Você está na página 1de 10

Clara Ávila Ornellas

Presença do

tolstoísmo
CLARA ÁVILA
ORNELLAS
na literatura
brasileira
é pós-doutoranda
em Literatura
Brasileira na
Unesp-Assis.

A o se completarem cem anos da morte do grande escri­tor e

pensador Leon Tolstói (1828-1910), que deixou, entre

seus vários legados, a doutrina filosófica e cristã do

tolstoísmo, é importante retomar algumas bases de seu pensamento

para verificar que ainda dizem muito à atualidade. Apesar da existência

de referências ao tolstoísmo no Brasil por críticos e estudiosos como

José Veríssimo, Brito Broca, Boris Schnaiderman, Bruno Gomide,


Este texto é parte dos resulta-
dos da pesquisa de pós-douto- Maria Salete Magnoni, até onde se tem conhecimento, ainda não foi
rado “João Antônio, Leitor de
Lima Barreto”, desenvolvida na realizada uma abordagem que contemplasse a presença de elemen-
Unesp-Assis/Fapesp, concluída
em 2008. tos particulares dessa doutrina na literatura brasileira. É o que se

busca fazer agora, ao se realizarem breves considerações sobre dois

escritores e jornalistas, Lima Barreto (1881-1922) e João Antônio

(1937-96), e suas relações com preceitos tolstoístas.


O escritor
Leon Tolstói
João Antônio apresenta os elementos É interessante observar que os posicio-
fundamentais de seu pensamento sobre namentos de João Antônio vinculam-se
literatura e jornalismo no texto “Corpo-a- aos preceitos defendidos por Tolstói ao
corpo com a Vida” (1975a). Nesse texto- definir o que é arte. Para o pensador russo,
manifesto, a principal preocupação exposta a verdadeira arte deve priorizar o contexto
relaciona-se à necessidade tanto da literatura social no qual se desenvolve e despertar
quanto do jornalismo de se voltarem para a a consciência do público para questões
representação da realidade. À semelhança relevantes socialmente. À semelhança dos
de Lima Barreto, o autor paulistano com- preceitos de Tolstói (1971) expostos em “À
bate o fazer literário distanciado dos fatos Propos de l’Art: ce qu’il est, ce qu’il n’est
emergentes. pas; quand il est une affaire importante et
Para o criador de Malagueta, Perus e quand el est une affaire futile”, João Antônio
Bacanaço, a literatura deve estar compro- atenta que não basta apenas enfocar dados
metida com o povo e a terra, focalizando da realidade, é necessário atentar para a
aspectos da cultura brasileira como futebol, importância daquilo a ser abordado numa
umbanda, operariado, êxodo rural e outros obra artística, a ação de determinado con-
temas que correspondam a verdadeiras teúdo sobre as bases da sociedade.
radiografias sociais. A carência de enfo- Assim como para Lima Barreto e João
que a essas realidades ocasiona a falta Antônio, o tolstoísmo não admite que
de conteúdo e impede o estabelecimento definições clássicas estabeleçam as regras
de uma forma literária genuinamente para a produção artística, pois isso leva ao
brasileira. Esse distanciamento poderia distanciamento, inviabilizando um contágio
ser verificado na constante posição inte- real entre arte e público. Para João Antônio
lectualizada dos escritores de sua época, (1975a, p. 145), a não aderência a temas
resultando numa falsa estética que se volta vinculados à realidade leva a uma produção
para estilos importados mal assimilados, literária “[...] luso-afro-tupiniquim e des-
sujeitos às classificações da crítica literária lumbrada, paupérrima e metida a sofisticada,
do momento. molambenta ou faminta e querendo tomar
O país já teve grandes escritores preo­ importâncias altas e ares civilizados”.
cupados com temas relevantes para a socie- O autor paulistano defende que a ver-
dade, o povo e a terra brasileira, como Lima dadeira literatura se recusa a produzir para
Barreto, Graciliano Ramos, José Lins do a glória, vaidade e riso inconsequente de
Rego, Oswald de Andrade e Manuel Antônio uma sociedade. Esses valores equivocados
de Almeida. Segundo o autor paulistano, lembram as colocações de Tolstói acerca
esses autores, da arte voltada à representação de temas
vinculados ao poder dominante e, mais
“[...] compreenderam uma verdade fun- do que isso, enaltecendo conceitos peri-
damental e descobriram a chave. Não é gosos como a sexualidade e a degradação
possível produzir uma literatura de heróis do sentido humano da produção artística,
taludos ou de grandiosidade imponente, configurando um dos monstros produzidos
nem horizontal, nem vertical, na vida de pela consciência adormecida (Silbajoris,
um país cujo homem está, por exemplo, 1991, p. 126).
comendo rapadura e mandioca em beira Assim como os valores apregoados
de estrada e esperando carona em algum pelo pensador russo, João Antônio destaca
pau-de-arara para o Sul, já que deve e que é necessário não apenas uma literatura
precisa sobreviver. Logo, tais grandezas voltada para a realidade, mas de um teatro,
quiquiriquis [classificações literárias e cinema e jornalismo que exponham, firam
temas sem vínculo social], salves-salves e penetrem os problemas brasileiros. O
e loas apologéticas tropeçam nas próprias autor de Dedo-Duro ressalta que o tipo
pernas. E têm pernas curtas como a mentira” de procedimento criativo defendido por
(Antônio, 1975a, p. 144). ele não é tarefa fácil: “O caminho é claro

