. outra exotérica, explícita e feita para coincidir com a opinião do vulgo. Existem, até onde
Podemos mencionar a leitura da política de Espinosa de Matheron, sei, dois estudos que questionaram as teses de Strauss acerca da forma do discurso do TTP
concentrando na inovação que trouxe, sobretudo, para o leitor do TTP. Publicada em e da chave de sua leitura.
1968, a leitura de Matheron (Matheron 6) é um marco, na medida em que mostra a Chantal Jaquet contestou a tese de Strauss argumentando que “... a
singularidade de Espinosa pelas diferenças em relação a Hobbes. Concentremo-nos, chave de leitura dos textos espinozistas não repousa na oposição entre um sentido
por exemplo, na questão da transferência de potência dos indivíduos para a república, esotérico, confuso e escondido, de um lado, e um texto exotérico, claro e aparente,
ou seja, na questão da gênese da política, questão nuclear no capítulo 16 do TTP. “A de outro, mas na distinção entre os ensinamentos que se fundam na razão e os que
transferência, se transferência existe, torna-se então algo de muito simples e banal: a se fundam na experiência, sem, no entanto, se contradizer.” (Chantal Jaquet 5, P.11).
efetuamos cotidianamente.” (Matheron 6, P 295 e 296). A transferência de potência dos Chantal Jaquet também se apóia no capítulo sétimo do TTP, ou seja, quando fala em
indivíduos para a república deixa de ser pensada como um acontecimento instantâneo experiência fala em “história da natureza [historia naturae]”. No entanto, para ela, à
no passado e passa a ser pensada como fundamento permanente da política: deixa de ser diferença de Strauss, há também no TTP certas linhas argumentativas que se fundam em
pensada segundo a causa final, como nas teorias aristotélicas, mas também deixa de ser ensinamentos da razão, como os livros inteligíveis de filosofia inspirados nos Elementos
pensada segundo a causa eficiente transitiva, como na teoria hobbesiana, e passa a ser de Geometria de Euclides.
pensada segundo a causa eficiente imanente, tese legitimamente espinosana. Entretanto, Em 2003, Marilena Chaui publicou Política em Espinosa e avançou
Matheron, talvez por tratar também da Ética e do Tratado Político em seu estudo, não decisivamente no estudo tanto da forma como do conteúdo do discurso. No que concerne
indagou a peculiaridade da forma do discurso político do TTP. à forma do TTP, há um capítulo dedicado exclusivamente a ela e a sua novidade é patente.
Apenas em 1985 surge novamente a discussão com a publicação de um Não apenas indica que há linhas argumentativas diversas que se entrecruzam no texto,
artigo de Fokke Akkerman. Neste artigo, Akkerman sustenta que a forma do TTP algumas linhas características de livros hieróglifos e outras características de livros
é predominantemente retórica. Existem, certamente, definições e raciocínios que inteligíveis, mas ensina como interpretá-las. No caso das linhas inteligíveis, fundam-se
exigem do leitor reconhecer diferenças de estilo: “... o estilo do TTP é sensivelmente em definições e a teoria política, no capítulo 16 de Espinosa, não é senão a construção de

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Cadernos Espinosanos XIX André Menezes Rocha

uma definição. “Em outras palavras, assim como os seis primeiros capítulos constroem que caracteriza a monarquia é a fraqueza que prepara a destruição do corpo político.
a definição real do objeto ‘religião revelada’ o capítulo XVI constrói a definição real do A história dos Romanos e a história dos Hebreus, assim, são dados da experiência
objeto imperium; e, assim como o primeiro objeto conduziu à necessidade do método que podem testemunhar contra a monarquia e em favor da democracia. A tese de que
exegético, o segundo conduzirá à dedução puramente racional dos fundamentos do a concentração de poderes no monarca enfraquece o corpo político e prepara a sua
poder político.” (Chaui 4, P.32). Cabe observar, na citação acima, que a dedução do poder destruição surge no exame da história dos hebreus e dos romanos, ou seja, a experiência
político é racional, ou seja, fundamentada numa definição real. Isto quanto à forma, não consignada nos registros historiográficos é que o mostra.
ao conteúdo do discurso. Pois, do ponto de vista do conteúdo, somente a passionalidade Do ponto de vista da forma, contudo, qual é a relação entre a definição construída do
dos homens explica a gênese da política.4 Do ponto de vista da forma, o texto do capítulo capítulo 16 e os exemplos históricos que são examinados à sua luz nos capítulos 17 e 18?
16 é uma dedução racional a partir de uma definição. Ora, há geométrica política nesta No capítulo 16, fundamentado na definição, a tese que ressalta é a afirmação de
dedução e, caso a resposta seja afirmativa, como ela se articula com a experiência que a democracia é o “mais natural” dos regimes políticos: caso identifiquemos o “mais
consignada pelos historiadores romanos e hebreus? Aprofundemos esta questão. natural” com “mais potente”, ou seja, como mais propício à conservação na existência
O Tratado Teológico-Político apresenta, em seus cinco capítulos finais5, um do corpo político, como convém a este jusnaturalismo espinosano que identifica o direito
discurso voltado para a política. Nos quinze capítulos iniciais, o discurso se volta para natural com a potência, podemos afirmar que critério de diferenciação entre os regimes
temas teológicos, para temas filológicos ou de exegese das Escrituras e para a questão da não é senão a maior ou menor potência de conservação do corpo político e a monarquia
distinção entre a teologia e a filosofia. A apresentação, no capítulo 16, de um tratamento é o mínimo que, portanto, deixa o corpo político fraco e vulnerável. Mas este critério de
filosófico da política sucede à distinção entre a teologia e a filosofia, distinção operada no diferenciação oferecido no capítulo 16 opera no estudo que Espinosa faz, no capítulo 17,
capítulo anterior, o décimo quinto. da experiência consignada nas histórias de Romanos e Hebreus?
O capítulo 16 tem o seguinte título: “Dos fundamentos da república; do A relação entre a definição construída no capítulo 16 e os exemplos históricos
direito natural dos indivíduos e do direito dos poderes soberanos [summarum dos capítulos seguintes pode ser intrínseca ou extrínseca. Extrínseca, se a definição
potestatum]”6. Construção da definição real do objeto imperium7, como vimos acima espinosana não permitir demonstrar o ensinamento que a história singular de hebreus
na passagem de Marilena Chaui, constitui a condição para a exegese dos capítulos e romanos ensina. Intrínseca, se as propriedades deduzidas da definição espinosana
seguintes. Com efeito, nos capítulos 17 e 18, Espinosa examina, à luz da definição puderem servir para demonstrar, ou seja, pensar as causas necessárias, das experiências
construída no capítulo 16, exemplos da história dos Romanos, sobretudo nos Anais e relatadas pelos historiadores.8
nas Histórias de Tácito, e da história dos Hebreus, sobretudo nas Sagradas Escrituras Nossa hipótese interpretativa é de que a relação é intrínseca, ou seja, defendemos
e nas Antiguidades Judaicas de Josefo. que a definição do capítulo 16 permite deduzir a causa necessária da fraqueza da
Do ponto de vista do conteúdo, a história dos romanos e dos hebreus mostra que monarquia, na medida mesma em que define a causa necessária da força da democracia,
a forma monárquica enfraquece o corpo político e deixa-o vulnerável: a concentração ou seja, o motivo pelo qual é o “mais natural”. Em apoio a esta hipótese, examinemos um
de poderes nas mãos de Augusto, no caso dos romanos, preparando a ruína futura, bem trecho do capítulo 16.
como a transformação do regime descentrado dos Juízes em regime de concentração Após definir o direito natural pelo conatus, ou seja, pela potência individual de
nas mãos dos Reis, no primeiro imperium dos hebreus que foi devastado justamente autoconservação, bem como dele deduzir a gênese do Estado [imperium] pela célebre e
sob o domínio dos monarcas. A experiência ensina que a concentração de poderes controversa teoria do pacto social, Espinosa adverte o leitor de que não tratou de todo e

