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ALEGORIA E CINEMA: A HISTÓRIA Mas, dito desta forma, perdemos o horizonte da


E SEUS LIMITES própria historicidade do trabalho, que atravessou
ele mesmo mais de dez anos da vida de seu autor,
Alegorias do subdesenvolvimento, de Ismail Xavier. "síntese de trabalhos meus produzidos nos anos 80,
São Paulo: Brasiliense, 1993, 282 pp. em especial as teses Alegorias do subdesenvolvimen-
to: da estética da fome à estética do lixo (Universida-
Tales A.M. Ab'Sáber de de Nova York, 1982) e Alegorias do desengano: a
resposta cinemanovista à modernização conserva-
Existem trabalhos que são sinais muito profun- dora (USP, 1989)".
dos na cultura e na história em que surgem. Alego- Alegorias do subdesenvolvimento nos aponta,
rias do subdesenvolvimento é uma destas obras. de saída e já no primeiro parágrafo do livro, dois
Ismail Xavier, crítico e teórico do cinema brasileiro, níveis de história: a do ponto forte da história de
que já havia produzido obra indispensável para a nosso cinema, das obras-primas do final trágico dos
compreensão do valor estético e político de nosso 60, e a da pesquisa e do pensamento cinematográ-
melhor cinema (Sertão mar, Glauber Rocha e a fico entre nós nos anos 80.
estética da fome), traz à luz da cultura de hoje, Frente ao problema de sua própria época Alego-
exatos dez anos após esta primeira série de análises, rias do subdesenvolvimento é testemunho do parado-
Alegorias do subdesenvolvimento, trabalho que, ao xo em que vivemos: obra de grande rigor crítico em
compartilhar com a história aspectos de suas pro- uma época que eliminou a crítica de cinema dos espa-
fundezas, transforma-se em uma espécie de revela- ços correntes da cultura, obra que afirma um certo ci-
dor do que pode ser o conhecimento cinematográ- nema brasileiro como um dos grandes da história em
fico entre nós. uma época cujo movimento foi o de negar qualquer
Trata-se de um conhecimento que se produz valor à história mesma do cinema brasileiro.
exatamente a partir do reconhecimento de nosso Alegorias do subdesenvolvimento é uma obra
cinema em seu momento mais desesperadamente que confronta o panorama ideológico atual de
criativo, porque marcado profundamente pelo sinal leitura da história do cinema brasileiro, e dos anos
da morte. Ismail Xavier vai analisar neste trabalho 60, negando com sua própria existência e trabalho
de 1993 oito filmes brasileiros que a partir de Terra a facilidade violenta com que se descartou a história
em transe atravessam a história turbulenta e alta- viva de nosso cinema para a lata do lixo de um
mente significante dos anos de 1968, 1969 e 1970 tempo romântico desaparecido para sempre. Como
através da "estratégia" estético-política da alegoria: tal, Alegorias do subdesenvolvimento é gesto político
Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), O bandido que nos remete a uma outra história, diferente
da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), Brasil daquela em que nos instalamos. E dá testemunho
ano 2000 (Walter Lima Júnior, 1969), Macunaíma contra um processo cultural que nos engloba a
(Joaquim Pedro de Andrade, 1969), O dragão da todos, onde o trabalho sobre o que melhor se fez no
maldade contra o santo guerreiro (Glauber Rocha, passado é em grande parte o de esquecimento
1969), O anjo nasceu (Julio Bressane, 1969), Matou sistemático.
a família e foi ao cinema (Julio Bressane, 1969) e Como no próprio trabalho de Ismail, é necessá-
Bang bang (Andréa Tonacci, 1970). rio, antes de se dar o primeiro passo analítico rumo
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aos problemas de cada obra, construir o panorama lução e da consciência estética de ponta, em uma
onde a obra surge. Naquele momento, ao contrário forte medida o cinema brasileiro é uno, em sentido
do nosso, os filmes surgiam de uma cultura altamen- e qualidade, com o melhor cinema europeu.
te desejante, e que se despedaçava a si própria em Ismail Xavier vai trabalhar a face interna, histó-
círculos que a superavam, seja pelo "artifício" do rica e nacional, desse fenômeno, vai buscar o dado
Terror de Estado, seja pelo "novo espírito" que irreversível de uma história que habita e define
passa a dominar a relação entre artistas/intelectuais nosso potente discurso cinematográfico de então.
e sociedade: Se esse cinema participava, através da figura de
"Os filmes aqui estudados foram produzidos Glauber Rocha, de um movimento global e definiti-
dentro de um esforço de repensar a experiência vo na história da arte, ele era peça fundamental do
social e o cinema ligado a uma conjuntura bastante jogo perigoso da cultura brasileira no período,
específica, aquela que se evoca de forma condensa- campo de forças e trabalhos que gerou uma gama
da pelo recurso ao emblema: 1968" (p. 9). de obras e idéias de amplitude e qualidade inéditas
"Dado significativo: os artistas brasileiros, inte- entre nós, uma cultura inteira sincronizada na expe-
ragindo com a mídia, promoveram o encontro dos riência e na ruptura, como não voltamos a conhecer:
diferentes projetos da modernidade brasileira exata- "Analisar a cultura brasileira do final daquela
mente quando a experiência da arte pop, no capita- década de agitações implica discutir as formas
lismo avançado, colocava a relação entre estética e encontradas pelos artistas para lidar com o reconhe-
mercado em novos termos (mais aderentes à cultura cimento do descompasso entre expectativas nacio-
de massa), sinalizando transformações que, em nais e realidade. O ponto é privilegiado, pois naque-
seguida, ganhariam terreno e confirmariam o seu le momento tal descompasso deu seus primeiros
sentido antiutópico de dissolução da imagem do sinais e ativou respostas que engendraram uma
artista como herói da ruptura. Nessa espécie de verdadeira revolução na esfera da cultura: Terra em
limiar da "condição pós-moderna", o processo cul- transe, O rei da vela, o Tropicalismo, o Cinema
tural brasileiro dos anos 60 produziu um espaço de Marginal, entre outras manifestações. Em obras de
criação em que, nos avanços e recuos, prevaleceu grande interesse, reavaliou-se a experiência do país,
ainda a matriz das vanguardas, antes e depois do como drama ou comédia, sempre com ironia, uma
AI5." (p. 26). vez que os percalços da revolução, ainda em pauta,
Diante da virada iminente do eixo da cultura já projetavam no horizonte o fantasma da condição
em direção a uma "aderência à cultura de massa", o periférica como um destino e não como um estágio
cinema brasileiro dos 60 produziu obras radicais da nação. De lá para cá, mudaram os termos da
amplamente regidas pela idéia da vanguarda, e em equação social, é outra a situação do cinema, mas
grande parte vanguarda sincronizada com o melhor tudo enfim tornou até mais radical o senso de
cinema produzido no mundo no período, o amplo periferia que, após as ilusões do 'milagre' econômi-
movimento do cinema moderno. Godard, Pasolini e co do período 69-78, acabou retornando com toda a
Glauber formam o tripé das noções avançadas de força" (p. 9).