132 REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 130-139, março/maio 2010


e, também por isso, difícil – sem grandes vinculação com os interesses da classe
mistérios e escolas. Um corpo-a-corpo dominante. Na visão de Tolstói, a classe
com a vida brasileira. Uma literatura que dominante é a grande responsável pelo
se rale nos fatos e não que rele neles. […] desvirtuamento da arte por preconizar e
Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma” fomentar um fazer estético que atenda ao seu
(Antônio, 1975a, p. 146). próprio prazer e deleite. A partir do momento
João Antônio destaca que para se realizar em que a arte passa por um processo de
esse “corpo-a-corpo” é necessário observar profissionalização, durante o Renascimento,
problemas antigos, como a miséria e a instaura-se a formação de artistas que fo-
violência, por uma nova ótica. Seria im- mentam – por serem pagos e estudarem em
prescindível uma postura séria do escritor, escolas de arte – essa perspectiva comercial
mais sensível e fecunda e, principalmente, e infrutífera. Dessa maneira, houve a perda
desvincular a literatura de uma visão distan- de conteúdo, o abandono da cultura popular
ciada, privilegiando a postura participativa e o descontentamento com a vida.
e atuante do escritor em relação aos temas Entende-se que a postura de João Antô-
e aos fatos a serem tratados. nio em relação à valorização da cultura de
Para Tolstói, a arte só tem uma efetiva raiz brasileira – aspecto também relevado
participação no contexto social quando ori- na obra barretiana – enquadra-se na pers-
ginada de uma visão próxima da realidade pectiva tolstoísta, pois tanto polemiza com
representada, ou seja, a sinceridade sobre o a falta de conteúdo quanto com o fato de a
que se escreve é fundamental para se realizar literatura ater-se, principalmente, a temas
uma arte verdadeira, configurada no poder de cunho existenciais vivenciados somente
de contagiar os homens com sentimentos pelas classes média e dominante e, portanto,
elevados. Embora os preceitos tolstoístas distanciados dos verdadeiros problemas
almejem uma elevação espiritual cristã, sociais. É o que pode ser visto, por exemplo,
o que não condiz com os pressupostos de quando ele comenta a respeito da divulga-
João Antônio, percebe-se a presença de ção maciça da cultura estrangeira no Brasil
conceitos similares entre os dois escritores, voltada principalmente para a transmissão
pois o autor paulistano delimita como pon- de valores equivocados, distantes do homem
to central da literatura o levantamento de e da realidade brasileira. Ele não é contra
problemas que contribuam para melhorar a literatura estrangeira, desde que de boa
o homem, o país e a sociedade através de qualidade, do contrário, a invasão cultural
uma abordagem sincera e verdadeira. busca implantar uma inconsciência peri-
Também para Lima Barreto, o principal gosa, não permitindo ao homem brasileiro
fator a ser considerado para que uma obra distinguir questões realmente importantes
cumpra uma perspectiva positiva social- para a sua existência: “[...] não a literatura
mente é a necessidade de sinceridade por enlatada dos tubarões e terremotos, de sexo
parte do escritor para com a realidade que e violência, os best-sellers pré-fabricados,
cerca a si e ao seu universo social: “A Arte um conjunto de mentiras e alienações, para
e a Literatura são cousas sérias, pelas quais fazer o sujeito dormir e não acordar nunca
podemos enlouquecer – não há dúvida; mais, é um veneno”. Diante disso, ele alerta
mas, em primeiro lugar, precisamos fazê-la para a necessidade de um critério rigoroso,
com todo o ardor e sinceridade. Não é o pois “o consumo único de elementos aliení-
canto da araponga que parece malhar ferro, genas prejudica o potencial de criatividade
mas nem sabe o que é bigorna” (Barreto, do brasileiro, sem que lhe sejam dadas al-
1956a, p. 221). ternativas em termos de leitura e produção
Nesse sentido, localiza-se a universa- literária brasileira” (Antônio, 1976a).
lidade dos posicionamentos da doutrina Tolstói enuncia que a determinação de
tolstoísta, cuja finalidade é a produção de um fazer artístico voltado aos anseios das
uma arte que atenda às reais necessidades classes altas ocasionou a divisão dos objetos
humanas, desprendendo-a de qualquer artísticos entre arte para a elite e arte para o

REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 130-139, março/maio 2010 133


povo. Na concepção de arte elevada, voltada sociedade, desde as subclasses até a elite:
à ideologia dominante, utilizam-se temas e “Popular, para mim, é tudo aquilo que é
formas complexas que dificultam o entendi- bom. Se montarmos Shakespeare, Gógol
mento do povo e até mesmo de indivíduos ou Chekhov na Praça Serzedelo Correia,
pertencentes às altas classe sociais, visto que tenho certeza de que todos vão gostar. […] A
usam de linguagens e formas ininteligíveis. condição fundamental para algo ser popular
A perversidade dessa situação, conforme é a sua qualidade” (O Globo, 1982).
afirma o pensador russo, é que a massa Esse contágio da obra verdadeiramente
trabalhadora, donde provém o pagamento artística, também defendida por Tolstói,
– via cobrança de impostos – desses artistas localiza-se no pensamento de Lima Barre-
comprometidos com o poder vigente, torna- to. No texto “Amplius” (Barreto, 1956b),
se impedida de usufruir dessa arte. Tanto originalmente publicado em 1916, o autor
por lhe ser incompreensível quanto por não carioca, em resposta às críticas recebidas
poder pagar para frequentar teatros, óperas e, sobre a presença de técnicas do jornalismo
ainda, não ser alfabetizada, o que impede o em seu romance Recordações do Escrivão
acesso à leitura. Os subempregados podem,
no máximo, trabalhar nos bastidores sob o
comando opressor de diretores e artistas
que se têm em conta de pessoas superiores
por realizarem uma função intelectualizada.
Semelhante condição lembra a relação desi-
gual entre senhores e servos, um dos pontos
cruciais da crítica social tolstoísta.
A divisão entre trabalhos intelectuais
e manuais é constantemente referenciada
nas obras de Tolstói, que denuncia se tra-
tar de uma estratégia efetuada pelo poder
dominante para manter-se na posição de
comando. Porém, afirma o pensador russo,
tal aspecto não passa despercebido pelo
camponês ou operário que observa a inco-
erência entre o fato de ele trabalhar ardua-
mente – enfrentando jornadas desumanas
a troco de salários que mal lhe permitem
sobreviver –, enquanto os pensadores,
cientistas e artistas contam com uma vida
de luxos e facilidades.
A disparidade entre os trabalhos braçal
e intelectual também é um dos temas dis-
cutidos por João Antônio e Lima Barreto.
O autor paulistano entende que o trabalho
intelectual não tem maior valor do que o
braçal. Ambos os tipos de ofícios são úteis à
sociedade, o mais importante é que o homem
se sinta realizado profissionalmente. Ao
tratar do acesso à arte pelas classes margi-
nalizadas, João Antônio argumenta que se
trata de uma injustiça o fato de se supor que
a arte não possa atingir a sensibilidade de
quem não teve acesso à educação. Para ele,
a verdadeira arte atinge todas as esferas da

