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O Utilitarismo Stuart Mill e a relação entre justiça e liberdade.

Marize Schons

Na sua obra mais clássica, Ensaio Sobre a Liberdade, Stuart Mill aborda
sobre a complexa interação entre o indivíduo e a sociedade. Considerando a
liberdade um princípio ético superior e fundamental, conclui que a intervenção
do poder sobre a liberdade individual só é legítima quando disposta a prevenir
ou impedir dano a outrem (Macedo, 1995).

Apesar da dificuldade em definir as fronteiras entre liberdade, justiça e


controle do indivíduo como um membro de uma sociedade civilizada, a relação
entre direito e sociedade não se trata de uma relação abstrata. A liberdade
consiste em uma dimensão útil e desejável tanto para o indivíduo, quanto para
uma coletividade que anseia pelo progresso.

Stuart Mill funda um modelo de sociedade aberta. E por esse motivo, a


liberdade de pensamento e a liberdade de expressão são imprescindíveis para
que as ideias equivocadas sejam reconsideradas; e as ideias acertadas sejam
reforçadas ao serem confrontadas pela mentira.

O liberalismo de Stuart Mill, ao defender a liberdade de expressão,


argumenta que a ofensa se trata de uma dimensão distinta do dano e enfatiza
um modelo de sociedade em que a liberdade é o princípio último que o
indivíduo possui. Esse valor, inclusive, passou a ser desde o século XIX uma
das idéias fundamentais para os Estados liberais modernos.

Neste capítulo, será produzido uma breve elucidação de alguns dos


principais sistemas teóricos do pensamento Moderno que se dispuseram a
especular sobre direito e liberdade. A primeira parte pretende trazer três dos
principais pensadores da filosofia britânica (Hobbes, Locke e Hume) sobre o
processo de consolidação do Estado Moderno. Na segunda parte, é
estabelecido as principais distinções entre a filosofia kantiana e o utilitarismo
benthamiano, portanto, as diferenças entre o racionalismo alemão e o
empirismo inglês. A apresentação sobre a contribuição de Stuart Mill à Filosofia
do Direito e o seu projeto de reforma em relação ao utilitarismo clássico
encerra o capítulo.

A proposta consiste em uma breve viagem entre o século XV até a


sociedade vitoriana do século XIX com o objetivo de levantar alguns dos
momentos importantes para a história das ideias filosóficas e, assim, mapear
as diferentes versões sobre liberdade e justiça que se desenvolveram e
constituem o campo disciplinar da Filosofia do Direito.

A História da Filosofia do Direito e as especulações sobre justiça.

Parte do campo da Filosofia Prática, as especulações sobre a Filosofia


do Direito surgem a partir do aprofundamento do conhecimento e dos
problemas específicos relacionados a Modernidade como, por exemplo, a
constituição do Estado moderno.

Apesar do problema da justiça ser uma reflexão geral desde os pré-


socráticos na Antiguidade Clássica – e, por isso, desde o princípio da
constituição o pensamento filosófico – a Filosofia do Direito como um campo
autônomo estabeleceu-se a partir da necessidade de designar instrumentos
para o desenvolvimento da independência da racionalidade humana diante a
passagem do o determinismo teológico medieval (Bittar e Almeida, 2011, pág.
44) para a construção do mundo Moderno.

No decorrer da história do desenvolvimento das ideias políticas e


filosóficas, diversos sistemas teóricos consolidaram-se, delimitando suas
próprias noções sobre a justiça e prescrevendo meios específicos para de
alcançá-la. As disputas filosóficas estão delimitadas por diferentes tradições
que nos auxiliam, inclusive, no entendimento dos acontecimentos históricos.

Isto é, a compreensão sobre a passagem do mundo medieval para o


mundo renascentista pode ser estudada a partir da transformação das noções
de justiça entre a tradição escolástica medieval e o jusnaturalismo moderno.

Enquanto a tradição escolástica de filosofia exalta a existência de uma


lei divina da qual a lei humana deveria corresponder, a tradição moderna do
Jusnaturalismo (ou do Direito Natural) contrasta essa perspectiva ao eleger a
razão como o guia das ações humanas.

A partir desse novo caminho a ser percorrido pela história da filosofia do


Direito, Deus não seria mais o princípio último de todas as coisas (Bittar e
Almeida, 2011, pág. 279) e a fonte da lei seria, agora, ou a natureza (como nas
Cidades-Estados gregas) ou a razão humana (como para os Iluministas).

