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Jurandir Freire·Costa

BIBLIOTECA DE PSICANÁLISE E SOCIEDADE


Vol. nt 3
JURANDIR FREIRE COSTA

VIOL~NCIA
E
PSICANÁLISE
Direitos adquiridos para a lingua portuguesa por
EDIÇOES GRAAL LIDA.
Rua Hermenegildo de Barros, 31-A - Glória
20.241 - Rio de Janeiro - RJ - Fone: 252-8582
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© Copyright by Jurandir Freire Costa

1~ ediçlo - 1984
2~ ediçio - 1986

Capa: Lívia Flores


Revisores: Umberto Figueiredo Pinto
Joio Martins
Produçilo gráfica: Orlando Fernandes

Impresso no Brasil I Printed in Brazil


..

CIP-Brasil. Catalogaçio-na-fonte
Sindicato Nacion.al dos Editores de Livros, RJ.

Costa, Jurandir Freire.


C873v Violência e psicantlíse I Jurandir Freire Costa. - Rio de Janeiro:
Edições Graal, 2~ edição, 1986.
(Biblioteca de Psicanálise e sociedade; v. n. 3)

Bibliografia

1. Viol@ncia 2. Agressividade (Psicologia) I. Título IJ. Série.

CDD - 152.432
84-0066 CDU - 159.942
À memória de meu pai e do amigo e companheiro
Alberto Gabhay

Aos ami~tos do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e do Núcleo de


Atendimento Terapêutico (NAT) da Clínica Social de Psicanálise.
Aos amigos que me ajudaram a refletir sobre este te ma .

Novamente a Célia. Ciça e Guga.


A Bubi, jovem amigo,
que foi embora naquele triste 24 de junho de
1982

" Há um tempo de juntar


E um tempo de separar
A que/e que entender
Este curso dos acontecimentos
Toma cada nvvo e.Hado
Em sua devida hora"
(Chuang Tzu)
lNDICE

l. À guisa de introdução: Por que a violência?


Por que a Paz? .............................. ....... ............ ............ ............... 9

2. Saúde mental: p roduto da educação? ... ... .. ............. .................. 63

J . Yiolêm;ia e identidade ......... .. ....... ..... ....................................... 79

4. Da cor "o corpo: :.1 violência d o racismo.............................. 103

5. S~;hn.: " "Cier:.~ç;io A 1-5 .. : villlência e narcisismo.......... .. ... .. .. 117


....
A guisa de introdução: Por que a vlolincia?
Por que a paz?

Os textos reunidos neste trabalho tratam da violencia. Por que á


violência? A interrogação é quase supérflua. Todos sabemos que a vier
lência tornou-se o fermento da inquietação cotidiana. Num recente es·
tudo sobre a questão, Eduvaldo Daniel buscou traçar um rápido perfil
da violência urbana no Brasil. O resultado é espantoso: ..víolencia
contra a pessoa; violetlcia no trabalho; violência no trânsito; violência.
da escola e da culturJ; violência das discriminações; violência nos es-
portes; violência nos serviços de saúde; violencia policial; violência
contra o patrimônio"'. A listagem poderia prosseguir, obrigando-nos
.a constatar que a violência invadiu todas as áreas da vida d~ rclaçlo
do individuo: relação com o mundo das coisas, com o mundo das pes-
soas com seu corpo e sua mente.
Em contraste com a indiscutível relevância social do problema
percebemos que pouca ou nenhuma atenção lhe vem sendo dada pelo
pensamento psicanalítico no Brasil. Em vista di$SO, procuramos abor-
dar o assunto, cientes que damos apenas o primeiro passo, num cami-
nho longo e tortu~~.
Nos pequenos artigos qtre.:~e seguem- escritos em épocas diversas

l. V. Daniel, Eduvaldo. ''Fenomenologia critica da víol!ncia uibaua", in Vio/l.ncia·


)llbantJ, Rio. Codccri, 1982, pp. 124-150.

9
e com objetivos diversos - tentamos tematizar a violência, sem a preo-
cupação de limitar com precisão a extensão e a significação do concei-
to.
As definições dadas ao termo são sempre prOtvisórias, operacio-
nais e in feridas dos casos particulares, estudados em situações particu-
lares. O leitor,..por conseguinte, não encontrará ne,nhuma visão siste-
mática do fenômeno, onde definições prévias ou posteriores permitam
isolar a essência da noção de suas formas empíricas ou contingentes.
Contentamo-nos em discutir, a título de preliminares. alguns aspectos
problemáticos da questão. buscando, na medida do possível, apoiar
nossos pontos de vista na clínica e na teoria psicanalíticas.
Porém a dificuldade que encontramos na sist,ematilação da vio·
lência deve-se, em boa parte, à precária atenção que a própria teoria
psicanalítica, em geral, e não só entre nós, dedica ao assunto. O uso do
termo violência em psicanálise continua sendo confuso, impreciso e, às
vezes, claramente estapafúrdio. Um bom exemplo do que afirmamos
pode ser encontrado num curioso produto deste tipo de reflexão.
Em 1977. vários psicanalistas europeus organizaram um coló-
quio em Milão, centrado na violência. A conclusão é desconcertante.
Os participantes empregam a noção nas acepções mais diversas, sem o
menor cuidado com a clareza ou a coerência do que é dito. Armando
Verdiglione. o patrono intelectual do colóquio, afi:rma: "Que o sonho
exista não apenas no 'dormir'. eis aí a violência int:rente à hipótese do
inconsciente, pela qual o ato da palavra, enquanto ato falho, constitui
o sujeito" 2 • Como e por que existe violência no fato do sonho não ex,is-
tir apenas no 'dormir': como e por que pode-se deduzir disto a violên-
cia da hipótese do inconsciente; como e por que a hipótese do incons-
ciente porta uma violência inerente em si mesma, nada disto é explica-
do. O autor limita-se a postular a existência da vk>lência em fenôme-
nos pertencentes a registros diferentes do existente<! a registros diferen·
tes das teorias este existente, sem procurar fundamentar, de modo al-
gum, o que afirma.
Como este, poderíamos dar inúmeros outros exemplos, dispen-
sando-nos de comentar as' incongruências, subentendidos e mal-
entendidos inscritos em cada um deles. Marco Fo,=chi diz: .. Enquanto
que, cansados até o tédio das categorias clássicas de sujeito e objeto,
nós as entregamos ao próprio destino (e, quantq a isto, a ciência e a
mecânica quântica se ocupam), apercebemo-nos que a violência é abso-

2. VERDIGLIONE. Armando. Introdução. In: La violence Actes du co/loque de Mi-


lan- 1977, Paris. Union Génêrale d'~diti<?ns, 10/111, 1978, p•. 10.

lO
lutámente intransitiva. não pode ser sofrida nem infligido (grifos nos·
sos). Mas dado que a prática analítica é uma produção de saber pela
via mais simples, aquela de uma violência da .veducão, como podemos
autorizar-nos a esta violência?"). Para outro autor, Giancarlo Ricci.
"no ato da palavra 'id' violenta. O falante pode ter todas 'as boas ra-
zões' que quiser, aquelas oferecidas pelo bom senso e pela boa cons-
ciência, e. no entanto. justamente por causa da estrutura 'ineliminável'
do fantasma, a violência nunca falta"•. Enfim, para não prolongar ex·
cessívamente a repetição do mesmo, vejamos uma outra opinião sobre
o assunto: "O que se apresenta como radicalmente inconciliável, aqui-
lo de que é impossível dar conta - idest: a pulsão em sua vez sem volta
('sor. tour sans re-tour')- é, com efeito, o que existe de mais próximo
da violência. Logo. não existe algo que decida sobre a violência. A sa-
ber: não exí.vte nem responsável nem cau.va objetiva da violência. Mesmo
.te a violência concerne o individuo, não é por isto que ela pode ser locali-
zada" (grifos nossosf.
Pode-se pensar que tais citações. tomadas ao acaso e amputadas
do corpo do texto, distorcem o pensamento dos autores, impedindo a
compreensão de suas reais intenções. É possível. Isto, entretanto, não
elude o que nelas há de positivo. Afirmações como: a hipótese do in-
consciente possui uma violência inerente em si mesma; a violência é in-
transitiva e não pode ser sofrida nem infligida; no ato da palavra
"ld" violenta; a pulsão é o que existe de mais próximo da violência:
não existe responsável nem causa objetiva da violência etc., pois bem,
afirmações deste teor independem dos contextos em que estão articu-
ladas. Dependem. isto sim. de pressupostos que não são explicitados e
que permitem que os autores retirem estas conclusões de seus estudos
sobre a violência.
Também é provável que se possa imputar ao lacanismo teórico
dos autores a responsabilidade pela maneira evasiva e obscura com
que se exprimem. Não concordaríamos com esta hipótese, pois não é
verdade que a admissão dos postulados teóricos de Lacan conduza ne-
cessariamente a obscuridades e imprecisões. A linguagem cifrada dos
lacanianos (pelo menos em sua maioria) dificulta, de fato. a compreen-
são de seus trabalhos. Mas em autores não-lacanianos o tratamento
dado à violência não é menos ambíguo.
Assim. François G.antheret (diga-se de passagem, insuspeito de

l. FOCCHI, Marco. L'impasse de Tiresias, ibid.• p. 147.


. 4. RICCI, Giancarlo. Topo/ogie du discours de la fête, ibid.• p. 212.
5. RESCIO. Aldo. Vio/ence t'l po/itíque: entre pro-vo(atíon et rwe, ibid .. p. 235.

II
lacanismo teórico). em um dos raros bons estudos sobre a violência,
pergunta em certo momento: "Como um conceito- trabalho da razão
4ue se apropria dos objetos - pode apreender o que é a anti-razão, o
negativo absoluto da razão? Ê neste sentido que a violência não é um
conceito. assim como não o são a loucura ou a paixão. A agressividade
ê um conceito. a neurose. igualmente. A razão pode fazer trabalhares-
tes Cz9nceitos. d.elimitá-los em sua substância como em sua extensão.
distinguindo-os como elementos de cadeias lógicas, ou seja, animados
pela idéia de cau.salidade: isto é a definição de um conceito. Ora. o
mesmo não acontece com a violência ou com a paixão e a loucura. Se
não podemos chamá-los conceitos. como devemos chamá-los? Eles
têm esta característica particular de ser ao mesmo tempo seres de lin-
guagem pura. designando puros movimentos . E, mesmo assi m. ·m ovi-
mento' parece impróprio, na medida em que sugere finalidade ordena-
da. Para permanecer na linguagem do corpo, evocaríamos, antes, o
espasmo ou a âmvut.~ào, quer dizer o que abala o corpo em um radical
transbordamento de qualquer funcionalidade" 6 •
Deixemos de lado a singularidade da lógica que orienta o entendi-
mento da palavra conceito. Não fica claro se o autor pretende dizer
que a diticuldade em definir a violência deve-se à sua grande extensão
e à sua pouca significação ou at> fato de ser um conceito mais abstrato
que concreto ou ainda ao fato de ser um conceito apriorístico. para ai·
guns. Notável é que violência. loucura e paixão sejam tidos como "não-
conceitos" que podem ser contrapostos a termos como neurose ou
ugres.1·i1·idadt•. Em que as três primeiras idéias distinguem-se das duas
últimas'! Porque representam o que o autor chama o "negativo absolu-
to da razão"! Mas o que quer dizer este "negativo absoluto da razão'"!
Significa que a violência é estranha. em sua natureza. qualquer que
seja ela. à razão'! Mas isto não nos impede de pensá-la. Inúmeros fenô-
menos estranhos à razão foram por ela definidos, como o inconscien-
te, por exemplo. Ou significa, de maneira mais radical . afirmar que a
violência é absoluta e totalmente impensável? Neste caso. como expli-
car a tentativa do autor de refletir sobre a violência. E. mais ainda, a
experiência do dia-a-dia, que nos ensina a ver, conviver, experimentar
e racionalizar coostantemente a violência sofrida ou pensada?
Na verdade. o mais plausível é que a violência enquanto "negati-
vo absoluto da razão" seja apenas um modo de definir a violência

6. GA NTH ER ET. François. Rtgard psychoMiyrlqut sur la 11/o/tnct, U nivcr~idade de


Paris VIl. Conferência pronunciada no Instituto de P,ícanálise de Barcelona, outubro,
1980. p. 4 16. Separata.

\2
como o "irracional". Só que, adotando este ponto de vista. o ·autor
simplesmente filia-se a uma velha e repisada corrente de idéias, que faz
deste atributo o elemento definidor, por excelência, do fenômeno. Vol-
taremos a discutir esta noção de violência como sinônimo do irracio-
nal ou como e~pressão pura deste irracional. Por enquanto, é suficien~
te observar que esta concepção não é isenta de preconceitos e tem
como premissa o eclipse da razão, nó ato de viol~ncia, postulado tam-
bém questionável.
Continuemos a seguir o pensamento de Gantheret. Depois de~.
capitular brevemente o percurso 'teórico de Freud, ele chega à pulsão
de morte e à compulsão de repetição. Nesta altura, estabelece-se um
. ponto de contato entre a morte e a violência. A pulsâo de morte, diz
Gantheret, é o "demoníaco" encravado no "coração do sujeito"; são:
as profundezas do principio do prazer, ou melhor, a "desrazão ~o
princípio do prazerm. E, como a morte, para o autor, é a mesma co1sa
que a violência, esta última acaba sendo definida como este demonfa-
co, esta "desrazão", "esta loucura de Eros" instalada no "coração d~;> .
amor"'.
O que aprendemos nesta série de·afirmações? Em primeiro lugar,
aprendemos como a retórica vazia pode despedir a explicação e con-
fundir, ainda mais, o que se pretendia explicar. O que significa dizer
que a pulsão de morte é a "desrazão do principio do prazer"? O princi-
pio do prazer organiza-se conforme a razão para que, justificadamen-
te. se lhe possa opor a "desrazão" da pulsão de morte, como termo an-
tinômico? Segundo Freud, pelo menos, a resposta seria não! O ~rinci­
pio do prazer possui uma finalidade, mas isso nada tem a ~er com a ra-
zão. O principio do prazer em si é "desrazão". Sendo assim, afirmar
que a pulsão de morte é a "desrazão do principio do prazer" implica
em dizer que ela é a "desrazão da desrazão". Esta proposição carece
de sentido.
Se se trata de "licença poética", seria bom relembrar que este g~
nero de "psicoliteratura", como a chama Pingaud9• no mínimo. per-
deu a graç.á, pelos usos e abusos que sofreu. Se se trata de combater o
fantasma do "positivismo" (lobisomem de certos intelectuais), evitan-
do definições que correm o risco de ser refutadas. seria oportuno re-'
lembrar, igualmen.tc, que esoterismo não é dialética e que o potencial ·

7. lbid., p. 423.
8. lbid., p. 428. -·-··'1 R d
9. PlNOAUD, Bemard. ·' Les contrebandiert de l'kriture", in Nuv._ t ~ t
PsydtaMfyst, Paris, O allimard, n• 20, 1919, pp. 141-162.

13
de negatividade de um fenômeno pode ser e"presso conceitu almente,
·dentro do respeito à lógica. · · ·
, Em segundo lugar, aprendemos que esta definição da vi olência
(não obstante as intenções do autor, continua a ser uma definição)
ap~nas conli rm~ ~m pré-j uízo partilhado por grande parte dos psica-
nahs.tas:, a condtçao humana é um epifenômeno da viol~ncia . Neste
sentido e que Gantheret fala de uma violéncía da sexualidade em si; de
uma violência da linguagem. que tenta aprísíonar. denominando , està u-
xualidade: de uma violência inerente à relação com o outro.funt/amento
da própria llumaniza('ão, e assim por diante. · .
. A se,.ualidade, a seu ver, "dá-se como violência irreprimível. 'de-
ratsonnable' em sua reivindicação selvagem" 'n. A linguagem, por seu
turno, "ela mesma dá-se como violência feita à sexualidade. E assim
que P. Aulagnier chamara violência primária a obrigação imposta, de
pro~n to, ao sexual, de significar no desejo de Outro'''' . Finalmente, are-
laçao co~ . o outro, constitutiva da sexualidade e do próprio psiquis-
mo, possut um componente violento, que, conforme o autor, foi de-
mons~rado por ~er~nczi: "A demonstração que ele, Ferenczi.~ operou
atraves do concetto de identificação ao agressor, de uma violência ini-
~ial ~ ifficiadora d~ .rexualidade adulta (grifos nossos) n.o psiquismo in·
tanttl e das necesstdades vitais de uma gestão desta violência instalan·
do-a em si, na identificação primária, é absolutamente capital" 11 •
Passando direto ao que nos importa, a violência, neste como em
outros trabalhos do gênero, ou é tratada como um tabu, cercado e
pro.tegido do pensamen to, por uma aura romântico-pessimista, indi-
cattva., talvez, de "nobreza intelectual"; ou é considerada o zeró e o
inti~it~ ~u exis!ência do sujei to, t.o~nando-se uma espécie de categoria
a pr~ o." trreduttvel a qualquer anahse. Indo de um pólo a outro, a psi-
canahse entra no compasso das ideologias modernas. Fala da violên-
cia diluindo seu impacto e atenuando seu horror . Pois, no momento
~m q~e a define c~~o .sinônimo da morte, do que há de impensável e
mtocavel na expenencta humana, sacraliza-a. E, no momento em que
a define como, a "condição de possibilidade natural" do e.'(istir huma-
no (dado seu caráter de impulsão primeira e permanente do psiquis-
mo), banaliza-a. A violência torna-se o trivial variado de toda áthrida-
de ou experiência psíquicas, dando seu toque ao inconsciente, ao so-
nho. à sexualidade, a relação inevitável como o outro, etc.

10. GANTHERET, François. lbíd., p. 427.


11. lbid., p. 428. .
12. lAPLANCHE, J~an. Vi.! tr m~rl en psychanalyse, Paris. Flammarion, 1970, e
. Prohlémattques IV - L inconsdtnl et /e ça, Paris, PUF, 1981.

14
A nosso ver, a psicanálise foi levada a renunciar a seu potencial
crítico e a capitular diante da violancia. Esta rendição se deve, de um
lado, à penúria de reflexão sobre. 0 tema, e, de outro, à leitura pouco
discriminada de certos "complexos 'teóricos" da obra de Freud . Eluci-
demos esta afirmação abrupta, analisando alguns destes conjuntos no·
cionais, referentes à violência.
Três tópicos da teoria freudiana prestam-se a inter.pretações legi-
timadoras do papel da violência como fato inaugural ou essencial do
psiquismo: a teoria do trauma infantil, em particular, o trauma da se-
dução, a teoria da pu/são de morte e o estudo sobre totem e tabu. com
seus correlatos teóricos, que são o tabu do incesto e o mito do parricfdío
primordial. .
Naturalmente, o problema da violência, em Freud, não se esgo.ta
nestes tópicos. Mas é indubitável que eles contêm o essencial da teoria.
psicanalítica sobre o tema. Do mesmo modo, esclarecemos, de imedia-
to, que a ordem de exposição destes itens não segue a cronologia das
descobertas de Freud. Esta hierarquia traça a linha que v.ai do argu-
mento mais fraco ao mais forte, no que tange ao poder de convenci-
. mento da idéia de violência, que p~nsamos criticar.
· Nesta escala, a teoria do trauma infantil seria o primeiro suporte
da noção de violência, comb elemento fundador do psiquismo . Consi-
derando que, para Freud, a sexualidade infantil resulta da confluência
de três fatores- o estímulo biológico, o estimulo ligado ao exercício
das funções vitais e o estímulo exógeno, determinado pela excitação da
criança pelos pais (sobretudo a mãe, seja através dos cuidados e carí-
cias fisicas, seja através do próprio desejo libidinal pelo filho)- certos
autores viram neste último fator uma prova da violência necessária ao
surgimento do psiquismo .
Por que violência? Porque a criança é obrigada a introjetar ou in~
teriorizar uma excitação sexual, portadora de um significado que ul-
trapassa sua capacidade de' absorção biopsicológica. o desejo sexuál
do adulto é produto de uma evolução fisica e de uma história psfquica
que a criança não pode apreender em toda sua significação. Há um
dom e"cessivo que s.e antecipa à solicitação. Há uma oferta de sentido,
feita em nome daquilo que o adulto deseja e imagina que a criança de·
seja, que invade o mundo interno infantil, como um corpo estranho.
.Este excesso, não podendo ser metabolizado psiquicamente, é vivido
como puro afluxo de energia (no sentido metapsicológico estrito), com
uma tonalidade emocional violenta. O desejo dos pais, embora neces-
sário e inevitável, é sempre violentador. Esta seria a razão pela qual se
ppstula a inelutabilidade da violência na gênese e estruturação do psi-
&; ~.tismo. ·
Ninguém melhor que Laplanche, em sua série de estudos voltados

IS
à e~~!cse de Freud, rep~esenta este ponto de vistau. Esta também e a
-:ost~~ ~~ Gan~h7~et, quando recorre a Ferenczi para falar da ..vio-
lenct~ mtetal e mtctadora da sexualidade adulta", que acabamos de
menctonar. Enfim, o.mesmo poderia ser di~o da teoria de Aulagnier,
~u~ deacreve uma vaoante deste modelo bútco, ao referir-se à açio de
hnguag~ e de desejo do outro, sobre o psiquismo infantil••.
Insmuantcs_. à primeira vista, estas explicações revelam-se frágeis,
qll:an~o submettdas ~o teste; ~e coer~ncia teórico-clínica. A objeção
pnnapal a estas exphcações dtz respe1to à noção de violência. Embora
sem explicitar, é evidente que os autores têm como base de suas afir-·
mações a noção de violência, em sua clássica versão aristotélica ou se-
ja, .violência com_o a qualidade do movimento que impede as coisa~ de se-.
gutrem seu movtmento natural~'.
Só assim pode-se entender que linguagem, desejo ou sexua(jdade
do adulto violentem o psiquismo infontll. ~ porque os autores partem
do postulado de uma suposta naturalidade do psiquismo i.nfantil, que
segu~ um CUI'So ~postamente natural, que podem qualificar de violenta
a açao do ambiente ou do mundo externo sobre este psiquismo.
No ~nt~nto, tal argumento contradiz a visão psicanalítica, que de-
fine ;o pstq~tsmo como um fato cultural. Antes da intervenção da se-
xuahdade, hnguagem ou desejo do outro, não há psiquismo. Com boa
vo~tad.e, poderíamos admitir, no quadro da definição aristotélica, que
~s m~tlnto~ d~ filhote do homem são violentados pela ação humana,
Jamais o ps1qutsmo. Sendo um fenômeno da cultura e não da natureza
não se pod·e atribuir ao psiquismo um hipotético rumo natural, inde~
pendente desta cultura.
~ lógi.ca d~ste argumento não se sustenta, posto que aceitar suas
prer~ussas •.mp.hca em negar as premissas da teoria psicanalítica, nas.
quats o propno argumento tem origem. t!. contraditório admitir, ao
mesmo ~empo, um~ noçã~ d~ p~iquismo como produto da interélção
cu~tu~al e uma noçao de vtolencta que pressupõe a naturalidade deste
pSIQUISmO.
·_ A co~ tradição- lógica é de tal modo flagrante que o argumento
·n~o podena ~anter-se•. a não ser que fosse sustentado por .outras ra-
~oes. ~om efe1to, acred1tamos que o suporte deste paradoxo reside na
mtençao latente da argumentação. O que este tipo de raciocfnio visa é

Ü . . AULAONIER, Piera. La vW/ence dt l'ittttrptitatlon, Paris, PU.F, 1975.


