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Dívidas de Sangue
- Como assim, você foi liberada para passar um mês de licença? Você acabou de assumir seu
posto aqui.
Summers não respondeu a isso. Ambos sabiam que interferir com os assuntos da Seção 31
estava fora do alcance do capitão.
Saiu como um furacão da sala, quase derrubando dois oficiais que passavam pelo corredor.
Fingiu que não ouvira e continuou o seu caminho. Ouviu os dois conversarem.
- Sei lá, deve ter brigado com o capitão. Você sabe o que dizem das ruivas...
Ambos riram, e Callista apertou o passo. Sentiu-se corar, envergonhada pelos pensamentos
que captara da mente deles. “Isso é absurdo. Eu sou uma Guardiã jurada, como eles atrevem-se a
sequer pensar que eu seria capaz de...”Lembrou-se que não estava mais em Cottman IV – ou
Darkover, como era chamado pelos nativos. Estava na USS Bishop, uma nave da Federação, entre
cegos mentais, que não faziam a menor idéia do que era uma guardiã ou de seu juramento. Além
do mais, ela mesma havia desistido em parte de receber o tratamento de Guardiã ao deixar sua
Torre e juntar-se à Federação. Isso há oito anos atrás.
E ontem recebera uma mensagem urgente de seu pai, Piero Ridenow, lorde Serrais e
representante de Darkover junto à Federação. Deveria largar o que estivesse fazendo e voltar para
casa o mais rápido possível.
Ficava imaginando. Seu pai não há contatava desde sua formatura na Academia. Um
embaixador deveria se envolver o menos possível com a Inteligência. O que ele poderia querer
com ela?
****
Estacou surpresa. Ao lado de seu pai, vestido com a cores de Serrais, verde e prata, estava o
atual representante da Federação. Peter Haldan. Piero Hallyane era como ele apresentava-se
quando agia infiltrado em Darkover. Agente da Inteligência, sua missão era descobrir o máximo
que pudesse sobre o planeta, já que os governantes não permitiam nenhum tipo de contato sem
ser com eles.
E foi sob esse disfarce que ele surgira, ferido mortalmente, na Torre de Arillin, onde Callista
estava sendo treinada como Guardiã, para substituir Leonie de Arillin, a mais poderosa telepata
surgida nos últimos dois séculos em Cottman IV.
Ela insistira para que tratassem dele, apesar da aristocrática Leonie não apreciar a idéia de um
impuro em sua Torre. Cuidara do ferimento, e velara seu sono agitado. O estranho a fascinara,
mesmo sem ela saber que era de outro mundo. Quando ele convalescia, conversaram sobre
muitas coisas, e Callista o levara para conhecer os arredores da Torre e a pequena cidade de
Arillin. Ele a chamara de “bela”, que era a tradução para o cahuenga do seu nome, e ela sentira-se
em brasas.
Apaixonara-se por ele. Como poderia ter evitado? Mas Leonie descobrira a identidade de seu
hóspede. E também os sentimentos de sua sub-Guardiã. Avisou o Conselho e um grande incidente
formou-se. No final, tudo resolveu-se graças a intervenção do pai de Callista e sua esposa, uma
oficial da Frota. Ela superou a paixão, em grande parte devido à raiva de Leonie.
- Piero?
O pai de Callista deu um longo pigarro, e Peter Haldane – ela teria que acostumar-se com esse
nome – assumiu sua postura de oficial da Frota.
- Por favor, tenente Ridenow, sente-se. Lorde de Serrais pediu para que a Seção 31 lhe desse
uma licença pois precisava tratar de um assunto urgente e confidencial.
- Cale-se, Haldane. Eu continuo. Callista, filha. Leonie está morrendo. Você terá que voltar para
Arillin.
Ela não podia acreditar no que ouvia. Arillin era um pesadelo distante, do qual ela lembrava-se
com um temor vago e indistinto. Olhou de seu pai para Piero e dele para o seu pai.
