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CARMEM DE LA ZONE

SERGIO CARDOSO

CENA VINTE E QUATRO

NO PALCO DO PALCO DO PALCO

Vozes da plateia – Pega ela, pega ela. Tira ela daí. Tira essa louca do palco. Queremos

Carmem de Bizet.

Carmem - Pois vocês vão se foder: o presidente confiscou todo o dinheiro de vocês.. Elite

da ralé. Voces estão na miséria que nem eu. Esta é a opera do desespero de vocês;

Carmem de Michê. Palace, vou ficar esperando o ultimo navio por mais de cem anos. Sem

luz elétrica. Vai ser tudo no futuro do presente igual ao passado do passado de vocês. Com

os novos miseráveis vagando pela rua mortos de fome, esperando o próximo navio. O

projeto econômico dos anos cinza do Phaís brasileiro foi levado para todas as cidades. O

contrabando é real. Não somos mais especiais. O Phaís brasileiro é uma rua paraguaia.

(Ouve-se a sirene do navio)

Palace – Ouviu! O navio fantasma do rio das sombras vem apanhar vocês para o balatal. O

dinheiro de vocês não existe mais. A nova democracia brasileira ferrou vocês. Novos

canalhas no poder idiota! (de novo a sirene)

Carmem – A opera sou eu. (começando a revolver lembranças) Carmem... daqui...porra.

Palace, meu neném. Você esta ouvindo esta musica? É o piano de mamãe! Toda vez que

ouço esta musica quero me matar ou voltar para o Rio de Janeiro. Palace, já tentou

suicídio? (Palace balança a cabeça dizendo que sim)

Palace – É terrível! A gente põe um banquinho, amarra a meia de nylon na parte de cima da

grade da janela, balança um pouco e cai e quebra os dentes!

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Carmem – Palace, pare de me olhar assim! Não vou me matar! Carmem brilhará nesta

noite! Que venha uma nave espacial salvar a floresta, levando-a para o mundo intraterreno.

Livrando-se do poder.

Palace – E todos transcenderemos santificados.

Carmem – Você nascerá borboleta, Palace! Vamos meditar, cachorrada! Olhar, ver a cidade

encontrar a saída. Fechem os olhos, animais amados. O voo dos cachorros perebentos.

Estamos sentindo a paz dos que vão ser mortos. Atenção: tenho algo a declarar, vocês

estão mortos... vocês estão vivos... “estatuas”. Todo mudo de “estatua”. (brincando com a

plateia) Isso, paralisados, perplexos!

Palace – A cidade e as putas são igualmente abandonadas pelos amantes em fuga.

Carmem – Ai, como o teatro é limpo. Aconselho a todos os políticos a fazerem teatro,

porque o que querem é luz e atenção. Um refletor na vagina da vaidade.

CENA VINTE E CINCO

A POLÍTICA DA LOUCURA DA

PLATAFORMA ELEITORAL

Carmem (participando da campanha eleitoral)- Candidatos me contrataram para ser

candidata. Vou me expor para mostrar o que vou fazer pelos loucos da cidade.

Nosso partido é o único que tem a solução para os doidos da capital e do interior. Doido

progressista. Doido de esquerda e de direita. Esquizofrênicos. Maníacos depressivos.

Doidos de viver. Doidos de matar. Transedipianos. Acalmai-vos! Bipolares. Vamos construir

hospitais iguais aos que o camarada Stalinzinho criou no seu país, para loucos difíceis,

estes que criticam o regime, que se queixam da falta de comida, da falta de liberdade. Asilos

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gerais. Hospícios com suítes, morning coffe, lunch e dinner, televisão e frutas amazônicas,

passeios a selva. Se a sua família é doida varrida, desista da loucura.

- Se existe um louco de plantão na sua sala assistindo a televisão, pretendendo mata-lo.

- Se a senhora pretende curar seu filho, sua filha, porque eles se amam e amam o amigo, a

amiguinha.

- Se o seu marido lhe dá porrada e a senhora aceita sempre. Se ele trepa com a criada a

sala, e come a sua amiga no Jardim.

- Se ele tem uma amante ou um amante e a vizinhança toda sabe, e a senhora finge que

nada existe! – A senhora é louca e o nosso partido tem programa para a senhora. Não salte

do edifício. Vamos mandar fotos de nossos sexos aos congressistas.