1.~· . ~RRATER MC?R~. Jos6. Voc:ábuJo Violbcia, in Dicdolliírio dt filoso./14 tomo
4 Madnd, Allanz.a Ed1tona1, 3• ed., 1981, 34JS.3437. '
~~. ~~~DIEU, Píerrc, e PASSERON, Jean Claude. A rtprodução, Rio, Franciac:o AI-
1
16
·a reiteração .·da idéia de que a cultura como o psiquismo só existem
.pela ação da vio~ncia. Esta idéia tornou-se um hábito mental dos psi-
canalistas, tanto mais diflcil de ser criticado quanto é partilhado por
alguns dos pensadores mais lúcidos da cultura contemporânea.
Vejamos o caso de Bourdieu e Passeron. No trabalho sobre "A
Reprodução", os autores tecem considerações sobre a "violência sim-
bólica" de toda ..ação pedagógica", que confirmam o que acabamos
de dizer". Bourdieu e Passeron iniciam a (efleltãO com o seguin!e.a,xio·
ma: "l. Toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência
simb6/ica (grifos nossos) enquanto imposição, por um poder arbitrá~
rio, de um arbitrário cultural" 17 • Este axioma desdobra-se em duas ou-
. . .
·tras proposições: J9) .. 1.1. A AP t objetivamente uma violência simbóli-
ca, num primeiro sentido, enquanto que as relações de força entre os
grupos ou as classes constitutivas de uma formação social estio na
base do poder arbitrário que~ a condição da instauraçio de uma rela-
ção de comunicação pedagógica, isto é, da imposição e da inculcaçio
de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário de imposição e
de inculcaçio (educação)." 2t) .. 1.2. A AP .é objetivamente uma vio-
lência simbólica, num segundo sentido, na medida em que a delimita-.
ção objetivamente implicada no fato de impor e de inculcar certas sig-
nificações, convencionadas, pela seleção e a exclusão que lhe é correla-
tiva, como dignas de serem reproduzictas por uma AP, reproduz (no
duplo sentido do termo) a seleção arbitrária que um grupo ou uma
classe opera objetivamente em e por seu arbítrio cultural.""
Para desfazer possíveis confusões ehtre o arbitrário e o gratuito,
os autores precisam, então, as noções de .arbitrariedade cultural e ne-
cessidade sociológica: "1.2.1 A seleção de significações que define ob-
jetivamente a cultura de um grupo ou de uma ela~ como sistema sim-
bólico é arbitrária na medida em que a estrutura e as funções dessa cul-
tura não podem ser deduzidas de nenhum principio universal, fl.sico,
biológico ou espiritual, não cst~ndo llnidas por n~nhu~a espécie de
relação .interna· à 'riature~ das coisas' ou a uma 'natureza human.a '"".
No que concerne à necessidade sociológica, é afirmado: "1.2.2 A sele-
ção de significações que define objetivamente a·ctdtura de um grupo
ou de uma classe como sistema simbólico é sociologicamente necessá-
ria na.medida em que essa cultura deve su~ exist!ncia àS condições so-

16. · lbid., p. 20.


17. lbid., pp. 21-22
18. lbid., p. 23.
19. lbid.

17
ciais da qual ela é o produto, e sua inteligibilidade à coerência e às fun-
ções da estrutura das relações significantes que a constituem.,.
Se nos detivemos tão longamente na exposição desta teoria, foi
com o intuito de mostrar de que modo o pensamento moderno habi-
tuou-se a pensar na violência como um verdadeiro .,instinto" da histó-
ria e da cultura. Ou. então, como um substituto do "fiat" divino. Se-
guindo Bourdieu e Passeron, concluímos que não existe cultura sem
seleção arbitrária de significações e imposição destas significações.
através da ação pedagógica. E como este arbitrário cultural é produto
de um nect·ssário .'iOâológh·o, n:produtor das relações de fo rça, o sopro
fun~ ador da cultura é a violência. Todo ato de reprodução cultural é
simbolicamente violento.
Poderíamos perguntar, entretanto, se a noção de violência. dilata-
da até este limite. guarda uma relação qualquer com a intuição corren-
te que teinos do fenômeno . Com isto, não tentamos apologizar o senso
comum, tentamos fazer valer o bom senso. De fato, a interrogação que
surge frente a um tal raciocínio é a seguinte: a violência definida por
Bourdieu e Passeron é um termo distinto da noção cultura ou um ele-
mento definidor da cultura? Sem violência, pelo que enunciam os au-
tores, não há cultura. Cultura é a imposição violenta de uma seleção
arbitrária de significações. A violência é, portanto, uma propriedade
da cultura. Mais que isso, é moto-propulsor da reprodução cultural.
Pode-se objetar que este raciocínio é enganoso. O que se afirma.
dir-se-á, é que a violência da reprodução cultural deriva da neces.tidade
.wciológic·a, isto é. das relações de força determinadas pelos grupos ou
classes domin antes. Mas, responderíamos. a menos que estes grupos
ou classes sejam espécimes extraterrestres, também eles são produto
da cultura. A tautologia é óbvia. Não há saída, d as duas uma: ou con-
servamos a acepção corrente de cultura e violência, e então faz sentido
falar da ação da cultura sobre a violência e vice-versa, dado que são
termos distintos, com qualidades distintas; ou recusamos esta concep- ·
ção e não faz sentido persistir usando a palavra violência, com uma
carga semântica absolutamente diversa de sua significação usual.
No sentido usual. somos perfeitamente capazes de diferenciar
u ma ação violenta de uma outra sem este qualificativo. Esta diferen-
ciação pode ser vaga, imprecisa e ideologicamente dirigida pelo senso
o rdinário. Porém estas restrições não invalidam o bom senso existente
nesta distinção. Di ríamos. mesmo, que o defeito Jógico da noção de
violência. na acepção usual. é menor que a fa lha precedente, po rquan-
to leva em conta evidências que a abstração científica termina por
ocultar. De fato. como é possível homogeneizar fatos tão diversos
como a educação nazista e a transmissão da cultura em sociedades et-
nológicas, sob a rubrica da violência?

18
Da m~ma forma, ern que medida é legítimo q~alifica~ in.discri!"i-
d· mente de violência o fato da seleção arbitrána de stgmficaçoes,
~:cr~nte ao processo de transmissão cultural , aleg~ndo q~e,_es~a sele-
- traduz os interesses dos grupos ou classes dommantes. c. v!olento
ça~ 10 do indivíduo moderno ter uma visão do mundo predommante-
~~1 .'~te secularitada ao invés de religiosa, como seus antepassa~~s? É
vi~lento o fato do indivíduo socializado na cultura fran~~ nao po-
der falar todas as out.ras línguas, nem ser ~apaz ~e exprtmtr, em s_ua
identidade. os t raços culturais de outras etruas~ t vtolento, en.fim, o m-
divíduo ocidental fazer do ideário da revot.uçao f~a.nce~a :- l_tberdade,
· Idade fraternidade - a bússola de sua v1da políttco-Jundica, quan-
Jdgu~s indivíduos pertencentes a sociedades holistas desconhecem ou
o ?
desprezam estes mesmos val<?res. .. . _
No entanto. todos estes ttens transmttJdos pela cultura ._?e Bour
dieu e Passeron foram selecionados arbitrariamente~ em funçao de ne-
cessidades sociológicas que atenderam, também, os 1~te~es~es do.s gru-
pos e classes dominantes da socie~a~e fra~cesa. A ~tolenct~ restde n~
pura e simples exclusão de certas stgntficaçoe~ d~ u~IV;rso da reprodu
ção cultural ou na maneira como esta exclusao e fetta . Pod_:m~s colo-
.. r em pé de igualdade culturas onde as normas e valores nao s~o pos-
~~s em questão por se fundarem numa visão mítica d~ vida soctal ~co­
mo nas sociedades etnológicas) e culturas onde a vahdade e a obng~­
toriedadc destas normas não são contestadas pela força da repressao
político-ideológica'! . . . .
Vamos adiante. Recentremos a questão em nossa propna vtda so-
cio-cultural. Se. como afirmam Bourdieu e Passeron, um~ das carac-
terísticas da violência simbólica é de dissir~tu.lar as_ relaçoes. de for~a
subjacentes à reprodução cultural, a des!"Jstlfi_c~ça.? d.esta tdeologt.a
deveria, em princípio, equi'iale a uma açao antlvto~encta. Mas, o ha-
bito mental de duvidar das evidências e buscar a lóg1c~ oculta das apa-
rências é um imperativo da razão científica. É um estilo d~ pensam~n­
to tfpico das elites cultivadas e ocidentalizadas, em es~ec1al das ehtes
universitárias. Ao que tudo indica ninguém nasce e v1v~ postulan~o
4uestões a respeito da real natureza dos fenômeno.s soCiaiS e do veu
ideológico 4 ue as encobre. O senso comum. prova_tsto ..Aprende-s~ a
duvidar. como se ap(ende a crer. Em face desto, nao ser_1a uma volen-
cia simbólica querer t ranspor esta forma de pensar o soc1al e o cultural
para as camadas sociais que a ela não têm acesso?
Suponhamos que não. Suponha~~s q ue se contra-ar~umente ~ue
as classes sociais oprimidas não p_artl~tpa.m .da ~l~boraça? deste. ttpo
de pensamento, dada a própria açao d1scremmat~na exerceda pela ~e­
dagogia. em funçã o dos interesses da classe ~?mmante. Mas, se. ass~m
é. isto significa dizer que 0 "modus operandt do pensamento ctenhfi-

19
co não é "'arbitrário" nem deriva de uma "necessidade sociológica" de
grupos sociais? Ou, colocando a pergunta sobre outro ângulo, o estilo
de pensamento científico exprime, por acaso, "um principio universal,
físico, biológico ou espiritual, unido por uma relação interna à nature-
za das coisas ou a natu reza humana"? Se a resposta for não- e confor-
me Bourdieu e Passeron não poderia deixar de ser - , então, compreen-
der e denunciar os interesses de classe ou grup.o, ocultos na pretensa
neutralidade ideológica da reprodução cultural, também é uma violên-
cia simbólica. Sendo um pensamento cultural, com inegáveis repercus-
sões pt:dagógicas, este pensamento inevitavelmente deverá exprimir in-
teresses de grupos e selecionar arbitrariamente significações culturais a
serem transmitidas.
Este exempkl mostra a que impasses podemos chegar, quando.
privilegiamos o formalismo em detrimento da complexidade do real.
A abstração em causa representa, no vocabulário científico, a crença
de que a violência é a condição necessária e suficiente da cultura. A re-
dução formal dos fenômenos sociais a uma mesma fórmula verbal é. o
meio intelectualmente "legítimo" de objetivar esta crença, no seio da
comunidade cu ltu ral.
Voltemos, entretanto, à psicanálise, observando como este ra-
ciocínio se comporta no confronto com a teoria clínica. Retomemos a
citação de Ferenczi, escolhida por Gantheret para justificar a idéia de
um a "violência inicial e iniciadora da sexualidade adulta" no psiquis-
mo infantiL Não por acaso, este mesmo trabalho é utilizado por La-
pl anche, para mostrar o caráter necessariamente violento da se)(uali-
dade, embora sem empregar manifestamente a palavra violência~ • 0

Fe renczi, no referid o estudo, via na ·"paixão" do adulto uma ma-


nifestação da sexualidade, traumática para a criança, que teria necessi-
dade d~ "ternura", uma outra forma de expressão do erotismo , e não
daquela paixão. Porém, ao comentar o fenômeno, em seu trabalho
sobre "Confusão de línguas entre os adultos e a criança", Ferenczi não
fazia deste traumatismo a condição universal da emergência da sexua-
lidade ou do psiquismol1• Ele falava de casos patológicos procurando
traçar um paralelo com a conduta do psicanalista. Assim como o adul-
to perturbado psiquicamente. o psicanalista poderia desconhecer as
necessidades do paciente e vir a impor-lhe uma interpretação, que, na
forma 'ou conteudo, seria igualmente traumática ou violenta.

20. LAPLANCHE, Jean. Vie tt mort tn psychaM/yst, op. cit., pp. 78-79.
21. FERENCZl, Sandor. "Confusion oftonzucs betwcen adults and the ohild", in Fi-
nal contributions ro tht prob/tms & methods of psyc:ho-aMiysis, London, The Hogarth
Press and Thc lnstitute of psycho-analysis, 1955.

20
Gantherct e Laplanche convertem ~ es!ud_o de Ferenczi, num.a in:
. ·cão ''avant la lettre" , do papel da vtOlencta como elemento mstl-
:~~nte do psiquismo. T odavia esta interpre~açào J.>O~e e.star de ac~rd?
. m suas próprias idéias sobre a importanc1a da v10lencta na :,onstttut-
~~0 do psiquistno, mas não deve confund!r-se c?m a afirmaçao de Fe-
. Para não deixar dúvidas quanto a 1sto, cttemos o trecho do tr~-
ren czl · "A · f m
balho usado por Gantheret, para defen~er s~as teses: ryptca _way
whích incestuous seductions may occur 1s thiS: an adult a~d a ch1/d /ol'e
each other, the child nursing the p/ayful fanta~y of takmg tht role of
nwther to the adu/t. This play may assume e.rot1c forms but ~emams, ne-
vPrthefess. on the levei of tenderness. lt ís not so, however. w1th. pathol~­
gical adults (destaques nossos), espedally if they ha\lt been dJsrur_bed '?
rheir balance and selfcontrol by some misfortune or by the ~e ofmtoxr-
cating drugs. They mistake the play of children [or the ~esrres of a se-
xually mature person or even al/ow themselves - ~rre_speetiVe of any con-
sequence.'i - to be carried away. The real rape of g1rls who have hard_ly
grown out of the age of infonts, similar sexual acts of mature women wlth
hm·s. and a/.w enforced homosexual acts. are more frequent ocurrences
thtm has hitherto been assumed. . . .
lt is difficult to imagine the behaviour and the emotwns oj c~tldren
after such Violence (desltUfue nosso). One would ~xpect the .[irst tmpulse
!
to be tlrat of reaction, hatred, disgust and energet1c refusal. No, !'o, do
not want it it is much too violent for me, it hurts, leave me a/one • thrs or
something ~imilar would be the immedi~te reaction if i! had not been pa-
ràlysed by enormous anxiety. Th ese chtld~en fee/ physr~ally a?d morally
helpless, their personalities are not suffictently consolidare? m order to
be able to protest even if on/y in thought, for rhe overpowenng J.orce and
authority of the adult mabs them dumb and can fC!b them_ of thelf senses.
The same anxiety, however, if it reaches acertam ma~1mum. compels
them to subordinate themselves Jike automata to the wtll o f the aggres-
sor, to divine each one o f his desires and to gratify ~hese; completelr,
oblivious of themselves they identify themselvcs wtth the agressor
(destaques nossosY1 - . • •
O propósito de Ferenczi é inequívoc~. A v1olêncaa relatada extst:
nos casos patológicos e de modo algum e tomada como ~odelo com
pulsório da resposta afetiva do adulto .à. dem~n da da cnança . . _
Pouco a pouco , a teoria psicanaht1ca m1grou d~s propostçoes
freudianas a respeito da natureza traumática da sexualtdade para uma
concc:pçào da natureza violenta deste traumatismo. No cerne da muta-

22. lbid., pp. 161-162.


21
ção_ ~ncontra~os dois motivos.' O primeiro é interno ao campo psica-
n!lh~tco e baseta-se n~m ~quívoco. Identifica-se trauma infantil com vio-
h·~ct~, f~zen~o ~o pm~e~r~ termo- este, sim, condição sine qua non da
ext~te~cta pstq~tca - smommo do segundo, fenômeno gratuito em re-
Jaçao as necesstdades do desenvolvimento psicológico da criança. No
estudo sobre "violência e narcüismo", contido neste volume, critica-
mos esta suposta identidade entre traumatismo em geral e violência.
Remetemos, portanto, o leitor a esta parte do livro, evitando repetir
afirmações feitas anteriormente.
• O segundo motivo concerne à crença na primazia da violencia na
g_enese da ~u ltur a e, por conseguinte, do psiquismo. Esta crenç3:, comó
v_tmos no exemplo da citação de Ferenczi, é tão forte que leva os ana-
h~tas a tomarem como prova de validação da hipótese uma interpreta-
çao dos dados conforme os pressupostos da hipótese.
. Co~ tudo, o mais interessante, sob este aspecto, é perceber como a
pstcanáhse não só ·se deixou influenciar por esta crença mas em certa
medida, ajudou-a a implantar-se e a consolidar-se n'a m~ntalidade
atual. A descoberta de Freud, relativa à pulsão de morte, é, neste senti-
do, exemplar.
Com base na representação, bastante difundida em seu tempo de
que o homem é o lobo do homem, Freud sempre procurou mostr~r o
que havia de destrutivo e agressivo no comportamento e nos desejos
mais recônditos do sujeito. Depois de seu estudo sobre a pulsào de
morte, esta crença tendeu a firmar-se e, retomada a torto e a direito,
por ~e~s ~iscf~ulos e continuadores, passou a funcionar como prova
da wolencta extstente na "natureza humana" e na "natureza das rela-
ções sociais". ·
Alguns trabalhos de Freud são especialmente significativQs para a
demonstração do que afirmamos, na medida em que se reportam dire-
tamente ao problema da agressividade, destruição e violência na vi da
social e não apenas nas relações interpessoais. Dentre eles, vamos res-
saltar os mais conhecidos.
No ensaio intitulado Reflexões para os tempos de guerra e morte
( 1915), Freud refere-se ao "ódio" e aos "instintos maus e egoístas" do
ser humano 1J: Dentro de sua conhecida óptica evolucionista, procura
mostrar que o homem, sem a ação da civilização é instintivamente
destrutivo, e a melhor prova seria o modo de vida dos povos "primiti-
vos". "Era (o primitivo) serp dúvida uma criatura muito impulsiva ·e

'3 · FREUD, Sigmund. "Rellel!ôes para os tempos de guerra e morte", in Obras com-
plnas, Rio, lmago Editora, 1974, vol. XIV, pp. 311-339.

22
mais .cruel e maligna do que outros animais. Gostava ?e mata.r, e fazia
isso como coisa natural. O instinto, qu~. segun~o se_dtz, re~reta outr~s
animais de matar e devorar sua própna espécte, nao prec1sa ser atn-
hutdo. a eIe. " -'" . . .
Em 1920. conw se sabe, Freud escreve Além do princípio do pra·
rer criando a noção de pulsão de morte. ~· Esta noção vai sub~umir no-
çõ; s anteriores como a pulsào de domínio. pulsào de ~estr~t~ã_?. pul-
sào de agressão. etc. A pulsào de morte reo.rdena .a a~t1ga d1vts~o pul:
siooal. colocando no primeiro plano da v1da ps1qU1Ca a ten~enc1a a
dc ~ truiç ii o do sujeito e do objeto. Agora, AO lado d a sexuall d~de . a
destruição vai interferir decisivamente na explicacà<? dos_m~ca~t~mos
mentais c passar a ser considerada um dos elementos prtmordtats no
destino da vida psíquica e social do homem. .
· Este ponto de vista é particularmente bem ilustrado no estu~o
sobre o " Mal-estar na civilização" ( 1929) ?•. Freud fala, de manetra
cuda vez mais viva, do problema dos instintos destrutivos humanos,
considerando-os responsáveis pelo mal-estar da civilização: "No que
se segue, eu manterei o ponto de vista de que a agressividadc constitui
uma disposição instintiva primitiva e autônoma do ser humano. E,
volto a sublinhar o fato de que a civilização encontra nisto seu entrave
mais temível.. ~-. Na conclusão do trabalho, estas idéias são reafirma-.
das. sem hesitação: "Aqui. como já reconhecemos, o problema consis-
te em descarta r o maior obstáculo encontrado pela civilização, qual se-
ja. a agressividade constitucional do ser humano contra o. outro ..."
Continuando. Freud volta a insistir que: "A questão do destmo da es-.
pécie humana parece-me colocar-se da seguinte maneira: o progresso
da civilização poderá, e em que medida, dominar as perturbações tra-
zidas à vida em comum pelas pulsões humanas de agre~.;ão e de auto-
dest ruição?'':s
Finalmente, em 1932, Freud aborda novamente a "quest.ã<?, na cor-
respondência com Einstein. publicada sob o titulo de Por que a guer-

24. lbiê.. pp. 330..331. 1ttJ 1


25. FREUD. Sigmund. "Au·dela du principe du plaisir", in Essafs dt psyc nay~e.
Paris. Pctitc Bibliot heque P.ayot, 1970, pp. 7-8 L .
~6. FREU D. Sigmund. Ma/ais~ dans la civilisations, Paris, PUF, 29 cd., 1971.
27. lbid .• p. 77.
2~. lbid., pp. 104-107.

23
2
ra? ' Na carta a Einstein, Freud retorna aos velhos temas da agressivi:
dade e destrutívidade do homem, mas com um adendo, fundamental
para nosso propósito. O emprego da palavra violência é muito mais
freqüente e a noção é empregada êm contextos que tornam sua com-
preensão problemática, diversificada e cheia de ambigüidades.
Num primeiro contexto, a violência é associada à agressividade
instintiva. A violência nasce da agressividade, da "inclinação instinti-
va" do homem para matar ou fazer sofrer seus semelhantes. É assim
que Freud diz: .. De forma que, quando os seres humanos são incitados
à guerra. podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar
- uns nobres. outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais
mencionados. Não há porque enumerá-los todos. Entre eles está certa-
mente o.desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que
encont.ramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a
sua existência e a sua força . A satisfação desses impulsos destrutivos
naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natu-
reza erótica e idealista. Quando lemos sobre as atrocidades do passa-
do. a miúdc é como se os motivos idealistas servissem apenas de excusa
para os desejo..; destrutivos; e, às vezes - por exemplo, no caso das
crueldades da Inquisição - , é como se os motivos idealistas tivessem
assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destruti-
vos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser
verdadeiros":'" ·
C omo se vê, a violência não tem outra causa senão a satisfação
dos impulsos e desejos destrutivos do homem. Os motivos "vis" ou
"nobres" são racionalizações (no sentido psicanalítico), destinadas a
j ustificar, perante a consciência, a existência desta destrutividade.
Num segundo contexto, a violência aparece como uma conse-
qüência do "conflito de interesses". t., digamos assim, um instrumen-
to de que se servem os homens para arbitrarem estes conflitos. Mas.
segundo Freud, um instrumento privilegiado. um princípio geral da
ação humana frente a este tipo de situação: "É, pois, um princípio ge-
ral que o conflito de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da
l'iolênda (grifos nossos) 3 '. Por que a violência tornou-se este princípio
geral de resolução do litígio entre os homens? Eis a resposta de Freud:
"As guerras só serão evitadas, com certeza, se a humanidade se unir
para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito
de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos ela-

~9. 1-'R EUD, Sigmund. " Por que a guerra?" in Ohros completas, op. dt., vol. XXII.
pp. 237-259.
30. lbid., p. 253.
31 . lbid .. p. 246.

24
ra mente dois requisitos: criar uma instância
. . ..suprema
., }1 e dotá-la do ne-
cessário poder. Uma sem a outra sena t~ut1 1 . .. .
A instância suprema, para Frcud, sena o dtreato e a le1. ~treta.n­
esta lei c este direito, por sua vez, já seriam produto da vtolênct~:
~~Havia um caminho que se estendia da vi~lência ao dí_reito ou à let.
Que caminho era este? Penso ter sido apenas um: o. cammho ~u~ le~a-
a ao reconhecimento do fato de que à força supenor de um umco tn-
~ívíduo podia-se contrapor a união de divcrso~)ndi~iduos .fracos. L'u-
nion fait la force (em francês, no original). A ~tolêncaa podta ser derro-
tada pela união, e o pod~r ~a~ue~es qu~ s~ U;ntam ~cpresentava •.agora,
a lei em contraposição a vtolencta do andtvtduo so. Vemos, asstm, que
a te/ é a força d~ uma comunidade. A inda i violê~da, pronta a se WJ!ra_r
contra qualquer indivíduo que se Ih~ oponha; funciOna ~los mesm~s me-
todos e ~rsegue os mesmos objet~os; A ~nica.di(er~nça real .ns!~e no
fato de que_ aquilo que prevalec~ nao e m~u a vio/encz:: de um mdtvt'duo,
mas a violencia de uma comumdade (gnfos nossos). .
Continuando; Freud acrescenta: "A fim de que a transtção da
violência a este novo direito ou justiça pudesse.ser efet~ada, cont~d?,
uma condição psicológica teve de ser preen-chida. A untão d~ matona
devia ser estável c duradoura. Se apenas fosse posta. em práttca com. o
propósito de combater um individuo isola~o e d?mmante, e fosse dts-
solvida depois da derrota deste, nada se tena .realizad?. A pessoa, a se-
gui r, que se julgasse superior em f~rça, h.a vcna .de mat.S um~ ~ez te~tar
estabelecer o domínio atr<Jvés da vtol~ncta, e o JOgo se rcpetina ad mfi:
nitum. A comunidade deve manter-se permanentemente, deye orgam-
zar-se deve estabelecer regulamentos para antecipar-se ao nsco de rc-
belià;e deve instituír'autoridades para fazer com que esses regulamen-
tos - as leis - sejam respeitados, e para superinte~der a execuçã? dos
atos legais de violência (grifos nossos). O reco~hectmento de uma tden-
tidade de interesses como estes levou ao surgtmento de vínculos emo-
cionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas - sentimen-
tos comuns. que são a verdadeira fonte de sua força" .J•
Em putras palavras, Freud retoma as leses ~e Totem e tab~ ~ da
Psicologia das massas e análise do eu, para c~nclutr que a com~~tdadc
dos homens "se mantém unida por duas c01sas: a força coerctttv~ da
violência c os vínculos emocionais (identificações é o nome técmco)
entre seus meml>ros". 3j. lsto é, o direito e a lei são mantidos pela vio-

32. lbíd., p. 2SO.