- Na verdade...pode. Seu alistamento na Frota só foi aceito com a condição de que você
pudesse ser dispensada imediatamente, caso preciso. Mesmo trabalhando na seção 31.
Segurou o choro. Olhou para o pai. Sabia que o que iria dizer iria magoá-lo profundamente,
mas precisava dizer.
- Comodoro Haldane. Eu não concordo, não aceito dar baixa...e peço asilo à Federação.
Não ousou encarar seu pai. O que ela estava dizendo era mentira. Uma Guardiã não era uma
sacerdotisa, mas era o termo terranan mais próximo...e ela seria perseguida se recusasse ser
Guardiã de Arillin. Mas iria continuar o mito do atraso supersticioso dos darkovanos.
- Tem certeza?
- Sim.
Haldane levantou-se.
- Sim...
- Combinamos que ela estaria liberada se ela quisesse. Não é esse o caso. Por favor, retire-se.
- Isso não irá ficar assim, Haldane. Ela é comyn, e uma virgem jurada. Não será sua barragana,
nem que você queira... Nem mesmo se ela quiser. – e saiu, deixando Callista mortificada.
- Por gostar de você? Callista, seu pai tem certa razão. Qualquer outra pessoa, eu não
arriscaria um século de esforço diplomático. Mas você...você ficou do meu lado contra aquela velha
bruxa. Ela que morra...eu não irei deixar que coloquem você no lugar dela, para envelhecer como
um espectro...
- Primeiro, irá me chamar de Piero, como naquele inverno em Arillin. Depois irá almoçar comigo
na Cidade Comercial. Aí sim estarei pronto a conversar sobre o seu futuro.
****
Era estranho passear nas ruas de Thendara com o uniforme da Federação. Mesmo que fosse
apenas por breves instantes, nas ruas da Cidade Comercial, que, situada na sombra do
espaçoporto, servia como uma barreira de proteção entre a Cidade Velha, dominada pelo antigo
Castelo do Comyn, e o Posto Diplomático da Federação.
Mas as reações das pessoas a sua presença era a mesma de quando usava os trajes de uma
dama do Comyn...ou mesmo de uma sub-Guardiã. O uniforme da Federação não ocultava os seus
cabelos ruivos, marca da nobreza darkovana. E mesmo que aos poucos os habitantes do planeta
houvessem se acostumado aos terranan ruivos, ela tinha o porte do Comyn, um jeito altivo de
quem fora criada sabendo que iria ter poder um dia.
Muitos a olhavam com o respeito devido à casta superior. Mas outros olhavam com raiva para o
seu uniforme. Ela podia ler os pensamentos tão claramente como se fossem expressos em voz
alta. “Traidora, como ela pode?”. Tentou não dar atenção a isso e seguiu Peter que entrara no
único hotel da Cidade.
Sentados a mesa, depois de uma farta refeição darkovana. Peter a olhava com interesse.
- Você não mudou nada, Callie.
Ela sorriu, observando-o. Tinha o mesmo rosto, e o mesmo sorriso. Os cabelos começavam a
tornar-se brancos nas têmporas, e os olhos estavam cansados. Mas era o mesmo Piero.
- Nem você. Piero, eu realmente agradeço por ter comprado essa briga com meu pai e o
Conselho Comyn. Espero que não prejudique ainda mais a sua carreira.
- Não precisa se preocupar...Kadja cuida do seu pai, e ele cuida do Conselho. – Callista sorriu
de volta. Sua madrasta, que ocupara o cargo de Peter antes deste, conseguira convencer seu pai a
deixá-la juntar-se à Federação. Qualquer coisa depois disso seria simples. – Além do mais, eu
precisava de qualquer maneira traze-la de volta à Darkover.
- O que aconteceu?
- Aqui não é o lugar, Callie. Reservei um quarto com abafadores telepáticos, onde poderemos
conversar com segurança.
