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Vlll.

Filosofia e direito na ldade Moderna


J usnaturalismo moderno

l. rNrRoouçÃo
 teoria moderna do direito natural corneÇa a ser construída no século
KVII, pcrtanto, iniluenciada por umâ série de eventos decisivos pâra a his-
tona da hurnanidade: a) desenvolvimento do modo de produção capitalista:
aumenta cansideraveimente a complexidade social com repercussÕes em
todos os quadrantes da vida social; b) descoberta de novas terras e outras
culruras: coloca em evidencia o direito da conquista, ô direito da posse, o
princÍpio da alteridade, a liberdade naturai dos Índios; c) construçào do
Esrado nacional: coloca em evidência o problema da soberania, da liberdade
e cia igualdade dos cidadaos; d) reforma protestânte: coloca em evidência a
questão das diferenÇâs e da toierância, a separâÇão entre Estado e religião, a
dissidência politica ou religiosa. Esses acontecimentos repercutiram decisi-
vamente no pensamento cientiÍico, filoso[ico e na teoria política e jurÍdica.
nova teoria polÍtica e juridica vai cuidar nâa apenas do direito natural,
Â.
mas lambem da soberania, da iiberdade sub3eiiva e da igualdade formal dos
cidadãos. A teoria do direito natural será denominada rscional para se dis-
tinguir da tecria do direito nâtural, fundado na naturezâ (desenvolvida
pelas filosafos gregas), e da teoria do direito natural revelado (desenvolvida
pelos filosofos medievais). isto não quer dizer que a iilosofia greco-romana
ou a medieval não levassem em conta o conceito de razãa. O conceito de
razáa elaborado pelo racionalismo moderno apresenta características que o
distinguern do conceito de razãa elaborado pelos filosofos gregos e reapro-
veitado pelos romanos e medievais.
racionalismo moderno, a razã,o humana apârece como legisladora
I.'Jo
do Universo, com isso deixa de ter sentido a concepção do homem que age
em coníorrnidade com a nat.ureza e cresce em importância a concepção do
homem que ê senhor e possuidor da nâtureza. O novo racionalismo impri-
IiIOÇüIS üiRAI§ ilE OINTITO I FORMÂÇÃÜ llUMANí§flIA 267

me à Yazã,ç humana características de rç,zao instrumenral, uma razàa calcu-


ladora que, ao mensurar r:tiiidades e resultados, define â escolha das alter-
nativas ou as formas do exercicio do poder mais úteis e vantajosas. A razão
instrumental e, nesse sentido, uma razàa estrategica porque capaz de orga-
nizar o curso da ação pâra alcançar fins determinados" Essa razào será de
fundamental importância para presidir âs üperaÇÕes capttalistas (empresá-
rias), dado que estas são realizadas tendo em vista um fim urilitário: a
aquisição de maiores iucros e a neutralização dos riscos na exploração da
atividade econômica.
O racionalismo moderno rompe com o passado, vê neie apenas erros a
serem evitados" Esse rornpimentCI provocâ o isoiamento (individualismo)
da homem em relaçâo âCI outro e em relação à organização social. Esse
isolamento fortalece a ideia de liberdade como algo inerente ao ser humano,
mas obscurece a ideia de que a liberdade é uma conquista poiÍtica e uma
conquista racicnal. A liberdade subjetiva ganha auronomia em reiação à
organização sacial de modo que sG na vontade, enquânto subjetiva, pode a
liberdade ser efetiva. Essa noção de iiberdade subjetiva (auronomia da von-
tade) constitui o núcleo da teorizaçâo do Di.reito e do Estado como folras
contratuais. Vaie dizer, na rnodernidade, as teorias política e jurÍdica fun-
damentam e legitimam o Estado moderno, em relação ao contrato socral.