134 REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 130-139, março/maio 2010


Isaías Caminha (1909), argumenta que o um dos objetivos fundamentais da literatura
mais importante é a mensagem a ser trans- ou de qualquer arte ou meio de expressão
mitida. Ele diz evitar linguagem e forma que possa merecer esse nome – substituição
prolixas que possam dificultar o alcance de falsos valores, por valores mais verda-
de sua escrita por todas as faixas sociais. deiros; a busca da justiça e da igualdade,
Ao tratar de temas que transmitam suas num mundo dividido pelas injustiças e pelas
angústias, ele espera atingir o público leitor desigualdades; a substituição de posições
com as suas preocupações e sofrimentos saturadas e perniciosas por outras, novas e
de modo a auxiliar na construção de uma mais condizentes com a dignidade humana.
humanidade fraterna. Não fosse assim, toda a história da literatura
Ainda no mesmo texto, Lima Barreto, ao estaria equivocada, pois o ponto central de
comentar a afirmação de um leitor quanto preocupações da arte literária é o homem
à falta de amor romântico em suas obras, e não os ismos, as escolas, as modas, os
afirma que na obra de grandes mestres mo- brilharecos e os embelecos mentais” (in
dernos como Balzac, Tolstói, Turguêniev Montserrat Filho, 1975).
e Dostoiévski o amor localiza-se, quase
sempre, em segundo plano. Acima de tudo, A representação da realidade preconi-
o principal foco de atenção desses escrito- zada por João Antônio está diretamente
res é o homem e assim deve ser para todo relacionada ao enfoque às particularidades
aquele que se propõe ao ofício literário: “[...] da vida brasileira, conforme ele expõe em
difundir as nossas grandes e altas emoções “Corpo-a-corpo com a Vida”. Ao se cen-
em face do mundo e do sofrimento dos tralizar no homem, o escritor fatalmente
homens, para soldar, ligar a humanidade enfocaria a realidade que o circunda, mas,
em uma maior, em que caibam todas, pela segundo ele, isso não estava acontecendo
revelação das almas individuais e do que no cenário literário de sua época porque lhe
elas têm de comum e dependente entre si” parece que os temas concernentes à cultura
(Barreto, 1956b, p. 33). popular ainda sofriam com o descaso dos
Percebe-se na diferenciação efetuada escritores – pela falta evidente de uma vi-
por Lima Barreto a perspectiva de um amor são humanista. Um dos elementos que ele
universal que não se limita à focalização relaciona com essa postura indiferente do
das relações amorosas entre os sexos, artista brasileiro é o acelerado processo de
pois isso ocasionaria uma visão limitada. aculturação do Brasil. O autor paulistano
O amor misericordioso é um elemento chama a atenção, entre outros aspectos,
fundamental também para João Antônio. para a invasão dos meios de comunicação
Em suas entrevistas, localizam-se vários modernos que exercem grande influência
momentos em que ele estabelece como na descaracterização da língua.
critério fundamental de sua estética a A mecanização e uniformização da lín-
relação amorosa com seus personagens e gua em que a criatividade é posta de lado
temas: “[...] O sentimento que me move é para valorizar apenas o igual atesta uma
o do amor misericordioso, ao mesmo tem- postura alienada circunscrita à repetição
po em que tenho pelo povo brasileiro – de e imposição de um modelo linguístico (e,
onde tiro meus personagens –, além do claro, ideológico) valorizado como melhor
amor, uma admiração imensa” (in Oliveira, e superior aos costumes brasileiros: “[...] a
1996). E essa vivência amorosa incide na verdade é que no momento, o Brasil está
apreensão artística da realidade brasileira, sendo recolonizado. [...] Desmistificar
pois é o único caminho viável em termos sempre que necessário, olhar o tamanho e
de criação literária, a espessura do nosso próprio rabo e tentar
aprender alguma coisa com a autocrítica
“[...] não pode deixar de se infiltrar nesta [...]” (Antônio, 1976b, pp. 21, 24).
luta [representar a realidade centrando-se Diante da voracidade de avanço da cultu-
no homem], porque no fundo, ela procura ra estrangeira, o autor paulistano atenta que

REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 130-139, março/maio 2010 135


essa padronização do imaginário coletivo de suas tradições e crenças, o que caracte-
acaba se refletindo também na literatura riza um de seus pressupostos fundamentais
ao gerar escritores mais preocupados em relacionado ao enfoque particular às origens
representar padrões literários importados, e características do povo russo. Falar do que
esquecidos da realidade que, muitas vezes, está próximo e latente na realidade; não
está à sua volta ou até mesmo dentro de sua tratar sobre aquilo que possa impedir o povo
casa. No seu ponto de vista, a literatura pres- de reconhecer-se a si mesmo numa obra de
cinde de focalizar temas ricos, mas deixados arte. Não que Tolstói tenha se empenhado
de lado em nome dessa padronização: somente no resgate cultural das classes
subalternas russas, assim como também
“[...] O drama brasileiro da habitação – não não o fizeram Lima Barreto e João Antônio
temos uma literatura das favelas. A comédia (futebol e música não são características in-
brasileira de costumes – não temos uma trínsecas apenas da zona de exclusão social
literatura dos costumes de nosso tempo. A brasileira), mas dar um merecido destaque a
farsa brasileira do comportamento – não esses aspectos que representam as particu-
temos um equivalente em literatura. O laridades de um determinado povo, de uma
drama brasileiro da saúde – não temos uma determinada nação, é uma das prerrogativas
literatura das doenças, principalmente das em comum nas concepções estéticas desses
doenças da pobreza. A confusão brasileira três escritores: a valorização do homem e
das religiões – não temos uma literatura de sua terra.
religiosa. O pão e o circo dos estádios – Observa-se que o elemento fundamental
não temos uma literatura de futebol. Os dos pensamentos de João Antônio e Lima
transportes urbanos – não temos uma lite- Barreto relaciona-se, em grande medida, aos
ratura da Central do Brasil ou ônibus [...]” pressupostos do tolstoísmo. Para Tolstói, a
(Antônio, 1976c). arte deve contribuir para um homem e um
mundo melhores. O artista deve preocupar-
Semelhante levantamento de particulari- se com a realidade de sua sociedade e trazer
dades culturais do país encontra-se relevado à cena artística criações que contribuam para
também na obra de Lima Barreto. Na va- as elevações moral e espiritual humanas.
lorização do homem brasileiro, imperativo Ressalta-se que a perspectiva religiosa da
categórico de seu pensamento estético, arte defendida pelo pensador russo não é
está contida a preservação da memória localizável nos posicionamentos dos dois
cultural e histórica tanto do socialmente escritores brasileiros, mas as concepções
estabelecido – sua luta pela conservação gerais de amor ao próximo, portanto uni-
de prédios históricos do centro do Rio de versal, e de um senso ético em detrimento
Janeiro – quanto da margem da cidade. O do estético mostram-se correlacionadas.
enfoque que esse escritor carioca dispensa É necessário ressaltar que Lima Barreto
para a apreensão das crenças, hábitos e também manteve um constate interesse
costumes dos subúrbios cariocas (Clara dos pelas ideias do anarquismo, corrente de
Anjos, Triste Fim de Policarpo Quaresma, pensamento que também concorda com
Histórias e Sonhos, entre vários outros alguns preceitos do tolstoísmo como a
momentos da obra barretiana) atesta que sinceridade e amor ao próximo. Porém, o
existe uma vinculação muito próxima da pensamento anarquista discorda dos precei-
postura defendida por João Antônio, acerca tos tolstoístas no que concerne, entre outros
da deturpação e ignorância das raízes cul- elementos, ao aperfeiçoamento cristão e ao
turais do Brasil, com aquela desenvolvida individualismo religioso.
por Lima Barreto. Um dos principais objetivos de Lima
De igual modo se nota, na apreensão Barreto em relação à finalidade da literatura
da vida das classes subalternas efetuada é priorizar o homem e seu contexto real
por Tolstói, uma patente valorização dos para realizar uma obra que corresponda
costumes dos camponeses e dos operários, às preocupações de uma sociedade e, para