Sem entender nada, Callista o seguiu enquanto ele subia pelo elevador até o andar mais
elevado. O Hotel era bem luxuoso, considerando onde estava. Mas a grande maioria dos seus
clientes eram os próprios nobres darkovanos, em suas idas à principal cidade do planeta. No sexto
andar, ficavam as suítes maiores. Callista olhou, admirada. Era como estar de volta ao Solar de
Serrais. A decoração era ao estilo darkovano, com paredes de pedra e tapeçarias penduradas.
Fogo crepitava na lareira, enquanto lá fora o sol vermelho aproximava-se do horizonte.
Ela deixou-se perder naquele brilho avermelhado. “Olho sangrento”, era como um antigo poeta
das montanhas chamava o “sol”, ou melhor, a estrela “Cottman”. Uma de suas mais famosas
poesias dizia “Olho sangrento/ que espia a terra avermelhada.../ Será por teu reflexo,/ ou do
sangue nela derramado?”. Sentira tanta falta de casa. Do frio cortante, da luminosidade
avermelhada do sol, das quatro pequenas luas no céu, as montanhas, do cheiro da kireseth e das
árvores de resina, do som da rryl sendo tocada em um serão familiar ao pé da lareira, em uma
noite fria de inverno no velho solar da família de seu pai.
- Depois de ver o sol dessa cor, os outros ficam pálidos, como se não tivessem mais vida.
- Foi do que eu mais senti falta...Mas o que houve, Piero? O que aconteceu para você não
poder me chamar diretamente? Aliás, porque chamar a mim em especial? As normas dizem para
evitar...
- Usar membros da Inteligência em seu próprio planeta. Eu sei...Mas a regra não se aplica a
Cottman IV. Em um planeta fechado, forasteiros não servem como espiões. Eu tive que nascer
aqui, assim como Magda, para conseguir trabalhar infiltrado.
Peter fora criado em uma pequena aldeia, distante de Thendara, nos domínios da família
Aldaran, inimiga do Comyn há séculos e que acolhera os terráqueos. Um pequeno grupo de
pesquisadores estabeleceu residência em Caern Donn, entre eles os pais de Peter e os de sua ex-
esposa, Magdalen Lorne.
- E como vai Margali? – disse, usando a forma darkovana do nome. – Aconteceu algo com ela?
Afinal, ela é excelente espiã.
- Magda “pulou o muro”. Não é mais oficial da Frota, e antes que Kadja pudesse ordenar sua
reintegração forçada, ela estabeleceu laços familiares no planeta.
- Tornou-se companheira livre de uma renunciante. Para não termos encrenca com lorde
Hastur, aceitamos a sua renúncia à cidadania da Federação. Mas não chamei você aqui para falar
dela. Temos problemas mais sérios do que a lealdade da minha ex-esposa. Temos indícios de que
uma Torre está quebrando a Aliança.
- Mais impossível ainda. Dalereuth está desativada desde o final da Era do Caos. Além do mais,
pertence aos domínios do meu pai.
Foi só então que percebeu o porque de ter sido chamada por Peter Haldane. Teria que
investigar a lealdade de seu próprio pai.
****
Dois dias depois de ter retornado a Darkover, Callista estava a meio caminho de Dalereuth, no
meio da estrada que ligava a cidade costeira aos centros urbanos de Valeron e Thendara. Estava
vestida novamente com roupas darkovanas, usando o cabelo preso de forma a não mostrar a
nuca, e sentava-se de lado em seu cavalo. Como uma típica dama de uma camada média da
população.
Piero havia insistido para que viajasse de liteira. Mas preferia ir a cavalo. Somente grandes
damas e Guardiãs viajavam de liteira em época de paz, e estavam querendo passar o mais
desapercebidos possível. Piero também estava vestido a darkovana, e para Callista era como se o
tempo não houvesse passado.
- Já vejo a cidade daqui. Essa noite dormiremos em Valeron, Callie. Se mantivermos o ritmo,
em mais dois dias chegaremos ao litoral...
