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A mancha genealógica:

Cap. 1:

Bem, era pra ser hoje, o encontro marcado era para ser às seis. Eu
estava vestido a caráter blusa preta comprida, uma calça justa, sapatos
marrons, e o cabelo virado de lado. Eu estava parado, num lugar que dava
para ver as janelas, perto da casa onde ele morava. Assoviava com um
troço na boca, algo que eu tinha pego no carro. Já imaginava ele
gritando comigo: você e suas manias, tira essa coisa da boca. Talvez, ele
estivesse pintando, ou escrevendo. Quem sabe estava ouvindo algum
disco antigo, uma música clássica, se arrumando é que nunca estaria, ele é
do tipo estranho. Sou sujeito lógico, meio bitolado com as coisas, com
manias de compreender, nem um pouco sorridente, humor de policial,
diplomático, mas nem um pouco calmo. No momento eu batia o pé no
chão, olhava para a casa, depois olhava para os pés. Sorria, estava ainda
rindo da conversa anterior. Ele havia ficado interessado no assassinato
de um mendigo, falei que meu amigo o conhecia. Meu amigo, ao me
contar que era conhecido do sujeito, olhou para os lados, falou baixo,
curvou um pouco a coluna e se aproximou de mim, já que eu era mais
baixo. Ele disse, quase sussurrando em meus ouvidos: É o Charles
Bentham, né? Fiquei por algum motivo com aquele nome em minha
mente. Perguntei: Bentham? Mas não é nome estranho para essa
região? É um nome britânico. Sim. Ele veio para cá num navio. Me disse.

E ficou aquilo, as palavras-chave. Bentham, navio, britânico. E eu ainda


pensava nisso. O céu estava ficando sem nuvens, tinha raios saindo de
uma direção. Comecei a bater os pés com mais velocidade. Abri o carro.
Sorri com o lado da boca. Peguei um cigarro. Reclinei-me sobre a
janela fechada, e vi que ele estava ali, na minha frente. Era uma doce
visão, meio esquisita talvez. Vestido com uma blusa roxa, bastante
chamativa, uma calça preta, meio larga, e segurando algo na mão, parecia
ser um doce.

--- E ai? Teve progressos?

--- Tive.
–-- Ótimo. --- Levantou um sorriso aberto. Beijou-me na bochecha. ----
O que descobriu?

--- Não parece um caso comum.

--- Eu disse, num disse.

--- Eu percebi, você nunca erra. Tem tato pras coisas da mente. Por
sinal, belo artigo que saiu na Imago ontem.

--- Obrigado. Agora me diz: o que você descobriu?

--- Bem, eu tive que olhar os registros desse senhor Bentham aqui no
cartório. E não se engane com o nome, ele tem parentes aqui.

--- Parentes?

--- Sim!. E sabe o pior, fui no batistério, fui no cartório, nos registros
médicos, e sempre que eu encontro um senhor Richard Bentham, a data
de nascimento está rasurada.

--- Como?

– Está apagada, uma mancha de caneta.

--- Isso lembra as invasões do cartório que saíram no jornal…

--- Você tem tato… Pensa em mais alguma coisa?

--- Bem, por que ele apagou justo esse nome?

--- É isso que me intriga. A gente procura algum registro, e eles estão
incompletos.

--- Bem, a conversa está interessante. Mas temos que chegar logo,
estamos atrasados.
--- Não estamos. Vamos ficar em casa hoje.

--- Ótimo.

– Agora me diz… Como essa família Bentham vem parar em Russas…

--- Não sei.

--- Já vi um inglês morando aqui. Ele ficava falando com Diógenes,


lembra?

--- Sim. Ele era meio taciturno, não gostava de falar.

--- Encarava demais também, qualquer um que se aproximasse. Também


não falava muito com Díon, só o procurava para pedir favores.

--- Uma vez eu me lembro dele ter sido hostil por eu ter perguntado por
que ele tinha saído da Inglaterra.

--- Sinal típico de quem esconde alguma coisa.