JJ. lbid:, p. 247.
34, lbid.
35. lbid., p. 2S I.

2.5
lência (Totem e tabu) e o que poderíamos chamar de consenso. consen-
timento ou apoio à lei, pela culpa derivada do parricídio primordial
(Totem e tabu) e pelas identificações homossexuais. derivadas do amor
ao líder ou ideal do eu (P.~icologia das massas e análise do eu).
Este segundo contexto em que se inscreve a noção de violência é,
seguramente, o mais complexo, razão pela qual será comentado no fi-
nal deste estudo, junto com a análise de Totem e tabu. No momento,
basta cham ar a atenção para o fato de que a violência deixa de ser
pura impulsão irracional para a destruição, puro "espasmo" ou "con-
vulsão'_' (como q~er.Gantheret) da morte ou da agressividade, para ser
um me10 que os tndtviduos encontram de instaurarem o direito, a lei e
a justiça. A violência é posta a serviço da preservação da comunidade
e da vida cultural e não do desejo instintivo de. matar ou fazer sofrer o ·
semelhante.
Por último. a violência articula-se no contexto, intrigante, ·da paz
e do pacifismo. Reiteradamente definida como inevitável, como ins-
trume~t_o imprcs~in~ível ~ o~g~nização social, por fazer parte da
agresstvtdade mst_m,tlva do tndlvtduo, a violência, subitamente, ápare-
ce como domesttcavel pela ação da civilização. No fim do ensaio,
Freud pergunta: "Por que o senhor (Einstein) eu e tantas outras pes-
soa~ nos revoltamo~ tão violentamente contra a guerra? Por que não a
aceuan~os fOmo mats um~ das m_uilas calamidades da vida? (grifas nos-
sos) Altnal. parece ser cotsa mu1to natural, parece ter uma base bioló-
gica c ser dilicilmente evitável na prática." Depois de levantar uma sé-
rie ~e razões éticas, chega à conclusão seguinte: "Penso que a principal
razao po_r que nos rebel_amos con tra a guerra é que não podemos fazer
~utra COJ~a: Som~spactfístas porqu~ somos obrigados a sê-lo, por mo-
tivos organtcos bas1cos. E sendo ass1m temos dificuldade em encontrar
argumentos que justifiquem nossa atitude." 36
o motivo que explica a passagem da agressividade instintiva do
indivíduo para seu pacifismo orgânico é a ação da civilização: .. Dentre
as ~a ~acte rísticas psicológicas da civilização, duas aparecem como as
mats Importantes: O fortalecimento do intelecto, que está começando a
governar a vida instin tual, e a internalizaçào dos impulsos agressivos
com ~odas as s~as. co~seqüentes vant~gens e perigos. Ora. a guerra se
constttu1 na mats obv1a opostcão à atttude psíquica que nos foi incuti-
da pelo processo de civilização e por esse motivo não podemos evi!ar
de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos con-

_1(, lbíd .. pp. 2~6-257.


formar com ela. lsto não é apenas um repúdio intelectual e emocional;
nós, os pacifistas, temos urna intolerância constitucional à guerra, di-
gamos, uma . idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. E quanto
tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também
se torne pacifista? Não há como dizê-lo . Mas pode não ser utópico es-
perar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das
conseqüências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um
tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra.
Po r quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos
adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer. tudo o que estimula o cres-
cimento da civilização trabalha simultaneamente '-'Ontra a guerra." )7.
A _trajetória de Freud, neste texto, é de grande interesse para nos-
so objetivo. Após definir a violência como pura manifestação da
agressividade, como algo, portanto, indomável, ele a define como ins-
trumento ou meio de que se servem os homens para implantarem a or-
dem da lei e do direito. Por fim, depois de exaltar a constância e a irre-
dutibilidade dos instintos de destruição, fecha o raciocfnio afirmando
a existência de uma espécie de "instinto de paz", criando, socialmente,
o que deita por terra sua tese inicial. lnconcruência da teoria ou fideli-
dade aos fatos? Pensamos que não existe a alternativa um ou outro,
mas a soma de um mais outro. Freud era bem mais atento à diversida-
de da vida psíquica e social que seus seguidores. De fato, atribuir à "a-
gressividade" toda a responsabilidade pelo aparecimento da violência
da história e na cultura convence tanto quanto atribuir a responsabili-
dade pelo bombardeio atômico de Hiroshima à física nuclear ou às
propriedades físicas do átomo. A aparente incoerência da teoria revela
o que o Freud observador não pôde deixar de notar: não existe um
"instinto de violência". O que existe é um instinto agressivo que pode
coexistir perfeitamente com a possibilidade do homem desejar a paz e
com a possibilidade do homem empregar a violência.
O argumento que faz da agressividade instintiva, do "componen-
te animal do homem", a causa da violência é impertinente, por várias
razões. Em primeiro lugar, porque, como bem assinalou Hannah
Arendt, baseia-se em redundâncias do tipo o homem comporta-se
corno um animal porque é um anímaP'. Ora, se o homem é por defini-
ção um animal, por que deveria comportar-se corno outra coisa? E se
com este argumento se pretende substituir o antropomorfismo por um:
teriomorfismo, deve-se dizer que tal malabarismo teórico desfaz-se
diante do menor olhar crítico. Hannah Arendt aponta com perspicácia

37. lbíd., pp. 258-259.


31!. ARENDT, Hannah. "Da violência", in Crlsts da rtpúblira, São Paulo, Perspecti-
va. 1973, p. 134.

27
a debilidade .de.ste ~aciocí~io quando ·diz: "Para saber que 0 povo luta-
rá por sua patna nao prec1samos descobrir instintos de 'territorialismo
grupa~· em formiga~, ~eix_:s e macacos; e para aprender que a superpo-
~~la~ao resulta em 1mtaça o e agressividade, não temos que fazer expe-
nen~las com ~atos. Basta passar um dia nos cortiços de qualquer gran-
de Cidade. Frco surpresa e encantada de ver que alguns animais se
comp?rta.m como homens; mas não consigo ver de que forma isto
pode J~Sh~car ou condenar o comportamento humano." J•
. A JUStificativa etológica pode ser posta de cabeça para baixo e ser-
VIr de prova para a demonstração inversa, ou seja, os animais compor-
tam-s~ como os homens. Adolf Portmann sintetiza exemplar{Tiente
o
esta demarche quan_do ~li r~ a: " ... estas novas percepções sobre éom-
portamento dos amma1s na o fecham o abismo entre o homem e o ani-
mal; somente demonstram que ocorrem nos animais muito mais coisas
que conhecemos sobre nós mesmos do que podemos imaginar. " 40
. , E"_l s~~undo _lugar, o argumento biológico sobre a natureza da
Y_JOI~ncJa e mconsrst~n~e, ~o~que se apóia na premissa, também ques-
~•on_avel, de_ ql:e a v10l:_ncta e produto da conduta humana movida pelo
mstmto e ~a~ p~Ja _r~zao: Este lugar-comum corresponde à afirmação
d~ que a wolnlCia ~ Irraetonal. Contudo, a violência nem sempre é irra-
c!on~l. e,_mesmo nos c_asos em que a irracíonalidade dá origem à vio-
le~cla, na~ se pode drzer que esta irracionalidade é instintivamente
ammal. ~ trractonalidade· da violência, quando existe, nunca coincide
com. a ar;ao puramente instintiva. É o que procuraremos demonstra r
analisa ndo as conotações dadas à noção de irracionalidade em sua~
relações com a violência. '
• ·. ~ P~im~ira acepção do termo irracionalidade. quando associado
a v1olenc•~· :a ~e "~moci.onal". É comum dizer-se que alguém come-
leu umll v1olencJa ag1~do lrrac~onal.~ente, p~r força da raiva, desespe-
ro, ~te. Nesta afirmat1va, fica lmpltcito que Irracional é idêntico a "e·
~oc1onal". Estabelece-se uma eq uivalêpcia entre violência, irraêiona-
~Idade e ~esc.on~role emocional, e daí para se afirmar que o emotivo é
~~ual a.o ms~.mt1vo, o passo é curto. No entanto. um comportamento
emoc10~al {n~ sen~1do ~e comportamento impulsivo, descontrola-
do, que e~ s~nt1do dtfu_ndJdo n? _senso comum) não é um comporta-
"?en_to ~estttu1do d~ razao. O SUJeito pode agir emocionalmente·e com
v•olenc1a~ sem q_u~ ·~to exclua a participação da razão. "Emocional"-
na acepçao o~dmana do termo e não na definição científica - não é
opo~to .de ractonal: é o oposto de indiferente, apático, abúlico, etc. A
~JOiencta provocada pela emoção pode ser racional e freqüentemente o
e.
39. lbid., p. I 33.
40. PORTMANN, Adolf, eítado por, AR ENOT, Hannah, ibid., p. 134.

28
A melhor prova de que a violência não está necessariamente vi n-
.:ulada ao "emocional" e o ato de violência premeditada. Nestes casos.
n;io só é impossível creditar ao excesso de emotividade, à perda do
controle emocional a responsabilidade pela violência. como é impossi·
....cl disso~: i á-la da razão. O ato calculado de violência· não dispensa a
razão: uo contrário. solicita-a.
Màs. pode-se argumentar que esta primeira acepção do "irracio-
nal" não coincide com a ~ rracionalidade da violência. Neste sentido es-
treito. dir-se-á. nenhuma conduta é irracional, porque se toma razão e
m d onalidad'· como sinônimo dos contetídos da consciência . Ora. salvo
nos casos abertamente patológicos. em que a clareza da consciência ou
sua estruturação normal estão comprometidas, toda conduta é racio·
nal. A irracionalidade do comportamento violento deve-se ao fato de
que a razão desconhece os móveis verdadeiros de suas intenções e fina-
lidades. A violência é irracional quando e porque se dirige a objetos
substitutivos, na acepção· psicanalítica do termo. É irracional esmurrar
uma porta ou bater num filho, quando se desejava bater num inimigo
ou núm chefe; é irracional linchar um assaltante, atribuindo-lhe ares-
ponsahilidade pelas condições de miséria em que vive a população; é
irracional exterminar judeus e deflagrar uma guerra mundial, como o
fizeram as hordas nazistas, sob pretexto de que as "raças inferiores"
eram responsáveis pelo caos econômico e social do mundo. Seria este
o sentido preciso da violência como sinônimo de irracional. sentido que
·nada tem a ver com obscurecimento ou desestruturação da consciên-
cia, no ato de violência.
A esta objeção poderíamos responder que aceitar a distinção en-
tre uma violência racional (aquela que se dirige contra o objeto adequa-
do) e uma violência irracional (a que se dirige ao objeto substitutiv~) já
implica em admitir que, pelo menos no primeiro caso, não é o " instin-
to de destruição ou a agressividade" o determinante último da violên·
cia. Quanto ao segundo caso, o da violência irracional, diríamos que,
mesmo aceitando heuristicamente a idéia de irracionalidade proposta,
isto não abole a profunda diferença entre a agressividade a,nimal e a
violência humana. ·
A explicação é simples. Quando admhimos que os motivos. obje-
tos e linalidades do ato de violência podem ser "racíonaliz.ados", isto
é, imputados a pessoas. co.isas ou fenômen os substitutivos, admjtimos
implicitamente: a) ou que a violência irracional é um derivado, um
produto secundário de uma violência originariamente racional; b) ou
que a violência irracional. sob a aparência da "racionalização", expri-
me um desejo ou uma moção inconsciente. Na primeira hipótese, a
preeminência da razão, no ato de violência, continua a mostrar-se,
sem maiores problemas. A violência irracional é o segundo tempo de
uma violência que, inicialmente, teve origem na razão, e não na mani-
festação desordenada do instinto.
Na segunda hipótese, o primado da razão pode, de fato , ser des-
tronado pela " intenção" inconsciente, originalmente irracional. Nes-·
tcs ~xemplos, não h_á com.? supor ou provar a existência de um sujeito
r'!cwnal e de. uma ~ntençao consciente como motivo operante do ato
v1olento. A vwlência nasce da moÇão inconsciente do movimento da
~ulsão q~e tende à destruição, sem que haja media~ão de nenhum mo-
tivo ou mteresse da razão.
. Este arg.ume~to ~ pertinaz, mas só é concludente no que diz res-
peitO ao carater macwnal que a violência pode exibir. Ele em nada
confi rJ? a que irrací?nalidade violenta e agressividade instintiva sejam
uma soe mesma co!sa. f: \lerdade ~ue certos assassinatos compulsivos
o_u ate_ntados gratuitos a personalidades célebres demonstram a irra-
CIOnahdade de certo tipo de violência. É igualmente verdadeiro que a
conduta brutal de alguns pais em relação a filhos-crianças também
mostra o carãter ir.ra;ional que a violência pode adquirir. Porém, todos
es~es exemplos, e .m~m~ros outros do gênero, só atestam a diferença
existente entre a vrolenc1a humana e a agressividade animal. O motivo
Ç evidente: este tipo de ação destrutiva é irracional, mas porta a marca
de um desejo. Violência é_o emprego desejado da agressividade, com
fin s d~strut1vos. Esse deseJO pode ser voluntário, deliberado, racional e
consc1ente, ou pode ser inconsciente, involuntário e irracional . A exis-
tência d_est~ ~redk~dos não altera a qualidade especificamente huma-
na da VJO~enc•a, _POIS o ~nimal não deseja, o animal necessita . E é por-
que o ~mmal nao deseJa que seu objeto é fixo, biologicamente pre-
determmado, assim como o é a presa para a fera.
. _ Nada disso ocorre na violência do homem. O objeto de sua agres-
sm.d ~d~ não_~ó é arbitrário como pode ser deslocado. Este pressupos-
t? e mdtssociavel da noção de irracionalidade que acabamos de men-
cJo~ar e c?rrobor.a ~ pr~sença do desejo em qualquer atividade huma-
na, mclus1ve .na_ VIol:nc!a. ~ porque o sujeito violentado (ou o observa-
do~ e.xterno ~ sttuaçao) percebe no sujeito vio/entador o desejo de des-
trUiçao (deseJo de morte, desejo de fazer sofrer) que a ação agressiva
ganho o significado de ação violenta .
. No estudo sobre " violência e identidade" , também publicado neste
hvro. procuramos mostrar que só existe violência no contexto da inte-
ração ~~mana, onde a agressividade é instrumento de um desejo de
destru1ça~. Qua~do a ação agressiva é pura expressão do instinto ou
qui!n_do nao exprrme um desejo de destruição, não é traduzida nem pelo
SUJeitO, nem pelo agente, nem pelo observador como uma ação violen-
ta.
Vejamos como, no quadro da teoria psicanalitica, podemos con-

30
firmar esta asserção. No que tange ao primeiro c as~. o da ação agressi-
va como pura manifestação do instinto, coube a Winnicott demonstrar
que nenhum julga mento de valor pode. legitimamente, aplicar-se a
uma manifestação desta ordem. Para tanto, ele criou e problematizou
0 conceito de " ruthlessness", que pode ser traduzido imprecisamente
em português por crueldade ou desumanidade' 1•
Winnicott descreve o estado de "ruthlessness" como um estado
teórico, no qual inexiste, por parte da criança, preocupação ou solici-
tude ("concern") em relação à mãe, que sofre seus ataques agressivos
ou destrutivos". Neste estado, a mãe está para a criança como o mate-
rial nutritivo para o animal. A agressividade do recém-nascido não é
boa nem má, não é moral nem imoral e, acrescentarfamos nós, não é
violenta nem não-violenta, porque está, simplesmente, aquém ou além
do bem e do mal. A um ser que ainda não entrou no mundo dos valo-
res ·culturais, não cabe aplicar j ulga mentos valorativos de condutas.
Porém, se Winnicott denomina este estado de estado te6rico é por-
q ue. na teo r ia, a agressividade instin tiva do homem só existe em es-
tado puro. a titulo de hipótese. Assim como outras noções psicanaUti-
cas (o parricídio primordial, o inconsciente primário, o recalque pri-
mário, etc.), ela é forjada para dar coerência e sentido aos fenômenos
que dela derivam, estes, sim, clinicamente evidenciáveis. No caso, o ·
que Winnicott busca comprovar é que a qualificação da "ruthless-
ness" original provém da interpretação que lhe é dada pela mãe ou por
quem ocupa esta função junto ao beba.
· ~ a mãe quem devolverá ao bebê o sentido de "maldade" ou "i-
nocuidade" de sua agressividade puramente instintiva. ~ a mãe, e o
ambiente humano, quem qualifica humanamente o instinto, tornando-o.
uma manifestação pulsiona~ ou seja, um desejo dirigido a um objeto
(bom ou mau) e portador de um afeto (bom ou mau). E o que acontece
neste tipo de relação é que, geralmente, nenhuma mãe interpreta a
agressividade do bebê como violenta. Embora possa, às vezes, vir a so-
frer fisicamente (como nos casos em que o beba morde o seio), a mãe
entende que se trata de uma manifestação lnstintiwz pura e, porta nto,
não reage como se fora vitima de uma violincia.
Passemos ao segundo caso, aquele em que não se trata da agressi-
vidade como manifestação pura do instinto, mas da manifestação
agressi\IQ sem desejo de dtstruição. Fica evidente que um aspecto está
relacionado ao outro. A agressividade puramente instintiva só não é

41. WINNICOTT, D. W. Dt la pldlatrlt ala psytluJtUdys~. Paris, Payot, 1971 , 2' ed.
42. lbid., p. 82.

31
rotulada de violência porque o agente da agressão não atua movido
po r um desejo de destruição.
No entanto, analisemos fenômenos onde os atores já ultrapassa-
ram a etapa inicial e mítica da vida humana, onde, por hipótese, a
agressividade poderia exercer-se de uma forma puramente ..animal" .
Bettelheim, em seu ensajo sobre as "feridas simbóljcas", mostra
com extrema acuidade a diferença entre agressividade e violência 41• Es-
tudando os rituais de iniciação de sociedades etnológicas e comparan-
clo-.os a pactos de alianças, entre adolescentes esquizofrênicos, Bette-
JheJm demonstra (não obstante ser outro seu propósito) que só há vio-
lência quando o sujeito que sofre a ação agressiva sente no agente da
ação um dl!sejo de destruição. Analisando a pratica de rituais extrema-
mente truculentos aos ~ossos olhos, como a subincisão, a supra-
incisão, a castração rit ual e a circuncisão, ele afirma: "Durkeim está
convencido de que o que chama 'os ritos cruéis de circuncisão e su-
bincisào' tc:m o objetivo de conferir poderes particulares aos órgãos
genitais. Definindo estas cerimônias como 'cruéis', em vez de doloro-
sas, abandona o quadro de referência das pessoas que as praticam. Po-
derosas são sem dúvida, e provavelmente também dolorosas, mas
n.ada do que as pessoas dizem ou fazem nos perm ite conclui r que expe·
ramentam estes rituais como cruéis. Umavez mais vemos que os obser-
. vadores ocidentais impõem o s seus próprios juízos de valor''"'.
Continuando, Beuelheim abandona as sociedades etnológicas,
para refle tir sobre um exemplo de nossa própria cuJtura: .. Ninguém
que eu co nh~ç~ vê. a cirurgia p~ástica como um ato 'cruel', a própria
dor p~rece d1mmu1da ptlo deseJo com que se espera a operação. Se a .
rapanga do nosso exemplo- trata-se de um caso de rinoplastia, citado
precedentemente ~el.o ~utor- estava mais do que desejando pagar o
preço do trauma c•rurg1co pera beleza, se muitas outras mulheres mo."
dernas ansiosamente se submetem a cirurgias plásticas dolorosas pela
mes!l'a r~zào, ~orno podemos duvidar que o rapaz da sociedade sem
escnta nao esteja pr_onto a suporta r uma dor comparável! pará provar
que é um homem entre os homens da tribo?''~.\
Não percebendo no cirurgião ou no sacerdote um desejo de des-
truição, a mulher moderna como o adolescente da sociedade tribal não
sent_em a agres..~ào c9rporal como violenta: "Os Tikopia, entre os quais
a operação - ritual - consiste em fender a superfície superior do pre-.

43. BETTELHEI M. Bruno. Feridos slmb61icas, Lisboa , Moraes Editorct, 1979.


·44. lbid., p. 65.
45. lbid.

32
púcio (supr<l·incis<io), não fazem tentativas de •aterrorizar' os inicia-
dos ou innigir-lhes mais dor do que a inevitável. A operação não é em
nenhum sentido destinada a testar a resistência viril ou para os endure-
cer a fim de suportar a dor:••6
Em síntese. o agente como o sujeito da ação agressiva vêem na
dor ou coerção fisicas um meio de atingirem um prazer maior. Os par·
ticipantes do ritual religioso ou da cirurgia plástica agem .. na esperao·
ça do prazer", segundo a expressão de Bettelheim. Prazer este que não
se resume à satisfação sexual propriamente dita (genital ou pré·
genital), porquanto não se trata de uma forma sádica ou masoquista
de descarga libidinal. mas prazer de assegurar a posse dos predicados
socialmente valorizados pela cultura. Estes predicados compõem o
sentimento de identidade do sujeito, que é tanto mai.s forte quanto
mais se aproxima do tipo psicológico ideal, culturalmente produzido .
O prazer sexual, bem como as chances de obtê-lo são o corolário da
apropriação desta identidade.
f: claro que a cultura pode exigir do individuo um desempenho ou
atributos que redundam em violência para com ele próprio. No traba·
lho sobre "violência e narcisismo" abordamos longamente esta ques-
tão. Porém, a violência da injunção cultural não se deduz da ação
coercitiva o u agressiva imposta ao indivíduo e, sim, da finalidade e das
conseqüências da agressão ou coerção. O que tentamos mostrar (é pre-
ciso insistir) é que não existe violência sem desejo de destruição, co-
mandando a ação agressiva e, em conseqfiência, que violência não é
uma propriedade do instinto.
Só operando esta distinção é que podemos entender a diferença,
por exemplo, entre o gesto agréssivo de um pai para,_,com um ftlho e o
gesto violento deste suposto pai. Não é a categoria do instinto que nos
permite diferenciar como e por que, entre dois pais que batem em fi-
lhos, um foi ou está sendo violento e outro não.
Chegamos, enfim, ao terceiro motivo pelo qual julgamos impro·
cedente a identificação da violência à agressividade animal. Este moti ·
vo deve-se menos à consistência lógica das noções em jogo e mais a r~
percussão moral deste raciocínio. A conseqüência social deste argu-
mento é que nos tornamos predispostos, como assinalou H~nnah
Arendt, .. a fazer do comportamento violento uma reação ainda mais
'nat ural' do que estariamos preparados para admitir" 4' , caso não dis,-
puséssemos dessas peças de convicção. A violência definida como

46. lbid.
47. AR ENDT , Hannah, op. cit., p . 134.