Ela sorriu. Se não fosse a desagradável missão de espionar o próprio pai, era como estar de
férias.
- Não acredito no que fiz...Hoje é o Festival das Quatro Luas, e não vamos estar em Thendara
para o baile.
- Eu não poderia ir, Piero. Sou proscrita agora, esqueceu? Seria expulsa se tentasse entrar no
baile do Comyn.
No mundo cinzento. Callista estava diante de uma construção que jamais esperava ver
novamente. Arillin, a Torre Branca. Imponente, firme e sólida, a imagem da Torre no plano onde
estava refletia os séculos e séculos da sua dominação sobre as demais torres no planeta. Sentiu o
coração apertar-se. Era o lugar mais parecido com um lar que jamais tivera, e sempre iria sentir
falta das antigas paredes de pedra.
Uma mulher alta, os cabelos ruivos começando a ficar grisalhos, as faces esmaecidas pela
idade ainda indicando que havia sido muito bela, e olhos cinzentos que pareciam faiscar de raiva.
A túnica ricamente bordada e tingida com o mais vívido escarlate a identificariam até mesmo se
Callista não a tivesse adorado como mãe por quase oito anos. Leonora Hastur, Tenerestéis de
Arillin. A mulher mais poderosa de Darkover.
- Callista Syrtis Ridenow, rikhii de Arillin, posso saber porque o teu pai disse que não virás até
Arillin assumir o teu lugar?
- Porque é a verdade, vai tenerestéis. – Callista usou os termos e a entonação mais formais que
conhecia. Foi quando reparou que usava os trajes de sua posição em Arillin, uma túnica azul com
pequenos debruados em prata, a roupa de uma sub-Guardiã. A sua imagem mental ainda era
reflexo dos anos enclausurada na Torre.
- Renegas assim o teu juramento e o teu treinamento? Filha do meu coração...- e a voz de
Leonie suavizou-se. – irás me abandonar à porta da minha morte?
Callista entristeceu-se ao olhar pela última vez para a Guardiã. Sabia que, com a morte de
Leonie, uma era estaria acabando em Darkover. Mas nada poderia fazer. Concentrou-se, e de
repente a túnica azul tornou-se um uniforme de gala da Frota Estelar.
- Mãe, eu escolhi o meu caminho. E irei segui-lo, com ou sem a sua benção...
- Traidora do seu sangue!! Maldita grezalys das Cidades Secas!!! Não espere recompensa pela
sua traição, maldita. Uma vez guardiã, sempre guardiã. Amaldiçoada você e qualquer um que a
tocar. – o rosto de Leonie transfigurou-se e Callista soube que chegara o momento final para a
Guardiã. Todos os telepatas em Darkover sentiriam os estertores finais da última das Guardiãs.
De repente, tudo acabara. Não estava mais na planície de Arilin, e sim no caminho para
Valeron, com Piero. Sentia o seu corpo dormente e frio, e uma fome atroz a atingiu. O terranan a
olhava preocupado.
- O que houve, Callie? De repente, todos os pássaros gritaram e depois houve um silêncio
agudo...
Tremendo, ela tentou sorrir, enquanto Piero a tirava do cavalo. Não tinha retomado controle do
seu corpo ainda.
- Leonie tinha sangue MacAran, de um antepassado não muito distante. Dizem as lendas que
quando o MacAran morria, todos os animais da sua terra choravam de tristeza.
- Então...
- Sim. A Dama de Arilin está morta. E Darkover perdeu a sua última Guardiã. O que será das
Torres agora?
****
Eles haviam passado ao largo da pequena aldeia atacada pelo “pó-da-morte”. Casas vazias, e
mesmo a distância puderam ver os cadáveres jogados no chão. Callista recusava-se a acreditar
que seu pai pudesse ter tido participação naquilo. Não o homem que a criara, depois da morte de
sua mãe. Que respeitara a sua decisão de juntar-se à Frota, apesar de relutante. Não ele.