autoria, e das relações entre estética e política na Ismail vai ao cerne daquela cultura revolucio-
história do cinema. Diante do refluxo conservador nada, o descompasso entre expectativas nacionais e
dos anos 70, e regressivo dos 80, este ponto da a reposição violenta do sistema periferia-centro, a
história das artes no século pode ser mesmo consi- ordem do subdesenvolvimento, e nos demonstra
derado como o último dos grandes gestos do mo- com precisão por que aquelas obras-primas são
dernismo. E, "dado significativo", este é o único ainda vitais para nós: como testemunhos estratégi-
momento da história em que o cinema da periferia cos da história elas falam de um estado de coisas
e das grandes cinematografias européias se sincro- absurdo que é mesmo o que vivemos, o destino da
nizam em um mesmo movimento, e em uma mesma condição periférica.
ordem de valores, e estamos no centro e somos Partindo do problema colocado nesta clave de
sujeitos, em tempo real, da melhor arte técnica ampla leitura da história e da cultura da época,
produzida no mundo, ao mesmo tempo que somos Ismail Xavier vai analisar profundamente a "série"
parte essencial da clave revolucionária geral que do cinema alegórico brasileiro detonada diretamen-
marcou a época. Na década de 70, diante da Revo- te por Terra em transe — reconhecido também por
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outros artistas na época, como Caetano e Zé Celso, periférica para a "arte por excelência dos tempos
como detonador de suas próprias e de outras formas modernos". Essa arte ensaística, que não esconde
alegóricas —, contemporânea da alegorização Tro- sua tradição, de articular história e teoria, a particu-
picalista. Seu problema será, diante do "emblema" laridade do quadro nacional e uma percepção
violento de 1968, verificar quais são os termos da rigorosa do estado da arte no âmbito da cultura do
alegorização da cultura, e como, passo a passo, ela Ocidente, é percebida mesmo com precisão pelo
se deu e se desenvolveu em nosso cinema do autor, tem peso de projeto e adensa uma tradição
período. que lhe é anterior:
"De nossa parte, o próprio interesse com que
sempre acompanhamos estas aventuras (teóricas),
principalmente as atinentes às ciências da lingua-
gem, desdobrou-se num recuo. Criada a brecha,
ganhou corpo este trabalho, que se encaminha em
Retomemos um pouco a história do trabalho de direção diversa, respondendo a uma necessidade
Ismail Xavier, para entendermos onde Alegorias do nossa de eliminação de uma deficiência de referen-
subdesenvolvimento surge, qual o projeto crítico ciais históricos, criadora de uma espécie de 'esque-
que vem multiplicar, potencializar. matizar no vazio'. Em meio a discussões teórico-
Em 1975, há dezoito anos portanto, surgia o ideológicas que retomam problemas que não são
primeiro trabalho de fôlego do crítico, Sétima arte, totalmente novos, certas análises de ideologias cine-
um culto moderno, mestrado editado em 1978 (Ed. matográficas datadas historicamente tornaram-se,
Perspectiva). Obra de duas vias, Ismail trabalharia para nós, fundamentais. Tais estudos ajudam na
no livro a configuração passo a passo do campo de configuração de processos que permitem uma colo-
teorias e ideologias que definiam a apropriação do cação de certas concepções do cinema em perspec-
cinema no âmbito das vanguardas modernistas eu- tiva e fornecem elementos para uma melhor defini-
ropéias (futurismo e avant-garde francesa), e em ção das particularidades do momento atual."
seguida como o fenômeno se deu no mesmo perío- Aí está, em um dos primeiros trabalhos de
do dos anos 10 e 20 no quadro nacional, com o Ismail Xavier, formulado com clareza iluminista, o
primeiro impacto moralista, a tênue apropriação plano central que dará origem a toda sua obra.
modernista, e os fenômenos locais da Cinearte e do Atenção teórica refletida na carne necessária da
Chaplin-Club. Percebe-se pelo plano da obra a história, percepção ampla do passado para posicio-
necessidade originária de definir as particularidades nar com força produtiva e renovadora o olhar sobre
do debate e do olhar cinematográfico entre nós, sem o presente. Ao final do esforço do crítico, de
perder a moldura universalizante, seja da grande articulação íntima entre teoria e história, é o presen-
história do cinema, seja da sua teoria. te do saber e do fazer cinematográfico que está
Aliás o ensaio, de forte caráter teórico, sobre os sendo trabalhado.
problemas, percepções, soluções e descaminhos da Em 1977, surge o amplo ensaio sobre a teoria e
avant-garde de Moussinac, Deluc, Dullac, Epstein, as estéticas do cinema do século O discurso cinema-
que poderíamos pensar como o impacto da idéia de tográfico (Paz e Terra), onde, da linguagem clássica
cinema na idéia do moderno, nos parece revelar e seu desejo de procedimento universal, avaliado
mesmo um desejo de construir, através da história e ideologicamente, Ismail Xavier recuperará, em sua
de um amplo olhar especulativo, a gênese do clave pessoal, a história da teoria cinematográfica.