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qualquer imperium, mas somente do democrático. a seus caprichos pessoais. Entre o estado natural e o imperium democrático, portanto,
existe uma maneira de transferir a potência individual para a sociedade. A definição de
“Julgo ter mostrado com bastante clareza os fundamentos do conatus, excluindo as causas finais e restringindo a política à busca das causas eficientes
Imperium Democrático, de que preferi tratar porque me parece
imanentes, consiste num critério, intrínseco à própria filosofia de Espinosa, que pode
o mais natural9 e que mais permite a liberdade que a natureza
ser suficiente para explicar a preferência pela democracia. O imperium democrático tem
concede a cada um. Pois nele ninguém transfere seu direito
natural a outro de maneira que depois [in posterum] nunca mais precedência ontológica e lógica ante os demais? Espinosa parece sugerir que podem ser
seja consultado, mas transfere à maior parte de toda a Sociedade deduzidos da democracia.
de que participa. Por isto é que todos permanecem desta maneira
iguais, como antes no estado natural [in statu naturali].”(Espinosa
“Deixo de lado os fundamentos das soberanias dos demais
1, p.195)10
[relinquarum potestatum] e nem nos é preciso [opus est] agora
conhecer o seu direito, de onde tiveram [unde ortum habuerint]
A preferência pela democracia poderia ser explicada somente por um e freqüentemente têm sua origem: com efeito, isto consta com
critério político, qual seja, a decisão espinosana de apoiar uma política da liberdade bastante clareza do que já mostramos.” (Espinosa 1, p.195)11
contra uma política que torne os homens servos, entre outras coisas, pela censura
e pelo controle do saber. Poderíamos encontrar fatores extrínsecos ao texto que A origem do imperium aristocrático e do imperium monárquico, portanto, está
concorreriam pela explicar este critério: por exemplo, Espinosa viver e escrever numa implícita naquilo que já foi demonstrado e cabe aos leitores torná-la explícita de acordo
Holanda republicana com relativa liberdade ideológica e econômica, se comparada às com as premissas assentadas no texto. Mas, como observamos, neste capítulo 16 só foi
monarquias absolutistas que, como na Espanha e na França, suprimiam as liberdades demonstrada a gênese da democracia. Assim, Espinosa parece indicar que a democracia
civis tendo em conta outras finalidades políticas. tem uma anterioridade ao menos lógica face aos outros regimes.
Entretanto, o texto espinosano, qualificando a democracia de “mais natural”, Se o capítulo 16 constrói a definição do poder político tomando a democracia
nos remete a fundamentos estabelecidos anteriormente e não a critérios extrínsecos. Com como anterior ontológica (o mais natural ou mais potente) e logicamente (o conceito
efeito, neste mesmo capítulo 16, a definição do conatus, que precede e condiciona a de democracia é condição para formar os conceitos de aristocracia e monarquia), então
demonstração da gênese do imperium democrático, exclui qualquer causa final: nenhum permite concluir, neste plano puramente racional, que a monarquia é o menos potente, ou
indivíduo, com efeito, existe tendo como finalidade conservar a existência de um outro, seja, que a concentração de poderes da monarquia deixa o corpo político vulnerável.
mas cada um existe para conservar sua própria existência. Ora, no imperium democrático, Algumas conclusões importantes decorrem desta interpretação:
como escreveu Espinosa no trecho que acima citamos, ninguém transfere seu direito a (1) Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o capítulo 16 do TTP constrói a
outro, mas cada um e todos à sociedade. A transferência de seus direitos naturais, motor da definição do poder político de maneira geométrico-filosófica e, por isso, podemos dizer
gênese do imperium, não é alienação a outro, ou seja, não é consentir em obedecer outros que é um texto inteligível ou um “livro inteligível”. A tese de Leo Strauss sob a forma
homens, pois transferir seu direito natural para a sociedade é consentir em obedecer às do TTP assim, se mostrará insuficiente, pois leva a supor oculto um ensinamento que
leis civis. Por isto é que ninguém obedece a outros, porque todos obedecem às leis civis, Espinosa, no capítulo 16, oferece aberta e publicamente não ao vulgar, mas ao leitor-
porque não há alguns que se isentam da obediência às leis civis e obrigam outros a obedecer filósofo instruído na geometria.

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(2) Em segundo lugar, a anterioridade ontológica e lógica da democracia permite this priority, for the examination of Jewish history, is also chronological. This may mean that after
the Theological-Political Treatise the whole politics in Spinoza is based on the definition of the
examinar sob nova luz qual é a relação entre a definição no capítulo 16 e a experiência de
essence of democracy.
Romanos e Hebreus acerca da monarquia que precedeu a sua aniquilação, ensinamento Keywords: discourse, politics, definition, democracy, power.
assinalado por Espinosa no capítulo 17. No caso dos Hebreus, com efeito, há trechos do
capítulo 17 indicando que a democracia tem precedência lógica e cronológica face às NOTAS

outras formas políticas. 12


1. “Nosso estudo das regras de leitura de Espinosa parece nos ter conduzido a um impasse.
Nós não podemos ler seus livros como ele leu a Bíblia, porque certamente seus livros
Referências bibliográficas não são livros hieróglifos. Tampouco podemos ler como ele leu Euclides e outros livros
inteligíveis, dado que os livros de Espinosa não nos são tão inteligíveis como eram para
1. Spinoza, Benedictus de. Opera. Im Auftrag der Heidelberger Akademie der ele os livros não hieróglifos que ele conhecia.”. (Strauss 7, p.201).
Wissenschaften hrs. von Carl Gebhardt. Heidelberg : C. Winter, [c1972], 4 2. “Nós vimos como julgar o pensamento predominante da época presente à luz de
volumes. princípios de Espinosa ou como é possível, permanecendo estritamente fiel a seus
2. Espinosa, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Tradução, introdução e princípios, dar um sentido mais largo à concepção dos obstáculos que se impõem à
notas de Diogo Pires Aurélio. Estudos Gerais, Série Universitária, Clássicos filosofia e, portanto, à interpretação dos próprios livros de Espinosa. Adquirimos, assim,
de Filosofia. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004. 3. ed., o direito de abandonar as regras que Espinosa elaborou para a leitura de seus livros. Mas
integralmente revista. ao mesmo tempo nos damos conta de que não podemos simplesmente substituir suas
3. Akkerman, Fokke. Le caractère rhéthorique du TTP. Cahiers de Fontenay, regras de leitura por aquelas que são efetivamente utilizadas por muitos dos historiadores
Fontenay-aux-Roses, no 36 a 38, mars 1985, p.381-390. modernos. ”. (Strauss 7, p.210).
4. Chaui, Marilena de Souza. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das 3. Para a referência à passagem de Bacon, consultar esta mesma página 237 que citamos
Letras, 2003. na nota anterior. Nesta mesma página o leitor encontrará as referências de Strauss a
5. Jaquet, Chantal. Spinoza ou la prudence. Paris, 2004. Descartes e Hobbes, mas também encontrará referências ao uso desta mesma arte de
6. Matheron, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Nouvelle escrita (que opera com camadas esotéricas e exotéricas) em Maimônides e Platão.
Édition. Paris: Editions de Minuit, 1988. 4. Espinosa tem um argumento que é usado tanto no Tratado Teológico-Político como no
7. Strauss, Leo. Le testament de Spinoza. Textes traduits et annotés par Gérard Tratado Político para demonstrar que a construção das instituições políticas só pode ser
Almaleh, Albert Baraquin, Mireille Depadt-Ejchenbaum. Paris: Les Editions explicada pela natureza passional dos homens. O argumento é uma prova por absurdo.
du Cerf, 1991. Se os homens vivessem segundo os ensinamentos da razão, as instituições políticas não
seriam necessárias. (Espinosa 1, p.73) “Se já agora os homens estivessem constituídos pela
natureza de tal maneira que não desejassem nada além do que a verdadeira razão indica,
a sociedade não careceria de leis, pois seria suficiente ensinar aos homens ensinamentos
On the definition of democracy in the Theological-Political Treatise
morais verdadeiros para que com ânimo integro e liberal espontaneamente fizessem
Abstract.: This paper examines briefly the meaning of the definition of democracy in Chapter aquilo que é verdadeiramente útil. Na verdade, algo outro está constituído [constitutum
16 of the Theological-Political Treatise. At first, I make a little history of the studies made in est] com a natureza humana. Todos, com efeito, procuram seu útil, mas minimamente
the last century concerning the way in which Spinoza wrote his political discourse. Then, I will pelo ditame da razão, pois quase tudo apetecem e julgam útil pelos excessos dos apetites
treat the question around the geometric logic that structures Spinoza’s political discourse and e arrastados pelos afetos do ânimo (sem levar em conta o tempo futuro ou as causas das
defines the essence of democracy. According to the sixteenth chapter, we can say that the essence coisas).”. No Tratado Político, a referência é a seguinte: TP6/3. Este terceiro parágrafo
of democracy is both ontological and historically prior to the essences of other systems and that

