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A ÉTICA KANTIANA

Por: Prof. Ozanan Carrara

1. Contexto histórico.

O contexto em que o filósofo alemão, Immanuel Kant, formula sua ética é o século
XVIII, conhecido como o século das luzes ou como Esclarecimento, quando o
pensamento europeu procurou superar a visão teocêntrica que perdurou por toda a Idade
Média uma vez que os valores religiosos impregnavam todas as concepções éticas e a fé
fornecia os critérios do bem e do mal. No contexto cristão medieval, homem moral era
sinônimo de homem temente a Deus. O século XVIII, com sua inabalável confiança nos
poderes da razão humana e na autonomia do homem racional, aposta todas as suas
fichas na “luz natural da razão” como a única arma capaz de libertar o homem do
domínio da ignorância e da superstição. As armas do homem iluminista são o
conhecimento, a ciência e a educação que são capazes de libertá-lo das trevas e do
obscurantismo que tornaram o homem impotente diante de determinados modelos
religiosos, sociais e políticos que lhe tiravam toda autonomia, submetendo-o aos
preconceitos, ao fanatismo, à tutela do Estado e dos poderes políticos e religiosos que
decidiam em seu lugar. Trata-se agora de desenvolver a consciência individual,
formando o homem autônomo em sua capacidade de conhecer o real já que todos os
homens são igualmente dotados da “luz natural da razão”. Podemos ver ainda no
Iluminismo a retomada do projeto pedagógico do Renascimento que coloca o homem
no centro de todas as preocupações religiosas, políticas e sociais.

Uma idéia que se tornará o carro-chefe do Iluminismo é a idéia de progresso, uma vez
que o homem, dotado dos poderes da razão, poderá alcançar um progresso jamais visto
na história da humanidade. Daí o esforço em identificar todos os elementos que
retardam ou impedem o progresso como determinadas formas de religião com crenças
irracionais e a submissão ingênua aos poderes religiosos e políticos. Neste contexto é
que se pode compreender a forte tendência iluminista a construir uma moral laica e
secularizada de tal modo que ser moral não é um privilégio exclusivo do homem
religioso. Ateísmo e moralidade não são pólos contraditórios já que os fundamentos dos
valores não se encontram mais em Deus, mas no próprio homem. Rejeitando toda forma
de tutela como a do Estado e toda forma de heteronomia como a da Igreja, o homem se
afirma como capaz de conhecer e de agir guiado pela ‘luz natural da razão’. Para o
Iluminismo, toda autoridade deve estar submetida à razão e à experiência ao invés de se
impor através das armas do medo, da força e da superstição. A razão é que permitirá ao
homem sair da menoridade em que ele se manteve por sua própria culpa. Kant o acusa
de “incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de um outro
indivíduo” e de “falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de
outrem”. Seu slogan é sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio
entendimento! (Kant. Que é esclarecimento?).

As idéias que dominam a filosofia iluminista que vai surgindo neste período são: 1) a
liberdade que para a burguesia em ascensão significa essencialmente a liberdade de
comércio defendida pelo pensamento liberal que se opõe ao absolutismo das
monarquias européias. 2) O individualismo com a crescente consciência de um
indivíduo livre e autônomo, capaz de escolher e determinar seu próprio destino. 3) A
isonomia jurídico-política que ensina que todos os cidadãos são iguais contra as

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desigualdades que persistiram na sociedade feudal que sustentava privilégios maiores
para os nobres.

O fato histórico marcante desse período é a Revolução Francesa de 1789 que tenta
implantar uma nova sociedade fundada nos princípios da “liberdade, igualdade e
fraternidade”, livrando-se de todo resquício de feudalismo ainda persistente no seio da
sociedade francesa. É dessa época a Declaração dos Direitos do Homem que se tornará
o fundamento de todas as constituições políticas posteriores à Revolução, influindo
também na independência dos Estados Unidos da América (1776). Tal declaração
reconhece que liberdade e igualdade são direitos naturais inerentes ao homem. Os
governos, por sua vez, devem garantir estes direitos e protegê-los.

Amparado nas idéias da filosofia política de John Locke, o Iluminismo, além de


acreditar num homem autônomo e livre em relação a toda forma de autoridade externa
que o subjuga, crê também no poder de se libertar das próprias paixões, emoções e
desejos que impedem o exercício da razão. O homem livre é aquele que age de acordo
com sua própria vontade e decisão racional. A filosofia deve então incumbir-se de
preparar este homem livre, autônomo e senhor de si.