próprio adensamento da teoria do cinema no sécu- Nesse ensaio o Autor trabalhará, entre outras, as
lo. Em um mesmo movimento Ismail faz história e perspectivas estético-ideológicas de Kulechov, Pu-
teoria, constrói o quadro onde terão sentido as dovkin, Balazs, Kracauer, Barbaro, Bazin, Zavattini,
primeiras percepções brasileiras sobre a arte, ao Mitry, refará o percurso das vanguardas européias
captar noções teóricas e ideológicas dos modernis- dos anos 20 ao underground norte-americano de
tas europeus que configuram mesmo um "grau Deren, Snow, Brakhage, e, dando lugar privilegiado
zero" da teoria cinematográfica. No mesmo movi- ao cine-discurso de Eisenstein, reconstituirá o per-
mento temos o ponto de partida da teoria do cinema curso da noção de código e desconstrução até as
n o s é c u l o , e o o l h a r e s p e c í f i c o d e u m a c u l t u ra contribuições de Metz, Cynéthique e Cahiers du
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Cinéma. Ao perpassar extensivamente o campo nuir seu porte, após estes primeiros cinco livros que
teórico do cinema, no mesmo movimento desenha constituem já uma grande obra, configurando pra-
sua história (ou as histórias das específicas tradi- ticamente toda a teoria e história do cinema a partir
ções) ao longo do século, e como tal o livro é um de um trabalho local, e já posicionando o fazer local
dos grandes trabalhos sobre a teoria do cinema que (Glauber Rocha) em relação a este todo. Em 1985
conhecemos. temos o ensaio "Do golpe militar à abertura: a
Em 1983 temos a coletânea A experiência do resposta do cinema de autor" (em O desafio do
cinema (Graal/Embrafilme), onde estão reunidos e cinema, Jorge Zahar Editor), que constitui panora-
comentados vários textos teóricos fundamentais na ma crítico amplo do cinema brasileiro dos anos 60,
construção das idéias do cinema ao longo do século, 70 e inícios de 80, suas promessas, impasses, cami-
e entre poucos clássicos então "conhecidos" (Pu- nhos e descaminhos. Houve uma pequena crítica
dovkin, Einsenstein), temos um elenco de textos publicada na Folha de S. Paulo, também de 85, "Do
essenciais até então materialmente ausentes da cul- metacinema ao pastiche industrial: o cacoete pós",
tura cinematográfica corrente entre nós (Jean-Eps- onde, colocando-se diante do cinema revivalista de
tein, Merleau-Ponty, André Bazin, Stan Brakhage, Spielberg e Lucas, vai apontar a perda de pathos na
Jean-Louis Baudry, entre outros). A experiência do atitude culturalista do cinema dos anos 80, posição
cinema configura o maior corpo de fontes da teoria que lhe renderia estranhamentos com alguns jovens
do cinema já lançado no Brasil, e considerando que cineastas que se preparavam para lançar filmes
a antologia de José Lino Grünewald, A idéia do naquele panorama de difuso pós-modernismo de
cinema, dos anos 60, está esgotada há décadas, hoje jornal. E finalmente em 1988, pelo menos até onde
é a única referência documental ampla produzida pude acompanhar, o ensaio "Cinema: revelação e
no Brasil e presente na cultura. engano" (em O olhar, Companhia das Letras), onde
Também em 1983 temos o primeiro grande em um texto de poucas páginas, e elegendo um
trabalho crítico sobre cinema brasileiro, Sertão mar, único problema cinematográfico, Vertigo de Hitch-
Glauber Rocha e a estética da fome (Brasiliense). cock, Ismail vai recolher elegantemente grande
Construído como confronto entre dois momentos parte do repertório crítico que ele próprio elencou
estéticos e históricos, o do Cinema Novo do primei- entre nós, e vai utilizá-lo ativamente, de forma
ro Glauber Rocha de Barravento (1961-2) e Deus e brilhante, na leitura da obra-prima da vertigem do
o diabo na terra do sol (1963-4), em choque estéti- olhar de Hitchcock. Já sabemos que neste período,
co-ideológico com as formas classicizantes de O onde surgem esses pequenos mas potentes textos,
cangaceiro (1952) de Lima Barreto e O pagador de o Autor trabalhava em Alegorias do subdesen-
promessas (1962) de Anselmo Duarte, Ismail recu- volvimento.
perará através de análises profundas o giro dialético Podemos perceber agora, após quase vinte
essencial na história do cinema brasileiro moderno, anos de produção continuada, qual a dimensão do
configurando mesmo as duas linhas de força que projeto de Ismail Xavier: para poder falar de seu
permanentemente, a partir deste momento nodal problema, o cinema brasileiro moderno, é necessá-
de meados dos anos 50 e primeiros anos 60, sempre rio recompor a história e a consciência da arte, e seu
estarão em jogo, a experiência critica profunda gesto crítico é a um tempo formação de sua história
renovadora de linguagem e o desejo de participa- específica e reavaliação crítica deste saber universal
ção no "código universal", ora uma com maior peso concretamente recolhido na consciência e no pro-
ora outra, na composição interna de nossa cinema- duto de seu trabalho.
tografia. Há algo de amplamente iluminista nesse traba-
Em 1984 surge D. W. Griffith: o nascimento de lho acadêmico de ponta, de adensamento do pano-
um cinema (Brasiliense), que ataca outro pólo do rama da cultura, necessário a um intelectual cuja
impacto do cinema na modernidade, o da constru- crítica seminal trabalha a sua reversão: a constitui-
ção das bases linguísticas e ideológicas da indústria, ção de uma consciência positiva da história do
visível no percurso da sua figura mítica e originária cinema brasileiro.
maior, David Wark Griffith.
Ao nos aproximarmos do fim da década de 80
os trabalhos publicados de Ismail tendem a dimi-
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Os filmes que Alegorias do subdesenvolvimento que reproduz mesmo algo da fantástica mecânica
trabalha poderiam perfeitamente ser chamados de do filme. Mas não há nada mais distante do que o
"infernais". São sistemas altamente complexos de foco que origina a totalização, turbulenta, intoxica-
reordenações programáticas da linguagem cinema- da, barroca de Glauber, que montará o círculo
tográfica, cujo movimento, o livro nos mostra, está infernal e hipnótico de Terra em transe, e o esforço
visceralmente sincronizado com as rápidas e pro- "saturnino" de Ismail Xavier, adensado em um estilo
fundas mudanças vividas na história brasileira de preciso, que mantém igual distância de cada aspecto
então, e no amplo quadro da cultura dos últimos da obra, definindo um olhar clássico para o crítico,
anos 60, problema muito longe de ser estritamente e definindo com admirável clareza a força de um eu
nacional. que reordena os perigosos mistérios das obras
O desafio para o crítico não poderia ser maior. abissais diante das quais se debruçou.