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do sexto capítulo do Tratado Político parece uma reprodução deste trecho do Tratado seja, antes da fundação do Templo em Canaã, Espinosa identifica a primeira transferência
Teológico-Político que acabamos de citar. No capítulo 16 do TTP, que nos interessa dos indivíduos para Deus, que elegeram seu soberano antes de Moisés, com a transferência
aqui, a referência é TTP16, SO3, p. 190 (13-14). de potência que foi teorizada pela teoria do pacto social no capítulo 16. Observe, assim,
5. Do capítulo 16 ao capítulo 20. a coincidência entre este princípio cronológico (descrito no livro do Êxodo) e o princípio
6. “De Reipublicae Fundamentis; de jure uniuscujusque naturali & civili: deque ontológico e lógico (contido na definição construída pelo capítulo 16). (Espinosa 1,
Summarum Potestatum Jure”. página 205). “Atque haec promissio, sive juris in Deum translatio eodem modo facta est,
7. Os comentadores de Espinosa têm muitas dificuldades com tradução de seu ac in communi societate supra concepimus fieri, quando homines jure suo naturali cedere
vocabulário político. Este vocábulo, imperium, comumente é traduzido por Estado. deliberant. Expresse enim pacto (vide Exod. cap. 24. vers. 7.) & juramento jure suo naturali
Preferimos manter o termo latino. libere, non autem vi coacti, neque minis territi cesserunt, & in Deum transtulerunt.”. Há
8. No caso do Tratado Político, a ordem de exposição dos regimes (monarquia, outra referência próxima a este mesmo trecho, em que Espinosa nomeia expressamente a
aristocracia, democracia) é a ordem lógica do mais fraco ao mais forte, ou seja, democracia como princípio. (Espinosa 1, página 206).
do menos capaz de conservar o corpo político ao mais capaz. Esta ordem lógico-
geométrica é utilizada, no Tratado Político, para a exegese de exemplos históricos,
como o absolutismo espanhol e o imperium do “Grande Turco”. Pensando este exame,
Marilena Chaui escreve: “Assim, a experiência confirma a geometria não porque mostre,
na região dos dados, aquilo que está sendo deduzido na região das idealidades, mas
porque, ao trazer os fatos, deixa entrever que o percurso da forma política na duração
histórica confirma o percurso geometricamente demonstrado, sem que os agentes
históricos cheguem a ter plena consciência desse processo. A experiência confirma a
geometria menos porque os fatos corresponderiam às idéias e muito mais porque as leis
da vida política se manifestam nela e essas leis são o objeto da geometria política.”.
(Marilena Chaui 4, Página 227). Podemos encontrar no Tratado Teológico-Político
esta geometria política que permite pensar o percurso da duração histórica de formas
políticas singulares? Penso que a construção da definição de poder político no capítulo
16, estabelecendo a anterioridade ontológica e lógica da política, permite afirmar, como
buscarei indicar nas considerações que seguem no corpo do texto.
9. Grifo meu.
10. Tradução minha. Segue original para comparações.“Atque his imperii democratici
fundamenta satis clare ostendisse puto; de quo prae omnibus agere malui, quia maxime
naturale videbatur, & maxime ad libertatem, quam natura unicuique concedit, accedere.
Nam in eo nemo jus suum naturale ita in alterum transfert, ut nulla sibi imposterum
consultatio sit, sed in majorem totius Societatis partem, cujus ille unam facit. Atque hac
ratione omnes manent, ut antea in statu naturali, aequales.”.
11. Tradução minha. Segue o original para comparações. “Reliquarum ergo potestatum
fundamentis supersedeo, nec nobis, ut earum jus noscamus, scire jam opus est, unde
ortum habuerint, & saepe habeant; id enim ex modo ostensis satis superque constat.”
12. Cito o trecho em que, examinando a história dos Hebreus no momento do Êxodo, ou

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Rogério Silva de Magalhães

se encontram freqüentemente perante tais dificuldades que


IMAGINAÇÃO E SUPERSTIÇÃO NO TRATADO TEOLÓGICO- não sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos
POLÍTICO (Cap. I ao XV) benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os
fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o
medo, estão sempre prontos a acreditar seja no que for: se
Rogério Silva de Magalhães*
têm dúvidas, deixam-se levar com a maior das facilidades
para aqui ou para ali; se hesitam, sobressaltados pela
esperança e pelo medo simultaneamente, ainda é pior;
Resumo: Neste artigo, procura-se demonstrar que, para Espinosa, do capítulo I ao XV do TTP,
porém, se estão confiantes, ficam logo inchados de orgulho
a imaginação e a superstição estão diretamente vinculadas ao sentimento do medo na medida em
que o medo e a superstição revelam uma possibilidade de manifestação confusa e inadequada
e presunção. (Ibid., p. 5).
da imaginação, a qual nem sempre opera de forma negativa. De fato, a superstição e crença
desmesurada no poder da imaginação são causadas, em geral, pelo medo de males futuros ou de Desse modo, diante da impotência para resolver os próprios infortúnios e para
não obter os bens almejados. A religião, construída sob esse edifício, isto é, a partir da idéia de um
Deus contingente, cuja imagem está impregnada de superstição, surge como uma espécie de refúgio
obter tudo de material que deseja para a sua existência, a razão é prontamente menosprezada
contra esse medo, minando assim a potência de agir do homem. Contudo, diferentemente do que em prol das superstições. Nessa busca desenfreada pelos bens incertos1, quando o homem
se possa pensar, o efeito não é somente o ofuscamento da razão por uma vida regida por esse tipo se depara com o fracasso, logo se desespera e não demora muito para que o medo se
de religião, há também implicações políticas nessa relação entre medo, imaginação e superstição.
Segundo Espinosa, quanto mais mistério tiver a religião, mais medo será possível incutir na mente
apodere de sua mente. Ou seja, sentindo-se inseguro para conduzir a própria vida com
dos homens, abrindo assim uma porta para a manipulação e dominação não só no campo teológico- o auxílio de seu intelecto, o homem concede um grande valor aos despautérios de sua
metafísico, mas também no político. imaginação. Os homens, cujas mentes estão completamente entorpecidas pela busca
Palavras-chave: imaginação, superstição, religião, medo, poder.
desenfreada de bens incertos, não possuem uma idéia adequada do real. Nesse estado, os
homens não têm uma idéia adequada de si e nem de Deus.
No início do prefácio do Tratado Teológico-Político, Espinosa considera que a
causa principal para o surgimento das superstições entre os homens e, por conseqüência, Tanto assim é, que quem nós vemos ser escravo de toda a espécie
de superstições são sobretudo os que desejam sem moderação
fonte das desavenças entre os mesmos reside no medo. “O medo é a causa que
os bens incertos. Todos eles, designadamente quando correm
origina, conserva e alimenta a superstição.” (Espinosa 4, p. 6). A insegurança perante perigo e não conseguem por si próprios salvar-se, imploram
as adversidades da vida transforma o homem em um ser vulnerável às superstições. O o auxílio divino com promessas e lágrimas de mulher, dizem
medo de males futuros ou de não obter os bens materiais que almeja no presente nutre a que a razão é cega porque não pode indicar-lhes um caminho
superstição, levando o homem a se tornar um fervoroso devoto, dando assim origem ao seguro em direção às coisas vãs que eles desejam, ou que é
inútil a sabedoria humana; em contrapartida, os devaneios da
abandono da razão.
imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-
lhes respostas divinas. (Ibid., p. 6).
Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias,
decidir pelo seguro ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre
favorável, jamais seriam vítimas da superstição. Mas, como Mas não é só isso. Para Espinosa, o medo está relacionado também à nossa
potência de agir. De fato, em seu pensamento, o homem é definido não por suas
* Bacharelando em filosofia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

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Cadernos Espinosanos XIX Rogério Silva de Magalhães

características físicas externas visíveis ao olho humano, ou melhor dizendo, por suas conhecer a essência singular das coisas. Conhecer a causa de algo é saber o que esse
propriedades físicas mas por sua atividade. Esse corpo humano é afetado de diversas algo realmente é. Com efeito, as imagens em si não são falsas. A confusão surge quando
maneiras, as quais elevam ou diminuem a nossa potência de agir. “O corpo humano elas são tomadas como verdadeiras sem uma análise minuciosa do intelecto. Assim
pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é aumentada as imagens de um cavalo alado ou de uma mula-sem-cabeça perambulando em uma
ou diminuída; e, ainda, por outras que não aumentam nem diminuem a sua potência de floresta são verdadeiras em si enquanto idéias imaginativas, pois somos capazes de
agir.” (Espinosa 2, p. 276). E não é somente o corpo físico que pode ter a sua potência formulá-las em nossas mentes, mas não podemos tomá-las como seres existentes na
diminuída, mas a nossa mente também. natureza.6 Não é possível assim fazer a correspondência dessa idéia com entes reais. O
erro ocorre, então, quando “se considera que ela carece da idéia que exclui a existência
Se uma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potência das coisas que imagina presentes a si.” (Espinosa 1, p. 65).
de agir do nosso corpo, a idéia dessa mesma coisa aumenta ou
Em suma, a causa do medo no homem, isto é, de sua insegurança e, portanto, de
diminui, facilita ou reduz a potência de pensar da nossa alma2.
sua vulnerabilidade pode ser atribuída ao ato de imaginar algo que existe exterior a ele,
(Espinosa 2, p. 285).
que possua uma potência arbitrária muito maior que a dele e que possa, conseqüentemente,