2. A ética das normas.

As obras kantianas que tratam do problema moral são basicamente três: Fundamentação
da metafísica dos costumes (1785), Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos
costumes (1797). Todas elas consideram o homem como agente livre e racional em seu
agir moral. No domínio da razão prática é que somos livres e, portanto, morais já que
não se pode falar de comportamento moral na ausência de liberdade. Para Kant, o
fundamento da ética é estritamente racional e assim universal, não sendo as normas
morais nem de caráter pessoal ou subjetivo nem são construções de uma cultura em
particular. A própria racionalidade humana dá ao homem os princípios éticos que são
nada mais que leis universais que indicam seus deveres e obrigações. Daí a ética
kantiana ser de natureza prescritiva e ter ficado conhecida como ética das normas.

Se as ciências naturais buscam identificar a causa dos fenômenos, a ética compreende o


homem como um ser livre e racional cujo agir moral não se explica segundo leis
causais, mas segundo princípios indicados por sua própria razão. O mundo da moral,
portanto, se distingue radicalmente do mundo da natureza cujos fenômenos se
submetem a leis precisas e imutáveis. No mundo moral, o homem se define pela lei da
liberdade.

A moral procura três formas de justificação para a norma moral: a lei natural (é o caso
dos jusnaturalistas), o interesse ( é o caso dos utilitaristas que justificam o
comportamento moral como busca do prazer e forma de evitar a dor que Kant vai
combater firmemente) e a própria razão (posição kantiana).

Em sua ética das normas, Kant busca estabelecer os princípios a priori da moral. No
vocabulário kantiano, a priori significa não aquilo que é conhecido por nós através da
experiência, mas aquilo que nos é dado pela razão, aquilo que é anterior ou
independente da experiência. Dizer que a lei moral é a priori significa dizer que a razão
nos obriga a agir ou a deixar de agir simplesmente porque uma ação é exigida pela lei
ou proibida por ela. A lei moral se apresenta assim como um ‘imperativo categórico’,

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isto é, uma imposição feita pela razão à vontade para que ela aja segundo as exigências
do dever e da obrigação. Para os medievais, era a lei moral provinda de Deus que
indicava aos homens as normas objetivas do agir moral. Para os antigos, as normas
morais tinham um fim como, no caso de Aristóteles, a felicidade ou o bem-estar geral
da sociedade. Para Kant, isso é permanecer ainda na heteronomia moral, isto é, a
vontade é comandada por algo exterior a ela, seja a vontade de Deus (medievais), seja a
busca da felicidade (Aristóteles). Mas Kant rejeita ainda a idéia de que haja um tipo de
sentimento moral no homem, o que tiraria da moral seu caráter puramente racional.

O fundamento da moral kantiana é então a autonomia da vontade (liberdade). Só uma


vontade livre e autolegislativa pode conferir a si mesma a norma do agir moral. Há aqui
uma diferença fundamental com relação aos antigos e medievais. De fato, em
Aristóteles e Tomás de Aquino, a vontade é irracional e por isso ela deve se submeter à
razão que a comanda. Kant discorda ao propor que a vontade é racional, isto é, ela é
sempre boa, é a razão pura prática responsável por todo agir moral. O homem,
diferentemente dos animais, não está subordinado às leis da natureza sensível e, por
isso, ele pode transcendê-las, isto é, libertar-se das exigências da sensibilidade, agindo
segundo as exigências da razão. Ao deixar-se comandar pela razão, ele se torna senhor
de si, legislador de si mesmo e de sua vontade, agindo independentemente das
determinações empíricas que advêm de sua natureza sensível. Vê-se logo que há aqui
um rompimento com o sistema metafísico greco-medieval, tendo a ética de responder à
questão crucial: como conciliar liberdade de um lado e a necessidade que a limita, de
outro lado? O papel da razão é então manifestar a lei moral.