Portanto, se a preocupação de Santo Agostinho caminhava, de certa


forma, para a construção de um sistema de ideias sobre o governo das almas
(Bittar e Almeida, 224); as preocupações dos modernos caminhavam para a
organização terrena que pudesse articular a liberdade e as obrigações, o
desejo e o dever, a felicidade individual e a justiça coletiva.

A relação entre justiça, liberdade e Estado Moderno.

Para o inglês Thomas Hobbes (1651) a ordem estabelecida pelo Estado


Absolutista é imperativo para a possibilidade de uma sociedade civil livre onde
os indivíduos possam buscar seus próprios anseios individuais. Em outras
palavras, a liberdade só é possível se houver garantia dos direitos básicos
estabelecidos por uma ordem institucional estável mantida pelo poder
irreversível do monarca. A teoria imperativa do direito hobbesiano encontra no
Estado Absolutista a solução para os problemas do Estado de Natureza. Dessa
forma, ordem sustentada pelo direito terreno (e não divino) é pressuposto para
existir liberdade.

John Locke (1689), por sua vez, convivendo com os intensos conflitos
provocados pela Reforma Protestante na Inglaterra, estabelece a tolerância
religiosa como um instrumento para garantir a liberdade. A proposta a favor da
tolerância consiste em um modelo de organização onde é possível distinguir
aquilo que diz respeito à esfera pública da vida do indivíduo em sociedade – e
que por isso diz respeito à lei, à coerção e ao Estado – e aquilo que diz
respeito à esfera privada da vida do indivíduo – que por sua vez corresponde
ao voluntarismo da fé e a vida religiosa.
Seguidor de Locke, Hume critica o jusnaturalismo do seu tempo,
afirmando que as regras de justiça não são inatas à condição humana
(Castilho, 2019, pág. 120), mas pelo contrário, a justiça se trata de um
conhecimento adquirido pela experiência sensível do homem racional.

Se contrapondo a uma teoria moral, na teoria de justiça de Hume, é a


experiência que determina o que é justo ou o que é injusto; considerando,
ainda, que a tolerância entre os indivíduos, que permite a coexistência pacífica,
não se trata de uma dimensão moral, mas uma convenção utilitarista
empiricamente analisável em que todos os indivíduos possuem o interesse por
manter a paz (Hume, 1980)

A Modernidade irá orientar-se pelos desejos, pela felicidade dos


indivíduos em sociedade. Porém esse pressuposto produz novos dilemas:
como garantir as liberdades individuais sem ferir o bem-estar coletivo? Como,
diante uma sociedade de indivíduos plurais e com interesses particulares, é
possível manter a estabilidade do tecido social?

O direito, de certa forma, torna-se um instrumento para a pacificação dos


conflitos em sociedade. Entretanto, diferentes sistemas teóricos produziram
diferentes noções sobre direito, como é o caso da diferença estabelecida pela
teoria kantiana e a teoria utilitarista.

A busca da felicidade pelo dever na tradição kantiana

Assim como é possível compreendermos processos históricos à partir do


estudo da Filosofia do Direito, as diferentes noções sobre como atingir justiça
no mundo contemporâneo também podem ser investigadas pelo mapeamento
das tradições filosóficas que constituem o campo disciplinar.

A investigação sobre as diferenças no desenvolvimento da tradição


britânica e a tradição germânica de filosofia em relação ao tema da justiça e ao
tema da liberdade ou, ainda, das diferenças específicas entre a filosofia
kantiana ligada ao dever e a filosofia utilitarista ligada ao princípio de utilidade,
são elucidativas para a discussão sobre o papel do Direito na produção do
bem-estar individual e coletivo.
Kant diverge da tradição britânica e empirista ao descartar o domínio da
experiência sobre a razão universal. Por mais que considere a importância da
percepção, propondo assim uma conciliação entre realidade e razão, a
deontologia kantiana privilegia os princípios puros e universais para a produção
de uma sociedade justa.

O ceticismo de Hume em relação a teoria moral teve resposta do projeto


teórico kantiano. Na tentativa de conformação do dilema entre empiristas e
racionalistas, estabelece uma metafísica dual que admite a existência tanto da
dimensão da experiência – a razão prática, pela qual começamos a conhecer –
quanto a dimensão da razão universal – a razão pura, pela qual é possível
conhecer as coisas em si (KANT, 1980).

O objetivo era manter tanto a filosofia quanto a moralidade como


domínios analisados pela própria razão e não pela dominação pelo empirismo
ou pelo costume (Morrison, 2006, pág. 157). Para Kant o homem moderno não
pode ser guiado pelo instinto e sim pela razão universal.