136 REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 130-139, março/maio 2010


ilustrar seu posicionamento, ele refere-se realidade quanto focaliza, primordialmente,
à literatura russa enquanto arte realmente o homem e seu meio. Isso pode ser verifi-
preocupada com o destino do homem e de cado nas obras de Dostoiévski, Tchechov,
seu país: “Temos que rever os fundamentos Górki, na literatura e em O que É a Arte?
da arte e da ciência; e que campo vasto está de Tolstói (1994).
aí para uma grande literatura, tal e qual deu a Apesar de se tratar de dois escritores que
Rússia, a imortal literatura dos Turguêneffs, viveram em épocas e contextos históricos
dos Tolstóis, do gigantesco Dostoiévski, diferentes, as ideias de João Antônio e Lima
igual a Shakespeare, e, mesmo, do Górki!” Barreto acerca do propósito da literatura são
(Barreto, 1956c). equivalentes, sempre enfocando o despro-
A literatura russa exerce um papel pre- pósito em se elaborar obras distanciadas da
ponderante para se entender as concepções realidade. Assim, suas críticas têm como
literárias de João Antônio e Lima Barreto. alvo, principalmente, os escritores que
Para ambos, essa vertente literária realiza tematizam a ambiência burguesa ou da
uma das abordagens mais pertinentes entre elite ou aqueles que consideram a elabo-
o homem e a terra; entre o humano e a rea- ração estética centrando-se apenas numa
lidade. João Antônio, ao comentar sobre sua linguagem de efeito, mas sem um sentido
formação intelectual, lembra a importância social ou humano. Reforça-se aqui mais um
da literatura russa como arte voltada para momento em que a perspectiva tolstoísta
as angústias humanas e a valorização dos pode ser entrevista no pensamento dos
costumes de seu país. Ele enfatiza como dois escritores. Afinal, para Tolstói, um dos
essa vertente literária o auxiliou no enten- aspectos mais condenáveis da arte moderna
dimento de que a valorização específica é sua vinculação à “arte pela arte”. Acima
dos hábitos e costumes brasileiros permite de tudo, para João Antônio e Lima Barreto,
alcançar um procedimento artístico de a literatura era uma das formas possíveis de
grandeza universal: “A grande lição que eu melhorar o homem e sua convivência com
aprendi com os russos – Gógol, Dostoiévski, o mundo que o cerca.
Puskin, Tchecov, Górki – foi a sua profunda Para Tolstói, é necessário valorizar o
preocupação com o homem: primeiro no coletivo em desfavor do individualismo. As-
sentido russo, estritamente russo; depois sim, essa valorização atenta para a capacida-
no sentido universal. Embora falando da de que a arte tem de modificar o pensamento
Rússia, eles me propuseram que olhasse e a ação do homem perante os problemas
mais para o homem brasileiro” (in Caminha de sua sociedade. A identificação entre o
Jr., 1984, pp. 2-3). homem e sua realidade ao ter contato com
Torna-se claro que na acepção dos dois um produto artístico deve ser o fulcro mo-
escritores brasileiros a literatura russa dalizador para uma verdadeira obra de arte.
exerce um patamar de destaque como sinô- As habilidades estéticas e composicionais
nimo de uma das principais referências da devem ser equacionadas pela perspectiva
formação intelectual e literária de ambos, de modificação da coletividade em razão de
principalmente por abranger um olhar uma sociedade igualitária e harmoniosa, em
centrado nas angústias humanas. A maneira que não exista o privilégio de uma classe
como os autores russos, sempre submetidos ao preço da opressão contínua contra uma
à opressão constante do regime czarista, parcela substancial do povo. Tolstói ainda
amealhavam em suas criações artísticas afirma, em O que É a Arte?, que seu desejo é
elementos da realidade para trazer à tona o de poder ser lido pelos camponeses, atingir
as condições adversas a que a sociedade aquela parcela da população à margem do
russa estava submetida é um dos principais socialmente estabelecido.
aspectos que configuram o interesse de As concepções literárias e filosóficas de
João Antônio e Lima Barreto. Haja vista João Antônio e Lima Barreto são unânimes
que se trata de uma literatura que tanto se ao afirmarem sobre a necessidade de uma
volta para a representação e denúncia da literatura atuante socialmente, em busca da

REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 130-139, março/maio 2010 137


transformação da realidade de exploração e resolução das questões políticas e sociais
opressão sofrida pela maior parte do povo deve partir do próprio homem como ser
brasileiro. À parte de alguns conceitos par- diretamente ligado ao contexto em que vive.
ticulares de cada um dos autores, é possível Para ele, assim como para Lima Barreto
verificar uma direta relação com um dos e Tolstói, nada tem mais peso do que o
pressupostos tolstoianos: a literatura deve trabalho e a força do homem.
almejar a transformação da consciência Entretanto, em determinada entrevista,
humana por meio do contágio de sentimen- ao ser perguntado se haveria salvação para
tos e emoções verdadeiros que auxiliem na o mundo, João Antônio demonstra uma des-
construção de uma sociedade mais justa crença não localizada nos posicionamentos
e fraterna. Para o pensador russo, assim dos escritores russo e brasileiro: “Dependerá
como pode ser verificado nas colocações dos homens. O mundo já esteve pior do que
dos dois escritores brasileiros, o sentimento agora, basta que se consultem as histórias
do artista ao produzir sua obra deve estar dos povos. Acredito que o ano de 40 era
aliado ao seu poder de comunicação. Essa bem pior que o de 74 e que a crise de 29
transmissão deve se caracterizar como uma foi pior do que a atual. O homem talvez se
espécie de força hipnótica provocando a salve, o problema é saber se ele merece”
tensão espiritual do artista ao expor sobre (Antônio, 1975b – grifos meus).
seu objeto. Destarte, ele transmitirá por Enquanto para Tolstói e Lima Barreto o
meio de sua criação estética muito além homem realmente merecia ser salvo de suas
do que a imitação da realidade, pois será angústias e problemas sociais, pois era digno
a representação de seu sentimento sobre o de uma vida fraterna e harmoniosa com o seu
assunto tratado a instaurar o móvel de sua meio, nota-se que para João Antônio isso não
obra, portanto, atingirá a sensibilidade de era tão evidente. Essa postura questionadora
seus leitores (Tolstói, 1971, p. 474). do escritor paulistano pode ser justificada
É necessário ressaltar uma particulari- na apreensão do contexto sócio-histórico
dade quanto à finalidade última do pensa- em que viveu. O período histórico dos
mento desses dois escritores sobre a arte e escritores russo e carioca coincide com o
o homem. Em Lima Barreto, está claro a início da fragmentação do homem em que
premissa de que suas colocações a respeito o capital começa a exercer mais força que
da arte e seu pensamento sobre a socieda- os valores humanísticos. A industrialização
de têm em vista a convivência fraternal e o nascimento das metrópoles ocasionam
entre todos os homens e, ao se atingir esse um apagamento das particularidades indi-
patamar, se consolidaria uma vida plena, viduais e das relações humanas, conforme
justa e digna para qualquer homem. Todos afirma Walter Benjamin. A solidão começa
deveriam ter acesso a melhores condições a se instaurar no homem, que se vê reduzido
de vida, todos as merecem. a poucos momentos de individualidade. As
Num primeiro momento, a proposição colocações de Tolstói e Lima Barreto confi-
de João Antônio mostra-se similar àquela guram-se num momento intermediário entre
defendida pelo escritor carioca, pois ele a verticalização capitalista e a fragmentação
afirma que para resolver os problemas do do indivíduo. Verifica-se em suas obras o
universo da exclusão social é necessário combate à iminência da vida moderna que
uma mudança de visão e postura, pois as incitava a uma nova visão da humanidade
bases da sociedade estão fundamentadas na fundamentada no apagamento dos valores
competição e ambição enquanto deveriam éticos, morais e humanos. Mas ainda se
basear-se na solidariedade e no coletivismo. sabia qual seria o melhor caminho.
Ele atenta também, assim como o ponto de João Antônio, vivendo várias décadas
vista barretiano, para a premência em se após as colocações de Barreto e Tolstói,
conscientizar de que não basta colocar a observa uma sociedade em que os traços de
culpa dos problemas sociais como inerentes humanismo foram extremamente apagados
somente ao governo, mas perceber que a em nome da ambição financeira e do poder.