Kant revoluciona a ética ao caracterizar a norma moral como um “imperativo


categórico” que determina o agir moral do indivíduo consciente e livre. Se a lei moral é
a priori, ela tem valor por si mesma. Seu valor não provém do fato de ela promover a
felicidade ou o bem-estar, nem do fato de evitar a punição divina ou ainda de evitar a
dor e o sofrimento, pois a moral é desinteressada e o agir moral é gratuito. Por isso, a lei
moral é categórica ou se apresenta na forma de um imperativo categórico. Diz Kant:
Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética – ou categoricamente. Os hipotéticos
representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar
qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo
categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente
necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. (Fundamentação
da Metafísica dos costumes, Edições 70, p. 50).

Imperativos aqui são ordens da razão já que a lei moral sempre se apresenta como um
dever ou uma obrigação. E a razão para que a lei moral se apresente sempre como um
dever é que a vontade corre sempre o risco de desvio por não sermos espontaneamente
morais. Kant introduz aqui a noção de mal radical. Por ser finito, o homem oscila
constantemente entre as exigências de sua natureza sensível, isto é, do prazer e da
satisfação sensível e as exigências que procedem da razão ou do dever moral. Só o Ser
infinito que é razão plena e total está livre desse conflito. Para resistir às exigências da
sensibilidade, o homem precisa de uma norma moral que se apresente como um
imperativo. Trata-se então de um imperativo categórico, isto é, de uma ação que é
racional não como meio racional para algum fim desejado sem nenhuma consideração a
respeito da racionalidade desse fim (neste caso, tratar-se-ia de um imperativo
hipotético), mas de uma ação racional por direito próprio independente de ela conduzir a
um fim desejado pelo agente. Kant diz que os utilitaristas usam apenas o imperativo

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hipotético, pois se preocupam apenas com o ‘como’ alcançar uma meta perseguida. Por
exemplo, um utilitarista consideraria que a melhor maneira de poupar dinheiro é investir
em ações na bolsa. Há aqui apenas a preocupação com o modo como se pode poupar
dinheiro, mas não é o poupar dinheiro uma maneira necessária de agir, pois posso não
querer poupar dinheiro. Entretanto, a lei moral exige de nós perseguir aqueles fins que
são também deveres. Para Kant, algumas ações são obrigatórias simplesmente porque a
razão assim as ordena. Um imperativo categórico nos declara o que é racional por
direito próprio.

Daí Kant ter estabelecido que temos de tratar seres racionais ou os seres humanos como
“fins em si mesmos”. Diz ele: O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional,
existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela
vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo
como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como um fim. (Fundamentação, Edições 70, p. 68).

Daí Kant ter formulado o imperativo categórico da humanidade como fim em si mesma
da seguinte forma: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio (Ibidem, p. 69).

O termo ‘fim’ aqui designa coisas que pretendemos realizar, mas ele diz que há também
fins que são deveres como buscar a perfeição própria e a felicidade dos outros. Kant
proíbe ter como fim algo que conflite com o dever de promover sua própria perfeição ou
a felicidade de outrem. Isso significa que ninguém pode ter como objetivo explorar
outras pessoas ou interferir na liberdade dos outros já que eu também necessito da
liberdade para meu próprio desenvolvimento.

Antes de prosseguir, faz-se necessário esclarecer que a sensibilidade, pelo fato de


resistir às ordens da razão, não é má em si mesma. É próprio dela exigir satisfação e
nisso ela segue as leis da sua própria natureza. Mal seria agir sempre segundo as
exigências da sensibilidade, cedendo a todos os desejos. Um ser humano que assim
procedesse cederia ao egoísmo e renunciaria à sua condição de ser racional e moral. Por
outro lado, não se trata de submeter a sensibilidade à razão, como se as duas fossem
conciliáveis. Aristóteles tenta conciliar sensibilidade e razão, fazendo a última dominar
a primeira. Kant manda libertar-se das inclinações empíricas, aderindo à lei do dever.

Mas como Kant entende a vontade? Se ela é irracional como em Aristóteles e Tomás de
Aquino, ela deve se submeter à razão. Para Kant, no entanto, a vontade é sempre boa
como ele afirma no início da Primeira Seção da Fundamentação da Metafísica dos
costumes (p. 21). A vontade aqui não é boa por causa do que ela realiza ou de sua
aptidão para alcançar algum fim proposto, mas porque seu querer é bom em si mesmo.
A boa vontade tem “seu pleno valor em si mesma”. A lei moral é, portanto, a lei de uma
vontade boa e livre. A boa vontade inclui o conceito de dever moral. Por isso, é boa a
vontade que age por puro respeito ao dever e por nenhuma outra razão que não o
cumprimento puro do dever.