Nesse contexto, segundo Espinosa, o medo, o qual é originário de “uma tristeza causar a sua destruição. Sendo essa potência infinitamente superior à dele e imaginando

instável, nascida também da imagem de uma coisa duvidosa” (Ibid., p. 291), pode ter, que a sua potência não possua força suficiente para preservá-lo, ou seja, imaginando-se

então, como causa uma afecção causada por um corpo exterior ou pode ser fruto da completamente indefeso diante das investidas dessa potência maior, o medo se apodera

própria mente. O que isso significa? Que o medo exacerbado de que alguma potência do homem, o qual buscará sustentação na religião superticiosa para tentar combater esse

maior e contrária à minha seja capaz de me aniquilar quando bem entender e que, ao desequilíbrio de forças. Em segundo lugar, crer piamente nas imagens, sem a devida

mesmo tempo, a esperança de um futuro melhor vinculam-se, portanto, à imaginação.3 análise crítica das causas, e sentindo-se, acima de tudo, com medo, torna o homem apto,

Essa afirmação possui duas implicações: em primeiro lugar, para Espinosa, a imaginação portanto, a ser dominado por outrem.

não é uma forma de conhecimento totalmente confiável. Vale lembrar que, na descrição
[...] não há nada mais eficaz do que a superstição para
espinosana dos modos de percepção do intelecto, a imaginação aparece em penúltimo ou
governar as multidões. Por isso é que estas são facilmente
em último lugar, dependendo da obra.4 Seja como for, o fato é que confiar plenamente na levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os reis como
imaginação como forma válida de conhecimento para se distinguir o verdadeiro do falso se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se
e, por conseqüência, viver melhor, pois, este parece ser o fim último de toda arquitetura fossem uma peste para todo o gênero humano. (Espinosa 4, p.
filosófica espinosana, enclausura o homem na ignorância. 7, grifo do autor).

No entanto, Espinosa não nega que sejamos todos seres imaginativos. A


Dessa maneira, nota-se uma relação clara entre imaginação e religião. Se
questão central residiria em utilizarmos essa forma de conhecimento como a única, a
a imaginação não nos fornece sempre idéias adequadas e distintas da realidade, mas,
verdadeira e mais segura, pois, as imagens somente nos fornecem uma visão parcial
muitas vezes, somente imagens confusas das coisas, então, o homem se torna incapaz de
do mundo.5 Ainda para Espinosa, se não nos dedicarmos a conhecer o todo, nada
compreender as leis naturais que regem o mundo e todas as coisas existentes nele. Assim,
conhecemos. “Compreender a essência adequada de uma coisa significa compreender
o homem acaba formando imagens distorcidas da natureza.
cada coisa em relação ao Todo.” (Teixeira 10, p. 38). Mas não é só isso. É preciso

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Nesse sentido, tudo o que ia além da capacidade de compreensão Em seguida, no mesmo texto, considerando o fato da criação da religião, Chauí
dos judeus e tudo aquilo de que, na altura, ignoravam as causas (9, p. 32-33) afirma o seguinte: “Instaurada a religião, sob essa forma, imediatamente
naturais era habitualmente atribuído a Deus. À tempestade
institui-se uma casta de homens encarregados de realizar os cultos, receber revelações ou
chamavam repreensão de Deus, aos trovões e relâmpagos flechas
profecias do ser supremo e interpretar as vontades secretas Dele”. Surge assim a figura
de Deus, [...]. (Espinosa 4, p. 25, grifo do autor).
do intermediário entre os homens e Deus, isto é, o profeta ou o apóstolo-teólogo. Incapaz

Se o que temos de melhor é a nossa mente, quanto menor a sua atividade, mais de ter idéias adequadas a respeito do divino, e, em busca de um amanhã certo e seguro,

predispostos estaremos para sermos presas da religião supersticiosa. Nesse cenário, o o homem desesperado se entrega, então, nas mãos daqueles que afirmam serem os porta-

homem parece não ter controle algum sobre o que acontece consigo mesmo. Por não vozes dos desígnios de Deus. O vulgar se compraz com o conhecimento divino revelado

conhecer a sua potência, o homem tem um conhecimento inadequado de si mesmo e forja, por esses representantes de Deus e se entrega de corpo e alma ao discurso proferido

ao mesmo tempo, um conhecimento confuso de Deus também. O pavor torna, então, o por eles. “O profeta, por conseguinte, é o que interpreta as coisas que Deus revela para

homem um ser supersticioso e por essa razão, não se pode dizer que esse indivíduo seja aqueles que delas não podem ter um conhecimento certo e que, por isso, só pela fé as

livre, pois, age motivado por causas exteriores a ele. A mola propulsora dessa superstição podem perfilhar.” (Espinosa 4, p. 15). Desconhecendo as suas potencialidades, o homem

é a idéia inadequada de uma potência poderosa que possui a capacidade de o dominar e, supersticioso concebe uma religião impregnada de mistérios, os quais somente seriam

ao mesmo tempo, causar a sua destruição quando bem desejar. Desesperado, sentindo-se supostamente compreendidos pelos líderes religiosos. E isso ocorre porque o mistério é

impotente diante dessa Providência absolutista, a qual ele imagina existir nesse formato, fruto da imaginação distorcida do divino. Essa é justamente a arma do poder profético e

o indivíduo procura fora da razão e da natureza, certezas que possam aplacar seus medos teológico. Aliás, a dominação só é possível na medida em que o campo imaginativo do

e fomentar suas esperanças. E esse lugar seria, conforme vimos anteriormente, a religião. profeta possui uma capacidade de persuasão extremamente forte e o vulgar, por sua vez,

Contudo, é importante ressaltar que o vulgar possui, não com pouca freqüência, uma por desconhecimento de causa, dá vazão a essa imaginação.

concepção obscura da religião. Na verdade, quem esculpe essa visão deturpada da religião
Se folhearmos os sagrados volumes, verificaremos que
é a própria teologia. Caso contrário, a teologia não teria nenhum poder sobre ele. Mas
tudo o que Deus revelou aos homens foi revelado, ou por
isso não exime o vulgar, é claro, de sua parcela de responsabilidade. Segundo Chauí (9, palavras, ou por figuras, ou de ambos os modos, quer dizer,
p. 32), por palavras e figuras. As palavras, tal como as figuras, ou
foram verdadeiras, não dependendo então da imaginação do
Não podendo compreender o que realmente se passa na profeta que as ouvia (ou via), ou foram imaginárias, porquanto
Natureza, a imaginação nos leva a forjar a imagem de um a imaginação do profeta, mesmo quando acordado, estava
ser supremo, onipotente e onisciente, que tudo governaria predisposta de modo que lhe parecesse ouvir palavras ou ver
segundo os caprichos de sua vontade e segundo fins alguma coisa com toda a clareza. (Ibid., p. 18).
incompreensíveis para os humanos: Deus. Para conseguir
benefícios, afastar malefícios, obter a boa vontade e aplacar Com efeito, no livro do Êxodo, Moisés aparece diversas vezes sendo instruído
a cólera desse ser supremo, a imaginação dá mais um passo,
diretamente por Deus. Destaquemos três encontros dessa natureza para entendermos
inventando a religião como conjunto de cultos à divindade.
melhor a natureza dessa relação do profeta com Deus. Antes de guiar o povo hebreu para