Companheiros loucos de Lazone! Uni-vos. O louco unido jamais será internado. Vai virar

filósofo. Vai ganhar uma pensão especial. Fingir que é artista, intelectual, um vagal especial

cheio de opiniões, manipulando coitados.

Loucos. Nosso partido sabe que vocês não são loucos. É uma farsa da sociedade

capitalista. Todo louco tem razão! Vamos dar dentes novos pra vocês, olhos novos pra

vocês! Sexo novos pra você. Vamos dar um sabor novo para o mau hálito de vocês. Você

está bêbado? Não importa a razão: você não é louco. Doida é a mãe! Doida é a puta que o

pariu, invejoso cruel.

Minhas amigas, a minha plataforma política é feita de plástico, isopor, chips de computador,

neurorrelaxates, pó dos deuses e muito sexo, drogas, videoteipes e devedês.

Eu sou a redenção espiritual de vocês. Eu sou a luz que vem de uma nave extraterrestre. Eu

sou a palavra, o gesto e o perdão, que todo egoísta da a si, quando dá uma esmola e

aponta uma pistola. Eu sou a transcendência viva deste caminhão de lixo. É preciso ter fé

na loucura de uma pobre mulher que só quer o teu aprovo! A tua escolha oculta. Me aprova,

pelo amor de Deus, eu sou uma pessoa que apoia os humildes, os desesperados,

angustiados, esquizofrênicos, deprimidos. Vote em mim, filha da puta. Porque eu sou uma
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de vocês! Eu sou a luz que veio das estrelas dos anúncios de refrigerantes no Natal. Eu só

quero um pouquinho de poder para melhorar de vida, ter os seus carros, uma ilha no Caribe,

uma vila na Itália, vários prédios da cidade. A conta de todos os projetos da região. Just ten

percent only. A louca sou eu por querer representar vocês, seus doidos de Lazone, e ser

menos miserável que eu tenho sido.

Votem em mim, seus otários. A loucura nem sempre é sã, quase nunca é. Quem sabe?

Não votem em mim, pelo amor de Deus. Não cometam este ato de loucura.

Votem em mim, quem sabe?

CENA VINTE E SEIS

A ELEITA

Carmem – Anybody in home! Votaram em mim e venci. Agora represento o vosso caos. Vou

distribuir calmantes. Palace, seu anjo vadio estúpido e cruel, não vê quanto eu estou

apaixonada hoje. Foda-se, estúpido. Não pensarei mais em você, na sua cara suja de

mendigo! É isto que você é! Me deia aqui parada, não vir me buscar. Marcar e não aparecer.

Filho da puta. Você não vê, não sente quanto eu te amo, mendigo! Mendigas pó e homens

pela noite adentro.

Palace – Agora o poder, cachorra. Mendigas homens, eu sei, mesmo assim eu te respeito.

Pensa que já ao te vi fazendo com mulher, fazendo ponto...

Carmem – Canalha! Eu fui eleita. Lazone não me rejeita. (Cantarolando) Me diga se não

tenho razão? A gente pega, se encanta por um filho da puta, se dá feito uma égua vadia,

debaixo de qualquer marquise, e o filho da puta se veste de mulher! Puta, que magia. Uma

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mendiga no poder! Eu quero parar todos os carros da cidade. Eu represento vocês.

Atenção, vamos parar todos os carros da cidade! Parados!

CENA VINTE E SETE

CARMEM NO PODER

Carmem – Congressistas de Lazone. Vaguei louca, nua, pela cidade, comendo nas latas de

lixo dos restaurantes. Namorei um comunista, fui presa, torturada, apedrejada. Andei com os

mendigos e um dia engravidei. Andei nua de barriga pela rua. Servi aos mendigos com meu

sexo já cheio de vida. Vida não sei bem de quem, ardia dentro de mim e sorvia o que eu

catava das latas de lixo, do resto das quentinhas azedas, dos bagaços amargos de laranja.

Um dia a saúde publica me recolheu num carro da polícia. Lá estava eu. Pura sirene

enlouquecida pela cidade. Vamos mudar a cidade. Eu quero renunciar agora, neste ato de

posse. Adeus. (Adeus imaginário).

CENA VINTE E OITO

O ASSASSINATO DE CARMEM

Carmem – Palace, que dia é hoje? Cadê a minha barriga? O que havia dentro dela? Nasceu

e foi entregue a um casal de americanos? Minha filha não será louca como eu!

Palace – Carmem, renunciou pra quê? Acabou a nossa proteção!