33
agressividade e equiparada a um impulso instintivo termina por ser tri-
vializada.
Esta banalização da violência é, talvez, um dos aliados mais forteS
~e sua perpetuação. Resignado à idéia, inculcada pela repetição do
Jargão de que somos "instintivamente violentos", o homem curva-se
ao destino e acaba por admitir a existência da violência, como admite
a certeza da morte. A virulência deste hábito mental é tão daninha e
potente que, quem quer que se insiUrja contra este preconceito, arrisca-
se a ser estigmatizado de "idealista", "otimista ingênuo" ou "bobo,
alegre".
Contudo, uma coisa é procurar negar a persistência da violência
na esfera da interação humana, outra coisa é fazer da violência um
"destino biológico" do homem ou o principio e o fim de seu "destino"
psíquico, social ou cultural. Esta afirmação pode parecer óbvia ao
bom senso, mas, tratando-se de uma discussão psicanalitica sobre o te-
ma, ela é bem menos evidente do que pode parecer. Como procuramos
provar, até o momento, a m~oria dos psicanalistas, além de aceitarem
expressa ou inadvertidamerf.te estas idéias, reforçam-nas por meio de·
argumentos extraídos da própria psicanálise. A critica da teoria da
pulsão de morte e da agressividade confirma este uso da psicanálise
como ingrediente formador das ideologias sobre a natureza da violên-
cia. Examinemos agora o terceiro tópico da obra de Freud, relativo ao
problema: o estudo sobre "totem e tabu''.
Em "Totem e tabu", Freud propõe sua teoria da gênese da cultura
e, por conseguinte, da humanização do homem••. Esta teoria, como t
sab!d.o. foi bastante criticada por filósofos, antropólogos e cientistas
sociaJs, por basear-se numa visão evolucionista da cultura e por encer-
rar incoerências que a tornam inconsistente. A critica ao evolucionis-
mo .freudiano é mais clara, na medida em que o erro ctnocêntrico co-
melado é mais grosseiro: os primitivos não possuíam lei ou moral intc-
ragiam na base dos ~nstintos, guiados por um pensamento pré-lÓgico,
semelhante ao da cnança e ao do neurótico obsessivo. A critica à in-
coe!ência· interna da teoria é mais sutil e requer uma explicação mais
det1da.
Diante da crítica feita ao preconceito evolucionista de.Freud, os
ahalistas e outros cientistas sociais partidários da psicanálise rcs~n­
deram com uma interpretação. Totem e tabu ·não deve ser visto oomo a
narrativa de eventos históricos, mas como uma "const.rução", no sen-
tido psicanalítico, do mito das origens. A resposta dos críticos foi imc-

48. FREUD, Siamund. Totnrt et tabu, parir., Petite Biblioth~ue Payot, 1~68.

34
diata. e para simplificar os meandros desta discussão, citemos, na inte-
gra. um trecho de Maclntyre, onde o essencial da argumentação é co-
. locado: ..A descrição freudiana da horda primitiva é uma versão do
·contrato socia( destinada a explicar a origem das instituições sociais.
o pai primordial monopoliza as mulheres- portanto, o prazer- e sub-
mete os filhos. Estes odeiam o pai e combinam entre si matá-lo e devo-
rá-lo. Unidos pela culpa de parricídio, formam um clã com tabus de
parricldios e incesto que são auto-impostos. Deixam de lutar pela su-
cessão do pai primordial, pois compreendem que tais lutas são inúteis.
Isto os leva a estabelecer uma união entre si, uma espécie de contrato
social. Aparece então a primeira forma de organização social acompa-
nhada pela renúncia às satisfações instintuais; pelo reconhecimento de
obrigações mútuas; por instituições declaradas sagradas, que não ~­
dem ser disSolvjdas, em suma, começam a surgir a moralidade e a lei.
Mesmo que queiramos, a exemplo de Marcuse- a critica do autor
a Freud insere-se num debate com Marcuse -, considerar esta versão
não como uma verdadeira narrativa histórica, mas como uma hipótese
plauslvel ou uma metáfora esclarecedora, faz-se necessârio que a .ver-
são seja internamente coerente. O que quer que encerre contradição
não pode funcionar bem, nem mesmo como metáfora. Entretanto, o
relato de Freud é, na verdade, incoerente. A exemplo do que ocorre
com a versão de Hobbes do contrato social, o que fala aqui é a explica-
ção de como pode ter ocorrido a transição de um estado em que as re~
!ações entre os homens são apenas de força bruta. em que cada qua.
procura impor a própria vontade aos demais, para outro em que h~ja
normas e instituições socialmente estabelecidas que; de uma mane1ra
imp~ssoal, regulem o comportamento humano. As etapas através das
quais essa transição se processa não são as mesmas sugeridas por Hob-
bes; eles são culpados, estabelecem-se tabus, e em seguida faz-se um
contrato social. Entretanto, cada uma dessas etapas pr~supõe a exis-
tência e o funcionamento prévio dessas mesmas normas e instituições
cuja origem se pretende explicar. ·
A culpa é uma resposta à infração do que se supõe seja uma nor-
ma . reconhecida; não é apenas um forte sentimento negativo. Para
transformar alguma coisa em tabu faz-se necessário um conj unto esta-
belecido de arranjos institucionais; numa situação em que por hipóte-
se as únicas formas estabelecidas de comunicação prática são as ex-
pressões da vontade pessoal, como poderiam existir tais arranjos insti-
tucionais? Um contrato só pode ser feito quando a instituição do prome-
ter e as normas referentes ao cumprimento de promessas são estabeleci-
das (grifos nossos). Logo. o alegado estado primordial não é, de modo.
algum, pré-institucional. nem pré-legal, nem pré-moral. Conclui-se.

35
que esse estad o nã o po de funcionar na narra tiva de Freud d o modo
como este nos procura inculcar. ··••
Resumindo, co mo constata Lévi-Stra uss, em Totem e tabu há
.. um círc ulo vicioso q ue faz nascer o estado social das démarcheJ que o
pressupõem" "'. Ent ret;Jnlo. se nos a longamos na exposição do te.\ lll de
Maclntyre, não foi para reativar este aspecto ma is visível das con tra di-
ções de Totem e tabu. Sabemos que novas réplicas surgiram em face
desta c rítica; uma delas de parte d o próprio Lévi Strauss, com sua teo·
ria da estruturação simbólica e lingüística da o rganização socia l. A
partir· de Lévi-Strauss e Lacan, desenvolveu-se na psicanál ise a corren-
te de idéias que praticamente inverteu a proposição freudia na sobre o
tabu d o incesto e o parricídio. O princípio o rdenad o r da cultura não
sã o os home ns com seus pensa mentos, palavras e obras e sim a s leis da
linguagem e do simbólico. Freud atirou no q ue viu e acerto u no q ue
não viu. N ão é o pa i q ue cria a Lei; é a Lei que cria o pai. Regulando a
troca de mulheres, palavras e bens, as leis da linguagem e do sim bólico
estabelecem as regras q ue d iferenciam os sexos e as gerações . O pai,
cuja lei porta seu no me, na verdade é supo rte de uma função que o
transce nde. Ele é a fonte empírica da Lei e n ão seu lugar transcenden-
tal. .
Frente a nosso propósito, no entanto, esse lado da questão deve
ser posto à margem, com o q ue possa ter d e válido o u de discutível.
Nosso interesse peJo a rgumento de Ma clntyre deco rre d a quilo que
. ne le suscita a d iscussão _so bre o pa pel da violência na cultura. .
Um aspecto relevante de Totem e tabu é a função que a violência
tem na imposição da o rdem cultural. O pai prim ordial subj uga os fi-.
lhos atra vés da d issuasã o violenta , e os fil hos rebeldes depõem o pai
através do assassinato, expressão má xima da violênci a. A cultura,
pode-se concluir, tem iniCio na e pela violência e toda o rdem social re-
pousa , em última instância, na violência que garante a o bediência à lei.
A perg unta seria: esta idéia foi inequivo camente estabelecida por
Freud ou exprime, uma vez mais, a releitura de Freud, com base em
idéias pré-formadas e sem a devida atenção d ada às contradições e ma·
:tizes do pensamento freud iano? o mais provável é q ue seja uma re-
sultante de amálga ma cr1ad o pela junção de ambos os elementos.
A idéia de que a violência funda o d ireito e a lei, bases do co ntrato
socia l, é um a idéia bastante soli~iticada no pensamento pol!tico , filo·

49. MACYNT IRE. Al.udair. Â .J idiias d~ Mareu.J~. Slo Paulo, Cultrix, 1970, p. 60.
50. L~V I-STRAUSS, Oaudc, citado por GIRAR O, Rcné. IA violtnce etltsacli, Pa- .
ris. Grussct, 1972, p. :l84.

36
sófico, socio lógico e antropológico. Como exemplo, tomemos a men-
ção a o pensamento de Hobbes e M ax Weber, féita por H ann~h
Arendt. Segundo esta uutora, Hobbes diz que "Pac~os _sem espad~.~ao
apenas palavras", sentença q ue ~e~u~e sua c~nv1cc;;ao de que e a
igualdade do medo resultante da 1dent1ca capacidade para ma tar_que
todos possuem q ue persuade os hom ens em estado natural a se umr:m
•111 (llmunid adcs" ·' . 1\.l arx \\'cbcr. por sua vez, a firm a q ue o esta do e o
~-dt1míni11 d1) hümcm pelo homem por meio da vio lência legitima, isto
l:. su post:Hn t! nt~ ll!gitima·· ··. .
Wa lter Benjam in. em sua reflexão sobre o tra balho de Sorel, defi-
ne a violência como se segue: " U ma conduta ... merece ser chamada
vi olenta qua ndo utiliza o direito que lhe é concedido para destruir a
ordem q ue funda esta concessão". Mas. prosseguindo, afirma que o
direito é fundado e mantido pela violência: " Toda violência é, enqua~­
to meio, fundadora ou conservadora do direito. Quand~ ela não aspl·
ra a nenhu m destes dois atributos. renuncia a toda validade. Mas se-
gue-se q ue, mesmo no me lhor dos casos. tod a vio lênc ia, enqua nto
meio, diz respeito à pro ble mática do direito em geral. E ~esmo se a
signific:u;âo desta proble mática, nesta eta pa de nossa p~sq Uisa. perma·
nece saturada de incertezas, o d ireito, a partir do que d1ssemos. apare-
ce sob uma ó ptica mo ral ("éclairage moral") tão ambig\la que impõe-
se a questão de saber se. pa ra regulamentar os conflitos _d e interesse
entre os ho mens, só haveria meios violentos. ~ necessáno, antes de
mais nada, estabelecer que uma eliminação dos conflitos, inteiramente
despida de violência, jamais pode desaguar num contrato de caráter
jurídico . Pois ·este último, por pa cífico que tenha sido concluído, con·
duz em última análise a uma vio lência possível. Ele dá, com efeito, a
cada contratante, o direito de reco rrer, de uma o u outra manei~a, à
violência contra o outro contratante, no caso em q ue este desrespe1te o
contrato. Isto não é t udo: assim como o ponto de chegada,_ o ponto de
partida de todo contrato reenvia também à violência. Como fundado-
ra de d ireito ela não necessita estar imediatamente presente nele, mas
está nele representada, na medida em que a po tência que garante o
contrato jurídico nasceu, ela mesma, da violência; mais precisamente,
foi instal ada pela violência no pró prio contrato. Se a consciência desta
· presença latente da violência em uma instituiçã o desaparece, a institui-
çào começa a periclitar"s.•.

51 . AREl'DT, Hannah, op. cit., pp. 116 ~ 141. ..


52. WEBER Max citado por ARENDT, Hannah, 1b1d., P· 116. . .
53. BENJAMIN. Walter. " Pour une c.:ítique de la violcnce", in L'homm~ lt langoge et
la cullure, Paris, D en~l. 1971, pp. 37·38.

37
Desde pronto, avancemos que Walter Benjamin, apesar de afir-
mar a universalidade da violência como garantia do contrato jurjdico,
não lhe outorga a condição de árbitro de todo e qualquer conflito. Em
seguida, analisaremos quais conflitos fogem à regra da regulamenta-
ção violenta. Por enquanto, interessa pontuar o peso da primeira
idéia, no pepsamento psicanalitíco.
Fica claro que Freud, como outros analistas, viram em Totem e
tabu a confirmação desta idéia. O problema é que o estudo de Freud
parte de perspectivas refutáveis no que concerne à natureza do poder
nas sociedades primitivas e à natureza do poder em geral. A violência em
todas estas hipóteses sobre a gênese e a natureza do contrato social é
evocada para explicar como surge e se mantém o poder que edita a lei
e pune a transgressão. Mas é de um certo tipo de experiência e concep-
çao do poder que Freud deduz a necessidade da violência, como con-
dição universal da cultura.
Acompanhemos, passo a passo, a demonstração d.e Freud, anali-
. sando, inicialmente, a natureza do poder nas sociedades primitivas.
Voltemos ao Totem e tabu, na descrição original. As teses sobre as leis
.totêmicas desenvolvem-se em dois tempos lógicos e cronológicos. No
principio. havia o pai ou chefe da horda, que, através da violência,
pr~ibia o .ace~so dos. filhos às mulheres. Cronologicamente, esta etapa
ser1a a pnme1ra; logicamente, ela postula um tempo mítico, no qual a
in~erdiçà~ de aces~o às fêmeas ~inda nã.o era efeito nem do totem (que
erra os elas e as le1s da exogam1a) nem do tabu (que representa a inter-
nalização destas leis). O chefe da horda barrava o acesso às fêmeas
pela força bruta e o motivo era o ciúme.
Num segundo tempo, há o parricídio ao qual se sucede a culpa e o
culto ao totem. Paralelamente, como resultado das lutas fratricidas,
surge o contrato que obriga todos os filhos a renunciarem a todas as
mulheres. Criam-se os clãs, a exogamia e o tabu do incesto propria-
mente dito. Logicamente, este período cronológico é hipotético ou
mítico. em seu momento fundador, e empírico e observável, em supos-
tas conseqüências. Nenhuma testemunha presenciou o parricídio e as
lutas fratricidas, mas muitos observadores descreveram sociedades tri-
bais. com seus totens, clãs, leis exogâmicas e tabus do incesto.
. Que razões levaram Freud a passar de uma etapa a outra, substi-
tumdo a lógica da proibição consciente pela lógica do tabu inconsciente?
Em primeiro lugar, a prévia analogia do tabu religioso com os rituais
neuróticos dos obsessivos e com a concepção, também estabelecida, de
que o filho deseja matar o pai para possuir a mãe (Complexo de ~di­
po). Freud procurava confirmar o que já sabia. Em segundo lugar, as
contradições internas ao terreno antropológico. Estas contradiç9es

38
surgiram. ou melhor, foram deduzidas do confronto entre as hipóteses
de Darwin e de Atkinson. . .. . .
Darwin forneceu a Freud a idéia de horda pnmtt~va e da pro1b1·
ção do acesso às mulheres. Esta teoria.~ntretanto, deixava inexplica~a
a transição da horda animal para a soc1.~dade hum.ana:.bem .como nao
era comprovada. p~r nenhuma observaçao etnológ1ca: É ev1dente que
a teoria darwiniana não concede o menor lugar aos ~omeços do tote-
mismo. Um pai violento, ciu"!lento, guardando para~~ todas as fêmeas
e expulsando os filhos, à medida que estes cresc1am e1s tud? o que esta
teoria supõe. Este estado primitivo da sociedade nunca fo1 observado
em lugar nenhum . A organ.ízação m.ais primitiv~ q~e conhecemos e
que existe ain?a e~ ce~tas tnbos c.ons1~te ~m.ass~claçoes.de homen~ g~­
zando de dire1tos 1gua1s e submetidas as hm1taçoes do s1st~ma __totem.a-
co inclusive a herança na linhagem materna. Esta orgamzaçao ter1a
podido originar-se daquela postulada pela hipótese darwiniana? E por
quais meios ela foi obtida?"s•
É quando freud volta-se para Atkinson: ".A hipótese ~p~ren.te­
mente extraordinária da deposição e do assassinato do pa1 tuâmco
pela associação dos filhos expulsos seria, con.fo~~e Atkii}SOn, uma
conseqüência direta das condições da horda pnmttiva, como a cone~
be Darwin: 'Um bando de jovens irmãos, vivendo juntos sob.um r~gl­
me de celibato forçado ou, no máxim;o, tendo relações pohândrtcas
com uma única temea cativa. Uma horda ainda frágil, por causa da
imaturidade de seus membros, mas que. desde que virá a adquirir, com
o tempo, uma força suficiente, o que é inevitável, acabará, graças a
ataques combinados e permanentemente re~o~ado~, por arrancar ao
tirano, ao mesmo tempo. sua mulher e sua vtda (Pnmal Law, pp. 220-
221 ). Atkinson - que aliás passou todá sua vida na Nova Caledônia,
onde pôde estudar à vontade os. indígenas - invocao f~to de que as
condições da horda primitiva, ta1s como as supõe Darwtn, obse~am·
se regularmente nos rebanhos de bois e cavalos selva~ens e tenniRilf!l
sempre no assassinato do pai. Ele admi.te, além do ma1s, que o assassi-
nato do pai é seguido de uma desagregação da horda, co~o ~nse­
qüência de encarnecidas lutas que aparecem ent~e os fil~os ~ttonoso.s.
Nestas condições, uma nova organização da soctedade Jamats poden~
produzir-se: 'Os. filhos sucedem, pela violência, ao tirano paterno soh·
tário e voltam, de imediato, suas próri.as violências uns contra os ou-.
~ . 'das•."~~
tros, para se .esgotarem em lutas 11:atr1C1

54. FREUD, Si1mund. Totein et tabll, op. çi~ .• pp. 162-163.


ss~·Ibid., p. 163. ·

39
. Em essência.' !~eud extrai da teoria de Atkinson duas idéias: pri-
metro, a ~o pamcúJt~; segundo,, a das lutas fratricidas, que se seguem
ao a.ssassmat~ do pa1. Com a htpótese do parricidio, Freud pretende
elu.cJdar as or1gens e a natureza tanto do totem quanto das obrigações
rehg1~sas para com. ele; com as lutas fratricidas, busca uma. hipótese
p~austvel para as ongens do tabu do incesto. Finalmente, com as duas,
v1~a a .demonstrar os mecanismos através dos quais as normas cultu-
rars cnam-se, reproduzem-se e determinam inconscientemente o com-
portamento dos individuas. Dito de outro modo, Freud quis mostrar
como o contrato social é obedecido, sem que haja necessidade de uma
força externa coercitiva e permanente.
Contudo, observado de perto, não é o parricídio em si nem tam-
P_?UCo as lut.~s f~atricidas nelas mesmas que podem explic~r a transi-
çao da obedtencw a uma ordem externa e violenta para a obediência a
uma lei invisível e interiorizado, independente da coação exterior O
p~rricídi.o ~ó f.unciona teoricamente nesta passagem porque Freud.'su-
poe -. ~x1stenc1a da culpa pelo assassinato do pai. Da mesma maneira
as lutas fratricidas só se tom.am mediadores teóricos aceitáveis porqu~
Freud, de repente e sem matares escrúpulos teóricos, postula o surgi-
mento de uma espécie de "sensatez" social que os membros da horda
nunca, até então, tinham aparentado possuir: "A necessidade sexual
longe de unir os ~o~ens, o~ divide. Se os irmãos se associaram quand~
se trat~u de supnm1r o pa1, tornaram-se rivais quando se tratou de se
apropnarem das ~ulheres. Cada um teria querido, a exemplo do pai,
te-l~s todas para SI, e a luta que teria resultado disto teria arruinado a
socredade. Não havia mais um homem que sobrepujando todos os ou-
tros por sua potência tiwesse podido assumir o papel do pai. Do mes-
mo modo,~ se os .irmãos quisessem viver juntos só poderiam assumir
u~a sul ~~ao: a~os ter, talvez, superado graves discórdias, instituírem
a mterd)(;a o do mcesto, pela qual renunciariam todos à posse das mu-
ll}eres cobiçadas ... " 56 •

A fragilidade do argumento salta aos olhos. Como bem apontou


M~cl~tyre, todos os elementos que compõem o sistema de normas,
c~Ja genese Freud qu.e~ explicar, já estavam presentes antes do parricí-
~~o e das ,l,utas fratnc1das. Sentu culpa por matar o pai implica em
~on~r uma norma que condene o ato. Do mesmo modo, renun-
Ciar as. mulheres .em nome da preservação da ordem cultural implica
~m .a~ettar que o mt.eresse do todo social sobrepõe-se aos interesses dos
tndJVJduos em part1cular. Sem consciência da obrigação moral em re-

S6. Tbid.: p. 165.

40
Jaçào ao pai e à cultura, não haveria por que privar-se da satisfação
instintiva. A prova está na própria observação de Atkinson, com res·
peito ao comportamento dos "rebanhos de cavalos e bois". Entre os
animais, o limite da ação destrutiva está inscrito no próprio instinto.
Não conhecemos cavalos e bois que sintam culpa por matarem o chefe
do rebanho, nem que concordem em renunciar às fêmeas para pr~ser­
var a ordem social.
Um fato, entretanto, não é tocado pela critica de Maclntyre: a
noção de poder na sociedade primitiva. Esta noção apóia, de maneira
implícita, todo o estudo de Freud sobre totem e tabu.
Pelo que foi visto, a horda primitiva freudiana já era uma socieda-
de organizada, com um sistema de normas reguladoras dos comporta·
mentos individuais e coletivos. Nesta hipótese, o que está implícito,
alem dos pressupostos referidos, é que o chefe detém um poder equiva-
lente ao do déspota, nas sociedades com estado, e ao do pai, na família
nuclear conhecida por Freud. O poder do pai primitivo não é o poder.
do chefe animal (os filhos sabiam que ele era pai, donde a "ambivalên-
cia de sentimento" para com ele), é o poder do tirano. É este poder
que, extrapolado para as sociedades primitivas, serve de modelo para
a compreensão do poder do chefe-pai primordial.
Passemos ao largo da questão do poder paterno na famflia nu-
clear. Este capítulo da reflexão freudiana sobre o poder não concerne
diretamente nosso objetivo imediato. Sugerimos, aos interessados
no problema, a leitura do trabalho de Philip Rieff, disponfvel em tra-
duç<io portuguesa'-. fixemos a atenção na transposição feita por
Frcud do modelo de poder do chefe nas sociedades com Estado para o
campo do poder nas sociedades tribais. Consoante este modelo, o po-
der do chefe é um poder inconteste, que exige obediência incondicio-
nal e que, de um espaço heterônomo ao da sociedade, impõe as nor-
mas do contrato social. Nestas circunstâncias, é óbvio que o poder só
consegue manter-se através da violência. Um único homem, governan- ·
do contra a vontade de todos, não pode dispensar a violência para sus-
tentar-se no poder.
No entanto esta imagem da hierarquia e do poder nas sociedades
primitivas vem sendo contestada em sua veracidade por inúmeros an-
tropólogos e outros cientistas sociais. Para não ultrapassar os objeti·
vos deste estudo, vamos referir-nos, apenas, a um deles, Píerre Clas-
tres. Clastres, em seu ensaio sobre a violência e a guerra nas sociedades

~~. RJEFF, Philip. Freud- pensamento d humanismo, Belo Horizonte, lnterlivros,


1979.

41
rrimitivas, ~ostra que não existe, nestas sociedades, a diferença obser-
vad.~ em soc1e~ades complexa~, entr~ o ~stado e o restante do corpo
soc1al. Consequentemente, a h1~rarqU1a nao répousa no mesmo tipo de
poder q~e .c?nh~mos em sociedades semelhantes à nossa: ..A socie-
da.de _P~lmltJva. d1z. Clastre:. é totalidad~ una, na medida em que o
pnnc1.p1o de sua umdade .nao)he é extenor. Ela não permit.e que ne-
nhuma figur.a do Uno se. desligue do corpo social para representá-la,
para encarna-la como umdade. É por isso que o critério da indivisão é
fund~mental~ente ~olitico: se o chefe selvagem não tem poder. é porque
a .wc1edade nao acena que o poder se separe de seu ser. que a divisão se
esta~e/eça etltrt' aquele que manda e aqueles que obedecem. E também
por Is.w que na s~ciedade primítiv? é o chefe que é designado para falar
em no'!1e da socteda_de: E'!'. seu drscurso, o c.ltefe não exprime jamais a
fqntasta de seu desejo mdl'vul.ual ou a fala de sua lei privada. mas unica-
mente o desejo sociológico da comunidade de permanecer indivisa e o
texto de uma Lei que ninguém fixou, pois ela não deriva de decüão hu-
m~~a. O legisla~or é tamh,ém o fundador da .tociedade. são os Ancestrais
mtt~cos, os h.ero.t.f cultural~, os deu!es. E desta Lei que o chefe é porta-
voz. ~ sub!tanc1a de seu discurso e sempre a referência à Lei ancestral
que mng.uempode transgredir, pois ela é o próprio ser da sociedade: vio-
lar a Le1 ura alterar, modificar o corpo social, inrroduzir nele a inovação
e a mudança que ~te repele vigorosamente" (gr ifos nossosr•.
O que dedu~1r disto? Primeiramente, que não precisamos imagi-
n.ar um chefe-pa1, todo-poderoso, nem parricídio. culpa ou luta fratri-
CI~.a para en~en.d~rmos a gê?ese d? totem, do tabu, das leis da exoga-
ml.a e do ~nnc1p1o de c~esao sóc1o-cultural. Para Clastres, no início
ex!ste a ~~. d?s Ancestrrus. Esta Lei é o que apóia e movimenta o ..de-
seJo soc10log•co" da comunidade primitiva de conservar-se indivisa
negand~ a q ualquer instância desligada do corpo social o poder de re~
presenta-1~ ou de comand~-la e fazer-se obedecer. Hipótese por hipó-
tese, e~ta e pelo. ~enos ma1s coerente, uma vez que se alícerça em ob-
servaçoes etnolog1cas, o que !lào acontece com as suposições de base
do Torem e tabu.
~~ ~eguida, podemos deduzir que a hipótese da vio1ência do che-
fe pnm1t1vo to~na-se supérflua. Ela surge, na teoria. para torna r con-
gruente a prem1ssa de um poder, acumulado nas mãos de um só eexer-
cendo-se.à ~e.velia do resto do grupo social. Mas, se o poder nas socie-
dades_~r~m1t1vas n~o é monopólio do déspota, como nas sociedades
autontanas conhec1das por Freud, ela deixa de ter sentido.