Trabalhando de um lugar não totalmente reconhe- A prosa a que Ismail Xavier chegou com este
cido na história do cinema, e impreciso, enquanto seu livro, a elegância e clareza da escrita que
momento traumático, aos olhos da cultura brasileira pacientemente revela obras que tão visceralmente
— ao contrário de outros grandes momentos de gritam o despedaçamento do mundo, não é uma das
efervescência e associação de criatividade cinema- menores qualidades do livro. Estamos diante de um
tográfica e história política e cultural (caso do grande "escritor de cinema", como entre nós já o
expressionismo alemão, ou do cinema clássico so- foram Francisco Luiz de Almeida Salles e Paulo
viético, ou do neo-realismo) que facilitam ao crítico Emílio, e como, universalmente, o foi André Bazin,
sua inserção em um campo já semeado —, aqui o maior de todos. Mas, creio, nenhum desses clássi-
reconhecer e precisar a especificidade desta série cos jamais deparou com um problema tão intrinca-
alegórica do cinema brasileiro obrigará o crítico do e possivelmente desencaminhador da consciên-
necessariamente a reconstruir os tecidos invisíveis cia literária do crítico, como é a série alegórica de
do passado, em uma dupla tour de force: com as Ismail Xavier.
obras, dificílimas de se deixarem apanhar, e com os Além do esforço de totalização dos quadros de
sentidos da cultura e da história que estão em jogo, cada obra e diante da forte carga experimental, de
problema ainda mais difícil, dada a grandeza da reorganização permanente da forma fílmica, que era
época em foco e considerando a apatia e os siste- também e sempre uma experiência política, apre-
máticos erros de avaliação do presente em relação sentada por grande parte desta série alegórica (prin-
aos 60. cipalmente no eixo de deslocamentos e radicaliza-
Ismail Xavier enfrenta as duas esfinges: recons- ções essenciais representado por Glauber, Sganzer-
truir teoricamente as obras na análise e interpretar la, Bressane, e Tonacci no fim da linha), o crítico
os seus vínculos com o sentido daquela história mantém uma atenção redobrada às diversas possí-
crucial, através de análises as mais amplas possíveis, veis modulações das formas, que se produzem e se
que não recuam em nenhum momento do desejo de reproduzem novas a cada passo da série e dos
completar ao máximo o quadro desenhado em cada discursos. É assim que temos as análises crivadas de
obra. Há um desejo de totalidade crítica elegante- passagens íntimas, de revelações críticas, ilumina-
mente conduzido que pode mesmo nos lembrar a ções, que se multiplicam, e que configuram o
busca de totalização que impulsionou parte do quadro impreciso onde não há formas a priori,
pensamento do próprio período estudado, visão extremamente carregado de significações, e muito
epistêmica do mundo da qual Glauber Rocha é o problemático para ser descrito. Um exemplo do
maior representante, e que encontra sua maior potencial dessas passagens de análise seminal que
expressão artística exatamente no filme que abre o se s ucedem desenhando o todo aparentemente
percurso de Ismail, Terra em transe. Aliás, é a inapreensível dos múltiplos mistérios da série, é a
análise de Terra em transe — a respeito da qual seguinte passagem sobre O bandido da luz verme-
pode-se utilizar os termos com que o crítico carac- lha, onde uma experiência de forma, a perda do
terizou a obra: "notável em sua abrangência" — a foco do flashback, é estrutura profunda da obra:
que mais encadeia os múltiplos passos e pontos de "Há indícios da circularidade clássica do flash-
partida com uma ampla síntese, em uma estrutura- back — imagens e frases que já antecipam o final —
ção fortíssima de conceitos e construções críticas mas ch egarem os à ú lt im a s equ ênci a s em qu e s e
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especifique o ponto focal (de onde fala esta voz?). proposto pelos filmes "infernais" que atravessam o
Há um nítido descarte do ponto de origem do emblema de 1968 constitui em si mesmo a formula-
flashback (o suposto momento do qual deveríamos ção profunda da perda de uma noção de história
sair para retornar) e tal recusa em enraizar a voz orientada para uma finalidade ética, política. Trata-
over do bandido integra um movimento mais amplo se de discursos, formas, que vão desmontar enquan-
de descentramento da narrativa. No entorno da ação to visão de mundo uma certa "teleologia da história"
do herói, as vozes do rádio comandam um processo que movimentava a ação e a interpretação da
entrópico de acumulação de dados que, na acelera- história até então, interiorizando mesmo esta nova
ção final, configura o mundo como desordem geral. percepção. A teleologia da história, encarnada pelos
Tal desordem se anuncia como fato 'anômalo' (as conceitos e desejo do nacional, popular e da Revo-
vozes acentuam o tom de alarme); entretanto, o que lução, que exigiam totalizações amplas como "ga-
ocorre é uma radicalização da regra vigente ao rantia" teórica das próprias promessas, seria des-
longo do filme" (pp. 74-5). montada pelo ataque dissolvente a suas categorias
A seguinte firme avaliação de um gesto formal positivas de fundo. O desenvolvimento e a sequên-
radical de O anjo nasceu também exemplifica o cia principal desta "filosofia da história" proposta
corpo-a-corpo íntimo com o sentido das novas pela série, a dissolução de qualquer teleologia, seria
formas que estão em jogo: dada por Terra em transe, O bandido da luz verme-
"Os dados já apontados não estão sós a instalar lha, O anjo nasceu, Matou a família e foi ao cinema
a simetria entre começo e fim do discurso. A e Bang bang.