138 REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 130-139, março/maio 2010


A supremacia entre os que têm poder aqui- é preciso fazer parte da classe dominante.
sitivo sobre os marginalizados tornou-se Aos demais cabe aceitar as regras. Ou es-
mais acirrada via o crescente aumento do crever livros [...]” (Antônio, 1987). Ainda
lumpemproletariado. O advento de uma mo- que tenha alguma dúvida sobre o fato de
dernidade perniciosa, enunciado por Tolstói o homem merecer ou não a salvação, sua
e Lima Barreto, tem seu ápice atingido no postura diante da literatura como um dos
contexto sócio-histórico vivenciado pelo caminhos para mudar o estado de coisas é
autor paulistano. Nesse sentido, as frontei- reconfirmada.
ras sociais são erigidas sob o constante apoio Nestes cem anos de falecimento de
do Estado e até mesmo aceitas como uma Tolstói, verifica-se o quanto ele ainda tem
condição natural do processo evolutivo da a dizer sobre o mundo atual. O que pode
humanidade – aspectos denunciados tanto ser constatado pela presença de alguns
por Tolstói quanto por Barreto. Vislumbra- dos fundamentos de seus pensamentos na
se que o posicionamento descrente de João obra contemporânea de João Antônio –
Antônio seja compreensível, pois a perspec- valores esses recebidos diretamente de um
tiva de incorrer nos mesmos erros parece de seus mestres literários, o carioca Lima
ser evidente: “Para ser vencedor, no Brasil, Barreto.

BIBLIOGRAFIA

ANTÔNIO, João. “Corpo-a-corpo com a Vida”, in Malhação do Judas Carioca. 1975a.


________. “João Antônio Ferreira Filho”, in Jornal do Piauí. Teresina, 27 de novembro, 1975b.
­­­­­­­­­­________. “João Antônio, o Escritor Maldito, em Entrevista Exclusiva ao JM”, in Jornal da Mantiqueira,
s/l, 25 de abril de 1976a.
________. “Um Leão-de-chácara, ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’ e Outros Pingentes”, in Espaço Cultu-
ral, s/l, março de 1976b.
________. “A Rua É uma Escola e o Botequim, Universidade”, in A Gazeta. Vitória, 18 de abril de
1976c.
________. “Nem Herói, Nem Vilões: Apenas o Povo Brasileiro”, in Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19
de outubro de 1987.
BARRETO, Lima. “A Estética do ‘Ferro’”, in Impressões de Leitura. São Paulo, Brasiliense, 1956a.
________. “Amplius”, in Histórias e Sonhos. São Paulo, Brasiliense, 1956b.
________. “Volto ao Camões”, in Impressões de Leitura. São Paulo, Brasiliense, 1956c.
CAMINHA JR., Edmílson. “Corpo-a-corpo com a Vida”, in Suplemento Literário de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 8 de dezembro de 1984.
MONTSERRAT FILHO, J. “Ministro Tem Medo de Escritor?, in Crítica – Caderno Artes e Letras, s/l, 5 de
maio de 1975.
O GLOBO. “‘Dedo-duro’, Livro Novo de João Antônio. Mostrando Poesia no ‘Lixo da Vida’”, in O Globo.
Rio de Janeiro, 18 de julho de 1982.
OLIVEIRA, Denise. “Da Rua para Literatura: João Antônio Lança Antologia com Alguns de seus Me-
lhores Contos”, in Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 21 de maio de 1996.
SILBAJORIS, Rimvydas. Tolstoy’s Aesthetics and his Art. Ohio, Slavica Publishers, 1991.
TOLSTÓI, Leon.“À propos de l’art: ce qu’il est, ce qu’il n’est pas; quand il est une affaire importante et
quand el est une affaire futile”, in Écrits sur l’Art. Traduit Maya Minoustchine. Paris, Gallimard, 1971.
________. O que É a Arte? São Paulo, Experimento, 1994.

REVISTA USP, São Paulo, n.85, p. 130-139, março/maio 2010 139

Você também pode gostar