58. CLASTRES, Pierrc. Arqu~ofogia da violinâa, São Paulo. Brasiliense, 1982, p. 190.

42
Aliás. em outros termos e em outro contexto Bettelheim havia
percebido o etn~centrism~ subjacente à const~ução retr~s~e.ctiva .~a
imagem psicanahca do pa1 e do chefe nas sociedades prtmltJvas. A
imagem psicanalítica do pai ameaçador não parece adequar-se à orga·
nitação maldefinida de sociedade primitiva. A sobrevivência destes
pequenos grupos depende da contribuição de ~o~os os '!l.em.bros, ~u.e
devem recolher alimentos e assegurar outras atlvtdades tr1ba1s. A diVI·
são em classes superiores e inferiores e demasiado precária para que
ros~a permitir organizar cerimônias em beneficio de um único subgru-

po. Os ocidentais acreditavam, a principio, que estas tribos eram go-


vernadas autocraticamente pelos a nciãos, que impunham aos jovens
uma lei de ferro . Mas era na sociedade européia do século XIX que o
ru paz se irritava com o controle exercido por um pai distante e todo·
roderoso, que reprimia a sexualidade. Em muitas sociedades sem es-
crita não há tal brecha, nem esta distância entre o pai e o filho ou entre
o velho e o jovem. O chefe australiano não é um patrão, nem um pai
poderoso. nem um dirigente em qualquer sentido do termo- na verda-
·de não existe nada comparável à função de 'caudilho' entre os austra-
lianos. Além do respeito que inspira, o chefe não tem qualquer po-
der. .. ,.
Isto significa que não haja violência na sociedade primitiva? Em
aosoluto. A própria argumentação de Clastres vai no sentido de pro-
var que a violência não é um fato secundário na vida daquelas socieda-
des. Ela é um fato permanente e pertencente à essênc!3 do ser social. A
guerra. alirma Clastres. não deriva de nenhuma agressividade ín.Hintiva
(discurso naturalista); nem da escassez dos recursos naturais e da fra·
que;:a das forcas produtivas (discurso economicista); nem, por fim, do
}mm.v.w11o s;srema de trocas (discurso estruturalista): ''As trocas co-
merciais representam guerras potenciais pacificamente resolvidas e as
l!Uerras são a saída para transações malsucedidas" (lévi-Strauss)60 •
Para Clastres, "o exame dos fatos etnográficos demonstra a dimensão
propriamente política da atividade guerreira. Ela não se relaciona nem
com a especificidade zoolõgica da humanidade, nem com a concorrên·
cia vital das comunidades. nem finalmente com um movimento cons-
tante da troca em direção à supressão da violência. A guerra articula-
se à sociedade primitiva enquanto tal (e é ali univ~rsal), é um modo de
fu ncionamento destas sociedades. É a própria natureza desta socieda-

' 'J. BEITELHEI M, Bruno. Ferida.f simbólicas, op. cit., p. 55.


nll. Lf:VI·STRAUSS, Claude. citado por ClASTRES, Pierre. op. cit., p. 182.

43
d~ que determi!la a existência e o sentido da guerra. Em relação a ela
v1u-se que~ devtdo ao extremo particularism? ostentado por cada gru-
p~. _ela esta presente de antemão, como possibilidade, ao ser social pri-
m1t1vo. Para todo_ grupo local, todos os Outros são Estrangeiros. A fi-
gura do Estrange1ro confirma, para todo grupo determinado a con-
vicção de sua identidade como Nós autônomo" 61 • '

. Para e:-itar mal-en~endid~s, Clastres diz que não existe neste tipo
de .~fir~açao nen~um.~ ~n~ençao ~e tr~ça.~ uma "psicologia do primiti-
vo . mas ~e defimr a logtca soctológtca deste fenômeno social. Para
manter a f1gura ~o Uno, a soc.i~dade primitiva tem que forjar a figura
d_? Outro. Ou SeJa, a guerra dtnge-se para fora porque esta é a condi-
çao de p~eser:-ar a unidade que a sociedade "conhece" e da qual não
po~e abnr ~a~ ~ob pena. morrer: "A guerra como política exterior da
soc1edade pr~mJtiVa re!acwna-se com su_a pol!tica interior, com aquilo
que se podena de~ommar o conservant1smo mtransigente desta socie-
dade, .ex~resso na mcessante referência ao sistema tradicional das nor-
mas, a le1 ancestral que se deve respeitar sempre, que não se pode alte-
ra~ P?~ nenhuma mudança. Por seu conservantismo, o que a sociedade
pnm1ttva procura conservar? Procura cons~rvar seu próprio ser; quer
per~ev~rar em s;u ser. Mas qual é este ser? E um ser indiviso, o corpo
so.c~al e homogeneo, a comunidade é um Nós. O conservantismo pri-
mitivo pro~ura: po~tanto, impedir a inovação na sociedade, ele quer
que_ o respe1_10 a Le1 assegure a manutenção da indivisão, procura im-
PC:dJ ~ o s~rg1me~t~ ?a divisão na sociedade. Tal é, tanto no plano eco-
nomJ~o (1mposs1b3hdade de acumular riquezas) quanto no plano da
relaça~ de pode~(~ ~hefe está lá para não mandar), a política interior
da soc1edade pnmJtiva, conserva-se como Nós indiviso, como totali-
dade una."61
Portanto, a violência, na sociedade primitiva, não ê subordinada
ao poder do chefe como condição de sua perpetuação nem está na ori-
gem _o u naturez~ deste mesmo poder. A violência, segundo Clastres,
expnme o ..deseJ_o_ sociológico" da sociedade em permanecer Una. Ou
seJa, embora cnttcando os discursos economicista e estruturalista
Cla.stres não deixa de fazer da violência um derivado de uma intençã~
~o~1al ~ue lhe antecede .e lhe justifica. O fato de ser ou aparecer como
u~1c_o 1~ strume~ to poss1vel para a manutenção da indivisão não faz da
v~o!en:,1a clastna~a menos secundária que as outras. O .. desejo socio-
log•co , na teo na de Clastres, ocupa a função das "trocas mal-

61. CLASTRES. Pierre. ibid., p. 199.


62. lbid.. pp. 199-200.

44
sucedidas". no estruturalismo levi-straussiano, e da escassez de recur-
sos e da fraqueza das forças produtivas, no discurso economicista.
De qualquer modo, a violência deixa de ser imprescindível ao po-
der do chefe e, com isto, desmonta-se parte do raciocínio, que tlnha
como premissa a natureza de um poder, de fato, inexistente.
Mas. pode-se argumentar que Clastres deixa intocada a questão
fundamental. Freud equivocou-se ao dizer que o sagrado, a lei dos an-
cestrais, nascia da violência. Clastres afirmou o contrário: é porque a
sociedade obedece às leis dos ancestra is que emprega a violência guer-
reira como forma de manter a unidade sociológica, cuja fonte é o reli-
gioso. A pergu_nta seria: de onde surgiu o sagrado? Se Freud o pressu-
punha. quando acreditava descrever seu nascimento; se Clastres toma-
o por um pré-dado. fonte da ordem social, como pensar sua o rigem?
A esta questão, René Girard pretendeu dar uma resposta, em sua
série de estudos sobre a violência e o sagrado. Para G irard, o sagrado
nasce da violênciau_ A violência é a matriz de todas as instituições so-.
ciaís e ê o elo que permite entender a transição do estado de natu.reza
ao estado de cultura.
Dada a importância das teses de Girard para o nosso tema, va-
mos resumi-las. brevemente, no que têm de fundamental. Girard ad-
voga a hipótese de que o homem possui um "instinto de imitação" que
o conduz necessariamente, em certas situações, à posição de conflito e
à resolução violenta deste conflito. Baseado em argumentos etológi-
cos. ele afirma a existência deste instinto, que denomina "mimese de
apropriação" . A "mimese de apropriação" manifesta-se. por exemplo,
quando colocamos duas crianças diante de um único objeto. Nesta si-
tuação. se uma criança estende a mão para apanhar o objeto, a outra
tende a fazer o mesmo. O gesto, como todo ato instintivo, é automáti-
co e incoercível. A disputa é inevitável e a violência é o resultado natu-
ral da disputa.
Extrapolando para a vida social complexa este modelo reduzido
de interação humana, Girard tenta provar que a violência seria inter-
minável porque o "instinto mimético" levaria os homens a reduplica-
rem ad infinitum os mesmos gestos. Assim, se um indivíduo, na disputa
por uma mulher, mata um outro, o ciclo de assassinatos não tem mais
li_m . em função do "mimetismo instintivo". Para que a seqüência da
VIolência mimética venha a ser interrompida, é necessária a interven-
ção de um elemento exterior, sem vínculos com a situação original.

&3. Ver: GIRAR O, René. LA vio/ence et /e .racrt, op. cit., e GIRARD, René. De$ cho-
r~.~ cachie.f deputs la
fondation du monde, Paris, Grauet, 1978.

45
Este elemento é o assassinato do que Girard chama de "vitima expia-
tória", procurando denotar um fenômen o distinto, do fenômeno psi-
cológico análogo, conhecido por "bode expiatório".
A morte de uma pessoa não contaminada nem implicada na situa-
ção connitiva, criada pela mimese de apropriação ou duplicação do
gesto de vingança, põe fim ao ciclo da violência. O grupo, instituindo
o sacrifício ritual da ..vítima expiatória'', delimita uma área de r~pou­
so livre de conflitos, que é a área do sagrado. Deste ato social emerge
um lugar cultural de onde emanam as normas que fundam as institui-
ções.
Em poucas palavras, é a violência que interrompe a violência
quando se dir_ige a alguém o u algo descomprometido com o circuito
original do connito: ..0 sacrifício é apenas uma violência que se soma
a outras violências. Mas é a última violência, é a última palavra da vio-
lência. "~>~
O modelo de Girard representa uma sofisticação do discurso na-
turalista, empregando a expressão de Clastres, ou da tese instintivista,
que já comentamos. Porém, entre outras críticas que poderiam ser fei~
tas a esta teoria evolucionista e unilinear da gênese da cultura, uma
nos interessa sobremodo. Po r que, perguntaríamos, os homens deve-
riam deter-se diante do espetáculo das lutas fratricidas? Por que, tra-
tando-se de uma reação em cadeia, acionada pelo instinto, a interrup-
çã o do ciclo mimético far-se-ia através de uma solução cultural e nãó
de uma solução animal, dada pelo próprio instinto? O problema apon-
tado na teoria do totem e tabu retoma. E a resposta de Girard, como a
de Freud para aquele problema, também é pouco convincente.
Os animais. diz Girard, "não renunciam jamais a satisfazer suas
necessidades sexuais ou alimentares no interior de seus grupos"6 s. E
continua o raciocínio: "para que esta renúncia - refere-se ao tabu do
incesto, caso particular da mimese de apropriação, -se ton~e univer-
sal na ~umanidade é preciso que uma força literalmente prodigiosa te-
nha ag1do. Esta força não pode ser a paixão freudiana do incesto que
pressupõe a regra. nem tampouco a paixão levi-straussiana pelo estru-
turalismo. que pressupõe igualmente esta regra" 66 • Qual seria esta for-
ça prodigiosa'? Girard responde que seria o medo de recair na violência
interminável''-. Mas. acrescenta que: ·· ... se os membros do grupo tives-
sem simplesmente medo uns dos outros, terminariam todos, uma vez

tH. G IRARD, Renê. Des drous cochies depuis Jofondotion du monde, op. cit., p. 33.
65. lbid.. p. 84.
66. lbid.
67. lbid .• p. 85.

46
mais. por se mata rem en tre eles. t preciso que as vio~ên~i~s passa~as
estejam, de alguma maneira, encarnadas na vitima emtssana; é prectso
que já exista uma ~:spécie, ~e transferê~~ia c~letiva que faça temer um
retorno. à forca. desta vutma, uma v1s1ta vmgadora e que une.•to~o
grupo em torno de uma vontade c~mum de _impedir esta ~xp~~tencta
tcrrificante". Esta vontade comum e o que G1rard chamara de meca-
nismo reconciliador""".
O dilema, nas teses de Girard, está em saber quem surgiu primei-
ro: o medo ou o mecanismo de reconciliação'? Se aceitamos a tese do
medo, isto significa aceitar que os animais não eJtperimentam medo? ~
claro que experimentam. No entanto, isto não os leva a encontrar so-
luções rituais para pôr termo ao conflito mimético. A solução para o
medo da morte desencadeada pela " mimese de apropriação" é encon-
trada na própria esfera da ação instintiva.
Se. pelo contrário, dissermos que o medo não basta, de ond: sur:
l.!t! então o mecanismo de reconciliação? A pergunta fica no ar. Nao ha
~espos ta . Girard, como Freud, são herdeiros de H obbes. Ambos acre-
ditam , repetindo o que foi dito, que "é a igualdade do medo resultante
da idêntica capacidade para matar que todos possuem que persuade os
homens em estado natural a se unirem em comunidades".
Esta crença, todavia, não consegue explicar o que, ao fim c ao ca-
bo, ela própria sempre termina p or demonstrar, qualq~er que sej_a o
vértice teórico de onde parta: a violência nasce para arbttrar confl ttos
e satisfazer necessidades individuais e sociais, mas há sempre uma in.s-
tcincia exterior à violência que determina seu início e decreta seu fim. ~
impossível isolar. em meio a toda bateria de ~rg~mentos lcvanta~os
por todos estes teóricos, representantes das ma1s dtversas correntes m-
telectuais, o que pode j ustificar a concepção da cultura como um produto
da violência. A violência, diriamos. por tudo que é possível constatar e
demonstrar, é um artef ato da cultura e não seu artífice. Ela é uma parti-
cula ridade do viver social, um tipo de ..negociação", que através do
emprego da força ou da agressividade visa encontrar soluções para
contlítos que não se deixa resolver pelo diálogo e pe~a ~o~peraçà_o.
Não vemos com o inferir desta presença constante da v10lenc1a na hts-
tória do homem sua suposta condição de ponto alfa da cultura ou de
viga mestra da ordem social.
De onde parte, então, esta crença tão arraigada no pen.samento
socia l? Por certo, do preconceito idealista, fruto da mais pura tnterpre-
la ~,:<io "individualística", da gênese das relações sociais. Se pa rtimos
do pressuposto que a origem das rela ções sociais encontra-se na ques-

68 .• lbid.

47
tão " quem domma quem ", como observa Hannah Arendt" , inevita·
velmente seremos absorvidos pela ideologia da violência, como " ins·
tinto das formações sociais". Foi esta a interpretação que_Dühring
quis dar das o rigens das relações sociais. E é quase desnecessário re.
lembrar o desmantelamento deste modelo de raciocfnio, efetuado por
Engels. ·
Monstrando que a " robinsonada" de Dühring foi construída ape·
nas pa ra provar que a violência é "o fato fundamental da história"10,
Engels demonstra que Dühring só prova que a violência é um meio,
cujo fim é o lucro econômico. Desenvolvendo a tese de que a forma
primitiva das relações de trabalho não pressupunha a dominação do
homem pelo ho mem (como queria Dühring, com sua interpretação
'das relações entre Sexta-Feira e Robinson Crusoé), Engels salientou
que as relações sociais não têm sua'origem na violência, mas no desen-
volvimento das forcas produtivas. A violência intervém como instru-
mento para impedir a mudança de um estado de dominação, que surge
a posuriori, como correlato de um certo tipo de relações de produção.
Po rém. ao lado ou concomitantemente a esta crítica de Engels
(que peca, em certa medida, pelo economicismo à outrance, com que
explica a evolução sócio-cultural) à fábula de Dühring, pensamos que
o relevo assumido pela violência é um corolário de suas relações com o
poder. É da concepção que temos do poder em geral que depende a
maior ou menor importância dada à violência.
O pensamento que identifica poder e violência é o mesmo que de-
fende a opinião de que a violência é o fato fundamental da cultura. Em
linhas gerais, este pensamento assenta-se numa afirmação que se apre·
senta como evidência empírica. Toda cultura é form ada por institui-
ções compostas de normas ou regras; ora, o que dita as regras e garan-
te seu funcionamento é o poder; como todo poder repousa. em última
instância, na violência, é a violência que funda e determ i n~ a vigência
de qualquer ordem sócio-cultural. Quando expusemos as opiniões de
H obbes, Max W eber e W ai ter Benjamin. procuram os deixar claro esta
concepção. O mesmo poderia ser d ito do pensamento de Freud, em
Totem e tabu.
Acontece que nem todos os pensadores ratificam este ponto de
vista. Hannah Arendt é uma destas vozes dissonantes. Poder, para esta
autora, ..corresponde à capacidade humana não somente de agir mas

69 ARENOT, Hanoah, op. cit., p. 122.


70. ENGELS. Thetlrit' de la vio/enct, Paris, Union Générale d'~ditions 10/ 18 1972 p
110. • • • .

48
de agir de comum acordo. O poder nunca é propriedade de um indiv[.
duo. pertence a um grupo e existe somente enquar•o o grupo se con-
serva unido. Q uando dizemos que alguém está no poder, queremos di-
zer que está autorizado por um certo número de pessoas a atuar em
nome delas . No momento em que o grupo, do qual se originou a
princípio o poder (potestas in populo; sem o povo ou o grupo não há
poder). desaparece. 'seu poder' some também' ' ' 1• Violência, em con-
trapartida. é sempre multiplicadora da potência individual e depende
de instrumentos para realizar-se. "A forma extrema de poder, explícita
a autora, é Todos contra Um; a forma extrema de violência.• é Um
e
contra Todos. E esta última nunca possível sem instrumentos."n
A partir d isto, Hannah Arendt encaminha suas renexões por vias
contraditórias mas férteis em intuições. Uma das contradições de seu
estudo diz respeito à a utonomia o-b subordinação da violência em rela-
ção ao poder. Em dado momento, ela afirma claramente que sem po-
der a violência não se mantém de pé: " Jamais existiu um governo ba·
seado exclusivamente nos meios violentos . Mesmo o mandante totali·
tário. cujo maior instrumento de domínio é a tortura, precisa de uma
base de poder -a polícia secreta e sua rede de informantes. Somente o
·desenvolvimento de soldados-robôs, que eliminassem, como foi men~
cionado anteriormente, o fator humano por completo e permitissem a
um só homem com um botão de comando destruir a quem lhe aprou-
vesse. poderia mudar ~sta supr~macia fundamental do poder sobre a vio-
lência .. (grifos nossos)'-'.
Para ilustrar o fato de que a violência só é eficaz quando dispõe
de uma reserva de poder, a autora pondera: " Num confronto de vi~
lência com violência a superioridade do governo sempre foi absoluta;
mas esta superioridade só dura enquanto a estrutura de poder do go·
verno estiver intacta - isto é, enquanto as ordens forem obedecidas e o
exército e a polícia estiverem prontos a usar suas armas. Quando já
não é mais este o caso. a situação muda abruptamente. A rebelião não
só não é vencida. mas também os próprios armamentos mudam de
mãos - e algumas vezes, como na revolução húngara, em questão de
horas. ( Deveríamos saber bastante sobre isto após tantos anos de luta
fú ti l no Vietnã . onde por um longo tempo, antes de receber ajuda ma-
ciça dos russos. a Frente de Libertação Nacional nos combatia com
armas fabricadas nos Estados Unidos.)... Onde as ordens não são mais

7 1. ARENDT, Hannah, op. cit., p. 123.


~~- lhid., p. l2l.
7.1. lbid., p. 12&.

49
obedecidas, os meios de violência são inúteis, e a questão desta obe-
diência não é resolvida pela relação o rdem-violência, mas pela opi-
nião, e naturalmente pelo número de pessoas que a compartilham:
tudo 1epende do poder atrás da violência (grifas nossos). O repentino e
dramat1co colapso do poder que anuncia as revoluções revela num
lampejo como a obediência civil - às leis, inst ituições, dirigentes -
nada mais é que uma manifestação exterior de apoio e consentimen-
tos.'' .,
Com estes exemplos, H annah Arendt pretende confirmar, em pri-
meiro lugar. que poder e violência são term os dissociáveis e que o últi-
mo termo não é um pré-requisito do primeiro. Em segundo lugar que,
como dissemos, a violência é subordinada ao poder. porque este não
depende. para existir, da .fim pies relação. ordem-obediência, mas da rela-
ção apoio à ordem e conunrimento à obediência. Como a violência, ao
contrário do poder, baseia-se na primeira e não na segunda relação,
ele é que depende do poder, para poder ser eficaz. Hannah A rendt
parte do pressuposto que a relação ordem-obediência só existe com
um prévio apo!o e consentimento do grupo. Os fatos históricos men-
cionados visam a confirmar a supremacia do pgder sobre a violência.
Entretanto, em outro momento, ela admite que a violência pode
sufocar o poder: "A violência sempre pode destruir o poder; do cano
de um fuzil nasce a o rdem mais eficiente, resultando na mais perfeita e
instantânea obediência. O que nunca pode nascer daí é o poder."'~
Enunciado de outra maneira, a relação ordem-obediência autonomi-
za-se, dispensando o apoio e o consentimento que dão legitimidade ao
poder. O exemplo político que melhor demonstra esta situação é o ter-
ror: "Em nenhum lugar o fa to da a utodestruição na vitória da violência
sobre o poder (grifos nossos) é mais evidente do que no uso do terror
para sustentar a dominação, sobre cujos fantásticos sucessos e even- .
t u ~is fracassos sabemos talvez mais do que qualq uer outra geração ao-
tenor. Terror não é o mesmo que violência. é, antes. a forma de gover-
no que passa a existir quando a violência, rendo destruído todo podn,
não ahdica 11ws. ao cm11rúrio, pamanece mm comro/e total. (grifos
nossos). Observa-se freqüentement e que a eficiência do terror depende
quase que complct<.~mente do grau de atomização social. Toda forma
de oposição org<.~nizada deve desaparecer antes que a força total do
terror possa enfraquecer. Esta a tomizaçào - uma palavra excessiva-
mente pálida c <.~cadêmica para o horror que encerra- é sustentada e

n Ibid .• pp. 126-127.


75. lbid.. p. 130.

50
intensifi cada através da ubiqüidade do informante, o qua l pode literal-
111cnle eslar onipresente pois não se trata mais de apenas um ag:!nte
profissional a soldo da polícia, mas potencialmente de qualquer pes-
soa com que se entre em contato. " ~ 7
• • •

Esta afirmação contradiz o que Hannah Arendt dtssera antenor-


mente sobre a subordinação da violência ao poder. Segundo suas pró-
prias afirmaç~. mesmo. em casos onde. a delação to rna-se uma insti-
tuição generahzada em mvel de toda soc1edade; mesmo em casos onde
0 dissuasão e a perseguição policial sistemáticas a toda forma de opo-
sição o rganizada tornam-se uma peça essencial na engrenagem d o re-
gime: ai nda assim não se pode falar em desaparecimento do poder por
trás da violência. A atomização do corpo social, como no te rror. é in-
dicativa d o desaparecimento do poder da maioria e não d o desapareci-
mento d o poder. O funcionamento das sociedades escravagistas, des-
crito pela autora. mostra o bem fundado desta o pinião: " Mesmo a
mais despótica dominação que conhecemos, o domínio do senhor
sobre os escravos. que sempre o excedia m e m número. não repousava
em tais meios superiores de coação, mas numa organização supe1ior
de poder - ou seja, na solidariedade organizada dos senhores."'-
Assím como nas sociedades escravagístas, nos regimes de terror
também podemos perc~ber que o governo só se mantém através da
violência, pela aliança de grupos ou classes, que se orgamzam para usu-
fruir dos beneficios que o sistema totalitário lhes oferece. O ter ro r é,
com certeza, a forma mais monstruosa da violência, mas se baseia no
poder.
Como e ntender, então. esta contradição? Aprofundando a noção
de poder. Para Hannah Arendt, o poder não é por natureza inJtrwntn-
ta/ como a violência. A seu ver, o poder "i um fim ~m Ji me.wro'', ou
seja, " a estrutura do poder em si precede e dura mais que qua lquer me-
la. de tal modo que o poder,longe destro mtio para atingir um jim, é,
na l'erdade, a própria condição qut permirt a um grupo dt pessoa.f pt'nsar
e agir cmifo nne a categoria meios-fins·· (grifos nossos). Isto, acrescenta
a autora, naturalmente. não significa negar que os governos seguem
políticas e empregam seu poder para alcançar o bjetivos determina-
dos"·•.
Dito de outra forma. o poder em sua gênese e natureza não coin-
cide com.·sua utilização, com seu uso instrumental. Recorrendo à in-

?f'>. lbid .. pp. 131-132.