dissonância (mais aguda do que na abertura) volta Essa perda da teleologia da história não se
para fechar a trilha sonora, assim como tinha marca- produz como projeto sistemático, como se poderia
do a abertura: uma peça de metais agressiva acom- pensar em termos de um corrente pós-modernismo.
panha um último gesto do olhar: o movimento em Ela se configura passo a passo, historicamente,
zoom-in, abrupto e arbitrário, nos aproxima do como resposta e diagnóstico aos problemas concre-
horizonte, ponto de fuga da estrada vazia e da tos de um tempo de violentas e rápidas transforma-
própria narração do filme. Como gesto final, a zoom ções, onde os desejos do passado, que orientaram a
no asfalto vem selar a experiência de queda no história e sua percepção até então, desapareciam a
tempo: na estrutura de O anjo nasceu, até mesmo o cada segundo do presente. Sigamos um pouco os
rigor de uma simetria que emoldura a narrativa passos de Ismail Xavier na dissolvência das totalida-
revela ser impossível a circularidade plena; denun- des orientadas até a antiteleologia final da série.
cia a separação irremediável face à origem, configu- Se em Terra em transe é a história mesma do
ra o tempo como perda" (p. 201). golpe de 1964 que movimenta a construção da
É assim, articulando totalização crítica que não alegoria, levando em consideração as diversas li-
cede e mergulhos específicos que revelam os vários nhas de forças concretas que produziram o patéti-
segredos formais de cada obra, que Alegorias do co desfecho — o populismo desenraizado, a atua-
subdesenvolvimento constitui seus grandes panora- ção das esquerdas, o conservadorismo das elites,
mas, e recupera, na crítica, algo da própria dinâmica os interesses internacionais, a fragilidade da cons-
da série, onde a um tempo se constroem e descons- ciência popular —, constituindo um panorama de
troem diagnósticos gerais, as formas se estruturam "especificidade a suas questões"; se o filme ainda
com força ou explodem na multiplicidade possível remete à história como um amplo jogo orientado,
do discurso alegórico. o resultado dos passos do jogo é a reposição do
mesmo, anunciado na tomada do poder pela di-
mensão hiperconservadora, que se fará, à força,
modernizante. O jogo da história suspende, no
panorama totalizante e violentamente didático de
Terra em transe, a própria "possibilidade do futu-
Em meio à ampla recuperação dos diversos ro", e o infindável, mas irreversível, fim do poeta
problemas históricos da época, que crivam o livro militante nas dunas de Eldorado, é o signo mesmo
transformando-o em panorama crítico, uma podero- (alegoria) das promessas que se lançam a partir de
sa tese se desenha e justifica: o percurso alegórico en tão no vazi o d a hi s tó ri a. A nu n ci a-s e, co m o
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recurso à própria rememoração da história concre- expansão regular de alusões apocalípticas onde não
ta, a ruptura profunda que se daria no próprio parece haver lugar para um momento de indecisão,
olhar para a história: a orientação firme e moderna confronto de forças que podem se inclinar em
da narrativa, que deveria recuperar os passos da direções opostas. As cartas efetivas permanecem
história, leva ao desespero, ao vazio, ao nada. O invisíveis. No entanto, os locutores assinalam na
que habitava o horizonte da história começa a se avalanche final: 'ninguém sabe o que vai acontecer:
dissolver. fascismo?, comunismo?'" (pp. 109-10).
O bandido da luz vermelha, como Terra em No capítulo "Os graus da inconsistência (ou a
transe, vai ainda construir um panorama, uma con- miragem da nação-sujeito)", colocado estrategica-
figuração do espaço do mundo totalizante. Porém, mente após as análises de Terra em transe e O
correspondendo à perda da teleologia, a série ale- bandido da luz vermelha, Ismail vai inicialmente
górica tenderá cada vez mais à rarefação, à disjun- trabalhar esta dissolvência dos valores que habita-
ção e à seriação. Enfim, a perda mesma da idéia de vam a história com promessas, aprofundando a
totalidade, que passa à estrutura das obras em O comparação e a tensão da ruptura anunciada em
Anjo nasceu, Matou a família e foi ao cinema e Glauber Rocha e plenamente desenhada na cultura
Bang bang. do lixo de Sganzerla, e em seguida vai pensar os
O amplo quadro dos poderes e interesses da ambíguos termos críticos da cultura jovem que se
boca do lixo, em O bandido, se produz desde anunciava e se propunha aos velhos valores políti-
sempre na clave de uma feroz paródia que ataca e cos. O capítulo é duplamente essencial: revela a
desestabiliza o modelo totalizante (boca do lixo ruptura no olhar para a história que se dá entre 1967
metonímia/alegoria mesma do Brasil, do Terceiro (Terra em transe) e 1968 (O bandido), e prepara a
Mundo...), ao mesmo tempo em que define a cultura compreensão dos "gestos irreconciliáveis" de Bres-
como um girar e acumular no vazio de fragmentos sane e Tonacci, associados às novas perspectivas
indistintos e duvidosos de cultura de massa, que políticas não tradicionais, de uma cultura jovem
pouco se distinguem do lixo, dissolventes de qual- ainda não domesticada.