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fora do Egito, missão atribuída a Moisés por Deus segundo as Escrituras, o profeta se de trombeta; e o povo que estava no acampamento pôs-se a
demonstra preocupado com a fé de seu povo, pois, ele não acredita que será ouvido e
7 tremer. Moisés fez o povo sair do acampamento ao encontro
respeitado por eles. Deus decide, então, ajudar Moisés a persuadir seu povo por meio de
de Deus, e puseram-se ao pé da montanha. Toda a montanha
do Sinai fumegava, porque Iahweh descera sobre ela no
sinais.8
fogo; a sua fumaça subiu como a fumaça de uma fornalha, e
toda a montanha tremia violentamente. O som da trombeta
Respondeu Moisés: ‘Mas eis que não acreditarão em ia aumentando pouco a pouco; Moisés falava e Deus lhe
mim, nem ouvirão a minha voz, pois dirão: ‘Iahweh não respondia no trovão. Iahweh desceu sobre a montanha do
te apareceu’.’ Iahweh perguntou-lhe: ‘Que é isso que tens Sinai, no cimo da montanha. Iahweh chamou Moisés para o
na mão?’ Respondeu-lhe: ‘Uma vara’. Então lhe disse: cimo da montanha, e Moisés subiu. (Ibid., 19, 16-20).
‘Lança-a na terra’. Ele a lançou na terra, e ela se transformou
em serpente, e Moisés fugiu dela. Disse Iahweh a Moisés:
Em um primeiro momento, o que essas citações bíblicas nos indicam é que o
‘Estende a mão e pega-a pela cauda’. Ele estendeu a mão,
pegou-a pela cauda, e ela se converteu em vara. ‘É para que profeta é um apaziguador de alma, um guia religioso e moral. No entanto, o vulgar pode
acreditem que te apareceu Iahweh, o Deus de seus pais, o não entender dessa forma por causa da superstição ao invés de superstição, pensei em
Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’. (Ex 4, colocar de uma visão supersticiosa da religião. Nesse caso, a imagem dos atos dos profetas
1-5).
estaria mais próxima de dar alento às superstições do vulgar e o conteúdo da verdadeira
religião ficaria, então, relegado a um segundo plano. Em um outro momento, nesses
No deserto do Sinai, o texto bíblico relata mais um encontro entre Moisés e
relatos, com um olhar mais atento, o que chama mais a atenção é o fato da imaginação
Deus. Dessa vez, o objetivo seria firmar a aliança entre Deus e o povo hebreu. E como
se sobrepor à razão.9 Por sua vez, devido a essa característica sui generis do profeta, o
Deus, segundo o relato bíblico, diz a Moisés que se apresentará diante de seu povo?
risco reside nos profetas ultrapassarem os limites da revelação em seus discursos, isto é,
Segundo as Sagradas Escrituras, Deus apareceu a Moisés no formato corpóreo de uma
fingirem essências que só se encontram em seus intelectos.
nuvem.

Tendo, portanto, os profetas percebido pela imaginação


Iahweh disse a Moisés: ‘Eis que virei a ti na escuridão de o que Deus lhes revelou, não restam dúvidas de que eles
uma nuvem, para que o povo ouça quando eu falar contigo, poderiam ter percebido muitas coisas que excedem os limites
e para que também creiam sempre em ti’. E Moisés relatou a do entendimento, pois com palavras e imagens se podem
Iahweh as palavras do povo. (Ibid., 19, 9). compor muito mais idéias do que só com os princípios e as
noções em que se baseia todo o nosso conhecimento natural.
Mais adiante, no mesmo livro, temos um relato detalhado da aparição de (Espinosa 4, p. 30).

Deus. Dessa vez, porém, Ele aparece para entregar a seu povo por meio do profeta
as tábuas dos Dez Mandamentos. Assim, Deus pode passar a possuir certos atributos alheios à sua essência por
conta da natureza imaginativa dos profetas. Nesse contexto, teológico-profético, Deus nos
Ao amanhecer, desde cedo, houve trovões, relâmpagos e uma é apresentado como um Ser dotado de uma vontade onipotente, porém, com um traço bem
espessa nuvem sobre a montanha, e um clamor muito forte

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peculiar que seria o da arbitrariedade, ou seja, governa o mundo conforme o seu desejo e A teologia é a teoria imaginária da contingência. Centrada na
cria a partir do nada. O próprio Espinosa cita em seu texto, mais de uma vez, o exemplo imagem de uma vontade onipotente e transcendente que cria e
governa o mundo, a imaginação teológica propõe explicações que
de Moisés, o qual possuía uma enorme capacidade de imaginação e que fazia uso dessa
conservem o medo e a esperança, pois deixam cada um dos humanos
idéia imaginativa de Deus para persuadir seu povo a seguir certos preceitos ditados por
suspensos aos desígnios imprevisíveis de um poder altíssimo; e
ele. A questão é que o profeta toma essa atitude, em geral, imbuído de um forte senso de propõe códigos de conduta em que a vontade humana se submete
justiça. Por outro lado, a teologia fará outro uso dessa obediência ao sustentar a figura à divina pela mediação daquele que afirma saber interpretá-la, isto
de um Deus contingente perante o vulgar. Veremos, em breve, como ela atua sobre sua é, o teólogo.

mente.
Entretanto, seria um equívoco afirmar que o profeta age de forma deliberada
Finalmente, porque Moisés acreditava que Deus morava nos e arbitrária sobre o povo. No caso do profeta, por exemplo, fica patente, pelo menos,
céus, Deus revelava-se como que descendo do céu sobre a inicialmente, no texto de Espinosa, que ele age como age porque deseja o bem de seu
montanha, enquanto Moisés, para lhe falar, subia à mesma povo, mas também não se pode negar que seja porque os homens se mostram incapazes
montanha, coisa que seria desnecessária se ele pudesse
de darem rumo às suas próprias vidas. Por outro lado, conforme vimos há pouco, há uma
imaginar com igual facilidade que Deus está em toda parte.
(Ibid., p. 45). dimensão política na atividade do profeta, a qual não pode ser ignorada.10

Por medo e esperança, nascidos da impotência para dominar as


Em outras palavras, para Espinosa, é possível conhecer Deus pelos caminhos
circunstâncias de suas vidas, os homens se tornam supersticiosos
da luz natural, mas diante da dificuldade do vulgar em aceitar essa premissa e tomado e alimentam a superstição por meio da religião como crença em
pela superstição, a profecia se encarrega dessa função. A religião em si é composta por seres transcendentes ao mundo e que o governam segundo decretos
verdades muito simples. É possível apreender os preceitos fundamentais da religião, isto humanamente incompreensíveis. (Chauí 8, p. 11).
é, praticar o bem, Deus existe e é uno, etc. pelas Sagradas Escrituras, por exemplo. A
questão é que, ao dar uma importância maior aos aspectos espetaculosos das narrativas Da religião11 – não qualquer uma, mas, cabe aqui ressaltar que seria aquela

bíblicas e ao discurso dos teólogos, o homem se entrega à superstição, isto é, à idéia institucionalizada pela teologia – nasce, então, o poder teológico-político, pois, ela

inadequada, distorcida da religião. Contudo, antes de continuarmos, é importante ressaltar é lugar de manifestação da esperança na justiça para o vulgar. Assim, essa religião

que o papel do profeta não se restringe somente a um campo teológico desinteressado. teologizada funciona como uma moral para esses homens e como porta de salvação para

Seria ingenuidade pensar assim. Pelo contrário, suas ações possuem uma relação direta a sua impotência. De fato, a magia exerce uma força avassaladora na mente do vulgar

com o campo político, ultrapassando a esfera do campo religioso. A teologia seguiria o fazendo-o agir sempre evitando uma possível ira de Deus. O vulgar não entende que o

mesmo caminho. Porém, ao que tudo indica, com uma diferença. Ao invés do indivíduo poder de Deus é o poder da natureza inteira. Não compreende que Deus é uma potência

se libertar das superstições, a teologia parece agir de maneira oposta na mente do vulgar presente em toda atividade. Dessa forma, podemos constatar a fragilidade do vulgar, o

ao transmitir a ele uma imagem de um Deus que suspende as leis naturais quando quiser, qual necessita de uma autoridade para lhe dizer o que fazer. No entanto, o supersticioso

isto é, conforme vimos anteriormente, transmite a idéia de um Deus caprichoso. Segundo não se contenta com o conteúdo moral da palavra profética e estabelece assim uma relação

Chauí (8, p. 9), de dependência constante em relação às ilusões presentes nas narrativas bíblicas. Pelo