77, lbid.. p. 128.
7!!. lhid., p. 129·.

SI
terpretaçào de Habermas, diríamos que Hannah Arendt estabelece
uma diferença entre o exercício do poder político (sej~ em sua aquisi-
ção. seja em sua preservação} e a gestação deste mesmo poder: .. Ne-
nhum detentor de posições de dom inação pode exercer o poder, e nin-
guém poderá disputá-lo se tais posições não esti verem ancoradas nas
leis e instituições políticas, cuja sobrevivência repousa, em última ins-
tância. sobre convicções comuns, sobre a opinião em torno da qual
muitos se puseram publicamente de ac~rdo---·. Em outras palavras, e
ainda conforme Hahermas...o poder é um bem disputado pelos gru-
pos políticos e graças ao qual a liderança política administra; mas nos
dois casos este poder prcexiste, e não é prod uzido por tais grupos e li-
dcran~,:as . Esta é ;r implllêrH.:ia dos poJcms()S - eles precisam deriva r
seu poder dos prod utores d() plldcr ......
Esta distinção esclarece a contradição acima apontada. Quando
Hannah Arendt diz que "jamais existiu um governo baseado exclusi-
vamente nos meios de violência" e que "me.~mo o mandante totalitário
precisa de uma base de poder'' , o poder aqui já é poder em exercício, já
é uso inst rumental do poder. Este poder. se permanecermos fiel às in-
tuições da autora, é violência institucionalizada ou legalizada. Em
contrapartida. quando Han nah Arendt diz que a "violência sempre
pode destruir o poder", ela se refere à situação política onde as condi-
ções para que o poder surja estão bloqueadas. Neste caso, é à gestação
do poder. à capacidade de agir em comum, q ue a autora alude. Em
uma de suas afirmacões sobre o problema. fica bem explícito este pon-
to de vista: " A violência podé destruir o poder, mas é totalmente inca- ·
paz de criá-lo.''''
Mas. se esta distinção elucida as afirmações contraditórias de
Han nah Arendt. é para deixar em aberto um a questão ainda mais fun-
damental. De fato, pode-se objetar que tal conce~â o do poder é inde-
fensável por duas razões. Em primeiro lugar, a estrutura de poder defi·
niJa desta maneira só é válida enquanto catégoria formal. Um poder
disti nto de s~a atualização ou manifestação instrumental é uma abs-
tração incapaz de adequar-se à realidade. O poder só existe quando
exerci do. Fora desta con dição não existe poder. E, um a vez que o po-
der inslrumentalizado sempre exprime os interesses de dominação.
todo poder é vio lento.

79. HABERMAS, JOrgcn. "O conceito d e poder em Hannah Areo dt", in Habtrmo~
org. Barbara Frcitag e Sérgio Paulo Rouanct, São Paulo, Áúca, 1980, pp. 111-112..
80. lbid .• p. 11 5.
111. ARENDT, Hannah, o p: cit., p. 132.

52
Em segundo lugar, as condições de gestação do poder concebidas
por Hannah Arendt são factícias. Apoi~ e consentimento não são pro-
dutos espontâneos de intenções deliberadas. autônomas e livres de
o
coação. Supor que consenso deriva do livre-arbítrio de um sujeito
ideal,' isento de qualquer tipo de pressão social, é descon hecer a exis-
tência e a funç ão das ideologias, dos aparelhos ideológicos e dos dis-
positivos de poder, que não só atrelam este sujeito aos interesses de
grupos ou classes dominantes, como o constitui na própria qualidade
de sujeito. Esta definição do consenso, idílica e idealista, oculta qs me-
canismos de coerção que lhe dão origem. O consentimento e o apoio
são produzidos por uma relação de ordem-obediência. Não há poder
sem violência.
As objeções são pertinentes. Porém, acreditamos, não chegam a
anular a totalidade das afirmações de Hannah Arendt. Se parte de sua·
argumentação não resiste, efetivamente, a esta crítica, a validade da
dife renciação proposta entre poder e violência permanece intacta. Co-
mecemos por analisar a segunda crítica. que foi· levantada contra a
teoria da gestação do poder. Como observa Habermas, Hannah
Arendt esquece que o poder só excepcionalmente funda-se no consen-
so por ela imaginado, e que, na maioria das vezes, é a violência estru-
tural da ideologia que faz com que os participantes formem "convic-
çÇes suh_ietivamente não-coercitivas, mas ilusórias" e q ue, por isso
mesmo. possam ser levados a gerar um " poder que pode ser usado
contra esses mesmos participantes, no momento em que se institucio-
naliza""2. Portanto. para que se pudesse afirmar a existência de um
consenso verdadeiramente livre de coerções, seria preciso dispor de
um critério crftico que permitisse distinguir entre ..convicções ilusó-
rias" e "não ilusórias"11 • Ora, continua Habermas, Hannah Arendt re-
cusa este critério e propõe como fundamento para o poder da opinião
"a facul dade que têm os sujeitos, capazes de linguagem e de ação, de
fazerem promessas e as cumprirem"••. Esta tese afirma que " na base
do poder está o contrato concluído entre sujeitos livres e iguais, graças
ao qual as partes se obrigam mutuamente"15• Para Habermas, jsto sig-
nifica um retrocesso em direção à con-cepção do direito natural.
Entretanto, sua discordância quanto à maneira de se chegar ao
consenso verdadei ro, livre de coerções e violência, não significa uma

x~ . HABERMAS. Júrgen~ op. cit., pp. 115- 116.


83. lbid.. p. 116.
ll4. lbid .. pp. 117-lll!.
HS. lbid., p. 11!1 . .

53
negaç?o.desta hipótese. Pelo contrário, Habermas, em sua teoria, dá a
esta hipotese o estatuto de uma utopia ao mesmo tempo virtual e real,
.ao ~es~o t~~o p~essuf.o.sta e ame.cipadora. É o que ele chama de "si-
tuaçao hngutstrca tdeal , que functona como urna "ilusão constituti-
va'' , necessária à interação humana, e que representa, concomitante-
ment~. a "antevisão d~ u~a vida nova"16 • A concepção de Habermas
prescmde da te~e do dtretto natural, guardando a possibilidade de se
p~nsar a gestaçao do poder, com base em um consenso livre de violên-
cta.
A esta altura, pode-se dizer que trocamos de trem mas ficamos na
mesma bitola. A tese de Habermas também precisa de um referente
real para ser aceita. As con dições para se chegar ao consenso verdadei-
ro, fundamento do poder livre de violência, foram redefinidas teorica-
mente sem que fornecêssemos um suporte indutivo, capaz de funcio- ·
nar como prova de fato.
Na verdade, é dificil imaginarmos, a partir da obra de Hannah
Arendt, u.m~ Co_rma _pol.it!camente estável, na qual a dissociação entre
poder e vtolencta seJa VISJvel. Acontece que seu raciocínio nos conduz
a um~ outra ~is~o _?o ~ato histórico-político. ~através da negatividade,
do nao dado a v10lenc1a pelo poder que Hannah Arendt aduz â sua hi-
pótese a prova do fato.
Novamente, vamos encarregar Habermas de demonstrar o que·
acabamos de di~er: "~qui se manifesta o tema que inspirou Hannah
Arendt e~ suas ~n~estt~ações sobre as revoluções burguesas do século
XVIII, a msurretçao hungara de 1956, a desobediência civil e o movi-
~ento de protesto e.~tudantil dos anos 60. O que lhe interessa nos mo-
v~~e~tos emancipatórios é o poder de convicção comum: a desabe- :
d_1encta com relaç~ão a instituições que perderam sua força legitimató- j
na; a co.nfrontaçao do poder. gerado pela livre união dos indivíduos l
~om os mstrumen.tos coercitivos de .um aparelho estatal violento ma~ 1
tmpo~~n te, o surgtmento de uma nova ordem política e a tentativa de 1
estabiit~ar ? n~vo começo, a situaç~o revolu~ion~ria original, e de per- j
petuar mst1tuc10nalmente a gestaçao comumcatt\'a do poder. É fasci- l
nante obser.var como Hannah Arendt percebe em diferentes ocasiões o 1
mesmo _fenomeno. Quando os revolucionários se apropriam do poder j
q.ue esta nas ruas; quando a P?PUlação que optou pela resistência pas-1
stv~ en frent~ tanq~es estrangeiros, com mãos desarmadas; quando mi- j
nonas convtctas dtsputam a legitimidade das leis existentes e organi- i

· 11.6. ~AB.ER MAS, J ürgen. cit. por ROUAN ET, Sergio Paulo, Teoria critica e psicanó-!
(1.1c-. RJO-I"ortaleLa. Tempo Brasileiro-UFC. p. 298. .

54
, am a resistência civil; quando, no movimento de protesto dos estu-
da ntes, 'o puro desejo de ação' se manifesta- em todos esses momen-
tOS parece confirmar-se a tese de que 'ninguém possui verdadeiramen-
te o poder, ele surge entre os homens que atuam em conjunto, e desa-
parece quando eles novamente se dispersam' (Vita Activa). Esse con-
ceito enfático da práxis é mais marxista que aristotélico; Marx o deno-
minava 'atividade critico-revolucionária' "".
A predominância desta modalidade negativa de expressão dopo-
der contra a violência deve-se, segundo Hannah Arendt, aos insuces-
sos das tentativas de "institucionalizar a democracia imediata: os
'townhall meetings' americanos em 1776, as 'sociétes populaires' em
Paris entre 1789 e 1793, as sessões da Comuna parisiense em 1871, os
sovietes na Rússia em 1905 e 1917 e os conselhos revolucionários na
Alemanha de 1918"11 • A estes insucessos, somaram-se, "nos séculos
XIX e XX, as derrotas políticas do movimento operário revolucioná-
rio e o sucesso econômico dos sindicatos e dos partidos trabalhistas"19 •
Em função destes acontecimentos, a associação entre poder político e
violência passou a ser vista como imutável e natural. A contingência
histórica impôs-se como verdade teórica, obrigando os pensadores a
não mais perceberem a contraprova da crença estabilizada, oferecida
pela própria história. Os momentos em que o poder era gestado fora
da violência e contra ela passaram despercebidos, quando não inter-
pretados numa lógica que invertia o processo de sua gênese e pervertia
seus objetivos e finalidades.
Todavia, pode-se argumentar que esta negatividade hist6rica pela
qual se apresenta a estrutura "não-violenta" do poder não é gratuita
nem acidental. Por que, perguntar-se-á, o poder não se mostra positi-
vamente, conforme as premissas desta sua defmição? Por que o poder,
cada vez que foi instrumentalizado de modo não-violento, extinguiu-
se, dando lugar à sempiterna violência institucionalizada? Reencon-
tramos neste ponto a primeira objeção feita a esta teoria, isto é, a de
que um poder existente na realidade é sempre violento.
Uma vez mais vamos apelar para Hannab Arendt, na tentativa de
esclarecer esta delicada questão. Hannah Arendt, num trecho de seu
trabalho, diz que "a grande razão porque ainda existe guerra não é
nem um secreto desejo de morte da esp6cie humana nem um irreprimf-

!17. HABERMAS, Jlltgeo, op. cit., pp. 107- 108.


RS. lbid.• p. 109.
'89. lbid.

55
vel instinto de agressão, nem, por último e mais plausível, os sérios pe-
rigos e~onômicos e sociais inerentes ao desarmamento, mas simples-
mente o fato de que <Jinda não apareceu um substituto no cenário
político pura o arbítrio final em questões internacionais''90 • O que cha-
ma atenção nesta assertiva é a semelhança com o que Freud dizia, a
propósito da mesma questão, no texto que reproduzimos linhas atrás:
"As guerras só serão evitadas, com certeza, se a humanidade se unir
para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito
de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos cla-
ramente dois requisitos: criar uma instância suprema e dotá-la do ne-
cessário poder. Uma sem a outra seria inútil."
Nestas afirmações está implícito que os conflitos que levam à
guerra representam interesses e objetivos de grupos ou classes que, por
natureza, não encontram outro árbitro senão a violência. Mas, será
que todos os interesses e objetivos sociais necessitam da violência
como árbitro? Procuremos inverter o raciocfnio tradicional. Se, em vez
dos conflitos que levam à guerra pensássemos nos conflitos que se re-
solvem em paz, porque foi encontrado o árbitro necessário e suficiente
à saída pacifica da disputa, será que, neste caso, teriamos a mesma
opinião a respeito da natureza do poder e da violência? Pensamos que
não. Pensamos que o modelo da guerra e do funcionamento das socie-
dades com Estado a serviço de classes ou grupos determ inou a forma
pela qual definimos poder e violência, ordem e obediência. t porque
nosso modelo de interesses e objetivos e nosso modelo de conflito ba:
seiam-se nos interesses, objetivos e conflitos existentes entre as classes,
grupos e Estados que con hecemos, e que levam sempre à guerra ou ao
confronto violento; é, por este motivo, que só podemos pensar no po-
der como sinônimo de violência e na obediência como sinônimo de su-
jeição. Em outras palavras, o poder é pensado em função de determi-
nada forma de exercici o político, o que reduz sensivelmente sua exten-
são.
Entretanto, quando procuramos testar logicamente as hipóteses
sobre a gênese da cultura, mais ou menos míticas (se é que a origem
pode ser pensada de outra forma que não a mitica), esbarramos sem-
pre numa constatação: mais cedo ou mais tarde, os ancestrais ou os
primitivos puseram-se de acordo; depuseram as armas; renunciaram
aos interesses privados e concluíram o "pacto sem espadas" que pre-
servou-lhes a vida e deu início à ordem cultural. Em um dado momen-

90. A REN DT. Hannah, op. cit., p. 94.

56
10 lógico, o argumento que faz da violência ou do poder violento o
··fato fundamental da história" esfarela-se. Em um dado momento, o
apoio e o consentimento, a ordem e a obediência, surgem sem a garan-
tia das armas e da violênda.
Que cláusula, então, garante a vigência deste pacto? A resposta
seria: a certeza da impunidlade do infrator. Esta cláusula pode parecer
de tal modo estranha à nossa mentalidade contagiada pelo fascínio da
violência e pela preponderiância do político na reflexão sobre o poder.
que podemos declará-la implausível, fantasiosa e inexeqüível.
Não é o que pensa, entretanto, Walter Benjamin. Analisando a
possibilidade da saída não violenta para conflitos entre os homens,
Walter Benjamin diz: "O melhor exemplo desta saída não violenta é
talvez o diálogo, considerado como técnica de acordo civil. Neste ca-
so. não apenas podemos entender-nos sem violência, mas a exclusão,
por princípio, de toda violtência repousa expressamente sobre uma re-
lação importante. que é a impunidade do engano (tromperie). Sem dú-
vida, não encontraríamos t:m lugar algum uma legislação que, em sua
origem , punisse o engano. Assim exprime-se a existência, entre os ho-
mens. de um terreno de acordo, a tal ponto não violento que é total-
mente inacessível à violência: é o domínio próprio da 'entente', aquele
da linguagem."••
A quebra do pacto, baseado na promessa da obediência às regras
do diálogo, da linguagem, não é passível de punição. Por quê? não há
outra resposta possível a nião ser a de que os homens que rompem este
pacto simplesmente abdica1m do poder, ou da "condição·que lhes per-
mite· agir segundo as categorias meios-fins" . A punição para esta infra-
ção e a exclusão da condição humana.
A violência está excluiida, por princípio, deste domínio da intera-
ção humana, porque os ho;mens sabem que a obediência às regras do
diálogo não necessita de jlllstificativas. Esta obediência não é requeri-
da, com vistas a interesses particulares de dominação. Esta obediência
é exigida em troca de i nten~ses universalizáveis que o sujeito reconhe-
ce como seus. A linguagem, sendo o mediador universal e imprescindí-
vel entre o passado, o presc:nte e o futuro, é a condição necessária para
que os homens ajam de comum acordo e mantenham vivá a ordem
cultural que lhes assegura a sobrevida, enquanto serP.s sociais. O que
une os homens em torno do poder apoiado e consentido não é o medo
de se destruírem mutuamente. O que une os homens e os leva a con-

9 I . BENJAMIN. Walter. op. cit. , pp. 39-40.


sentirem em obedecer a certas regras é a certeza de que possuem inte-
resses comuns uni versalizâveis.
Evide ntemente, a linguagem em seus conteúdos ou usos contex-
tuais pode torn ar-se um instrumento de violência. Isto não torn a me-
nos legítima ou mais subm issa a obediência dos homens às suas regras.
Pelo contrário, é esta obediência que permite ao sujeito combater o
uso violento da linguagem , fornecendo-lhe a possibilidade de ter po-
der, de pensar e agir em favor de interesses comuns universalizáveis.
A "desobediência'' às regras da linguagem não resulta em vitória
contra o "poder", resulta em perda de poder e impotência. Além do
que, bem sabemos. através do fato psicopatol ógico, não existe recusa
da linguagem que não seja produto da violência . O sujeito que " deso-
bebece" às regras dialógicas da linguagem enclausura-se num mundo
de signiticados privados, perdendo a capacidade de interagir com os
outros porque não consegue majs pensar e agir conforme a categoria
meios-fins.
Há. por conseguinte, um tipo de conflito que se resolve "sem es-
pada'' e um tipo de pacto que não tem, como premissa, a sujeição dos
contratantes, sob a ameaça, latente ou manifesta, da violência. O pac-
to que tem como cláusula a impunidade da transgressão, justamente
por basear-se em interesses universalizáveis, definidos como tais pelos
próprios contratantes, não exige a obediência imposta pela "iolêncía.
Este tipo de lei ou regra exprime a natureia do poder como fim
em si mesmo. Por isso, é aceito e não imposto. É isto que afirma Han- '
nah Arendt, quando valoriza a intuição de Passerin d'Entreves, sobre
a natureza do jogo: ..Acho que a comparação de Passerin d'Entreves
da lei com 'regras válidas do jogo' pode ser levada mais longe. Pois a
questão com estas regras não é que eu me submeto a elas voluntaria-
mente ou reconheça teoricamente sua validade, mas que na prática eu
não po.uo entrar no jogo se não me submeter: meu motivo para aceitá-las
é meu desejo de jogar; e uma vez que os homens só podem exis!ir no plu-
ral. meu desejo de jogar é idêntico ao meu desejo de viver. Todo homem
na:;ce numa comunidade com leis preexistentes às quais ele 'obedece', em
primeiro lugar, pOrque não há outro meio de ele entrar no grande jogo do
mundo. Posso querer mudar as regras do jogo. como fazem os revolucio-
nário.{, ou abrir uma exceção para mim, como fazem os criminosos; mas
negá-las, em princípio, não .~ignifica 'desobediência'. mas a recusa a en-
Trar para a comunidade humana" (grifas nossos)' 2 • .

Este texto, a nosso ver, poderia ser subscrito, sem problemas, por

'-1::!. ÂRENDT, Hannah, op. cit., p. 165.


qualquer psicanalista. Em psicanálise, como e~ outras ativid a~es ~o
pensamento social, sabemos que as regras do ;ogo. d.a humamzaçao
são um imperativo que condiciona a passagem do SUJeitO do estado de
natúreza para o estado de cultura. Por co nseguin.te, o P.od~r qu~ ga·
rante a observância desta lei, repitamos, não prectsa de ~usttlicattv_as.
Ele é um fim em si mesmo e sua legitimidade é compulsóna, na medtda
em que tepresenta irttetesses urtivetsalilâveis. . . . . •
O que necessita justificar-se e provar sua legttlmtdade é a mstan-
cia que o encarna e a qual foi delegada a função de representá-lo na .or·
dem dos fatos, da realidade emptrica ou histórica. ~sta, com ef~tto ,
pode emprega( o poder de modo instrumentalmente VIOlento~ d:svlan-
do-o para interesses e objetivos privà.dos. Mas o poder e!ll SI nao tem
como finalidade a dominação. A finalidade do poder, e tsto faz parte
de s ua natureza e definição, é permitir que os homens ajam de comum
aco rdo, com vistas a a lcançarem interesses e objetivos universalizá-
veis.
Os modelos de interação humana descritos por Walter Benjamin
e Hannah Arendt mostram como a gestação e a instrumentalização
não-violenta do poder tornam-se visiveis quando abandonamos o ~er­
reno do poder politico, existente ntts sociedades com Estado, orgamza·
das em função de interesses particulares de grupos ou clas~es . "!'laque-
Ias áreas da atividade humana, o poder, em sua natureza nao-v10lenta,
aparece em toda sua positividade.
Não há outra solução: ou ~dmitimos que o poder, em sua estrutu-
ra, é a condição de possibilidade da interação humana (e aprende~os
a distinguir sua essência de seu uso instrumental), ou caimos na htp6-
tese da violência generalizada, que não só deixa !n~xplicado o surgi-
mento do contrato social como conduz toda atlvtdade humana ao
beco sem salda de sempre ser definida, por principio, como violenta.
Este último impasse, como vimos, faz naufragar as teses so~re a gàlese .
violenta da cultura e precipita esquema como os de Bourd1eu e Passe-
ron, na mais cabal insolvência teórica. . .
Em face disso, compete perguntar como e por que a psu:anãhse,
desprezando os fundamentos de sua própria prática e teoria, pôde
concluir que a violência é o solo da humanização'? S~gu~amente por
confundir poder com violência. Mas, como tentamos 1~s1s~entemente
dem onstrar esta concepção é insustenthel. Por que sena vtolento, el!'
si, o aporte ,libidinal da mãe para o filho, se e~ta é a condição.par.a que
este entre no jogo do prazer e venha a ~sufrUI-Io. Po~ que ser'!a~violen­
ta a ação da linguagem sobre a sex.uahdade, se esta e a con~tçaç. para
que o sujeito entre no universo da troca, que lhe confere a 1denttdade
na ordem da diferença dos sexos e das gerações'?.
Neo-humanismo conseryador e conformista, dirão uns; versão

59
'hollywoodiana' das relações sociais, dirão outros. A estas possíveis e
prováveis criticas, responderíamos que não se trata de edulcorar o que
há de "podre nos reinos e nas Dinamarcas". Não se trata de negar que
a violência existe, nem mesmo que ela possa ser necessária ou ser a ú-
nica resposta possível, em dadas situações. Ninguém contesta o direito
de o sujeito empregar a violência em legítima defesa ou o direito de
grupos. classes ou Estados empregarem a violência, quando esta sere-
vela o único instrumento possível, para enfrentar o terror ou a violên-
cia da dominação opressora. Trata-se, na verdade, de delimitar a órbi-
ta da violência, diferenciando-a do poder, poder este que não deve ser
assimilado, em sua estrutura, à violência de classe ou do Estado, com
vistas a interesses particulares.
Acreditamos que este uso do poder marcou tão fortemente a men-
talid~de ~sicanalítica (e não sem razão, dada a nossa realidade políti-
co-h•stór•ca) que a questão da violência não pôde mais ser pensada em
outros termos. No entanto, se tentássemos escapar de nossa rotina
mental e, em vez de perguntar "por que a guerra?" perguntássemos
"por que a paz~" talvez. o problema da violência recebesse uma nova
lut.. Por meio desta pergunta, provavelmente, voltaríamos a refletir na
questão posta por Freud a Einstein: "Por que o senhor, eu e tantas ou-
tras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por
que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vi-
da?''
A esta pergunta, que Freud deixou praticamente sem resposta, ao
concluir que o motivo básico de seu pacifismo era uma disposição or-
gãnica; a esta pergunta ousaríamos, agora, dar uma resposta: nos re-
voltamos contra a violência porque sabemos que nada que o homem fez
f! que o torna humano nasceu da YioUncia e sim contra ela. Nos horrori-
zamos diante da violência, não apenas porque ela e através dela o ho-
mem pode mostrar-se mortalmente destrutivo, mas porque sabemos
que a vida cultural nasceu e permanece viva através de pactos sem ar-
mas, através de atos de paz. Por último, abominamos a violência por·
que, como escreve Habermas, retratando o pensamento de Hannah
Arendt, "as confrontações estratégicas em torno do poder polftico
nem produziram nem preservam as instituições nas quais esse poder
está enraizado. As instituições políticas não vivem da violência, mas
do reco nhcCimento'T ·
Se nos aventuramos a abordar uma questão tão controvertida,

•J.l. HABERMAS, JDrgen, op. cit., p. 112.