quer identidade ou projeto. O poeta militante exas- Tudo é salto dialético neste capítulo em que a
perado pela perda da própria capacidade de orien- nação-sujeito se torna miragem: entre teleologia da
tar a história dá lugar ao bandido, "gênio ou besta", história e sua dissolvência, entre uma ordem política
acumulação de referências sem origem e sem ponto tradicional e uma ambígua cultura jovem, oscilando
de chegada. A crise da consciência de Terra em da crítica ao elogio da nova ordem técnica de
transe se amplia definitivamente em crise da cultu- massas, entre as obras que ainda totalizam e as que
ra, e o "inespecífico" caos final de O bandido da luz fragmentarão definitivamente a experiência do mun-
vermelha projeta a agonia "pessoal" do poeta de do, mantendo como saldo a violência que não se
Terra em transe na ordem amplamente dissolvente supera. E "tudo é dialética" no manejo das catego-
da cultura sem orientação. rias estéticas e políticas pelo crítico:
Nas palavras de Ismail Xavier sobre essa primei- "O bandido se afina à Tropicália, à bem humo-
ra modulação no ataque à telelologia da história que rada declaração de obsolescência da 'cultura dos
se dá entre Terra em transe, pensando os passos da avós', mas com um adendo: inclui nesta cultura
história que se desorienta, e O bandido da luz parodiada o que chama de 'bom mocismo' do
vermelha, instalado já em um tempo sem promessas: Cinema Novo, sua cerimônia diante da cultura
"Na crise, Eldorado pode avançar ou retroce- popular, seu tratamento sério da política. O mundo
der, ter seu destino definido por esquerda ou direita que Sganzerla põe em cena prescinde da interven-
(estas são discerníveis); suas questões têm especifi- ção de intelectuais, aludidos apenas em tom de
cidade e, no momento de indecisão e confronto, as piada, mas isto não impede que, na galeria dos
cartas estão na mesa. Há ações efetivas e a inconsis- 'boçais', a distância entre pretensão e performance
tência é problema dos derrotados: o golpe tem toda se desenhe como dado constitutivo da experiência
a lógica. E funciona. Fala-se em crise no contexto nacional: esta é 'de segunda mão' mesmo quando
da boca do lixo [O bandido] mas não se especifica seus experiência de um mundo trangressor, marginal. O
termos ou agentes; há um mundo agitado que se kitsch é como que uma 'segunda natureza' presente
põe à deriva acelerando um mecanismo implacável, na condição periférica; é traço do ser nacional que
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se observa com humor sem a simbólica do Mal a categoria estética posta em jogo pelas obras.
própria a Terra em transe e seu confronto de Interior e exterior das obras se revertem na crítica, e,
caminhos, valores. Para Glauber, o kitsch é a mani- em um salto, uma cultura deságua em outra. Movi-
festação visível do sinistro; é o desfile das máscaras mento profundo da história identificado nas formas
demoníacas do poder que se repõe como o Mal na sem convenção de Terra em transe e O bandido da
história da América Latina, dado grotesco descon- luz vermelha.
fortável cuja presença ostensiva causa estranhamen- "Os graus da inconsistência" articula também,
to, mal-estar, não o riso. Ele traz as figuras do dentro do próprio livro, a passagem das obras que
pesadelo da derrota, é produto da política e não poderíamos chamar "de totalidade" de Glauber e
pode ser assimilado com aquele mesmo tom de Sganzerla, para as obras onde o todo já não mais se
autogozação com que Sganzerla aponta sua onipre- vislumbra, movimento que aprofunda a perda de
sença como fisionomia própria da 'miséria brasilei- projeto histórico na fragmentação, rarefação e anti-
ra'. Em O bandido, o estilo canhestro das expressões teleologia estrutural da narrativa. Nos aproximamos
e gestos tem seu próprio élan, sua graça, antes de do cinema mais fortemente experimental de Bressa-
ser um sinal da incidência do Mal, face visível da n e e To nacci, co mp reend end o de on de v êm s uas
rep res s ão o u d o q u e é decad ên cia p reco ce do bases históricas e sociais.
oprimido. Há, portanto, uma dissolução do sistema Chegamos aos discursos mais radicais do tem-
moral da visibilidade que Glauber, ao dramatizar o po, e em termos de cinema narrativo, provavel-
kitsch, articulou ao seu cerimonial da história, en- mente, algumas das obras mais radicais que se
cruzilhada onde a nação oscila entre a redenção e a conhecem. Em Bressane, a graça que acompanha
danação. O 'não é mais possível' de Paulo Martins, as mazelas da cultura insólita do subdesenvolvi-
face ao jogo infernal das aparências, é expressão mento de O bandido da luz vermelha tende a se
exasperada do desengano que, no entanto, quer ir dissipar completamente, emergindo apenas a ex-
mais fundo porque s upõe poder encontrar algo de periência da violência crua quase estrutural à cul-
consistente. Busca, enfim, uma reposição da verda- tura, presente em todos os seus lugares sociais, e
de e leva a tensão da derrota ao limite. Invertendo na própria representação, na própria estrutura pre-
este drama, resta o caminho da dessacralização cisa de seu cinema, construindo um mundo de
radical, a perda de cerimônia diante do nacional completa não-reconciliação, onde todos gravitam
como sistema, digamos metafísico, que Glauber como marginais jamais recuperáveis em alguma
manteve. Operação-chave das paródias de 1968 que positividade social. A cultura e o cinema perdem
assumem então a tarefa do esvaziamento, sendo seu cimento interno, como os transes e caos dos
outro o seu ponto de observação: confiam no poder filmes "de totalidade" haviam problematizado.
di s s o lv ent e da mo derni dad e t écn ica mes mo em Agora, definitivamente instaladas, em um tempo
suas figuras associadas à dominação imposta pela sem valores ou sentidos que não os da reposição,
ordem internacional" (p. 112). cada vez mais crua, da violência, sem a mínima
Fixando a categoria do kitsch, já altamente perspectiva de uma finalidade para a história, que
informada por si mesma, teremos o confronto entre vira queda infernal, ou repetição sistemática de
uma ordem de orientação política tradicional, onde um mal dessacralizado, as obras geram mecanis-
o jogo de máscaras é o mal da história derrotada que mos de significação que tentam negar na própria
abala o desejo de nacional, e o riso irônico que estrutura a própria articulação teleológica da narra-
contamina a tudo, que coloca em si mesmo várias tiva cinematográfica.
máscaras, reconhecendo no kitsch estatuto de ethos "Os dois filmes de Bressane expressam um
nacional. A visibilidade do mal, consciência ator- estágio mais radical da recusa em representar o
mentada, se transforma defintivamente em segunda presente como purgatório de violência historica-
natureza, disseminada totalmente pela cultura, in- mente plena de sentido, etapa referida, como dado
clusive para a instância narrativa, consagrando a preparatório, ao horizonte da Revolução (premissas
inconsistência de uma totalidade que em seguida se que entraram em crise a partir de Terra em transe).