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fato do vulgar não conseguir interpretar os textos bíblicos por si só, os teólogos entram, Antes de prosseguirmos, é importante ressaltar que não entraremos aqui em
então, em cena para tomar o lugar antes ocupado pelos profetas. Porém, a obediência e a detalhes acerca da distinção entre profetas e apóstolos-teólogos, pois, esse não é o objetivo
dominação não desaparecem. central deste texto. Apesar de Espinosa se dedicar ao assunto no Tratado Teológico-
Político, o que nos interessa é saber que tanto um quanto outro se dedica a impor a
O vulgo, por conseguinte, só tem de conhecer as histórias obediência aos homens.13 “Quando Moisés fez prodígios, diz Espinosa, ele os fez porque
que melhor possam incutir-lhe no ânimo a obediência e a
sabia que era a única forma de impor obediência ao povo insubmisso. Quando o cristão
piedade. Mas, o vulgo não é sequer suficientemente apto
invoca o milagre, o mesmo desejo de impor obediência se exprime, [...].” (Chauí 6, p.
para ter uma opinião sobre essas matérias, e por isso gosta
mais das narrativas e do seu lado insólito e inesperado do 149).
que propriamente da doutrina aí contida. Donde, além da Sendo assim, independente da origem de sua autoridade e do estilo de seus
leitura das histórias, precisa ainda de pastores ou ministros discursos, a mensagem dos profetas e dos teólogos tem um destinatário: o vulgar. Nutrir
da Igreja que o ensinem de maneira adequada às suas fracas
os homens com uma imagem distorcida da religião faz parte, de um modo geral, da
capacidades. (Espinosa 8, p. 92).
estratégia dos líderes religiosos para manter um domínio sobre o vulgar. A teologia não é
assim um campo distinto e totalmente transparente em relação ao universo da superstição.
Se bastaria a luz natural para entender as noções mais comuns sobre Deus,
Pelo contrário, a teologia alimenta constantemente o sentimento de insegurança nos
é justamente por não conseguir utilizá-la que o vulgar necessitará do profeta e,
homens por meio do credo para que estes acreditem serem meros peões perante Deus. Ela
posteriormente, do teólogo. Por não entender que Deus é causa de si, existe em si e
incute assim o medo no vulgar pela obediência. Dessa forma, o homem comum passa a se
é causa de todas as coisas, é que o vulgar fantasia um Deus contingente, que age por
enxergar como um fantoche à mercê da fortuna.
milagres12 e que pune ou recompensa o homem segundo seu bel-prazer. Para Espinosa,
Embora seja possível apreender as verdades básicas da religião, isto é, suas noções
Deus deveria ser entendido como um
comuns nas Sagradas Escrituras ou pela luz natural, em outra palavras, raciocinando, pelo
fato de suas mentes se encontrarem obliteradas pelo excesso de atividade e confiança
[...] ser que existe em si e por si mesmo, que pode ser
concebido em si e por si mesmo e sem o qual nada existe exacerbada na capacidade imaginativa, além da superstição, os homens freqüentemente
nem pode ser concebido. [...] é substância por ser causa de si abdicam de tal tarefa. Com isso, ao ler as Escrituras, o homem busca somente aquilo que
(causa de sua essência, de sua existência e da inteligibilidade pode continuar nutrindo sua mente deturpada pela superstição. Espinosa assinala ainda
de ambas) e, ao causar-se a si mesma, causa a existência
que mesmo quando os homens afirmam que as noções comuns e os preceitos mais nobres
e a essência de todos os seres do universo. Causa de si, a
podem ser extraídos das Escrituras, eles, em geral, não os seguem. Nesse sentido, parece
substância existe e age pela potência absolutamente infinita
de sua própria natureza e por isso mesmo é incondicionada. justo, então, afirmar que haveria um hiato entre o discurso de beatitude conforme exposto
[...] é o ser absolutamente infinito, pois o infinito não é o nos textos bíblicos e a vivência do mesmo.
sem começo e sem fim (mero infinito negativo) e sim o que
causa a si mesmo e produz a si mesmo incondicionadamente Toda a gente diz que a Sagrada Escritura é a palavra de
(infinito positivo). (Chauí 7, p. 12). Deus que ensina aos homens a verdadeira beatitude ou
caminho da salvação: na prática, porém, o que se verifica

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é completamente diferente. Não há, com efeito, nada com ser. O contingente é nossa ignorância quanto à essência de alguma
que o vulgo pareça estar menos preocupado do que em viver coisa. (Chauí 7, p. 14-15).
segundo os ensinamentos da Sagrada Escritura. (Espinosa 4,
p. 114). Diante das superstições, ao invés de suspender o juízo e encará-las, portanto,
como possíveis ou contingentes, os homens as admitem como verdadeiras. De fato, quando
Essa cisão pode ser atribuída, sobretudo, à superstição. Em um momento o homem não conhece a causa de algo, ele adere sem pestanejar ao possível e contingente.
posterior do texto, Espinosa afirma o seguinte a respeito desse tema: Ou seja, a tudo aquilo forjado por uma imaginação equivocada dos desígnios da natureza
divina. Ao inventar explicações para coisas que não correspondem à realidade, o homem
[...] há ainda a superstição, que os ensina a desprezar a
fica debilitado e vulnerável abrindo uma brecha para o controle moral da teologia, isto é,
natureza e a razão e a admirar e venerar apenas o que as
para a dominação e, por conseqüência, ocorre uma diminuição da liberdade de potência
contradiz, pelo que não é de espantar se eles se empenham
assim tanto, para melhor admirarem e venerarem a Escritura, de existir do indivíduo. Nas mãos dos teólogos, os homens podem se tornar massa de
em explicá-lo de modo que pareça estar em perfeito contraste manobra, pois, a teologia se coloca como autoridade incontestável das coisas divinas. Se
com a natureza e a razão. É por isso que eles sonham que coloca como a única capaz de decifrar seus supostos mistérios. Vimos sucintamente nas
nos Livros Sagrados se escondem mistérios profundíssimos,
páginas anteriores como ocorre esse processo. Em linhas gerais, o que Espinosa parece
e nisso, quer dizer, na investigação desses absurdos, se
querer denunciar em seu texto é os males do fanatismo religioso, os perigos de uma
afadigam, desprezando outras coisas que seriam bem mais
úteis. E tudo quanto nesse seu delírio inventam é atribuído ao leitura maliciosa dos textos bíblicos e, ao mesmo tempo, poderíamos dizer também que
Espírito Santo e defendido com toda a veemência e paixão. ele tece uma crítica aos Estados onde o poder teológico é a lei.
(Ibid., p. 115).
Acuso-os de não querer reconhecer aos outros a mesma liberdade
Desse modo, vemos que as superstições e as imagens proféticas são um desafio e perseguir como inimigos de Deus todos os que não pensam como
eles, por mais honestos e praticantes da verdadeira virtude que
à razão. E o oposto de uma mente cheia de atividade. Sendo assim, ambas deveriam ser
sejam, ao mesmo tempo que estimam como eleitos de Deus os que
consideradas somente como algo possível e contingente. Porém, o vulgar não se importa
os seguem em tudo, ainda quando se trata de pessoas moralmente
em adotá-las como verdades supremas justamente porque elas preenchem o vazio deixado incapazes. Mais criminoso do que isso, e mais nocivo para o
pela ignorância de si e também por causa de sua incapacidade de enxergar a necessidade Estado, é impossível imaginar alguma coisa! (Espinosa 4, p. 215).
da causalidade divina. De alguma forma, o vulgar acredita que pode se beneficiar dessas
superstições na religião. Se elas são capazes de aplacar o medo gerado pela busca de bens O percurso realizado torna patente que Espinosa parece estar preocupado, pelo

incertos, então, na mente do vulgar, esse deve ser o caminho para a felicidade. menos, do capítulo I ao XV do Tratado Teológico-Político, com o estabelecimento de
duas esferas distintas, isto é, a da razão e a da teologia e uma não deve estar subordinada à
O possível é nossa ignorância quanto à causa de alguma coisa. outra. Podemos concluir, portanto, que, nesta obra, Espinosa esboça um projeto crítico de
Chamamos contingente, explica o filósofo, aquilo cuja natureza demolição do pensamento teológico-político vigente em sua época. Nota-se, claramente,
é tal que nos parece que tanto poderia ser como não ser, pois
um Espinosa subversivo, mas, não no sentido de rejeitar, desprezar, em suma, não
desconhecemos a essência da coisa e não sabemos se pode ou não