Dessa forma, um indivíduo verdadeiramente livre é aquele que se


autogoverna a partir de leis racionais e naturais; e uma sociedade
verdadeiramente justa é aquela onde o Estado, a partir das leis universais,
regulamenta e ao mesmo tempo garante a liberdade.

Enquanto Hume reconhece os limites da racionalidade humana e do agir


moral e propõe um método de análise empírica de justiça, Kant defende não só
a existência de uma razão pura transcendental que é independente da
dimensão da experiência. Mas também acredita na possibilidade do indivíduo
racional transcender sua natureza empírica e limitada e agir de acordo com a
razão pura e, portanto, a ética universal (David, 2002).

Para a tradição germânica, a lei justa não se trata de um meio de


realização ou produção de felicidade, mas sim corresponde ao agir moral
vinculado ao dever. O legado deontológico de Kant é crítico ao utilitarismo. O
princípio de utilidade – que argumenta que a principal motivação humana
consiste em evitar a dor e buscar prazer – serve para justificar a ação baseada
no desejo individual e não no dever. É por esse motivo que a busca pela
felicidade individual – a partir do imperativo categórico – nunca está
desvinculada ao agir ético e ao cumprimento do dever.

O papel da sanção para a produção da felicidade no Utilitarismo

Entretanto, para ambas as tradições, tanto kantiana quanto utilitarista, a


coerção ou, ainda, a sanção propriamente dita, consiste em um instrumento
legítimo que torna possível a existência de uma sociedade.

A principal diferença entre a filosofia kantiana e o utilitarismo clássico


consiste nos desdobramentos entre o consequencialismo e a deontologia.
Enquanto para a teoria de Bentham (1789), a busca pela felicidade precisa
levar em consideração as consequências de um ato, pois não há nada
intrinsecamente bom ou certo; na teoria kantiana não se trata de fazer o que é
certo porque os resultados são bons. A tradição germânica da Filosofia do
Direito ligada ao pensamento de Kant faz da ética o lugar da liberdade ao
incutir o dever no lugar da felicidade como a principal finalidade do agir humano
(Morrison, 2006)

Para o utilitarismo clássico, a busca pela justiça ocorre a partir do modo


de pensar empírico. Dessa forma, o princípio de utilidade é uma dimensão
natural da condição humana. O homem aprende pela dor ou pelo prazer. E é
motivação principal do agir humano, através da razão, a busca da felicidade e a
minimização do sofrimento.

De maneira otimista, o direito serviria como um instrumento da reforma


utilitarista durante o século XIX. A ordem e a segurança são preocupações
centrais, e por esse motivo as sanções servem para prevenir ou reduzir o
sofrimento (como, por exemplo, os crimes) em uma sociedade. Portanto, o
objetivo da lei utilitarista é produzir objetivamente maior quantidade de
felicidade.

Ao contrário de Kant, para quem a moralidade de um ato depende de


existir um motivo ético e não das consequências do próprio ato, o utilitarismo
segue o sentido oposto: a moralidade para os utilitaristas depende diretamente
das consequências (Morrison, 2006, pág. 228).

A humanização do utilitarismo a partir do pensamento de Stuart Mill

Crítico do racionalismo de Kant, Stuart Mill é filho da tradição empirista,


e por esse motivo compreende que o conhecimento sobre a justiça só pode ser
adquirido pela experiência de um indivíduo racional e não por ideias
transcendentais (Castilho, 2019, pág. 193).

Por outro lado, a tentativa do utilitarismo clássico de oferecer a base


racional para estabelecer uma punição adequada esconde, na verdade, a fé de
Bentham em torno de uma elite esclarecida e crítica a aristocracia da época.

Apesar de toda a punição ser um mal em si para o Utilitarismo clássico,


o objetivo da lei utilitarista de aumentar a felicidade de uma comunidade e
evitar o sofrimento, torna a sanção extremamente útil, principalmente como um
instrumento preventivo.

Se o dilema durante a Idade Moderna (século XV ao século XVIII)


consistia em produzir soluções possíveis para estabelecer a ordem e
segurança no plano terreno; na passagem entre a Idade Moderna para a Idade
Contemporânea (durante o século XIX) os questionamentos sobre como
produzir ordem sem aniquilar as liberdades individuais buscava responder
quais os comportamentos individuais passíveis a serem legislados e quais os
comportamentos que deveriam permanecer na esfera da ética privada
(Morrison, 2006).