dissolveria, em Bressane e Tonacci. A tônica é a violência não redimida [...] No momento
O que vemos são movimentos complexos da em que encontramos as personagens, estas vivem um
cultura identificados com rigor no olhar preciso para processo de queda sem retorno, a experiência
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de um inferno que põe a distância as miragens de produz uma internalização original da crise: a anti-
comunidade, coesão, família. Aqui, a experiência teleologia se enraíza no plano formal e muda a
do moderno é de atomização, ruptura com uma relação filme-espectador. Não pede a adesão; expõe
ordem utópica originária que lança as personagens um exílio" (p. 207).
num universo sem inocência, sangrento. [...] [O Vemos assim que neste momento a percepção
crime] pode ser enigmático — como os há em de um certo estado de não-redenção na história e na
Matou a família — mas a configuração do conjunto cultura exige sua internalização para a estrutura das
produz um efeito que exclui a idéia de gratuidade. obras. É esta não-reconciliação do próprio discurso
Esta é a força da repetição: sugerir o painel como cinematográfico que coloca o espectador mais que
expressão de uma lei, mesmo que pouco se possa dizer de nunca como exilado de um mundo de coesões
sua natureza. Neste aspecto, a força de Matou a família positivas, ele mesmo sendo um marginal que gravita
depende da potência de choque de seu esquema, de diante das obras que negam, em suas novas formas,
sua capacidade de incluir, pela forma do plano qualquer possibilidade de ilusão compartilhada.
sequência e pela estrutura de repetições, a própria Não há ponto de reconciliação possível neste mun-
experiência do cinema na sua pauta imediata de do-discurso da queda constante, da lei da violência,
questões, esta que o espectador deve montar na da perda do futuro.
primeira hora" (p. 237). Chegamos finalmente à estranheza máxima,
"A violência é algo que o filme [O anjo nasceu] desarticulação íntima das regras mesmas do narrar,
constata, sem julgá-la mas também sem exaltá-la que é Bang bang de Andrea Tonacci. Aqui temos a
como modelo de ação. O essencial é que ela crie um personagem do "passageiro", que Ismail definiu
momento de verdade no qual o mundo invadido como aquele que "está e não está". Ele é totalmente
deixe cair a máscara. [...] Não há no filme dados do à vontade em um mundo sem porquês, onde muitas
passado que ofereceram causas que justifiquem as vezes algum traço de narração, sempre uma perse-
ações presentes e não há, nas imagens finais, sina- guição, tem início e se dissolve sem compromisso
lizações a dizer que o percurso afinal faz sentido. O com uma causa, ou com um desfecho, levando ao
plano de oito minutos da estrada vazia é uma limite uma noção de história que desarticula a
afirmação de inconclusividade; recusa coroar o ordem e o sentido entre passado e futuro. Sua
trajeto como um termo definido que, em retrospec- desenvoltura e inserção não problemática nesta
to, iluminaria toda a experiência. O arbitrário movi- espécie de "tempo sem tempo", uma vez que sem
mento em z o om in mais para o fim d o plano causa e sem futuro, é que produz a ironia fantástica
reafirma a rejeição de teleologias; subverte a expec- da obra, ironia que camufla o cinismo quase satis-
tativa própria às narrações (chegar a um fim) e um feito do "passageiro" diante de um mundo que
papel próprio a perspectiva (definir um horizonte). perdeu todo o sentido. Está-se falando de uma nova
Narração e perspectiva que, no cinema dominante, ordem da cultura, após o mergulho sangrento no
centralizam a representação e mantêm a noção de sacrifício ritual do tempo em que a história ainda
que há sentido claro no mundo que o narrador era habitada por desejos. Mas é através de um gesto
'capta' e exprime em seu relato. Aqui, esta pedago- absolutamente radical de discurso que esta ordem
gia é recusada, com a particularidade de se escolher do cinismo do novo "tempo sem tempo" pode ser
a estrada (ou a linha reta) para afirmar uma antitele- atingida.
ologia. Fica atingido um emblema do Cinema Novo "O mundo em que se movimenta o 'passageiro'
(anterior a Terra em transe) associado à passagem é um labirinto e só não se faz drama porque sua
para um novo patamar de experiência, à aquisição norma, no plano diegético, é a inconsequência. O ar
de nova consciência. Ou seja, associado à 'dimen- irônico, imperturbável, deste 'homem comum' face
são do futuro'. [...] No filme de Bressane [...] a estrada ao absurdo das peripécias é resposta que revela
figura o salto no vazio, coroa uma experiência certa afinidade com este mundo serial desconexo:
abismal, substitui as dunas da agonia de Paulo ele se ajeita a tudo, absorve cada recomeço com
Martins. Não por acas o, é o teor rarefeito das certo descompromisso. Está e não está. E sua postu-
imagens finais do filme de Glauber que o O anjo ra de exterioridade face aos conflitos condensa
nasceu retoma em seu transcorrer. Tal rarefação, muito bem a matriz de um anti-herói sem projeto
trabalhad a de in ício a f im, cria o utro con tex to e que protagoniza a comédia num mundo em crise,
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terreno de violência e desastre. Seu à vontade a cada ao mesmo tempo, o que produz a grande densidade
passo atesta sua cumplicidade com as regras, o que de informações muito bem pesadas que conduz,
o isenta da tensão e desconforto que atinge a platéia linha a linha, os seus passos. É por isso que o
às voltas com o quebra-cabeça. [...] O toque de problema de filosofia da história que nos parece ser
agressão se mostra aqui embalado no riso e nada de o principal, exatamente por articular os demais
funesto se estabiliza na imagem; tal estratagema, no como seus "conteúdos" trabalhados, a questão da
entanto, não exclui o mal-estar, pois o jogo que ruptura e da dissolvência da teleologia da história,
instala supõe a ruptura com um regime de fruição não é anunciado no livro como principal ou supe-
do cinema. Se há sempre na comédia um bode rior, se subordina mesmo aos demais aspectos, e se
expiatório, em Bang bang esta se faz às expensas do constitui a partir de superposições progressivas ao
espectador. Este encontra na experiência da sala longo de todo o ensaio.