1.t, Direito natural racíonal


Nos séculas XVII e XVill a ideia de um direito natural é renovada e
adquire importância fundamental, principalmente nas suas consequênclas
práticas. Essa renovação e, de um lado, acompaühada pelo racionalismo,
que caracteriza o advento da filosofia moderna e, de outro, por um movi-
mento de ernancipaçãa política e reiigiosa de que foi, em grande parte, a
expressão teorica.
indubitaveimente, o direito natural constitui-se em instrumento de iuta
contra a crganização medievale pré-capitalista. A revcluçâc burguesa (fran-
cesa ou americana) invoca o direito natural como ârma de combate contra
o edilÍcio jurídico-político do Antigo Regime. Os jurisras, filósofos do di-
reito natural, assumem papel ideologico relevante no processo revolucio-
nário, na medida ern que justificam a derrubada da tradição medieval in-
corporada seja nas instituiçÕes políticas, seja na regulação privada dos
negócios (Lopes, 2000: i82).
Âs teorias da soberania (contratualistas), ao introduzir a concepçâo de
estado da naturezâ, contribuÍram, decisivamente, para a fixação da ideia de
268 FItO§üFIA üü OIftEITCI

um direitü natural, cujos atributos básicos seriam a universalidade e a imu-


tabllidade de certos princÍpios que transcendem a geografia e escapam à
historia e são dados e não postos por convençãc, as quais cs homens alcan-
çariam atraves da razão" O direito natural teria, assim, preeminência sobre
o direito positivo, tendo em vista que este se caracteriza pelo particularismo
de sua localizaÇâo no tempo e no espaÇo.
A noçâa básica do direito naturâl-racional está centrada no seguinte
postulado: o direito € uma ideia que precede e transcende â experiência; é
um princÍpio de razáa; o produto de umâ cünstrução logica, mediante a
qual a mente humana, ao partir de certas premissas gerais acerca do prin-
cipio de justiça, deduz todas as verdades jurÍdicas particulares. C direito
natural racional representa, pois, um arquétipo que, de um lado, fornece o
critério para a avaliação das instituiçÕes e, de outro, constitui um modelo,
segundo o quai o Cireito positivo vigente deve se amoldar.
O Direito natural moderna está ligado ao desenvolvimento progressivo
do racionalisrno. No perÍodo medievai prevaleceu a prudencia romana que,
ligada ao dogmatismo religioso, colocava o criterio de verdade na autorida-
de. A tradição e à auroridaçIe, o raeionalismo {-Çntrapífe a razâa, que forne-
ce o critário de verdade: verdadeiro e o que é logicamente necessáno. Para
o racionalismo a razáa nâo é somente o instrumento pâra conhecer a ver-
dade, mas e a propria fonte de onde ela deriva. Segue-se que, para o racÍo-
nalismo, do pensamenio ê deduzida a propria realidade. Os historiadores
consideram Hugo Grocio c primeiro representante da Esccla do Direito
Natural Racionai.

2, HUGo Gnocto (llst-r6+s)


Flugo Grocio já foi considerado o precursor do direito nâtural moderno,
hoje, entretanto, muitos a consideram apenas um leorico da transição entre
a escolástica e a rnodernidade. Grocio nasceu na Holanda, viveu o período
do conílito religioso denominado Reforma, que colocou em lados opostos
catoiicos e protesiantes. A Rtt'arrn* Pratestçwte {oi um movimento religioso
ocorrido na Europa a pârtir do seculo KVI, que pregava o retCIrno às origens
do cristianismo. Segundo os historiadores esse rnovimentü foi preparado
por Erasmo de Roterdã (1466-1536) e deflagrado por Martinho Lutero
(i483-i546), quando este, em 1517, afixou nas porta$ da catedral de Wit-
tenberg âs noventa e cinco teses contra a venda de indulgÊncias.
hla Holanda, os protestantes foram influenciados pelo calvinismo. Joâo
Calvino (150q-1%4) propos o retornCI à religiosidade do Antigo Testamen-
fit0Çüt§ G[RAl§ 0[ CIrRE|Tü E FúRMAÇÀü HUr\llAilí§TltÀ 26s