- Ela foi uma das mais poderosas Torres de toda a Darkover. Mas quando chegou o fim da Era
do Caos, os poderosos de todo o planeta começaram a perceber que as guerras usando as armas
e os homens das Torres causavam danos demais, por vezes irreversíveis. O Guardião da Torre de
Neskaya, Varzil, O Bom, começou a Aliança, que uniu todos os lordes e todas as Torres em um
pacto de não utilizar armas de telepatia de espécie alguma em guerra. Todas as Torres...menos
uma.
- Dalereuth.
- Sim, Dalereuth. A Torre era comandada por Damian, um homem jovem e ambicioso, que
sabia que a importância de Dalereuth devia-se às armas que produzia e não queria deixar o poder
escapar de suas mãos. Ele rebelou-se, com a ajuda de uma outra telepata muito poderosa, e foi
preciso que todas as demais Torres se unissem contra ele para o derrotar. Muitos telepatas
morreram nessa última batalha com laran.
- Sim, era. Como Varzil também...desde então nunca mais um membro da família ascendeu ao
posto de Guardião...Eu seria a primeira.
- Agora entendo a revolta de seu pai. Você deixou escapar uma grande chance para que ele
aumentasse seu poder no Conselho.
- Se eu assumisse como Guardiã, estaria apenas adiando o inevitável. Há duas gerações que
não nasce uma criança com capacidade telepática para ser uma Guardiã completa. O Comyn está
morrendo...porque acha que entramos para a Federação? O que nos fazia diferentes está
acabando. E temos que sobreviver sem isso.
- Você não entende, terranan. Pelo menos queremos sumir com dignidade. A hospedaria é ali.
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Ela não falou mais nada depois da sua explosão ao chegarem na cidade, no dia anterior. Piero
estava preocupado mas não disse nada. Sabia que havia coisas em Callista – e em todos os
darkovanos – que jamais entenderia, apesar de ter nascido e se criado naquele estranho planeta.
Agora, olhava a sua companheira, que contemplava a entrada da Torre, o sol refletindo reflexos
avermelhados nos cabelos tingidos de preto, e pensava se isto não seria uma barreira
intransponível que os separaria para sempre.
- Bem, Piero, acho que podemos entrar por aqui. Não há sinal de movimentação. Tem apenas
um porém.
Ele sabia qual era o porém. Todas as Torres de Darkover eram protegidas por um dispositivo
chamado “véu”, que só permitia a passagem de portadores de laran para o seu interior. Ele só
passara pelo de Arillin porque a própria Leonie levantara o “véu”.
- A sua teoria está provada e Dalereuth voltou a ser utilizada. Se não, só saberemos quando
chegarmos no nível superior, onde fica a tela de matriz. Vamos.
Passaram pelo portão. Piero esperou ser instantaneamente jogado para trás, como acontecera
quando tentara entrar em Arillin com o “véu” em funcionamento, mas nada aconteceu. Viu o rosto
dela contrair-se de preocupação.
- O “véu” está inativo, mas sinto alguma coisa estranha. Teremos que subir até...
Não terminou a frase. De repente, estavam cara a cara com um estranho homem de túnica
vermelha. Ele nada disse, apenas sorriu.
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- Quem é você? – Callista estava entre Piero, inconsciente, e o estranho, vestido com uma
túnica vermelha. Ela estava usando novamente os seus trajes de sub-Guardiã, e empunhava a sua
matriz como se fosse uma arma.
- Ora, não se ensinam mais boas maneiras em Arillin? Mais respeito com seus superiores,
menininha. – ela sentiu o mundo a sua volta crescer, enquanto voltava a ser uma menininha de
tranças, de olhos grandes e tristes. – Assim é melhor. Sou Daimian de Ridenow Y Ridenow,
Tenerezu de Dalereuth-sobre-o-mar. E voltei para a minha Torre, retomar o meu trabalho.