--- Bem, você entende mais disso que eu…

– Nada, às vezes você entende mais… Por isso sempre te consulto…

--- Ah, Amor.-- Ele sorriu.

--- Mas não me impressiono que não esteja na polícia, você é muito
delicado para isso. Embora, nem um pouco inocente…

--- Não diz isso. Eu sou um monstro.

--- Monstro nas palavras. Eu te complemento com ações.


--- Talvez, eu seja sua ação. Agora me diz, quem você acha que apagou
essa data?

--- Não faço ideia. Mas algo me chama atenção. A invasão do cartório,
do hospital e da igreja foram no mesmo dia. Parece obra de mais de uma
pessoa.

--- Precisamos resolver isso…

--- Não você fica aqui.

--- Não te entendo.

--- Você sabe, não quero que ocorra o mesmo que ocorreu com Paulo…

--- Terei cuidado.

--- Você, para mim, é como se estivesse sob meus cuidados… não posso
te deixar se meter em coisas ruins.

--- tá bom--- Ele sorriu.

--- Agora me diz… Diógenes não pode saber de algo?

--- Aquele velho, se souber não conta… Tenho certeza disso.

--- Ele não é seu amigo fiel?

--- Temo que esteja em perigo…

--- Como tem tanta certeza disso?

--- Não tem como algo ter ocorrido sem que ele visse. Por sinal,
ultimamente ele anda apreensivo.

--- Por que?


--- Não tenho certeza ainda, mas me parece que ameaçaram o pobre
cínico…

--- Tadinho…

--- Você me entende… Quem se aproxima de mim corre perigo…

--- Ah, o.k..

---- Não, quero te perder…

--- Eu também… Você não acha que devia interrogar Dión?

--- Eu já sei o que vou fazer…

--- Você sempre sabe… – Ele pôs as mãos em meus ombros…--- Díon deve
estar em choque…

--- Sim, o assassinato foi mesmo na rua em que ele dorme…

--- Já viu se ele está bem?

--- Fui lá falar com ele, ele fugiu de mim…

--- Estranho, não?

--- Claro… – Sorri. --- Eu já percebo que vamos trabalhar nisso por um
bom tempo….

--- Rodrigo, Rodrigo… Seu nome corre nessa cidade…

--- Um bom nome não faz mal a ninguém… Por você e pela memória de
Paulo…

--- Amém…
Cap 2:

Martim pegou alguma coisa na geladeira, eu estava deitado, lia o


jornal. Ele me olhava vez ou outra, sorria, parecia contemplar. Por sinal
eu gosto quando ele contempla, o gosto da perseguição inocente dos
artistas, a curiosidade sem maldade, o querer em eliminação. Ele pegou
uns maracujás e fez uns sucos. Depois sentou perto de mim, reclinou
um pouco as costas para trás, depois voltou. Sorriu, depois olhou para
minhas pernas, coçou a cabeça. Eu deixei o jornal e passei a olhá-lo:

--- Estou atrapalhando?--- Martim perguntou.

--- Você nunca atrapalha.--- Eu ri.--- O problema é que eu nunca sei se a


contemplação é artística ou não. Sabe, Schopenhauer, o querer, a
vontade que precisa ser eliminada para ver o belo.

--- Entendi. --- Ele também riu.--- Já pensei em te pintar assim.

--- Lendo o jornal?

--- Essas pernas…

--- Ah--- Eu ri novamente.--- Por falar em pernas, Marcos me ligou.


Tenho notícias do caso… A perícia deu suicídio.

--- O que?

--- Isso mesmo, ele se matou…

--- Parece história mal feita… Como ele ia se matar…

--- Sabe o pior, ninguém achou sangue onde ele morreu… Nem pegadas,
nada, só um manual de farmacologia…

--- Que diabos ele ia fazer com um livro sobre remédios..,


--- Não era um livro sobre remédios… Sabe, a raiz grega podia
significar…

--- Tanto veneno como remédio… –-- Martim completou.