A universalidade da lei moral – se o imperativo categórico obriga a vontade a


conformar-se ao dever, ele determina também que a máxima que guia minha ação seja
sempre universalizável. A lei moral que obriga irrestritamente porque é necessária é

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também universal. Kant assim o formula: age unicamente segundo a máxima que te leve
a querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal. Se as máximas são princípios
subjetivos que orientam a ação de qualquer pessoa razoável, elas alcançam o estatuto de
leis práticas objetivas. Isso significa que uma lei moral deve ser válida para toda a
natureza humana, isto é, o que o imperativo prescreve para um indivíduo deve se tornar
uma regra válida para todo ser humano.

A questão da liberdade – Kant distingue dois tipos de leis: as leis da natureza e as leis
da liberdade que são aquelas que dizem o que deve ser. Para ele, a moral ocidental não
levou em conta essa distinção e por isso não compreendeu a especificidade da moral.
Kant recusa outras tentativas de fundamentar o ético como aquela que o fundamenta no
princípio da autoconservação. Definir o homem como alguém que busca apenas se
autoconservar é defini-lo a partir do egoísmo. Neste caso, caberia à sociedade apenas
administrar a luta dos egoísmos uns contra os outros. Esta posição aproxima a ética do
modelo biológico em que as espécies se caracterizam pelo instinto da sobrevivência e de
expansão das próprias forças vitais. O homem moral não se define pelas leis da
natureza, mas pela liberdade que é “condição universal de possibilidade de ações
dotadas de sentido”. Por outro lado, não há liberdade quando há formas exteriores de
coação. Sendo racional, o homem não tem seu caminho já determinado, mas ele pode se
autodeterminar. Moralidade significa então a capacidade do homem de se
autoemancipar em sua humanidade. Em primeiro lugar, a noção kantiana de liberdade
significa independência do mundo sensível, isto é, capacidade de se libertar da
causalidade natural e do jugo da temporalidade (conexão necessária de fenômenos)
como forças distintas do sujeito. O homem está para além de qualquer determinação
causal-temporal. Logo, a liberdade aqui se entende tanto como independência em
relação à causalidade sensível como com relação ao tempo, à determinação histórica.
Liberdade significa então autodeterminação.

Portanto, nessa perspectiva, uma vontade livre é aquela que é lei para si mesma. O
homem livre é aquele se determina supra-sensivelmente. A causa da ação humana aqui é
única e exclusivamente a própria vontade livre e soberana. Ela significa capacidade de
começar por si mesmo, independente do mundo e da história. Sendo ahistórica e
atemporal, a liberdade é pura interioridade, espontaneidade pura. Só é moral uma ação
livre.

A felicidade – o homem é matéria e forma, isto é, enquanto matéria, ele busca satisfazer
seus sentidos (comendo, bebendo, praticando lazer), mas também busca a satisfação do
espírito (alegra-se através da atividade intelectual e dos sucessos sociais). Satisfazer tais
necessidades é ser feliz. Poderia então a felicidade erigir-se como critério moral de
modo que o que me faz feliz é também moral? Não!, ensina Kant, pois o problema da
felicidade está em que ela atende apenas as condições individuais já que aquilo que me
satisfaz pode não satisfazer o outro. Com isso, é impossível que a felicidade sirva de lei
universal, não podendo assim tornar-se princípio de determinação moral. Só a lei moral
transcende os sentidos, os fenômenos e a causalidade empírica e ela está no nível da
razão. Sendo transcendente, a liberdade pode dar-se a si mesma sua lei e determina seus
fins independente das exigências do mundo sensível. A consciência moral convoca
então o homem de modo imperativo a superar sua natureza imperfeita, buscando seu
verdadeiro ser que é o ser moral. Tornando-se moral, ele se torna senhor de si. Buscar a
felicidade seria ainda agir por interesse e ação moral é desinteressada.

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O dever – a moralidade é prescritiva. Isso significa que a ação moral traz consigo uma
ação para agir e é neste sentido que ela é um imperativo categórico. Mesmo que eu aja
contra a moralidade, não posso ignorar o fato de que ela dá a mim uma razão para agir,
ela é o motivo para que eu aja. O valor de uma ação moral está em que ela se realiza por
um senso de dever. Não se trata de simplesmente fazer o que se quer. Neste caso, a ação
não teria nenhum valor moral.