Reunindo toda a coragem que possuía, para não começar a chorar desconsolada, a pequena
Callista gritou.
- Mentira. Damian morreu há séculos, e não há mais Guardiões em Dalereuth desde então.
- Menina, menina. Claro que não. Uma tela de matriz só pode mudar de Guardião quando o
anterior morre. Realmente não ensinam mais as coisas em Arillin...
- Você morreu. Todas as Torres se uniram contra você e a Dama Negra. O Guardião de Arillin...
- Ian Mikhail foi um tolo. Sempre foi. Achou que me privando do meu corpo físico e lacrando o
plano psíquico de Dalereuth fosse me manter longe para sempre. Foi uma simples questão de
tempo, até que o lacre se desfizesse. E com estes terranan vagando por Darkover, não foi difícil
me libertar sem que as medíocres Guardiãs desse tempo me percebessem. E agora, pequenina,
vou ensinar-lhe como é um verdadeiro duelo de laran.
Piero e Dalereuth tornaram-se manchas indistintas na paisagem. Uma vasta campina estendia-
se a perder de vista. O Sol – ou seu reflexo nesse mundo psíquico – brilhava com força. Daimian
estava ainda mais ameaçador, empunhando uma grande espada que brilhava com luz azulada.
- Então, criança. Vai desistir? És realmente a traidora que Leonie disse? Vendida aos terranan?
Callista ainda estava como criança. Concentrou-se, usando todo o treinamento que tivera com
Leonie e na Frota. Cresceu, tornando-se novamente a mulher imponente de cabelos ruivos que
fora sempre a sua imagem no mundo cinzento. Mas algo estava diferente. Usava agora um
uniforme da gala da Frota Estelar, decorado com as insígnias de uma Guardiã...e totalmente
vermelho.
- Não, tenerezu de Dalereuth-sobre-o-mar, a torre amaldiçoada. Não trai meu povo e nem meu
planeta. Quero o melhor para Darkover. E isto significa olhar para o futuro e esquecer o passado,
que é representado por você e suas tentativas de fazer este mundo voltar ao Caos. – a matriz que
carregava em sua mão transformou-se em uma adaga brilhante. – Eu irei impedi-lo, Daimian. É
preciso um Ridenow para parar outro.
Ele apenas sorriu e avançou. As lâminas chocaram-se, lançando faíscas. Callista agüentou a
pressão que ele fazia, tentando desarmá-la sem conseguir. Ele recuou, um pouco surpreso.
- Ora, então você não é de todo indefesa, criança. Mesmo assim, eu sou um Guardião. E não
há telepata vivo capaz de me deter. – dizendo isso, fez um gesto com a mão, e a adaga de Callista
desmanchou-se na brisa, sobrando apenas a matriz. Antes que ela pudesse pensar em reagir, fez
outro gesto e a jogou longe. Caída, Callista sentia como se estivesse presa ao chão. Daimian
aproximou-se, sorrindo.
De repente, ela não estava mais a frente de Daimian. E sim em lugar que conhecia como sua
própria casa. A impressão da majestosa Torre de Arillin.
- Bem-vinda, criança. – ela não reconhecia a voz, mas agradeceu assim mesmo. Quando
conseguiu mexer a cabeça, viu um homem, aparentando ser bem mais velho que o Guardião de
Dalereuth, vestido com a mesma túnica vermelha. Olhos bondosos que ao mesmo tempo
brilhavam com um poder incontido.
- Quem é você?
- Meu nome, chyia, é Ian Mikhail Lindir Alton. Fui – ou sou, pois onde estamos o tempo não
importa – o tenerezu de Arillin. E você estava enfrentando meu pior inimigo, alguém que eu achei
que estivesse morto. Mas eu deveria imaginar que Daimian jamais descansaria.
- Que bom que você está aqui...Assim, você pode lacrar Daimian novamente.