114 115
Cadernos Espinosanos XIX Rogério Silva de Magalhães

no sentido de fugir do real. Pelo contrário, Espinosa tem consciência de que somente Imagination and superstition in the Theological-Political Treatise (Chap. I to XV)
enfrentando sua realidade e colocando em xeque a sua própria identidade é que o homem
Abstract: In this article, we intend to demonstrate that from chapter I to XV in the TTP imagination
poderá redigir sua própria obra-crítica. Trata-se, em suma, de uma crítica a todo engodo and superstition are interrelated to the feeling of fear for Espinosa as the fear and superstition
que contamina a religião, a política e a filosofia, mantendo o homem preso na escuridão da reveal the possibility of a confusing and inadequate expression of imagination in the mind which
shall be noted that not always work in a negative way. As a matter of fact, in general, superstition
ignorância. “[...] seu pensamento é uma crítica radical a todas as formas de irracionalismo
and the excessive belief in the power of imagination are caused by the fear of future misfortune.
e superstição, seja na religião, na política, seja na filosofia.” (Chauí 9, p. 32). Religion, built on such foundation, in other words, from the idea of a contingent God whose image
is contaminated by superstition, becomes a kind of shelter from fear, undermining thus men’s
potency of action. However, differently from what someone may think, not only is the effect the
Referências bibliográficas darkening of reason in favor of a life ruled by this kind of religion, but there are also political
implications towards this relation among fear, imagination and superstition. According to Espinosa,
the more the mystery there is in a religion, the more fear it will be possible to inculcate into men’s
Básica
mind, opening, thus a door to manipulation and domination in the metaphysical-theological field
as well as in politics.
1. ESPINOSA, Baruch de. Ética (Partes 1 e 2). Tradução em progresso do Grupo de Keywords: imagination, superstition, religion, fear, power.
Estudos Espinosanos da USP sob orientação de Marilena Chauí, São Paulo,
FFLCH-USP, realizada a partir da edição Gebhardt (Spinoza Opera. Im
Auftrag der Heidelberger Akademie der Wissenschaften herausgegeben von NOTAS
Carl Gebhardt. Heidelberg, C. Winter, 1925, vol. 2). Texto em formato pdf.
Circulação restrita. São Paulo: [s.n.], [s.d.]. 1. Espinosa não afirma, em hipótese alguma, que o homem não deva buscar bem material
2. _____________. Ética. Trad. Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio algum para sua sobrevivência. Contudo, Espinosa concebe que o homem deveria buscar
Simões. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Col. Os Pensadores). obter somente os bens necessários para a sua subsistência e não se tornar escravo da
3. _____________. Tratado da Correção do Intelecto. Trad. Carlos Lopes de Mattos. São vaidade e dos bens materiais. Em outros termos, não haveria necessidade alguma de
Paulo: Nova Cultural, 1997. (Col. Os Pensadores). uma busca desmesurada por bens materiais para nos preservarmos. Para ele, o bem
4. _____________. Tratado Teológico-Político. Trad. Diogo Pires Aurélio. São Paulo: supremo – aquele que pode trazer a verdadeira felicidade para o homem – não está
Martins Fontes, 2003. (Paidéia). nas riquezas, nas honras ou na concupiscência. Estes somente turvam a mente. “Com
efeito, as coisas que ocorrem mais na vida e são tidas pelos homens como o supremo
Complementar bem resumem-se, ao que se pode depreender de suas obras, nestas três: as riquezas,
as honras e a concupiscência. Por elas a mente se vê tão distraída que de modo algum
5. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2006. poderá pensar em qualquer outro bem.” (Espinosa 3, p. 107-108). E, no mesmo texto,
6. CHAUÍ, Marilena. Política e profecia. Discurso, São Paulo, n. 10, p. 111-159, 1979. mais adiante, Espinosa ainda acrescenta a esse respeito o seguinte: “[...] vi a aquisição
7. _____________. Poder e liberdade: a política em Espinosa. Cadernos de Ética e de dinheiro ou a concupiscência e a glória só prejudicarem enquanto são procuradas
Filosofia Política, São Paulo, n. 4, p. 9-44, set. 2002. por si e não como meios para as outras coisas; [...]”. (Ibid., p. 109). O objetivo principal
8. _____________. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. do homem deveria ser, portanto, a reforma do intelecto para que se possa viver melhor,
9. _____________. Espinosa: uma filosofia da liberdade. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 2006. inclusive, com os outros. Ou seja, o objetivo maior do homem deveria ser a busca do
10. TEIXEIRA, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração conhecimento. Esse é o único bem que o homem pode buscar por conta própria. Aliás,
na filosofia de Espinosa. São Paulo: Unesp, 2001. (Col. “Biblioteca de esse parece ser o fim último do Tratado da Correção do Intelecto, isto é, afastar o
Filosofia”).

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Cadernos Espinosanos XIX Rogério Silva de Magalhães

homem da contingência dos bens incertos. “Antes de tudo, porém, deve excogitar-se o mas no fato de que enquanto assim o imaginamos ignoramos a verdadeira distância dele
modo de curar o intelecto e purificá-lo quanto possível desde o começo, a fim de que e a causa dessa imaginação.” (Espinosa 1, p. 77).
entenda tudo felizmente sem erro e da melhor maneira.” (Espinosa 3, p. 110). A mesma 7. No capítulo V do Tratado Teológico-Político, Espinosa afirma que a fé é necessária
idéia parece estar presente no Tratado Teológico-Político. No capítulo III, Espinosa para o vulgar aceitar a existência de Deus e ser piedoso, pois, não consegue conceber a
diz o seguinte aos seus leitores: “[...] a verdadeira felicidade e beatitude dum homem verdadeira natureza de Deus de outro modo. A Escritura está assim adaptada para esse
consiste apenas na sabedoria e no conhecimento da verdade [...]”. (Espinosa 4, p. 50). público. “É, com efeito, evidente, [...], que o conhecimento e a fé nessas histórias são
2. Por alma, entenda-se “mente”. extremamente necessários ao vulgo, cuja maneira de ser é incapaz de perceber as coisas
3. Contrariamente ao que costumamos pensar, em Espinosa, o conceito de imaginação não clara e distintamente.” (Espinosa 4, p. 90-91). Entretanto, no capítulo XIV, ele deixa bem
está relacionado à nossa capacidade criadora de fantasias. Para ele e outros pensadores claro que fé se traduz por obediência. Cabe lembrar que essa obediência não é racional.
do século XVII, imaginação possui, portanto, outra conotação. Não é a capacidade de “Como tínhamos demonstrado, a fé não exige tanto a verdade quanto a piedade e só é
fantasiar, mas a de criar imagens. Segundo Chauí (9, p. 35), “imaginar é conhecer as piedosa e pode salvar em função da obediência, pelo que ninguém é fiel a não ser em
imagens das coisas e, por meio delas, conhecer uma imagem de nós mesmos. A imagem função da sua obediência.” (Ibid., p. 221). Contudo, o perigo da fé é que ela pode, por
é um efeito da ação de causas externas sobre nós: coisas luminosas produzem em nós exemplo, induzir o homem à superstição. Não só a fé, mas uma idéia inadequada do
imagens visuais; coisas sonoras, imagens auditivas; a textura das coisas nos oferece milagre, da profecia, enfim, da religião pode levar o homem à superstição.
imagens tácteis; sabor e cheiro são imagens de coisas em nosso paladar e nosso olfato. 8. Sinal não é o mesmo que milagre. É uma pequena prova da realização do porvir, uma
Assim, a imagem não nos oferece a própria coisa tal como é em si mesma e sim o que advertência. De acordo com Chauí (6, p. 131), “o sinal, enviado de maneiras múltiplas
julgamos que ela seja pelo efeito que produz em nós”. e em ocasiões diversas, não é um milagre, mas apenas uma prova suplementar de que o
4. No Tratado da Correção do Intelecto, as formas de conhecimento se dividem em possível, entrevisto pelo profeta, decorrerá necessariamente do decreto divino”.
quatro. A imaginação é a penúltima em ordem decrescente. “Existe uma percepção 9. Para Espinosa, a capacidade intelectiva dos profetas é bastante limitada. Entretanto,
originária da experiência vaga, isto é, da experiência não determinada pelo intelecto, só isso não os impede de atingir seus objetivos teológicos-políticos. “[...] aqueles que se
se dizendo tal porque ocorre por acaso e não vemos nenhuma outra experiência que a sobressaem pela imaginação são menos aptos para compreender as coisas de maneira
contradiga, e por isso fica como irrecusável entre nós.” (Espinosa 3, p. 111). Entretanto, na puramente intelectual; [...]”. (Espinosa 4, p. 32).
Ética, Espinosa sintetiza as formas de conhecimento em apenas três, mas mesmo assim, a 10. Ao comentar sobre o papel das personagens bíblicas no Tratado Teológico-Político,
imaginação permanece como sendo a forma mais inferior. “[...] percebemos muitas coisas Chauí (6, p. 137) relata que a figura de Moisés possui uma dimensão política, além da
e formamos noções universais 1º a partir de singulares, que nos são representados pelos profética. “É um legislador que tem em vista o bem coletivo e que conhece a natureza
sentidos de maneira mutilada, confusa e sem ordem para o intelecto (ver corol. da prop. rebelde do povo a ser dirigido”.
29 desta parte), [...]”. (Espinosa 1, p. 81). Mais adiante, nessa mesma obra, essa forma de 11. Do capítulo I ao XV do Teológico-Político, temos a forte impressão de que Espinosa
conhecimento, isto é, a imaginação, está categorizada como primeiro gênero. Contudo, não se opõe peremptoriamente contra a religião. Sua crítica é direcionada contra a teologia,
ela continua sendo considerada inferior porque não nos permitiria ter conhecimento claro pois, esta sempre se posiciona como autoridade na interpretação dos textos sagrados. Não
e seguro das coisas. Cf. Espinosa 1, p. 82-83. raras as vezes, os teólogos nutrem as idéias inadequadas dos fiéis sobre a transcendência
5. É o próprio Espinosa quem afirma que o ato de imaginar em si não contém nada de de Deus. Para Espinosa, a religião em si deveria, então, ser preservada.
negativo. “[...] eu gostaria que se notasse que as imaginações da mente, consideradas 12. Para Espinosa, o milagre não existe porque sua existência implicaria em uma ação
em si mesmas, nada contêm de erro, ou seja, a Mente não erra pelo fato de imaginar, contrária à necessidade da própria natureza. De fato, para ele, o vulgar não compreende
[...]”. (Espinosa 1, p. 65). adequadamente a substância divina e nem mesmo a natureza. Por isso, atribui às
6. O exemplo do sol dado por Espinosa em sua Ética é bastante elucidativo para ilustrar mudanças na natureza, isto é, qualquer evento fora da rotina ou do que o vulgar julga
possíveis equívocos em torno da imaginação. “[...] quando olhamos o sol, imaginamo-lo conhecer, como sendo uma ação deliberada de Deus. “[...] não existe prova mais clara
distar de nós cerca de duzentos pés, erro que não consiste nessa imaginação em si mesma, da existência de Deus que o fato de a natureza, ao que ele [o vulgar] supõe, não manter