Kant distingue entre ações “em conformidade com o dever” e ações praticadas “por
dever”. São estas últimas que mostram o mérito do agente, pois a ação conforme o
dever não é feita em razão dele. A ação por dever é aquela que tem sua razão de ser no
dever e não numa outra razão qualquer. Não se trata de ser frio e indiferente agindo
unicamente por dever, sem amor e compaixão, mas sim que aquele que age por dever o
faz por uma convicção própria. Agir movido por nossas paixões e emoções seria um
agir mecânico negador da liberdade. Mas a compaixão pode perfeitamente ser um dever
se eu o elejo como tal e ajo por causa dele. Para Kant, o que confere valor moral a uma
ação é a máxima, ou seja, o princípio subjetivo segundo o qual o agente age. Deus,
como ser finito e que possui uma vontade santa, não precisa de uma máxima que oriente
sua ação, mas nós, seres finitos cujos desejos podem se desviar do dever, precisamos de
uma norma para agir. Assim, uma ação praticada por dever afasta totalmente a
possibilidade de agir por inclinação ou por qualquer outro objeto que determinasse a
vontade, “exceto objetivamente a lei e subjetivamente o puro respeito por essa lei
prática...”. Respeito aqui significa “a consciência da subordinação de minha vontade a
uma lei, sem intervenção de outras influências sobre a minha sensibilidade”
(Fundamentação da Metafísica dos Costumes). Agir movido por um sentimento seria
ainda permanecer no nível da natureza sensível. O respeito é “o efeito da lei sobre o
sujeito e não sua causa”. Trata-se aqui de ter consciência racional a respeito da lei
objetiva que me motiva a agir. O motivo da ação moral tem de ser livre de toda
condição sensível.

Já a ação conforme o dever não possui nenhum mérito por parte do agente, pois neste
caso ele estará apenas fazendo uma ação lícita, por inclinação apenas, isto é, ele é legal
ao conformar sua ação ao conteúdo da lei. Vê-se então uma diferença importante, na
ética kantiana, entre legalidade e moralidade. A vida política, por exemplo, exige apenas
a ação conforme o dever.

O Imperativo Categórico – dizer que a lei moral é racional significa dizer que ela é
conhecida a priori, isto é, não é aprendida da experiência. Kant formula o imperativo
categórico assim: age unicamente segundo uma máxima tal que ao mesmo tempo possas
querer que ela se torne uma lei universal. Isso significa que a máxima subjetiva deve se
conformar à lei universal. A universalidade aqui é uma exigência da razão e não
significa apenas que ela se aplica a todos os seres humanos, mas também que ela exige
de nós tratar igualmente casos iguais. Um exemplo dado pelo próprio Kant nos ajuda a
entender essa característica da lei moral. Alguém precisa de dinheiro por se encontrar
numa situação difícil e decide tomá-lo emprestado mesmo que tenha a intenção de não
devolvê-lo. Isso exigiria deste indivíduo formular seu princípio da seguinte maneira:
toda vez que precisar de dinheiro, devo tomá-lo emprestado mesmo que saiba que não
poderei pagá-lo. Isso exigiria que cada um pudesse agir segundo essa mesma máxima
pois, segundo o imperativo, eu devo “agir unicamente segundo aquela máxima que eu
posso ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal”. Neste caso, por ser
impossível racionalmente universalizarmos a falsa promessa como a do exemplo acima,

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esta ação está contra a moralidade. Eu não posso querer uma falsa promessa como lei
universal, pois isso destruiria a credibilidade de qualquer promessa.

Para tornar mais clara a formulação do imperativo categórico, Kant ainda oferece dela
uma segunda versão como a que segue: age como se a máxima de tua ação devesse se
tornar por tua vontade uma lei universal da natureza (Cf. Fundamentação, p. 80).
Assim, se uma máxima é correta para mim, ela deve ser correta para qualquer outra
pessoa.

Duas outras idéias estão ainda presentes no imperativo categórico: o princípio da


autonomia chamado por ele “o princípio supremo da moralidade” e a de reino dos fins.
Quanto à autonomia, uma vontade é autônoma quando ela se dá a si mesma sua própria
lei e não depende de qualquer desejo ou inclinação exterior à razão. Compreendemos
então que a lei da moral não é uma lei arbitrariamente inventada, mas que ela é
instituída pela razão por motivos puramente racionais e aí não pode interferir qualquer
outro motivo que fuja à razão. A lei que me serve como guia deve ser a mesma que
serve como guia para todo outro ser racional autônomo.