- Não, criança. Não é tão fácil assim...Eu estou em outro plano temporal, e não posso lhe
ajudar, sem deixar o meu tempo...para sempre.
- Há sempre uma solução, Callista. Você é uma Guardiã, foi treinada para isso e...
- Mas não há mais Guardiões fortes como na época de vocês! Eu não tenho capacidade para...
Ele a olhou, com seus imensos olhos violeta refulgindo no plano psíquico.
- Callista Syrtis Ridenow!!! O que faz um bom Guardião é o seu treinamento! Qualquer
mecânico de matriz minimamente competente pode exercer o trabalho de um Guardião! Você foi
treinada pela melhor Guardiã de seu tempo. Tem dentro de si a força para derrotar Daimian...eu a
ajudarei, o máximo que puder, sem comprometer meu próprio plano temporal.
Ela não conseguiu acompanhar os momentos seguintes. Uma sucessão de golpes em luz azul
seguiu-se, cada um mais brilhante do que seu antecedente. Ian levava a melhor, até que Daimian
conseguiu derrubar Ian Mikhail. O Guardião de Arillin gritou.
- Callista, faça o que deve fazer. É necessário um Ridenow para deter outro!
Ela teve frações de segundo para pensar no significado do alerta que Ian Mikhail gritara. Os
Ridenow eram empatas, captavam e absorviam emoções...Absorver! Era isso!
Concentrou-se no ponto de luz azul que empunhava, que se tornava cada vez mais brilhante.
Daimian, distraído preparando o golpe final em Ian, só reparou nela quando Callista gritou.
Lançou a energia psíquica que acumulara em um jato de luz azul cegante, atingindo Daimian
em cheio. O Guardião sequer soltou um grito, e o mundo cinzento se desfez.
****
Epílogo
Estavam em Arillin. Segundo Cassilde, que era sub-Guardiã desde a ida de Callista para a
Frota, apareceram ali do nada, no meio da Sala de Transmissão. Peter Haldane continuava
desacordado, apesar de já estarem ali há uma semana. A monitora explicou que fora o choque de
ser transportado para o mundo cinzento e de lá para Arillin sem preparo, mas que em breve ele
estaria recuperado.
Callista passeava pelo jardim, caminhando ao lado de seu pai. Kadja Aori, a terranan que era a
sua madrasta, simplesmente os observava de longe. Acabara de contar tudo o que acontecera, e
Piero estava pensativo.
- Filha...eu...estou estupefato. Daimian Ridenow. Depois de tantos séculos...E agora ele está
dentro de sua mente. O que você vai fazer?
- Vou partir, meu pai. Mesmo que não tivesse renunciado à cidadania darkovana, a minha
presença no planeta tornou-se ameaçadora demais para Darkover. Ele pode libertar-se e conseguir
o que almeja, e ainda não estamos preparados para enfrentá-lo.
- Tenho fé que sim, meu pai. Cassilde é sensata, melhor telepata do que eu. Em dois anos,
estará lidando com a Torre melhor do Leonie. As demais Torres estão revendo suas restrições a
filhos bastardos, assim mais telepatas poderão ser treinados...e pai...
- O que?
Piero Ridenow olhou além de sua filha, para a mulher que escolhera para passar o final de sua
vida. Ela era terranan, e mesmo assim tornara-se parte da vida dele. Talvez o que faltasse em
Darkover fosse aceitar a diversidade da vida fora do seu pequeno sistema solar.
- Irei falar com Hastur na próxima reunião do Conselho, chyia. Vamos voltar para perto de Kadja
e admirar o pôr-do-sol.
Por trás deles, o Sol, chamado de Cottman pelos terráqueos, começava a esconder-se atrás
das escarpadas encostas das imensas montanhas darkovanas, tingindo o mundo com variados
tons de vermelho. Callista soltou um suspiro. Seria uma longa caminhada, mas seu planeta –
assim como o modo de vida que ela herdara do seu pai – iria sobreviver.
Fim