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Cadernos Espinosanos XIX

a sua própria ordem, [...].” (Espinosa 4, p. 95). Para Chauí (6, p. 134), o vulgar tem esse
comportamento porque “o inédito é tomado como excepcional e este como sobrenatural”.
Tudo isso resulta de um desconhecimento das causas das inconstâncias na natureza e da
NOTÍCIAS
essência de Deus. Por conseqüência, o homem passa a estabelecer relações de causa e
efeito equivocadas da realidade. “O homem comum chama, portanto, milagres ou obras DEFESAS DE DOUTORADO
de Deus aos fatos insólitos da natureza e, em parte por devoção, em parte pelo desejo
de contrariar os que cultivam as ciências da natureza, prefere ignorar as causas naturais
das coisas e só anseia por ouvir falar do que mais ignora e que, por isso mesmo, mais Henrique Piccinato Xavier
admira. Isso, porque o vulgo é incapaz de adorar a Deus e atribuir tudo ao seu poder e Título: “Eternidade sob a Duração das Palavras – Simultaneidade, Geometria e
à sua vontade, sem elidir as causas naturais ou imaginar coisas estranhas ao curso da Infinito na Ética de Espinosa”
natureza.” (Espinosa 4, p. 96). Orientador: Profa. Dra. Marilena de Souza Chauí
13. No capítulo XI do Tratado Teológico-Político, Espinosa se dedica a analisar as Data: 13.08.2008
diferenças históricas e políticas entre as figuras do profeta e do apóstolo. Contudo,
é digno de nota o fato de que Espinosa atribui aos apóstolos não só a capacidade de
Resumo:
educadores, mas também a qualidade de profetas. “[...], aos apóstolos foi concedida, não
só a capacidade de profetizar, mas também a autoridade para ensinar.” (Espinosa 4, p. Pretendemos entender a filosofia de Espinosa, em especial, a sua Ética ordine
191). A esse respeito, Chauí (6, p. 150) nos diz o seguinte: “Todavia, tendo usado o geometrico demonstrata, a partir de uma operação conflituosa bem específica entre, por
dogma e o decreto como especificidade da profecia e como diferenciador em face do um lado, a perspectiva do transcendente (ou a teologia racional) e, por outro, um desejo
ensino apostólico, Espinosa, prepara, no entanto, o caminho para que o Apóstolo também
de salvação mundana; entre o projeto da filosofia imanentista de Espinosa e um mundo
possa surgir como um profeta”.
submetido ao poder teológico-político; e entre o texto teológico e o método da escrita
da filosofia de Espinosa. Tais operações estruturam o cerne de nosso trabalho, no qual
visamos entender o nexo causal na passagem de um Deus sive natura absolutamente
infinito para nós, os modos finitos desta mesma natureza, de maneira a chegarmos a um
entendimento que possa nos garantir não apenas ser, mas tomar parte ativamente neste
absolutamente infinito. Não só procuraremos caminhar neste solo conflituoso, mas ainda
proporemos tratá-lo com um procedimento que em si enfatiza conflitos, pois visamos
responder às nossas questões – acerca da filosofia da imanência, de Deus, da passagem
do infinito ao finito – a partir de uma aproximação entre a obra de Espinosa e o complexo
universo artístico da literatura, das artes plásticas e da música do século XVII barroco.
Além disto, procuramos demonstrar a hipótese de que a singularidade da
Ética enquanto texto, expressa por uma forma textual filosófica sem precedentes,
produz uma questão conceitual extremamente complexa que se funde à própria idéia do
absolutamente infinito. Pois se a síntese da geometria dos indivisíveis, do século XVII,
fornece-nos uma nova idéia de infinito (como amplamente discutiremos) e se a ordem

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geométrica da demonstração da Ética é fruto desta mesma síntese, então o livro deve Ericka Marie Itokazu
necessariamente trazer, já, em sua fartura textual esta idéia de infinito. Ou seja, a idéia Título: “Tempo, duração e eternidade na filosofia de Espinosa”
5 da ordem geométrico-sintética, chave para a formulação do absolutamente infinito, Orientador: Profa. Dra. Marilena de Souza Chauí
já se encontra na estruturação textual ordine geometrico demonstrata da Ética. Assim, Data: 12.12.2008
buscamos demonstrar que a ordem de exposição do texto da Ética opera com a mesma
idéia expressa pela sua ontologia (idéia que também está expressa em matemática pela Resumo:

síntese geométrica). Ainda mais, insistiremos que a articulação formal da Ética nos torna Numerosos são os estudos sobre a eternidade na filosofia de Espinosa, contudo,

patente a fruição do infinito, pois cremos que tal obra enquanto texto e como texto, já poucas são as pesquisas sobre o tempo e a duração, afinal, por que perguntar-se sobre

expressa ao seu leitor a experiência desta nova síntese de um absolutamente infinito o tempo numa filosofia da eternidade? Diferentemente dos seus primeiros escritos, na

indivisível. sua obra máxima, a Ética, a singularidade da definição espinosana da eternidade e da

Palavras-chave: Espinosa, Imanência, Arte, Barroco, Infinito, Geometria duração encontra-se justamente em se restringir à relação entre essência e existência,
sem qualquer relação com o tempo. Contudo, acompanhando a gênese dos conceitos
de tempo, duração e eternidade, desde os seus primeiros escritos até a Ética, veremos
como este deslocamento conceitual revela um duplo movimento: é por desvincular o
tempo da duração e da eternidade que a existência ganhará uma profundidade ontológica,
ética e política; por outro lado, o tempo ganhará preponderante papel na constituição da
imaginação. Nesse duplo movimento, compreenderemos como os conceitos de duração
e eternidade, que têm sua terra natal em âmbito ontológico, permitem iluminar outras
paisagens, estas sim diretamente vinculadas ao problema da temporalidade: a vida
passional e a vida política.
Palavras-chave: Tempo, duração, eternidade, imaginação, Espinosa.

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INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES CONTENTS

:::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas (30 linhas de Immanency and love in Spinoza’s philosophy
70 toques). José Ezcurdia..............................................................................11
:::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail, deve conter o nome do autor, a
instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou o telefone. The notion of contemplation in the book two of Spinoza’s
:::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract de 80 a 150 Ethics
palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords. Luís César Oliva...........................................................................47
:::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo, utilizando-se o
recurso automático de criação de notas de rodapé dos programas de edição. Bacon and Spinoza: science what for?
:::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas no final do Marcos F. de Paula.....................................................................65
texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.
:::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as normas The conatus in Spinoza: self-preservation or liberty?
técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências bibliográficas; por exemplo, Rafael Rodrigues Pereira............................................................73
(Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).

On the definition of democracy in the Theological-Political


Treatise
André Menezes Rocha...............................................................91

Imagination and superstition in the Theological-Political


Treatise (Chap. I to XV)
Rogério Silva de Magalhães......................................................102

INSTRUCTIONS .....................................................................................121

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