Quanto ao reino dos fins, todos os seres racionais são fins em si mesmos e se todos
agirem racionalmente constituirão uma sociedade idealmente harmônica. Assim,
embora cada um possa ter seus fins individuais, estes não devem interferir nos fins dos
outros. A universalidade da máxima visa então ordenar os fins de tal modo que o mundo
esteja em conformidade com todas as leis morais. Esse seria o mundo moral idealizado
por Kant.

3. Críticas à ética kantiana.

Há várias críticas à ética kantiana que a tomam em suas limitações em vários níveis.
Limito-me aqui a algumas delas. A crítica clássica diz que seus princípios gerais são
abstratos e genéricos e que ajudam pouco em situações concretas do cotidiano quando
se tem de levar em consideração situações complexas de indivíduos e coletividades. Por
serem abstrações universais e necessárias, as máximas kantianas podem se tornar vazias
em sua aplicabilidade histórica. São facilmente aceitáveis do ponto de vista lógico, mas
pouco efetivas no nível prático.

As formulações kantianas giram todas em torno de um sujeito denominado por ele


transcendental de caráter exclusivamente racional. A consciência moral desse sujeito
transcendental é o único critério de validação dos princípios universais, estando a
pessoa do outro ausente dos procedimentos pelos quais a consciência constrói suas leis
universais. O fundamento da ética fica assim reduzido ao sujeito, faltando o consenso de
um diálogo em que o outro possa participar na construção dos princípios e máximas. Os
filósofos contemporâneos, Habermas e Apel, pretendem corrigir a Kant neste aspecto,
propondo o diálogo intersubjetivo como meio de superar o solipsismo do sujeito
transcendental que decide subjetivamente e a sós a aplicabilidade das leis universais.
Para eles, o outro é um interlocutor que deve ser parte integrante na busca de um
consenso na determinação do que é justo e bom. As normas éticas devem ser decididas
no diálogo intersubjetivo.

Ainda o filósofo franco-lituano Emmanuel Levinas, apesar de próximo da ética


kantiana, critica-a, no entanto, em vários aspectos. Para Levinas, é o encontro com a

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pessoa singular do outro a ocasião que desperta o homem para a consciência de sua
própria dignidade. Por isso, é o outro que se apresenta como um imperativo moral,
exigindo de mim responsabilidade por ele. Se o imperativo moral kantiano é um fato da
razão, para Levinas a ‘voz da consciência ética’ excede as capacidades e os poderes da
consciência. A consciência é colocada em questão por outrem, o que seria impossível
dentro da razão autônoma kantiana capaz de dar a si mesma suas leis. Além do mais,
Levinas pensa que a resposta ética dada por cada sujeito em cada situação específica é
única e não alcança nunca a universalidade. Ela é ditada pela situação concreta em que
outrem apela e inquieta o eu. Levinas se opõe ainda à idéia kantiana de respeito pela
idéia de humanidade presente numa pessoa, preferindo falar do respeito à pessoa
singular que tem um nome e um rosto singulares. Ele se pergunta se a universalidade
kantiana não pode ser justamente um empecilho nesse encontro com a pessoa única e
insubstituível de cada um. Ainda Levinas critica o fato de a lei moral kantiana ser obra
exclusiva da razão prática. Neste caso, o amor só ganharia valor moral quando
submetido à razão. Para Levinas, a lei moral - tal como Kant a entende - só produz
respeito o qual nasce da submissão à lei presente em si mesmo, libertando o homem de
um apego patológico a si mesmo. Para Levinas, é a sensibilidade ao outro que desperta
no sujeito o amor por outrem. Com isso, diferentemente de Kant, Levinas dá valor
moral à sensibilidade.

4. Bibliografia

BORGES, Maria de Lourdes e outros. O que você precisa saber sobre ética. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2002.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70,


sdp.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Ed. Loyola, 1993.

PEGORARO, Olinto. Ética é Justiça. Petrópolis: Vozes, 2001.

WALKER, Ralph. Kant. (Tradução de Oswaldo Giacóia Junior). São Paulo: Ed. Unesp,
1999.

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