60
não foi por intransigência semântica ou pelo prazer formalista de dis-
tinguir violência de agressividade ou violência de poder. Embora con·
cordemos com Freud. quando ele diz que começamos a ceder pelas pa-
lavras e terminamos por ceder nas coisas, o motivo essencial de nossa
retlexão é bem outro.
Além de constatarmos o pouco espaço dado à violência na litera-
tura psicanalítica, notamos que este espaço vem sendo ocupado por
esgrimas verbais e grandiloqüências ocas. Este procedimento não con·
diz com a gravidade e a seriedade do problema. Alguns teóricos resol-
veram transformar a violência em palco para a exibição dos piores ex·
cessos retóricos. Inventaram, assim, uma "violência acadêmica" tão
distante da "violência da vida" que, em certos momentos, não sabe.
mos mais se aquilo a que se referem tem algo a ver com aquilo que co-
nhecemos ou experimentamos.
Como para agir é preciso ver e j ulgar, cabe ao anaüsta decidir
qual das duas é matéria de seu interesse. De nossa parte, não temos
dúvida: é a segunda que interessa ao psicanalista.

61
Saúde Mental. Produto da Educação?

Freud, é sabido, não tinha muito senso de humor. Mas, se lhe fal-
tava hum<lr, sobrava-lhe fineza de observação. Conta-se, por exemplo,
que teria respondido a uma mãe que lhe perguntara o que fazer para
bem educar o filho: "Faça como quiser, qualquer que seja a maneira
ela será igualmente mâ". Freud, descontado o mau humor, pretendia
afirmar que não existe prevenção possível da neurose.
Hoje em dia, estamos de tal forma habituados a crer que a saúde
mental depende da educação, q ue uma afirmação semelhante p<lde
causar estra nheza. No entanto, acreditamos que ela contém algo de
verdade iro e. por isso mes mo, é digna de atenção. O que pode nos fa-
zer acreditar. sobretudo a nós, profissionais ligados à área de saúde
mental. que saúde e educação são termos de uma equação necessária'?
A lógica que fundamenta esta asserção é da o rdem do senso comum
ou da ordem da ciência, pouco importando, no mo mento, distinguir o
que qualifica uma ~ 'outra.
Na verdade, antes mesmo de iniciarmos a reflexão sobre o assun-
to é necessário precisar os termos da discussão. Reservaremos à pala-
vra educação o sentido que lhe é usualmente dado na literatura sobre o
tema, ou seja, o da administração de conhecimentos psirológicos com
vista à prevencàó de distúrbios neuróticos e caracteriais. Não estende-

63
remos a análise ao campo das doenças de etiologia orgânica, isto é, às
seqüelas mentais de afecções tóxicas, infecto-contagiosas, carenciais,
metabólicas etc. Neste caso, a educação coincide com as medidas pro-
filáticas médico-higiênicas e não com a tentativa de prevenção das
anomalias do comporta mento. Sua validade é, a nosso ver, consen-
sual. N ão há o q ue discutir. Tampouco levaremos em conta casos ex-
tremos de privação física ou emocional que podem levar os indivíduos
·a desenvolverem reações do tipo psicótico. Também aqui é indiscutível
a nocividade dos fatores etiológicos em causa, e a possibilídade de pre-
venção destes quadros não concerne à educação, no sentido acima des-
crito. .
Nosso objetivo é mais limitado, embora esta limitação não seja
gratuita, na medida em que a maioria dos esforços educativos dirige-
se, justamente, à prevenção de neuro~ e condutas caracteriais. Por
conseguinte, centraremos nosso trabalho na análise destas propostas,
ressalvando, de antemão, o caráter provisório de nossos argumentos c
hipóteses. Procuraremos demonstrar. primeiramente, que aJguns pres-
supostos contidos na a ftrmação de que a saúde mental depende da
educação possuem uma lógica equívoca. E, em seguida, a partir ~et
fundamentos históricos, mostrar ql!e a educação psicológica .não prO:.
duz saúde mental mas reproduz, tão-somente, a ordem soctal.

1. O pressuposto da identidãde conceitual

Quando se postula a idéia de que a educação interfere na saúde


mental, não se deixa claro o que se entende por educação, saúde e
doença. Aparentemente, os termos são empregados como se po55uf!-
sem uma identidade conceitúal que dispensasse suas prévias defini-
ções. Este pressuposto está longe de ser verdadeiro. O termo educação ·
possui numerosas acepções. senão em sua natureza, digamoS, pedagó-
gica, pelo menos em seu uso na literat ura psicológica. Neste contexto,
educação é tomada ora num vago sentido filosófico, o de fazer emergir
o potencial humano dos indivíduos, ora no sentido estrito de instrução
ou escolarização. Outras vezes, a noção é identificada à socializaÇão
no clássico sentido de transmissão de valores culturais. Neste último
caso. a socialízaçã o ora se restringe à ação educativa na infância ora se
refere ao processo que acompanha o sujeito em toda sua vida biológi-
co-social. ·
Esta pluralidade de sentidos é significativa para quem pretenda
formular projeto em saúde mental. Ela pode conferir a tais projetos di-
mensões variáveis. Dependendo de como se entenda a educação, pod~
se desejar que o agente de saúde converta•se numa instância onipre-
sente na vida social ou numa presença mais discreta, que se limite a in-

64
tcrvir j unto :l in.stituiç~s de maior. i.mportância, em cert~s etapas do
roc~sso educallvo. Nao se pode utthzar, portanto, o voc~bulo educa-
~iio como um conceito inequivocamente definido no conjun!o de.t~o­
~ias psicolôgico-psiq uiátricas. A variação. no seu emprego e ?e~ISlva
quando pensamos em quem vai se.r educado, COf!~O, em q~e /Im tte de
tempo c em que espaço .focíal. Sô dtspondo desta tnformaçao podemos
·ulgar se o instrumental educativo é compatível com a tarefa proposta.
J Suponhamos, entretanto, que este trabalho preliminar tenha sido
cumprido, e tomemos como modelo de resolução o caso da educação
das crianças. O exemplo não é aleatório. A educação infantil vem sen-
do insistentemente considerada a pedra de toque dos programas d a
sa úde mental, por motivos, à primeira vista, aceitáveis. Na infância, os
contornos do sujeito, período e espaço social da ação educativa são
mais precisos, assim como são mais limitados, em número e im po rtãn- ·
cia, os agentes da educação, dada a inegável preponder~ncia d~ farol-
lia e da escola como veículos de socialização, nesta fa1xa de 1dade.
Resta ria perguntar, portanto, em que consiste a educação para a
saúde mental na infância? A resposta não é dificil . Excluídas as minús-
culas divergências quanto ao ritmo e à execução, educar para a saúde
mental significa, na prática, transmitir conhecimentos psicológicos às
crianças. Diretamente, através dos profissionais de saúde, ou, indireta-
mente. através da fa mília, escola e instituições afins. Reduzida à ex-
pressão mais simples, educação quer dizer instrução psicológica se-
gundo o que cada profissional considera a "boa psicologia". A conclu-
são pode parecer banal porém seus efeitos, a nosso ver, nada têm de
óbvios. O raciocínio é simples: existirão tantas "boas educações psico-
lôgicas" quantas forem as preferências teó ricas dos responsáveis pela
educação. Como é previsível, as chances de um acordo em torno da
"boa educação" são, em principio, pequenas. Um educador partidário
de Rogers seguramente veria com reservas a "boa educação" propost_a
por um o utro, partidário da psicanálise. Do mesmo modo, um tercet-
ro, influenciado pelo behaviorismo, oporia resist!ncias às cer.tezas
educativas dos dois anteriores, e assim por diante. Perguntarfamos,
então, qual dessas correntes, além de outras não citadas e além das in-
finit as divisões é subdivisões que as separam , promoveria a boa satlde
mental? A opção não seria fácil. E isto considerando a hipótese mai.s
simples, ou seja, descartando as eventuais inclinações do próprio
público receptor e assinalando apenas os previsfveis desentendimentos
entre os agentes da educação.
No que concerne aos termos saúde e doença mental. a complexi-
dade não é menor. Depois de "relativizados culturalmente" até a
exaustão por historiadores, antropólogos e sociólogo~, estes _conce~tos
começaram a flutuar dentro do 'p ensamento clfntco ps1cológ•co-

65
psiquiátrico. Em primeiro lugar, graças ao desenvolvimento das teo-
rias psicossociogenéticas que, por um lado, revisaram as concepções
mais rígidas da nosologia clássica, mas, por outro, enquadraram toda
uma série de condutas e sentimentos, antes desprezados pela psiquia-
tria organicista, na categoria de doenças ou d·e estruturas tratáveis psi.:
coterapicamente. Em segundo lugar, pela reação da psiquiatria con-
vencional (leia-se, a psiquiatria dos anuais acadêmicos e das classifica-
ções internacionais de doenças mentais), que respondeu às inovações,
assimilando algumas delas. É o caso da psiquiatria americana que, em
grande parte, deixou de considerar algumas das chamadas "perversões
sexuais" como doença.
Dada a finalidade do trabalho, é irrelevante aprofundar os moti-
vos destas transformações. Para alguns, é próprio da razão cientlfica
esta evolução para um conhecimento cada vez mais adequado a seu
objeto; para vutros, todas estas mudanças nada mais são que acomo-
damentos táticos do poder-saber psiquiátrico. Diante de nosso propó-
sito, é suficiente constatar que, não obstante as discordâncias quanto.
ao conteúdo da "boa educação" e a oscilação dos conceitos de saúde e·
doença, muitos agentes de saúde persistem acreditando na causalid~d.e
educativa da saúde mental.
Deixemos de lado, por enquanto, esta questão. Mais adiante, dis-=
pondo de outros elementos, ela poderá ser, talvez, melhor explicada c;
entendida.. Abordemos um outro ângulo da proposta, o que diz respei--i
to à sua suposta originalidade como instrumento de prevenção das·
doenças mentais.

2. O pressuposto da originalidade

Se a idéia de que existe uma "boa educação" para uma " boa saú-
de mental" é discutível, a idéia de que esta proposição é original não é
só discutível, é falsa . Bem entendido, não afirmamos que os defensores:
destas proposições reivindiquem explicitamente a etiqueta de origina-·
lidade. Notamos apenas que o modo como a idéia é correntemente
apresentada induz o ouvinte 4JU leitor a percebê-la desta forma.
Freqüentemente•. os projetos deste gênero insinuam que a " educa-·
;;ão para a saúde" é uma eventualidade, uma aspiração entravada por.
interesses político-econômicos. A imagem vendida é a do ideal com o ·
-q~al se sonha e que a mesquinhez do real impede de se concretizar. A
educação é uma possibilidade referida a um futuro hísiórico, sem equi-
valência no passado e sem apoio no presente.
Assim apresentada, a questão assume automaticamente o caráter
de descoberta, de experi~ncia intufda e não realizada, conseqüente-
mente, original. Ora, o que sabemos é que a crença na educação cientf·

66
fica dos individuús como meio preventivo de doenças mentais antece-
deu o nascimento da psiquiatria e das psicologias. O movimento higiê-
nico-pedagógico dos séculos XVIII e XIX. que deu origem a este tipo
de idéia, efetivou este projeto, apoiado nas escolas e nas famílias. E,
mais que isto, a partir desta prática forneceu as bases do conhecimento
que. em grande parte, constituíram a psiquiatria e ·a psicologia en-
quanto disciplinas científicas... 2• 3• 4• 5• 6 Em outras palavras, o ideal de
hoje já foi realizado ontem.
Todavia. a experiência dos séculos passados pode ser historica-
mente relativizada e, por conseguinte, anulada em sua pertinência
para com os métodos. objet1vos e objetos da experiência educativa
atual. Retomemos, então, um exemplo de nosso século. E, para efeito
de demonstração, analisemos o caso particular da pretensão educativa
que marcou tão fortemente toda uma geração de psicanalistas e educa-
dores influenciados pela psicanálise. E. de Anna Freud a seguinte cita-
ção: "Não obstante numerosos progressos parciaisr a educação psica-
nalítica não conseguiu tornar-se a arma prevemiva que deyia consti-
tuir-se. É verdade que as crianças que cresceram sob sua innuência fo-
ram. sob vários aspectos. diferentes das gerações anteriores. mas não
fo ram , por isso, liberadas de angústias e connitos e, por conseguinte,
menos expostas que outras a afecções neuróticas ou a outras doenças
mentais: surpresa que não teria razão de ser, caso certos autores, em
vc7. de terem se deixado levar pelo otimismo e entusiasmo com respeito
à ação preventiva. tivessem observado a estrita aplicação dos princí-
pio.s psicanalíticos. Segundo estes princípios, não existe, no conjunto ,
pre,·enção da neurose. ···
Este texto, escrito há quase 20 anos, não mostra uma só ruga. Em
seu apoio, poderíamos chamar outros testemunhos. Bruno Bettelheim ,
apreciando os resultados da educação psicanalitica dos kibutzim, che-
ga a conclusões idênticas." Admitimos. contudo, que a visão psica·
nalítica dos autores não é representativa da psicanálise em geral e que
as experiências narradas foram necessariamente marcadas pelos con-

I. ALBUQUERQUE. J . A. Guillon. Mttáforas da desordem, Rio de Janeiro, Paz e


Terra. 197S. .
2. CASTEL. Robert. L"ordn psychíotri~. Paris. Mínuit, 1976.
3. COSTA, Jurandír F re.i re. Ordem midico e norma familiar . Rio de Janeiro, Graal.
1979.
4. FOUCAULT. Michel. LI vclonti dt sovoir. Paris, Gallimard, 1976.
5. MACHADO. Roberto et alii. Do/IQçào do norma. Rio de Janeiro. Graal, 1978.
6. USSEL. Jos von. Lo riprtsion .rtxual. México, Roca, 1974.
1. FR EVO. Anna. U normal tt lt pothologiqu~ ch'z l"tnfant. Paris. Gallimard, p. S
S. BETTELHEIM, Bruno.us t!nfonts du riw , Paris. Lafon t, 1971.

67
textos institucionais em que se desenrolaram. A exemplaridade dos
modelos poderia, assim, ser contestada, e sua universalidade, negada.
Recorramos, portanto, a tentativas mais próximas de nossa reali-
dade social, abandonando, por um momento, a educação psicanalíti-
ca. O que restou da imensa propaganda e dos esforços educativos des-
pendidos pelos psiquiatras da Liga BrasHeira de Higiene Mental? Fi-
que claro que estamos aludindo às iniciativas de homens como Ulysses
Pernambucano e não à atividade do grupo nazi-fascista que também
pertenceu àquela instituição.9 Ao que saibamos, as estatísticas de saú-
de mental permaneceram empedernidamente insensfveis ao aparelho
educativo montado pela Liga. Mas o Brasil é um pais pobre, desorga-
nizado, avesso à veracidade e à confiabilidade estatfsticas. Tomemos,
então, o· exemplo americano, insuspeito, neste sentido. Ao que nos
consta, também neste caso, os resultados obtidos com os faraônicos
programas educativos de saúde mental dos anos 60 em nada alteraram
a sanidade psicológica daquele povo.
Natural:ílente, pode--se objetar que o exemplo é falacioso. Expõe-·
se o leitor aos resultados de um programa educativo cujos principias.
lhe são sonegados . Para que se julgue com propriedade um destes pro.,
jetos, é preciso que se conheça os pressupostos teóricos e técnicos em~
que se basearam. Ora, todos sabemos que as experiências apontadu
foram concebidas dentro de parâmetrv3 ideológicos claramente con-
servadores. E, salvo o particularíssimo caso dos lcihutzim israelenses,
microcosmos socialistas plantados no eoração do capitalismo, todas
elas refletiram, em seus objetivos, este parti pris poJitico. Como disso-
ciar a versão educativa da psicanálise anglo-saxõnica da consciência
democrático-burguesa de seus mentores intelectuais? E, pensando na
Liga Brasileira de Higiene Mental e na psiquiatria comunitária ameri-
cana, como deilllar de assinala.r a dependência de seus projetos de saú-
de mental para com os projetos poUticos de ordenação social em qué
se enquadraram? A partir dos eventos descritos, pode-se afirmar, no
máximo. que a tentativa de educação psicológica no ocidente capitalis-
ta fracassou. Deduzir dai a nulidade de toda e qualquer educação do
gênero é uma inferência arbitrária. A prática educativa criticada pode
ter fracassado justamente pelo comprometimento com objetitos poli-
ticos alienantes para a pessoa humana. Nada nos impede de supor que
noções educativas voltadas para a liberdade, dispondo de outros su-
portes poUticos. produzam resultados diferentes. Sem um estudo com-

. 9. COSTA. Jurandir Freire. Hin6rúl da psiquiatrúl no 81USil.., um corte ideológico.


Rio de Janeiro, Documentário, 1976.

68
parativo desta o r~em, toda conclusão a respeito do problema é apres-
sada ou preconcettuosa.
Voltemo-nos, portanto, para esta face da questão. Cruzemos as
fro nteiras ocidentais e capitalistas. Vejam~s ~ ~ue propunha~ l??r
exemplo. Vera Schmidt, educadora revoluctonana_; em plena U mao
soviética pré-stalinista. Um dos conselhos dados as educadoras dos
Laboratórios-Lares de Infância, instituições mo~elo criadas peta pen-
sadora. era o seguinte: "No seu trato com ~s cnança.s, as .educador~s
deverão mostrar-se extremat?e~te par~imoruo~as ~m car~ctas e demaJs
manifestações de carinho. L1m1tar-se-ao a retnbu!r cordtalmente. m~s
com moderação; as demonstrações de afeto das cnanças. N? laborato-
rio-Lar de Infância estão terminantemente proibida~..as tmpetuosas
demonstrações de carinho por parte dos ad~tos (betJI~hos, 3:braços
violentos, etc.) que excitam ~xualmente as _:na~ças .e sao noctva.s ao
seu sentido de autonomia. Este tipo de efusoes e ma1s adequado asa-
tisfação dos adultos do que às necessidades das crianças."•o..
Seria curioso imaginar como um educador moderno reagtna a um
conselho assim formulado. Vera Schmidt, no entanto, rel>':esent~va,
na época, a vanguarda poütico-teórica d~ pensamen.to · ps1cológtco. ·
Como Reich, foi precursora do que postenormentt: ve1 ~ ~ ser chama-
do pensamento freudo-marxista. Sua. l~i.tura da pstcanahse, ~em por
isso. deixa de ser vista por nossa senstbthdade atual como puntana ou
mesmo repressiva. . _ . ·
Evidentemente a relevância do exemplo nao denva dos resulta-
dos- a experiência'deVera Schmidt foi interrompida e n~o pôde ser
retomada graças ao dogmatismo stalinista - , mas do conteudo da pro-
posta. Não nos encontramos, aqui, diante de idéias. conservadoras ou
reacionárias. Mesmo assim, a distância, elas nos parecem lamentavel-
mente caducas. A lucidez política da autora .não modificou o teor de
"verdade" psicológica de seus princípios educacionais.
Deste modo, nos resultados como· nas intenções, as propost~s
educativas de que temos conhecimento revelam-se sempre malsucedt-
das ou mal formuladas, quando confrontadas às nossas expectativas .e
convicções presentes. Não negamos, com isto,?_ pr?gresso d~ conheci-
mento ou a possibilidade de sucesso da expenenc1a edu~attva:. Nota-
mos, apenas, que com referências teórico-políticas qu~ atnda.sao nos-
sas, o fato histórico nega que a educação proD?ova saude mental. Pelo

lO. REICH, Wilheirn .t SCHM IDT, Vera. PslcmiiÍfis~ ~ Mucaçrio. Lisboa, J. Bragan·
ça, sj d., p. 53. ·

. 69
contrário. o que se o bserva é que as medidas edu,:ativas, sempre inó-
cuas no toca Rte à saúde e à doença•, mostram-se extraordinariamente
a tivas, no que concerne à no rmalização social. Esta última asserção
merece ser melhor explicitada.

3. A "competência psicológica'': efeito mental da educação saudável

Há 40 ou 50 anos, inúmeros profissionais de saúde mental e edu-


cadores infl uenciados pela psica nálise de Freud ou de Reich lutavam
pa ra impor à sociédade certos preceitos educativos. Acreditava-se, en-
tão. que a repressão afetiva , moral e, sobretudo, sexual era o agente
causal, por e xcelência, de d ist úrbios ment ais da idade adulta. Atual-
me nte, temos provas basta ntes d~ que muitos destes preceitos, revolu-
cionários no te mpo, vêm sendo aceitos e postos em prá tica por uma
parcela expressiva da sociedade. Nas camadas u1rbanas economica-
men te privilegiadas, nunca fomos tão atentos, quanto hoje, aos exces-
!\Os de controle. proteção o u r igidez com que tratamos os nossos fi-
lhos. N unca. como hoje, sentimos tanta c ulpa quando imaginamos
que não sabemos o u não podemos dar-lhes o carinho, presença, limi-
te~ ou afeição necessários para um bom desenvolvimento emocional.
Ao mesmo tempo, (ambém aprendemos a C1Uitivar nosso bem-
esta r mental. protegendo-o da repressão. Estamos sempre hipervigi-
lantes às intrusões de nossos parceiros de relações amorosas,,pessoais
ou profissionais em nossa á rea de autonomia sexuaJ ou sentimental.
Cuida mos de nosso corpo, sexo e emoções com o rc~speíto dedicado às
coisas sagradas. O direito à liberdade sexual e à independência afetiva
tornou-se para nós um bem inalienável, pois dele depende não apenas
nossa felicidade, mas nossa saúde mental .
Com um pouco de recuo, não é dificil perceber que a tão desejada
educação pa ra a saúde J.llental não necessita ser criada ou inventada.
Ela u iste. ou melhor, continua existindo e funcionando eficientemen-
te. desde que seus fundadores. higienistas e peda1gosos dos séculos
X V 111 e X IX impuseram-n a como norma do viver :social . O que a tor-
na invisível ao olhar dos agentes de saúde são seus resultados, que não
correspondem às expectativas destes agentes e levam-nos a anular a
responsabilidade que lhes compete, na produção do efeito indesejável.
Em ou tros term os, nega-se que a educação exista para não se assumir
o ô nus de suas conseqüências.
De fato. malgrado o extremo zelo com que O!l indjvfduos se cui-

• Para efeito de simplificação do raciocínio, dispensaremos a definição dos termos


sáudc: • doença. Quando nos referi rmos a estes vocábulos, estaremos pensando na reali-
dade em pírica do comportamento anômalo (no sentido de vari:ação individual do tipo

70
dam: ma lgrado a maciça dose de regra s de saúde mental que são obri-
!!ados a consumir; malgrado. enfim, todo o sucesso da propaganda em
torno da educação psicológica, as doenças mentais continuam existin-
do e pa ra alguns tendem a aumentar. O saldo da educação não foi o
que se esperava, ou seja. o acréscimo da saúde mental das pessoas. O
efeito positivo da educação foi o a umento daquilo que, por analogia
com o que Boltansky chamou de " competência médica", cha maria-
mos de "competência psicológica ."" Explicitando, os indivfduos apro-
pria ra m-se do voca bulário e dos métodos diagnósticos da psicopatolo-
gia clínica e passa ram a codificar, mais facilmente, o sofrimento
psíquico em termos de desvio ou anormalidade mentais. O que aumen·
tou não foi o saúde mental. mas a capacidade de traduzir sensações
psíquicas em sintomas psicopato/ógicos . O que cresceu não fo i a taxa de
sa nidade psicológica, mas a clientela psiquiátrico-psicoterápica.
Este fenômeno . que Castel tão bem denominou de "apetit,e tera-
pêutico" das elites urbanas, é entendivel quando vemos a ligação es-
treita que ele mantém com a educação 11 • Acontece que a redistribuição
do saber psicológico, medida aparentemente democ rá tica, assumindo
a forma da educação, incorporou também a função social que esta úl-
tima cumpre numa sociedade comandada por interesses de classe. Tor-
nou-se um instrumento de conversão dos indivfduos aos valores ideo-
lógicos da elite dominante. A "competência psicológica" é, em sua es-
sência. um traço da norma do viver social das elites econômico-culturais.
Ela exprime a maneira pela qual os indivíduos que integram este seg-
mento social concebem seus ideais de felicidade ou bem-estar. Ideais
que têm na otimização do prazer do corpo, do sexo e no sucesso indi-
vidual. econômico, intelectual, artístico, etc. seus pontos de apoio e
referência.
Não pretendemos conotar pejorat ivamente o desejo de felicidade
individual das elites, rotulando-o de "burguês". Tampouco temos a
intenção de opô-lo a um "desejo de felicidade proletário", suposta-
mente diverso e qualitativamente superior, em sua natureza, ao pri-
meiro. Não temos dados suficientes e. por conseguinte, competência
para criticar o "projeto individual de um burgu!s" à luz de um ..proje·
to de bem-estar pessoal proletário" . O objeto de nossa discussão não
são os modos de vida das classes sociais e suas respectivas diferenças
no que tange a este item da vida psicológica. Chamamos atenção, isto

específico) que se descreve soh a rubrica do anormal, do~nl~ ou psfcopatol ógico. No d~


correr do trabalho assinalaremos algumas caramristicas do fato psicopatol6aioo, sem
que isso implique em sua definição exaustiva.
11 . BOLTANSKY, Luc . .As dass~s sociais e Q corpo. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
12. CASTEL. Robert. ú psychono/ismt. Paris, François Maspero, 1973.