escura uma espécie de radicalização do desconcerto Por outro lado, esta forma diacrônica de traba-
que o pode assombrar no cotidiano" (pp. 262-63). lhar com o cinema brasileiro, percebendo uma
Chega-se ao limite de uma experiência de perdas história das formas e uma percepção da cultura que
e derrotas históricas, que após o desespero da implica uma duração, demonstra em Alegorias do
percep ção da ru pt ura p ro fun d a q ue o t em po subdesenvolvimento todo o seu valor. Se o cinema
impunha a todos, quebrando a possibilidade mes- brasileiro sempre foi parco de produção — s e o
mo de se pensar um futuro, lança o diagnóstico considerarmos a partir de um corte horizontal em
preciso do que s eria a vida nesta nova ordem de cada um de seus momentos —, seu desenvolvimen-
cultura sem fetos: o riso cínico que sobrevive algo to ao longo de sua história, que implica a percepção
imutável, com seu "estar e não estar", em um tempo e o aden s amen to de p ro bl emas ao l on go d e s u a
de permanentes desconcertos cotidianos. O final da duração, ou seja um corte vertical nos diversos
desmontagem da noção da teleologia da história, tempos, pode demons trar a pertinência e valor
nesta fantástica série do cinema brasileiro do final profundo desta experiência social tão desvalorizada
dos anos 60, é o riso descompromiss ado, do qual que é o cinema feito entre nós. É as sim que,
todos somos objeto, que convive com uma ordem percebendo a evolução das formas, que espantosa-
cultural impotente em articular passado e futuro, mente se articulam e se negam, nesta história dos
sempre às voltas com o desejo de perseguição e últimos anos 60, Ismail Xavier produziu um grande
morte. livro do pensamento social brasileiro, e não apenas
um texto crítico sobre um cinema qualquer.
Ao fim de Alegorias do subdesenvolvimento
Ismail Xavier irá propor o prolongamento desta
p ercepção de am pl a du ração das form as e d a
evolução coerente do pensamento no cinema brasi-
O desenho da dissolução da teleologia da leiro. Sabemos que esses problemas se prolongam,
história, que articula a problematização, o desapare- em outra clave, por exemplo no cinema de Arnaldo
cimento, e a transformação de uma série de valores J ab or, do s an o s 7 0 e 8 0. Co n temp o raneam en t e
da época e para além dela, é talvez a principal tese temos mesmo a retomada de uma espécie de alego-
de Alegorias do subdesenvolvimento. No entanto rização, também dada em nova clave, no forte curta-
existem outras que são sincronicamente trabalha- metragismo brasileiro, que chega mesmo a retraba-
das, das quais não tratei aqui: o problema da lhar as questões da orientação e desorientação da
dissolvência da identidade trabalhado nas paródias história, e a pensar novas formas de teleologia.
de 1968 (de O bandido a Macunaíma, Brasil ano Finalmente é preciso lembrar que, se o pensa-
2000), a avaliação crítica do valor do progresso mento se mantém em evolução e contato no interior
tecnológico, problema concreto central da época, da história do cinema brasileiro, o objeto deste
que atravessa toda a série, a própria crise ampla- cinema, a própria experiência ampla da cultura vista
mente disseminada da "metafísica do nacional". O daqui também se mantém válida e coerente através
importante, do ponto de vista da escritura do crítico, de seus discursos, atingindo níveis de percepção de
é que estes "metaproblemas" se articulam sincroni- grande valor de conhecimento. É assim que algo
camente ao longo de toda a obra, sendo desenhados desenhado nesta série de filmes dos últimos anos 70
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mantém sua força de diagnóstico, e se renova momento de amplas definições e ambiguidades, de


vitoriosamente à luz de nossa melancólica experiên- efervescência cultural, de obras-primas, exílio e
cia contemporânea, ou, nos termos finais de Ismail tortura, de fim de sonhos e de origens de uma nova
Xavier: ordem, parece ser vedado à cultura, que vive aquela
"[...] é com desconforto que se verifica o quan- história com o brilho do mito (alegoria?) que escon-
to, ao avaliar a nossa distância face ao mundo de seu sentido mágico, e não como um problema da
cultural aqui analisado, ela não pode ser atribuída a história, de confrontos sem dúvida, mas que pode
qualquer avanço no sentido da superação dos pro- ser recuperado, mesmo em sua enlouquecedora
blemas presentes nos filmes, sejam aqueles sobre os grandeza, pelo gesto preciso do pensamento, e da
quais se fala no som e na imagem, sejam aqueles atenção rigorosa às formas geradas naquele contex-
relacionados com a própria questão estética. Tudo to, a um tempo enunciado e enunciação de uma
mudou, e antigas soluções foram desautorizadas época. A própria grandeza da época impede que
pelo avanço técnico-econômico, pelo movimento seja compreendida como um campo aberto de
da sociedade. Por outro lado, tudo permaneceu, problemas e desejos históricos, e a grandeza maior
pois nossa modernização tem se efetivado basica- de Alegorias do subdesenvolvimento está em não
mente como reposição, em outro patamar, dos fugir dos múltiplos campos e ordens da cultura que
mesmos desacertos" (p. 274). estão em jogo naquele momento, não fugir à gran-
deza da época, e tentar, através do embate com o
cinema do período, abarcá-la. Ismail vai exatamente
atacar o tênue preenchimento teórico crítico deste
buraco negro em que se transformou a história que
gravita ao redor do emblema de 68, o que só pode
Alegorias do subdesenvolvimento é obra capital ser sinal do trauma aí vivido. Diante da leitura
sobre o ponto de ruptura da cultura e da história da rarefeita que o presente tende a fazer dos 60, o forte
segunda metade dos anos 60. Não tínhamos até trabalho conceitual com a grandeza da época, que
então um trabalho amplo e sistemático de reflexão tende a reordená-la para a história, não deixa de ser
sobre aquele momento histórico como o livro de uma das fortes dimensões políticas de Alegorias do
Ismail Xavier propõe, tínhamos sim alguns artigos subdesenvolvimento.
clássicos, um número de revista dedicado ao perío-
do, dois ou três livros de caráter eminentemente Tales A.M. Ab'Saber é cineasta e mestrando em História e
jornalístico. O mergulho teórico crítico naquele Estética do Cinema na ECA-USP.
kkkkkkkkkkkkkk

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