to. Em InsÍi{uiçao da Religíaa Crísta, publicado em 1536, procurou mostrar


a unidade do Antigo e do Navo Testamento, extraindo daquele o princÍpio
de que o bom sucesso nas arividades da vida e prova evidente da graça di-
vina. Max Weber, em Á Etícç ProtÍstanl:- e a Espírito do Capit*lismo, deíende
que foi esse princÍpio que transforrnou o calvinisrno em ética inspiradora
da burguesia capitalista emergente.
A Holanda adota o culto calvinista e passa â perseguir o culto catoiico.
Ocorre que nas próprias íiieiras do calvinismo holandês surgem duas ten-
d€ncias: a) urna pregaa talerância aos dissidentes dentro do calvinismc; b)
outra opta peio caivinrsmo radicalmente puro e intolerante. Hugo Grocio
defende um Lrumanismo tolerante e paciÍista e, por causa disso, passa a ser
perseguidc peios calvinistas intolerantes e e obrigado a exilar-se na França
e, depois, na Suecia"
Grócio, a pedido da Companhia das Índias Orientais, escreve um livro
(M*rc Liberum) para convencer um grupo de acionistas da legitimidade e
licitude da ernpresa. O livro justifica a navegação halandesa para terras ate
então tratadas como exclusividade dos portugueses" Grócio cita continua-
mente os jurisras glosadores Bártolo e Baldo, mas çonfessa que repetÇ üs
argumentos de Francisco de Vitoria (1548-16i7). Este teórico condena
certas práticas de conquista, estabelece o direito natural de comunicação
entre os homens, defende a liberdade narural dos Índios, o direito destes
sobre suas terras e sustenta que os títulos espanhcis apresentados para se
apropriarem da Ámérica são ilegÍtimos. Para Grocio, os portugueses nâo
podem impedir o comércio e a comunicação naturai entre os hornens, ten-
do em visra que esta é um títulc mais alto - porque fundado no direito
natural e apoiado na razão humana * do que os títu1os forrnais de d"ireito
cornum, tais como a descobetLa, a ocupação, a doação psntiíicia (l-opes,
2ü00: lBq).

2.1. SocÍabilidade
Para Grocio entre as coisas inerentes ao hromem está o desejo de socia-
bilidade. Nãa qualquer sociabiiidade, mas a sociabiiidade que implica a
convivância pacificâ e CIrgantzada. C justo são as regras de conservaçâo
dessa sociedade. Essas regras constituem a fonte do direitc, dentre as quais
se destacam: a) a obrigaçâo de cumprir o prometido (pactü sunt servandç)',
b) a obrigação de abstrr-se do alheia; ci a obrigação de restituir o que per-
tence a outrenl; d) a obrigaçãc de devolver o ganho obtido corn o aiheio; e)
a obrigaçâo de reparar o dano causado culposamente. Injusto é o que se
í1?í-\
ZÍU FILil§SFIÀ IJI] DIRE|T{]

opÕe a uma sociedade organizada. Em sintese, direito é o justo, e justo é o


que realizâ e consertrra â sociedade, visto que injusto e o que repugna à es-
sência da sociedade, os que gozam de tazàa.
Segundo Grocio, "o homem age de acordo corn a suâ nâtureza, se pra-
tica a justiça como efetiva virtude social". A justiça so se reahza numa vida
natural e racional da comunidade. Mas, a reabzação dajustiça depende da
iguaidade" Não se justifica a igualdade somente como igualdade perante
Deus, ou perante a lei. Por força do direito natural, a igualdade é urn sen-
tirnento comum dos rnembros da cornunidade (apud Saigado, l9Ç5: 7i).
Em Grccio, a obrigaçâo de cumprir o prometido revela que as prCIrnes-
sas cumprem-se em nome da íidelidade {pacta sunt servand,a) e nâo porque
correspondem a trocas equivalentes. Para alguns âutores (Lopes, 2000: 191),
a sua classi{icaÇão das promessas (promessa de dar, de {azer, promessa feita
por crianÇâs e loucos, íeita sob ameaÇa ou por ignorância) está na base da
teoria contratual moderna.

2.2.. Direito
Segundo Grocio, direito naturai é o direito ditado pela reta razão, por*
tanto, a reta razàa mostra a justiça ou não de um ato. Nesse sentido estatre-
lece que o direito natural "consiste em certos princÍpios da razâo reta, que
nos fazem reconhecer que umâ ação e rnoralmente honesta ou desonesta
segundo sua conveniência necessária corn umâ natureza razoár,el e sociár'el"
(apud Goyard-Fabre, 2002: 58).
O direito natural, embora ligado à vontade divina, torna*se indepen-
dente dessa vontade, tal como ocorre com as equaÇÕes matemáticas. Vale
dizer, Deus tambÉm está submetido à reta razãa, tendo em vista que nào
pode fazer cCIm que dois mais dais não sejarn quatro. Grocio pretende,
desse mcdo, emancipar o direito da teologia e assentá-lo em bases estrita-
mente racionais. Para ele, o sentido do direita não deve ser procurado em
aiguma transcendência incompreensír'el para o hornem. O Direito não de-
corre de uma revelação dir,,ina, trata-se de um conjunto de normas ditadas
p*larazão" Á"o estabelecer arazâo humana corno a r,erdadeira fonte do di-
reito, Grocio fixa a âutonomia racional do direito.
Para Grocio: '*um direito torna-se uma qualidade moral de uma pessoa,
possibilirando-a ter ou {azer alguma coisa lega}mente. Tal dÍreito hga-se à
pessoâ, mesmo que algumas vezes possa seguir urna coisa, como no caso
das servidÕes sobre imóveis, que são diras direitos reais, em contraste com
outros direitos puramenie pessoais; nâo porque tais direiios nâo estejam
N0Ç0ES 0ERAI§ 0E rlrRErTo E FoRMAÇÀt] }{UMÀilÍ$CÀ 271