As concepções do utilitarismo clássico sobre um direito baseadas em um


sistema de vigilância rigoroso de controles totais e constantes, colocam em
risco as liberdades individuais a ponto do radicalismo benthaniano ser acusado
de conduzir a sociedade à uma organização totalitária (Morrison, 2006).

É por esse motivo que Stuart Mill propõe uma reforma do utilitarismo
clássico ao estabelecer uma nova concepção qualitativa (e não mais
quantitativa) da busca por felicidade.
Apesar de Stuart Mill concordar com Bentham quanto ao princípio de
utilidade na explicação das motivações humanas, seu projeto reformador e
humanista considera a liberdade como o princípio fundamental para guiar o
direito.

A teoria de Bentham tentava propor uma ciência objetiva capaz de


promover a maior quantidade possível de felicidade em uma sociedade. Para o
utilitarismo de Stuart Mill, a relação entre indivíduo e sociedade não é
articulada pelo instrumento preventivo da sanção, mas sim pelo princípio da
liberdade e o princípio da autodefesa.

A autodefesa se trata do único motivo que justificaria a coação do


indivíduo ou de uma coletividade, portanto, o único motivo pela qual o poder
pode ser legítimo ao restringir a ação do indivíduo. Deste modo, a vida social
se trata de um espaço de ampliação das liberdades individuais e não o
contrário.

Em defesa a liberdade de expressão, Mill propõe a clássica distinção


entre o dano e a ofensa, considerando que a liberdade de expressão de um
indivíduo se sobrepõe a qualquer ofensa moral que possa produzir ou ao outro
ou a coletividade.

A expressão ou a ação do indivíduo, portanto, só pode ser limitada se


essa causar dano a outrem. Graças ao pensamento de Stuart Mill, as fronteiras
entre o indivíduo e a sociedade são redesenhadas e a liberdade, como
princípio último, passa a ser um dos fundamentos dos Estados Liberais
modernos.

Por esse motivo, a sanção precisa ser justificada para se impor sobre a
conduta individual, tendo em vista que o indivíduo passa a ser soberano no seu
domínio privado (Morrison, 2006, pág. 240). A liberdade é necessária inclusive
por permitir o progresso social e a criatividade humana, dimensões limitadas
em uma sociedade baseada na vigilância e no controle totalitário.

O produto final entre a interação entre sociedade e utilidade é o


progresso social, em outras palavras, o livre pensamento e a diversidade levam
a sociedade a um nível superior onde indivíduos têm possibilidade de escolher
sobre o seu próprio destino.

O direito, portanto, é instrumento responsável por delimitar onde começa


e onde termina o espaço da individualidade. Esse elemento reflete não só o
sistema ético de Mill - que compreendia a liberdade, a pluralidade, a tolerância
e a individualidade como valores superiores - mas também reflete a sua crítica
a sociedade vitoriana padronizada e conformada com o sistema de costumes
rígidos de uma sociedade aristocrática.

Considerações Finais

Diferente de Bentham, a proposta do utilitarismo humanista de Stuart Mill


não se trata de uma reforma que depende de transformações estritamente
formais na sociedade inglesa e no seu sistema jurídico. O impacto das ideias
de Mill atravessa os séculos e nossas atuais concepções sobre uma sociedade
ideal continuam baseadas na ideia de que essa deve ser um um espaço amplo
do qual diferentes estilos de vida possam se desenvolver.

A diferença não se trata de um elemento a ser aniquilado e nem mesmo


a liberdade um dimensão da vida humana a ser restrita pela coerção estatal.
Caso a liberdade e utilidade entre em conflito, Mill - assim como Locke -
recomenda a tolerância como um instrumento para o convívio.

De maneira otimista e vinculado à sua herança empirista, ainda acredita


que a experiências humanas livres e a diversidade de visões de mundo
coexistindo possibilita o aperfeiçoamento mútuo entre os indivíduos. Dessa
forma, influenciado pelos ideais de progresso da era vitoriana, o liberalismo de
Mill é otimista ao considerar que a tolerância e a pluralidade promovem o
progresso social.

Bibliografia

BITTAR, Eduardo. C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. CURSO DE


FILOSOFIA DO DIREITO. Editora Atlas: São Paulo, 2011.
BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e legislação. Domínio
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CASTILHO, Ricardo. Filosofia Geral e Jurídica. Saraiva: São Paulo, 2019.

DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Martins


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MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo.


Martins Fontes: São Paulo, 2006

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