--- Tinha umas anotações numa página sobre cicuta …

--- O mesmo veneno que matou Sócrates.

--- Sim, e uma foto de Antístenes…

--- Você acha mesmo que ele se matou...--- Ele pôs uma de suas pernas
entre as minhas.

--- Acho!

--- Como?-- Ele abriu a boca..

--- Ele se matou. Resta saber por que…

--- Você tem ideia?

--- Tenho….

---- O que vem a sua mente…

--- Ele quer fugir de uma culpa. Digo, de um crime….

--- Ele é criminoso…

--- Sim, e dos sérios…

--- Meu Deus…

--- Maldita hora que você desistiu de cursar filosofia, hein?


---- Ganhei muito fazendo isso. --- Segurei o baço de Martim e trouxe
até meus ombros…

--- Um marido morto, né?--- Martim se afasta.

--- E você…

--- Ah! Eu gosto de ser a sombra de um viúvo. Eu sou seu segredo mal
guardado, já que todos sabem…

--- O amor só sobrevive com o segredo. O problema da maioria dos


casais é que são abertas demais…

--- Sim, tem coisa que em público só pode ser dita pelo olhar…

--- Ou pelo sorriso. O problema dos casais é que não sabem guardar
segredo…

–--- Agora voltando… O crime pelo qual ele se matou é grave…

--- Não para a lei…

--- O que você diz com isso?

--- Ele parece ter roubado alguma coisa, um crime pequeno, acabou
fugindo de navio…

--- E por que todo esse ritual… Apagar nomes…

--- Ele odeia essa pessoa…

--- Só por isso?

--- Ele não quer que falem com ela. Roubou algo dela, isso é certo…

--- Por que fugir pra tão longe…


--- Porque ele tem familiares aqui… Parece filho de uma mocinha que se
casou com inglês, gente boa ela…

--- E Diógenes? Você foi falar com ele?--- Martim reclinou a cabeça
sobre meu ombro…

--- Parece menos apreensivo. Mas está mais cheio de segredo que o
senhorzinho ai suicida….

--- Hum. Você pensa o mesmo que eu?

--- Não, Diógenes não cometeu nenhum crime. Mas como eu já tinha dito,
foi ameaçado…

--- Também acho… não acha bom levá-lo num lugar seguro, garantir-lhe
sigilo…

--- Seria uma boa…

--- Eu não entendo você… Como conheceu Dión…

--- Ah! Eu tava um dia passando na rua, ele tava gritando com uns
garotos na calçada, eu fui ver o que era. Eu era noivinho ainda. Tava na
faculdade de filosofia…

--- E?

--- A gente falou uma meia hora sobre o xará grego dele…

--- Você sabe por que ele mora na rua?

--- Sim, ele desistiu de ser professor de filosofia na faculdade, ele foi
professor em Fortaleza… Ele desistiu de lutar pra conseguir mudar
umas coisas lá

--- Ah! Entendi.


--- Ele é um tipo de pessoa estranha, mas legal…

--- Preferir morar na rua…

--- Preferir a vida ascética e humilde a ser babado por emprestáveis…

--- Daria um bom livro…

– Devia falar com ele sobre isso. Não sei se ele vai gostar…

--- Talvez goste… Eu faço algumas adaptações… Troco uns nomes, uns
lugares, mas faço algo por ele… Me parece uma grande personalidade…

--- E é… Tem um ódio ao injusto, assim como você…

--- Parece mais coerente… Eu sou desconjuntado…

--- Lindamente desconjuntado… --- Acariciei a coxa de Martim…

--- Para, eu odeio que toquem ai…

--- Tudo bem…

– E o Latim? Está indo bem…

--- Bem declinado, e ainda tem os verbos…

--- Já consegue ler Cícero?

--- Calma! Nem comecei…

--- Ah, bom…. Só cuidado para não ler muito em latim e ficar
eloquente demais…

--- Como os patifes?

--- Como aquela coisa feia que você chama de professor.--- Martim riu.
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