ligados à pessoa, mas porque não se ligam a quaiquer outra pessoa aiem
daquela que tem direit* a certa ccisa" Quando a quaiidade moral e perfeita
clrama-se íacuidade {{*cuÍta.s), quando não e perfeita chama-se aptidão
{opitudo}, Â primeira, na ardem das coisas naturais, corresponde ata; à se-
gunda, pattnci*. Uma faculdade É chamada pelos juristas de direito ao seu:
doravante vamos chamá-ia direito propria ou estritamente falando. Nele se
inclui o poder, já sobre si mesrno, que ê chamad a liberdaár; já sobre outrem,
como o do pai e o do senhor sobre ü escrâvo, proptiedade, seja absoiuta, seja
menos que absoluta, coms um usufruto ou um penhar;e direifas cantrafucis,
aos quais correspondem, de outro lado, obrigaçÕes contratuais" (apud Lopes,
2000: i9ü)
O texto acima revela uma tendência do secuio XVll, o desenvolvimen-
ta de urn pensamento jurÍdico sistemáfico e capaz de certa neutralidade,
c$mo exigem as questÕes tecnlcas. O conceito de sistema é considerado a
maior contribuição do jusnatar*lisnao moderno ao direito privado europeu.
A teoria jurÍdica europeia, que aie então era mais uma teoria da exegese e
da interpretação de textas singulares, passa a receber um caráter logico
demonstrâtivo de um sistema fechado, cuja estrutura dominou e ate hoje
domina os ccdigos e os campêndios jurídicos. Exemplo tÍpico dessa siste-
mática jurídica e a obra de Samuel Pufendorf {Ferraz )r., LÇ95: ú7-68).
No entanto, ao estudar metodicamente o alcance sernântico do terrno
direitc parâ libertá-io de sua aurâ teologica, Grócio lhe reconhece três acep-
Çoes: a) uma em que o direito se vincula ao valor justiça; b) outra em que
eie designa uma "capacidade" da pessoa, acepção esia considerada por alguns
urna prefiguração do'-direito subjetivo"; c) outra em que o direiro se con-
funde com a lei e se determina como um "corpus objetivc'" de regras obri-
gatórias, destinadâs a rcger a sociedade.

]. s*ruuEL PUFENDoRF {163:-16g+}


Samuei Pufendorl e considerado Õ teóricô estabeiecedor das linhas sis-
ternáticas básicas que vão influenciar a direito do século XlX. Com eie, o
direito nâturâl, até enrão ddo como uma disciplina moral, ganha urna certa
âutonomia e se translarma em uma disciplina jurÍdica. Essa autonümia d.o
direitc natural em relaÇão à moral, e sua superioridade em relação ao direito
positivo, rnârca o inÍcio da filosofia do direiro cúmo disciplina jurÍdica au-
tôn*ma. Alêm disso, os }-listoriadores reconhecem que suas ideias alcançaram
I