Carmem – Não volto nunca mais lá... quero... ser livre... Elephant, meu amor...

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CENA VINTE E NOVE

UM MORADOR DE RUA

- O corpo vai para o I.M.L? O que houve aqui? Está morta? Meu Deus, esta sorrindo!

Quem eram?

NOTIFICADOR – Foi encontrada morta na praça de São Sebastião a mendiga

Carmem. A mendiga tinha marcas de balas pelo corpo. O teatro lazone foi reaberto.

Enquanto as autoridades convidadas comemoravam, o povo promoveu manifestação contra

o ato cínico. O novo presidente americano liberará recursos para a defesa da floresta

amazônica. Dez por cento do território brasileiro será restituído às nações indígenas. Um

barco carregado de passageiros afundou na baia do rio das Sombras. Trabalhadores do

distrito industrial irão salvar a Zona Franca! O tempo apresenta-se...sombrio. As poupanças

e economias do povo brasileiro foram confiscadas pelo governo e seu novo plano

econômico.

EPÍLOGO

ECOS DO ALÉM

Carmem – O que aconteceu? Isto aqui é o céu? Morri?

Cavaleiro verde – Maybe. Talvez sim, talvez não, minha dama. Você esta em Lazone

Astral.

Carmem – Eu estou morta ou viva?

Cavaleiro Verde – Você é quem decide.

Carmem – Todo homem é um cão vadio, que trepa de frente como se estivesse de costas.

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Cavaleiro Verde – Minha dama, eu sou o Cavaleiro Verde, da Ordem Sagrada dos

Peregrinos do Amor.

Carmem – Tu quer me foder?

Cavaleiro Verde – Vivemos de passagem pelos corações em busca de Santo Cálice Verde

da Natureza! Achamos que o Santo Cálice está aqui com você. O cálice é um símbolo de

liberdade da floresta e salvará os rios com seu poder.

Carmem – E quando abrirmos os olhos não haverá um lazonense vivo, todos mortos pela

dengue, e veremos ainda a Amazônia riscada com uma régua. Lazone ficará cheia de gente

de olhinhos esticados, donos de cada pedaço e o ultimo Yanomami estará exposto

congelado no hall do Teatro Lazone.

Cavaleiro Verde – Nos entregue o Graal do Imperio Inca!

Carmem – Graal? Puta que pariu, abestado. O sangue é Maria de Magdala! Nunca vi um

cálice algum.

Cavaleiro Verde – Temos informações de que o Cálice esta com você. Não seja difícil,

minha dama, pense no que ganhará! Verá seu pai!

Carmem – Meu pai?

Cavaleiro Verde – A foto dele na caixa de biscoitos ingleses.

Carmem – Eu tenho pai, gente... Não sou uma bastarda.

Cavaleiro Verde – É a única herdeira dele, o maior fabricante de motosserras do mudo e

fertilizantes transgênicos. Não precisará pedir esmolas.

Carmem – Onde esta o Cálice?

Cavaleiro Verde – Dentro das suas tralhas

Carmem – Impossível!

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Cavaleiro Verde – Abra o saco das tradições imaginarias. Como conseguiu juntar tanto

lixo?

Carmem – Vou poder entrar no Madison Square Garden?

Cavaleiro Verde – Você duvida?

Carmem – O meu amor pode ir?

Cavaleiro Verde – Pode, Miss Carmem!

Carmem – Você ouviu, Palace? Palace, onde você esta?

Cavaleiro Verde – Será uma linda borboleta na Broadway?

Carmem – Você o matou? Assassino! Mataram o meu amor!

Cavaleiro Verde – O Calice Sagrado é um só! Por que você tem dois?

Carmem – Não sei. Acho que é para não ser enganada.

Cavaleiro Verde – Diga qual o verdadeiro.

Carmem – Faça a sua escolha, infiel! Agora um brinde final!

Cavaleiro Verde – Brindemos do Central Park! Ao cálice de Francisco Orellana! O cálice

das Amazonas! Vê, mendiga, estou vivo. Este é o Calice Verdadeiro!

Carmem – Se puder sair daqui, infiel...

Cavaleiro Verde – Dama ingrata. Acho que...

Carmem – Bebeu no Cálice de Francisco Orellana. Sinta a morte na morte. Se vocês

quiserem, eu tenho uma porão de cálices verdes. Podem compartilhar comigo...

Palace – Você esta viva?

Carmem – Anjo...perebento.

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