2V2 Frl0§üilÁ 00 ütRE|T0

grande repercussão, penetraram inclusive nos Estados Unidos por intermé-


dio de John Wise e inÍluenciaram a Declaração dos Direitos daquele paÍs.
Segundo Pufendorf, as prescriçÕes do direito natural pressupoem a
n*turezr dec*ída do homem. Por conseguinte todo direito contíám, pela sua
essência, uma proibiçao. Seu caráter fundamental repousa em sua funçaa
imperatívc e não em suâ t'unçao indícativa. Conforme a funçao tndicativo, a
norma jurÍdica apenas mostrâ o conteúdo da prescrição. Por sua função
imperativa, a norma obriga a fazer ou deixar de {azer alguma coisa. Pufen-
dorf apontâ que a principal propriedade do ser humano e o desamparo em
que se acha o homem nâ sua solidão {imbecíllítcs). Daí conclui que o mais
importante e mais racional princÍpio do direito natural e a necessidade do
homem de viver em scciedade (sorialirss). A socislifas não se confunde com
o direito natural (função imperativa), apenas fornece o fundamento de seu
conteúdo (função indicativa). Ela adquire império sCImente mediante a
sanção divina, à rnedida que Deus prescreve aü homem â sua observação.
O direito natural, na sua função imperativa, tem seu fundamento na vonta*
dc divina, que originariamentÊ fixou os pnncípios da razão humana perpe-
tuamente {FerrazJr., 1QÇ6: 75-26)
A parrir dessas noçÕes, Pufendorf constroi uma sistemática jurÍdica,
mediante a conjugação da dedução racional e da observação empÍrica. Do
pontCI de visra do sistema, as normas de direito natural são ciassiíicadas em:
ai absolutas: são aquelas que obrigarn independentemente das instituiçÕes
estabelecidas pelos homens; e b) hipotéticas: são as normas que , ao contrá-
rio das absolutas, pressupÕem a existências das instituiçÕes humanas. As
no{masLtípatetíca.s são dotadas de certa variabilidade e flexibilidade, possibi-
iitando aa direito natural uma espécie de adequação à evolução temporai. Á
ideia de sisterna enr,,olve, assim, todo * complexo do direito, metodicamen-
te cocrdenado, na sua tomlidade, aa direito natural (FerrazJr., 1996: 26)
Goyard-Fabre (2002' 62-63) anotâ que Pufendorf explica, em Direito
d6 naturezç e das gentÍs, que a lei natural e a norma dir,ina e a única que
permite avaliar o valor moral de uma ação. Ao dar ênfase ao voluntarismo
divino, {az d,a lei natural o indicador desse bem especÍfico que e a sociçbili-
d*de , que se firma no homem contra o instinto, com o qual o amor-proprio
tem afinídade. O homem é, portanto, um ser sociável e egoÍsta.

].í. Homen"r: egoísta e sociável

Puíenri*rf reconhece qlre é o c*rárer egcÍsta clo hi:nteffi, o amor por sl


rnesmü e seus propncs interesses, qLie o impulsiona para a vida ern socieda-
7

ilr0Ç08§ GERATS 0t ürRErTo E F0RMÀÇAü HUMAruí§Tl[A 273

de. Nesse sentido aÍirma que "não basta dizer que o homern é airaído pela
propria natureza parâ a saciedade civil, de modo que sem eia não pode viver.
Por certo e evidente que c homem e uma espécie de animai que ama a si
mesmo e a seus proprios interesses no grâu mais elevado. Portanto, quando
ela busca a sociedade civil voluntariarnente deve ser porque vê alguma uti-
lidade que resultará dela (.-.). O homem que se torna cidadao sofre uma
perda de sua iiberdade naturai, sujeita-se a uma autoridade que rnclui o
poder de vida e morte (...). f ainda assim, por tendências inatas, o homern
não se lnclina a sujeitar-se a ninguém mas a {azer tudo que the agrade, e
favorecer seu proprio interesse acima de tudo" {apud Lopes, 2000: 198)
Para Pu{endorf o homem e um ser dotado: a) de umâ natureza egoÍsti-
ca: porque e malicioso, inclinado e capaz de causar mal ao sernelhante, e b)
de uma natureza sociável psrque preocupado, acima de tudo, em conservar
a propria vida, carente e impotente para cuidar de si mesmo sem ajuda.
Segundo ele, são esses pressupostos que permitem estabelece a seguinte lei
naturr;l fand.arnental: "Todos iêm o dever de preservar â, comunidade e de
servir ao todo social, tão bem quanto possível".
Essa lel natural fundarnental desdobra-se em trcs grupos de deveres,
que indicârn como o hamem, segundo a rectü ratio, deve se conduzir pe-
rante Deus, perante si mesmo e perante os outros. A relaçâo com Deus e
fundamental para a existência da comunidade, ou seja, sem o sentimento
religioso o hamem não seria sociável. De outro lado, tambem o dever do
homem parâ consigo mesmCI tem fundamento tânto na religião quanto na
vida social. Cabe, entretanto, destacar o grupo de deveres do hornem para
com CIs outros.

3.2. Deveres naturais


Os deveres da homem pâra cüm os outros sâc de duas especies: a) de-
veres cüm base nas normas hipoteticas: sáo aqueies que dependem de al-
guma instituição em particular (o contrato, o casamento etc"); b) deveres
com base nas norrnas absoiutas: sâo aqueles que independem da existência
de instituiçÕes, por isso são ccnsiderados deveres naturais absolutos. Sâo
trâs os deveres naturais ab,solutos, a saber: a) não prejudicar o outro; b)
considerar o outro como igual ern direito; c) ser útil aos outros, tanto quan-
to possível"
A" Nãc prejudicar ü outro: a vida em sociedade implica a ccnvivência
de pessoâs com interesses antagônicas ou divergentes, portanto, para viver
274 FrL0§0nA D0 üíftEtTü

bem em s*ciedade é necessário que um hornem nâo interíira na esfera pro*


pria da vida do outro. ü dever de não prejudicar o ourro signi{ica que um
homem não deve causâr dano a ninguém e não vialar interesse alheio. No
caso de dano à propriedade ou à vida segue-se ü dever de reparar.
B. Considerar o outrÕ como igual: esse dever é considerado como por-
tador do princípio da reciprocidade e do princípio da igualdade. E preciso
que cada um conceda ao outro iânto direitoquântüpretende para si mesmo"
O princípia da reciprocidade econdiçác necessária à vida social, de tal modo
que o uso de qualquer vantâgÊm que não decorra do princípio fundamen-
tal do direito natural (conservar a comunidade e sen,i-la) s*ia considerado
violação ao direito. ü princípio da igualdade estabelece que c dever de
conservar a sociedade e dt todos, portanto, o que vale como direito para
todos deve cada um ter como válido para si mesrno.
C- Ser util aos outros: esse dever e considerado portador do principio
da lraternidade entre os hamens. Cada indivÍduo deve, portanro, cuidaide
promover o bem do outro, na medida do possível. Em sÍnrese" significa que
as açÕes dos indivÍduos devem ser direcionadas no sentido de resultar tam-
bem ern utilidade paraourros indir,íduos.
A observância da lei natural permite, em conformidade com a ordem
racionai da Criação, paliar as deíiciências da narureza humana. Á parrir daÍ,
a relação entre direito natural e lei natural pode tornar-sÊ precisa. Se a di-
reito naturâl implica a igualdade de todos cs homens e dignidade e com-
promete â responsabilidade de cada urn, para que o homem seja humano é
preciso que assuma suâ coexistência com os outros ern conformidade conr
a obrigaçâo à sociabiiidade que a lei narural exige; a igualdade que o direi-
to natural requer vai de par com a sociabilidade que â lei naturai requer
(Goyard-Fabre, 2002: ó3)"
Pufendorf esclarece o direito a partir da noção de dever. Segundo ele,
"dever é a ação humana devidamente conforrnada às determinaçÕes
da lei,
em relação com a obrigação". pâra Lopes (2üüü: 2000), o dever jurÍdico é
um freio à iiberdade indi,'.iduai. As normas são, ao mesmo lempo, um limi-
te e condição da convivência das liberdades. A norma e, nesse sentido, ti-
picamente humana, pois só os homens podern conduzir-se normâtivamen-
te. So eles têrn autorídçd.e parâ {azer normas, razao para conhecê-las e
v*ntadt, para segui-las. Por isso, sâo necessárias também razÕes para obe-
decer, pois assim será possível distingr.rir o direito da força pura e simples.
O que cada um pode esperâr ou exigir de todos os outros deve ser per-
rnitido a iodos, corn fundamento na equidade. A igualdade de todos upur.-
H0Ç0E§ GÊftAr§ 0E 0rR[rT0 r r0fiMÂÇÀ0 },lUMAIJiST|üA 275

ce cÕmo nucleo da justiça (equidade). E uma igualdade de direita que, por


sua vez, decorre da reta razão ou das princípics do direito natural.

{" cxnlsnaru THoMAstus (r6s:-rtrzs)


Christian Thamaslus embora iníluenciado pelo pensamento de Samuel
Pufendorí, na sua obra Fundamentos àa Direito lfatural, critica este reórico
pelo íato de citar os pensadcres antigos como forma de provar suâs próprias
conciusÕes ou ârgumentos. Para Thomasius o argumento de autoridade deve
ceder diante das evidências. A sua construÇãa teorica inicia-se pela investi-
gaçâo da natureza morâl do ser hurnano, tornado individualmente. Daí seu
interesse pela inteligência e pela vontade. Para eie a vontade está sujeita a
paixÕes e, embora ligada à inteligência, pode se inctrinar parâ o mal. Cuida,
portanto, de esiabelecer uma ética individual"
Para Thomasius existe um pnncípio evidente de direito natural, consi-
derado o primeiro princÍpio, que deve servir de regra a todas as demais
regras que a ela devem se submeter. Esse primeiro princípio d.e direitc na-
tural racional, que tarnbem e fundarnento de uma etica ern sentido amplo.
é formulado da seguinte maneira: "A norma universal das açôes todas e
proposição íundamental do direito natural e das gentes, considerado em
sentido lato, e: Deve-se procurar aquÍlo que faça a vida dos homens o mais
longa e feliz possÍvel; deve-se evitar tudo c que torna a vida iníeiiz e apres-
sâ ã" morte" (apud Lopes, 2000: 203).
O princípio fundamental do direito natural é, portanto, uma vida longa
e feliz, que so pode ser alcançada com apaz individual e social. Há, assim,
a conjugação da feiicidade cam a dignidade humana, dois elementos que
não estâo separados, rnas se envoivem mutuamente. Desse modo, a socie-
dade nâo resulta nern do apetite sociai natural (corno em Grocio), nem
resulta da submissão (corno em Hobbes), mas e resultado da aspiração à
felicidade. Esse principio (vida longa e íeliz) será retomado pelo utilitarismo
liberal do sÉcula XIX.

4.1. Ética, política e díreÍto


Thomasius e apontado como o primeiro a estabelecer um criterio teo-
rico de distinÇão entre ética, polítlca e d.ireito" Sob esse aspecto, distinguiu
três campos de estudos, a saber:
A. Etica: estuda a moral {honest*m). O princÍpio ou regra que funda-
menta a moraiidade pessoal e social e denominado honestum, portanto, li-
7

27* FILO§OFIA IO OtREiTil

gado ao câráter da pessoa. O princípio do honesta (honesrum) se traduz pela


seguinte máxima: "Faça a ti o que quiseres que os demais façam a si mes-
mos". A etica estabelece, portanto, uma regra sobre a atitude (caráter) da
pessoa para consigo mesma, Essa regra é dotada de sançãc interna, que se
reduz ao foro íntimo da consciência moral e cuja Íinalidade consiste em
obter a paz inierna e individual com que se alcança a felicidade.
B. Politica: esiuda o decoro {decorum). O princÍpio ou regra que funda-
menta a convivência poiítica e social e denominado decorume tem sede no
entendimentü. O princípio dc decoro (decorum) se traduz pela seguinte
regra: "Façâ aos demais o que quiseres que eles íaçam a [i". A palÍtica esta-
belece, portanto, uma regrâ de compürtâmento com o proximo. Essa regra
da politica é dotada de sanção externa e tern origem na convenção, cqa
Íinalidade e produztí apaz externa por nieio da qual se alcança a felicidade.
C. Jurisprudência: estuda o direito (justum). C princÍpio ou regra que
fundamenta a juridicidade é denominado justo tiustum) e tem sede na yon-
tade. O princípio do justa{justum) se traduz pela seguinte regra: "Não faças
aos demais aquilo que nâc queres que eies façam a ti". A jurisprudância
estabelece, portanto, uma regra de omrssão. Como garantia da exigência
desse mÍnimo ético tem-§e a sanção externa da lei (.justo coercitivo), cr4a
finalidade é produzir a paz externa lndividual por meio da qual se alcança
a felicidade.
A etica, a polÍtica e a jurisprudência, cada uma indicando critérios de
agir proprio, convergem no sentido de alcanÇar o objetivo da regra ou prin-
cÍpio universal: "Deve se procurar aquilo que faça avrda dos Lromens c mais
longa e feiiz possÍvel; deve-se evitar tudo o que torna a vida infeliz e apres-
sa a morte". Á.ssim, a separação dos irês campos de estudo, teoricamente
concebida por Thomasius, não os isola em compartimentos estanques. Ao
contrário, eles se mostram numa relaçãc diaietica compondo o todo a que
denomina ética em sentido amplc.

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