71
sim, para o fato de q~e estas questões só margin~lmente têm a v~r com
a problemátíca da saude e da doença mental, po1s em nada elucJdam a
natureza do fenômeno psicopatológico. .
A educação psicológica é indiferente quanto à sanidade psíquica
dos indivíduos. C omo qualquer outro tipo de educação, ela transmite
valores socializados ou socializáveis. Podemos julgá-la justa ou injusta
segundo nossa postura ideológica, mas não podemos tomá-la como fa-
tor causal de saúde ou doença. Estes fatos escapam à circunscrição da
educação e o desconhecimento desta especificidade deu origem e ali-
menta o persistente equívoco de que ora nos ocupamos.

4. Norma educativa. desvio e doença mental

O indivíduo bem-educado é um individuo mentalmente sadio.


Acreditamos que, assim exposta, esta afirmação encontraria quem de
imediato a contradissesse. No entanto, diluida em meio à discussão
sobre educação e saúde, ela tende a ocultar sua incongruência e, fre-
qüentemente, a ser aceita como lógica e razoável.
A educação, todos sabem, produz regimes de representação do
mundo que visam a obter o consenso em torno dos interesses sociais
hegemônicos em um~ dada sociedade. Os hábitos mentais que ela cria
ou reedita têm , por con seguinte, a caracteristica de serem hábitos co-
muns, partilhados ou partilháveis pela maioria dos indivíduos. A edu-
cação psicológica não foge a esta regra. Por mais que pretenda dar
conta do que distingue os indivíduos e não ..do que os une; por mais
que pretenda incidir no desenvolvimento emocional das pessoas e não
em seus valores morais; sua finalidade ê a de universalizar particulari-
dades emocionais previamente definidas como saudáveis. Seu objeti-
vo, dito de outro modo, é o de criar uma "norma psicológica", fixan-
do certos registros de percepção e interpretação de fenômenos da esfe-
ra psíquica como modelos dominantes para um determinado grupo
social.
. _Este objetivo pode até reforçar nos sujeitos a convicção de que o
max1mo grau de desenvolvimento psíquico corresponde ao maior de-
senvolvimento possível da individualização. A norma ideal de consti-
tuição do sujeito pode ter na originalidade, na singularidade ou unicida-
de de sua personalidade o paradigma fundamental . f:. o caso de nossa
cultura. onde o individuo é tanto mais reconhecido socialmente quan-
to niaior for sua originalidade. Isto, contudo, não invalida nem con-
tradiz o propósito socializante: quanto mais indivíduos originais exis-
tam. tanto mais bem-sucedida .terá sido a educação. ·
Desta constataçã·a se depreende que toda norma educativa, psico-
lógica ou o.utra, busca a universalização do particular, o que implica a

72
valorização consciente, intencional, deliberada, de tudo aquilo que os
indivíduos possam ter em comum . A e~ucaçã~ psic.ológica. a!i~ge seu
objetivo quando consegue formar um Tlpo Ps1co/6gtco Ordmarw: Este
tipo naturalmente. tem seu perfil moldado segundo a classe soc1al ou
subgrupo cultural a que pertence o individuo, e varia no d~orrer da
história. Em nossa sociedade, tomando-se por amostra a _ehte, obser-
va-se que em períodos anteriores certos traços de personalidade, como
a contenção empcional, sexual e agressiva, ocuparam o lug~r de nor-
ma psicológica ideal. Hoje. a ênfase é posta em caracterlstt~as quase
opostas. Valoriza-se a espontaneid~de, a Jiberàção da sexua.h~~de, da
agressividade, além de se estimuiar o contato, cada ve~ m~ts .mtenso,
com sentimentos e pensamentos do que 'hamamos vtda mttm!l.
Todo indivíduo, por.tanto, está continuam-ente convivendo com
este tipo psicológico padrão de seu grupo social. Q~ando se imagi~a
próximo d? sujeito ideal po~e se~tir-se, como de háb1to se_ sente, satl~­
feito e realizado; quando se tmagma afastado, pode ~xpenmentar afli-
ção. insatisfação ou mal.:estar. Mas este tipo de sofn~ento não confi-
gura um quadro psicopatológico e.mbor~ seja •. inequt~o~a~ente, um
sofrimento mental. O desvio do Ttpo Ps1cológtco Ordmano pode ser
causa de sofrimento mas não é sinônimo de doen.ça ~ental. Do mes~o
modo, a aproximação do tipo pode ser fonte de sattsfação sem que IS-
so, por si só, defina o estado de sanidade mental. . .
Elucidemos o ptoblema, tomando um exemJ?lo clásstco: o d~ di-
vergência entre Freud e Reich. Para Freud, o destmo normal e satisfa-
tório das pulsões era a sublimação: Seja dito, a bem da verda~e, que
Freud não acreditava na felicidade humana por achar que havta uma
incompatibilidade irredutível entre as necessidades ~ satisfação pul-
sional do individuo e as necessidades éticas e matenats da cultura ou
civilização. Como quer que seja, para ele a sublimação representava o
ideal de maturidade afetiva ao qual o inâivíduo podia aspirar, dados
os limites impostos pelas exigências pulsionais e sociais.
Em contrapartida, para Reícb, o homem freudiano, sujeito d_a
sublimação, era um homem reprimido e, por isto, e~posto. à t~nsão h-
bidinal, porta de entrada da neurose. Seu modelo pstcológ~co td~l en-
contrava na liberação sexual a única via compatlvel com a sanJd~de
mental. Resumindo, o "homem sublimado" de Freud, que para Retch
era reprimido e neurótico, coincidia com o que o pri!lleiro ~creditava
ser o limite de sanidade mental alcançável, numa soctedade mtrfnseca
e inelutavelmente repressiva. Inversamente, o .. homem liberado" de
Reich, que para Freud era imaturo, infantil, peryerso poJimo~fo. r.e-
presentava o ideal de sanidade mental que, por hipótese, devena exJs·
tir numa sociedade livre de toda repressão.
Em retrospectiva, podemos dizer que ambos se equivocaram ao

73
identificarem modelos de normalidade social com modelos de saúde
~ent~l. O h?me?I .sublimad? e o homem liberado se opõem porque
sao t1pos pstcologtcos conflttantes. Porém suas existências não ex-
cluem a experi_ência, tanto em um como em outro, da saúde ou da
d_o~nça. O sofnmento provocado pelo desvio social pode ou não coin-
ttdtr com aquele de origem psicopatológica. Há indivíduos que não
s~n~em ne~h~~ desconforto especial por se afastarem do Tipo Psico-
l~gtco Ordmarto e.!. no entanto, sofrem de maneira intensa as repercus-
soes de perturbaçoes mentais.
A educação psicológica, por.t anto, pode ser mais ou menos fiel ao.
padrão de valores dominantes. Ela pode aceitar na totalidade os ele-
me~t~s q~e compõem o Tipo Psicológico Ordinário, e, no p rocesso de
~oc1 ahzaçao, levar o educando a internalizar plenamente o sujeito
~deaJ do gr~p~. Como também pode divergir, propositalmente, do ·
1deal da ma1ona e pro"?? r um outro Tipo Psicológico· Ideal, que con-
teste.~ ~orm~ estabelec:tda. De qualquer forma , a intenção consciente
de du~g1r a vtda do educando para valores universais é determinante e
explfc1ta. ~ neste sentido que ela se distingue do que por vezes se cha-
ma de "educação patogênica". ' '
Para. efeito de clareza, repensemos o caso da educação familiar.
~a _f~mfha concentram-se mui~os dos esforços para proporcionar aos
tndlVIduos uma boa educação p sicológica. No entanto, quando fala-
mos de educação familiar é preciso d istinguir noções de ordens diver-
sa~, subsumidas _no c~nce.it~ educação. A famflia inegavelmente trans-
mtte, na educaçao ps1cologtca das crianças, os ideais de vida que for-
m~m o T ipo Psicológico Ordinário. Sob este aspecto, completa ou du-
phca a funçã~ exerci~~ pel~ escola, religião, etc. Mas, quando se supõe
que a educa~a~ famthar fot patogênica, educação, nesta acepção, não
pode ser asstmtla~a à educação psicológica. E um exemplo tipico de
um ~esmo conc~tto pertencente a classes lógicas diversas. Educação
famth.ar patogêm_ca alu~e a .um. fenômeno heterogêneo à educação psi-
coló~•ca, no sentido actma mdtcado. A identificação usualmente esta-
belecida entre ~s ~uas baseia-se em analogias e similitudes que escon-
dem a ~escontmutdade de ações e efeitos de cada uma delas.
. VeJamo~ que:_ elementos favorecem a identidade postulada entre
o~ t•P_?S de sttuaçao. Em primeiro lugar, trata-se de sistemas de comu-
n~caçao h ~man~, ~e natureza assimétrica. Um dos parceiros da rela-
çao po~Ut um codtgo de interpretação do real·que o outro de.>conhece
e, por 1sso, não tem condições de confirmar ou infirmar a veracidade
da informacã? r~cebida. Em segundo lugar, trata-se de relações em
que a dependencta do receptor para com o transmissor é necessária e
inevir~vel .. A criança n~es~ita ~o adulto p ara que suas expenências
emoc1onaes se tornem SJgntficattvas. Sem este repertório de si.gnifica-

74
ções, tais experiências seriam psiqu icamente aboli das do universo
mental e socialmente incomunicáveis. A dependência é uma cond ição
sine quo non no processo de humanização do sujeito, nesta fase da vi-
da. Em terceiro lugar. a criança está exposta, de maneira particular-
mente vulnerável. ao adulto, que pode abusar de sua força e submetê-
la a uma forma de violência extremamente nociva, a violência simbóli-
.ca.
Por este termo entendemos toda imposição de enunciados sobre o
real que leve a criança a adotar como referencial exclusivo de sua
orientação no mundo a interpretação fo rnecida pelo detentor do sa-
ber.') O individuo cronifica a posição de dependência e perde ou am-
puta a capacidade de criar seu próprio elenco de significados. O mun-
do representado sofre uma restrição. fruto da privação sinalética. O
funcionamento mental do sujeito, simbolicamente violentad o na in-
fância , torna-se inibido, paralisado ou distorcido, em maior ou menor
extensão, conforme a natureza e a intensidade· da violência.
Entretanto, insistimos, semelhança não é identidade. O alcance
da violência simbólica no ato educativo não é o mesmo da interação
emocional patogênica. A educação, mesmo quando violenta, respeita,
por assim dizer, os valores do grupo social. Não por opção ou decisão
do educador, mas porque sua própria substância é composta de repre-
wnrações socializadas. Ninguém pode transform ar água em vinho e
quem só dispõe de água não pode fabricar vinho.
Ilustremos com fatos a teoria e a metáfora. A educação psicológi-
ca das crianças no nazismo foi uma educação violenta. Os jovens na-
zistas internalizaram uma construção lógica da realidade que legitima-
va a destruição como norma do viver social e, além disso, se apresenta-
va como única~ verdadeira e incontestável. As crianças nazistas, ou
preparadas para aceitarem o nazismo, foram privadas, ao mesmo tem-
po, da possibilidade de vislumbrarem os elementos irracionais de suas
visões de mundo e da possibilidade de acederem a uma interpretação
alternativa do real. Raramente, na história moderna, viu-se exemplo
mais brutal de violência educativa. Mas, não obstante toda aberração,
não podemos afirmar que a educação psicológica nazista foi psicopa-
togênica.' A não ser que se queira fazer do nazismo uma doença men-
tal, afirmação comprovadamente ideológica, pelo subjetivismo com
que tenta explicar um fato social. A educação nazista foi vetor de uma
monstruosa alienação politico-ideológica, mas Óão fator causal de
doença mental.
Deixemos, porém, os casos extremos. Analisemos a ideologia de-

13. AULAGNI ER; Piera. La violtnct dt l'ínlerpretotion. Paris, PUF, 1975.

15
n~ oc rático-burgues~ em que se inspira a educação psicológica hegemô-
nrca. em nossa sociedade. P0demos julgar violenta a educação que,
através do culto ao individualismo, inculca nas crianças os preconcei-
tos de classe. raça e sexo que todos conhecemos. Porém, sabemos que
? indivíduo convertido a es.tes valores não é doente mental. Ele é parte
mtegrante de um grupo CUJO etho.s pode nos parecer ..alienado", " de-
sumano", etc. Mas, ideologia é sempre um fenômeno social e o subs-
trat_o .da edu.cação .Ps.ic.ológi.ca,. e~ nossa realidade, nada máis é que
uma 1d~o log1a subjetJv~sta, mdJvJduo-centrado portanto, socialmente
no.r'?ahzada e normahzante. Assim, quando o educador (pai, mãe,
psrcologo. pro fes~or, etc.) afirma a uma criança que o bom filho, a boa
fil.ha. o bo~ man~o. a boa esposa, o bom pai ou a boa mãe possuem
tars ou quars predicados emocionais, ele repete uma inj unção consen-
sua.l. ~ara um determ inado grupo. O tipo ideal uma vez definido já é
socializado. E, uma vez en unciado no ato da educação, já existe incor-
porado.como tal na consciência d o ed ucador. A coerção do discurso
normatrvo, neste particular, não deixa margens à transgressão. A úni-
~a ruptura possív~l ~a norma co.nsiste na elaboração de um outro tipo
1deal tambem soc1ahzado ou socializável e, conseqüentemente, norma-
hzador. A v.iol~n~ia simbólica provocada pela educação psicológica
pres~rva no I~dJ~tduo a capacidade de reconhecer em algum dos tipos
rdems ~ refcrenc1a que torne " natural",lógico, aceitável, significativo,
seu un1verso de :xp~r~ências emocio nais. Por alienante que seja, ela
sempre remete o IndiVIduo ao m undo das significações coletivas à ló-
gica do discu rso cultural. '
. Out.ra coisa é a relação familiar patogênica, que se pode chamar,
~mpro~ r~amcn t e. de. educação patológica. Não se trata, aqui, de uma
l~lp0s1 c;ao de enunc1ados sobre o real previamente legislados pelo so-
Cial e depcnd~ntes da intenção consciente de quem os enuncia. No pre-
sente caso. a Informação dada não coincide, em seu teor, com a inten-
c;ã? do "educad_or". No ato de interpretar o mundo para a criança, um
pa. pode, consciente e voluntariamente, pretender realizar plenamente
a função paterna, conforme o modelo ditado pelo tipo ideal. No en-
tanto ,~ a for~a e o conteúdo de sua interpretação podem trair sua deli-
beraç~o e dentarem passar.uma mensagem que não é reconhecida por-
que nao tem traduçao na linguagem socializa da dos tipos ideais. O su-
p o~to pai. guardu a referência do Tipo Psicológico Ordinário, elemento
estavel e mamovível, parte constitutiva de sua consciência socializada.
Mas ~articular.iza-.o .em funçã o das representações imaginárias e in-
conscientes. CUJa logtca desconheoe e sobre as quais não tem controle
vo.luntário. Neste registro, o conhecimento da regra psicológica não
ev1ta sua transgressão. A escala de reinterpretações é infinita e só em
:asos francamente graves. mostra-se à consciência do "educador"

76
como tal. Uma mãe, por exemplo, pode dar-se conta da compulsão,
produto de uma idéia obsessiva ou delirante, em fazer sofrer o filho .
Na maioria das vezes, entretanto, esta dissociação entre conhecimento
da norma, base da educação, e infração inconsciente, base da psicopa-.
tologia, só é perceptível pela consciência do observador externo.
A interação emocional potencialmente patogênica leva, obvia-
mente, a criança a construir um compo rtamento desviante com rela-
ção ao tipo ideal. No entanto, este é seu aspecto mais acidental. O fun-
damental nesta relação é seu poder de excluir do horizonte psfquico da
criança o acesso a um tipo psicológico ideal, qualquer que seja ele. O
específico da psicopato/ogia reside na incapacidade que tem o .sujeito de
construir ou se apropriar de objetos socializados . A interação emocional
patogênica impede o sujeito de formular projetos satisfatórios porque
neles bá sempre um pressuposto incompatfvel com os universais da
cultura em q_uestão. A priva tização do real, socialmente definido, leva-
da a cabo pelo "educador" , faz com que o individuo não consiga ins-
crever suas experiências emocionais no conjunto de representações so-
cializadas, posto à sua disposição pela cultura. O sofrimento mental
psicopatológico tem origem nesta "ausência de sentido" do vivido e.não
no puro conflito com o TipO' Psicológico Ordinário. O distúrbio mental
existe quando as representações de que o individuo di~põe para sentir
e pensar sua identidade ou as causalidades e finalidades de seus projetos
e emoções não se articulam em nenhuma rede de significados presente
em sua consciência socializada. ·
Naturalmente a experiência psicopatológica será tanto mais grave
quanto mais extensa for a área psfquica impedida de significar ou
" desprovida de sentido", como se preferir. De qualquer forma, a refe-
rência à "do ença" surge, na consciência de quem a experimenta como
na consciêncià de quem a diagnostica, cada v-ez que o pensamento se
defronta com uma representação ou um afeto desta ordem.
Que esta experiência tenha sido apropriada, no Ocidente indus-
trial e capitalista, pela lingl!lagem e terapêutica médicas, isto é um ou-
tro problema. No momento, tentamos apenas mostrar que os efeitos
da educação psicológica são distintos dos efeitos da interação emocio-
nal virtual ou realmente patogênica. Esta última,_desde o início, romp.e
o pacto social, justo ou injusto. Não se entende, portanto, como medi-
das educativas poderiam servir de corretivos a fenômenos que, uma
vez surgidos, já são ineducâveis. O que falta a um adulto potencial-
mente eficaz do ponto de vísta psicopatológico não são conhecimentos ·
psicológicos normativos. Via de regra, estes conhecimentos ou sã? re-
dundantes e ineficientes ou apenas incitam os indivíduos a ademem
ou refo rçarem a "ideologia psicológica" do grupo social.
A psicopatologia não é uma variante psicológica do processo edu-

77
cativo. E isto, é útil esclarecer, não quer dizzer que exista descontinui·
dade entre o psicológico e o psicopatológico. Quando certas teorias,
como a psicanálise, afirmam a continuidade entre o normal e o patoló·
gico, para retomar a terminologia freudiana, é preciso que se entenda
o sentido dado por Freud ao " psicológico". Para a psicanálise o subs·
trato do aparelho psíquico alude ao real social, tem nele sua matéria·
prima. mas não é um reflexo mecânico da ação educativa, ética ou mo-
ral, do mundo exterior. O "psicológico" da teoria analítica está em
continuidade com o psicopatológico porque sua origem traz o selo da
realidade p.çíquica, formação inconsciente cujas leis são generalizáveis,
mas cujo funcionamento é a bsolutamente pessoal, idiossincrático, es-
'trita e o riginalmente dependente da história de cada um . Mesmo assim
(e este é m tis um motivo para duvidarmos do valor preventivo da edu-
cação psicológica) a continuidade postulada entre o normal e o patoló·
gico não implica homogeneidade entre os estados. 14 A heterogeneidade
de uma experiência com relação a outra não nega a continuidade,
transição ou transitividade entre elas. Afirmar, ·por exemplo, que os
proc:ssos psicopatológicos dos adultos exibem características dos pro-
. cessos psíquicos normais na infância significa afirmar que existe conti-
nuidade entre os dois. Mas um adulto mentalmente afetado não é uma
criança fora do tempo. Existe uma heterogeneidade entre a experiê'ncia
psicopatológica do adulto e a experiência psicológica infantil, assim
como existe diferença entre uma criança mentalmente hígida e uma
outra psicopatologicamente atingida.
Por conseguinte, mesmo considerando as teorias que estabelecem
uma continuidade entre o psicológico e o psicopatológico, existe lugar
para se afirmar a alteridadc de um fenômeno para com outro. Não ve-
mos, então, que razões teríamos em identificar " educação psicológi-
ca" à "interação emocional patogênica", quando às duas são atribui-
dos propriedades e efeitos psíquicos não só· 'o postos, mas heter':lgê-
neos.
A menos que se queira dar ao termo educação a qual idad~ tlpica
dos princípios universais que explicam tudo, sem nada explicarem.
Co ntudo, neste caso, renunciaremos a entender a singularidade de -
cada situação. E mais: fingiremos não ver que, até o momento, nenhu-
ma educação psicológica pôde reivindicar o mérito de ter abolido ou
reduzido o surgimento de doenças mentais.

14. Quanto às noções de continuidade, homogeneidade e heterogeneidade na relação


com o norma l e o patológico, ver: CANGU ILHEM, G . L~ IIO'mal et I~ parhologíque. 2 .
ed. Paris, PUF, 1972.

78
Violência e identidade

Y. tinha 21 anos quando nos procurou. Encontrava-se numa si-


tuação delicada, respondendo. sub-judice, a Üm ·processo por porte e
~so de tóxicos. Já nas entrevistas iniciais nã·o deixa dúvidas quanto à
1magem que pode projetar em seu meio social. Trata-se de uma biogra-
fia típica do chamado ' 'jovem delinqüente". Aos 4 anos de idade, os
pais. separaram-se. Ficou des_de então sob a guarda da mãe que,
obngad_a a t rabalhar, entregou-o aos cuidados de empregadas. Ao.s 5
anos fo1 currado por garotos de um morro próximo a sua casa, onde
fo ra levado a passear por uma empregada. Acredita que se ..perdeu" e
não sabe dar maiores explicações de como pôde ter-se encontrado em
tal situação. Esta mesma empregada, em outras ocasiões, induziu-o a
fu mar maconha e a ingerir bebida alcoólica. T inha, nesta época, 8 ou 9
anos e não lembra a sensação experimentada. Acha que sentiu medo,
~ as ao certo recorda apenas que a mãe, tendo casualmente surpreen-
dido o filho embriagado, demitiu a empregada. As babás contratadas
posteriormente n ão repetiram a conduta brutal da primeira mas tam·
pouco souberam desenvolver uma relação afetiva calorosa com a
criança. Y. descreve-as como frias, indiferentes ou ríspidas.
Quando tinha 12 anos, aproximadamente, recebeu a visita do pai
que morava em outro estado . O reencontro, apesar de sentimental-
mente morno, despertou-lhe grande interesse pela figura paterna. Quis
visitá-lo na cidade onde residia. Lá, aproximaram-se um pouco mais.
Saíram juntos e foi naquela ocasião que Y. aprendeu a beber e a fumar
com o pai. Recorda ainda que pediu para que ele o levasse ao prosti-

79
bulo. Em resposta, obteve uma recusa. Não desistiu. Burlou a vigilân-
cia paterna e por meios próprios chegou até o bordel local. As prosti-
tutas trataram-no gentilmente, mas como a uma criança e, para sua
surpresa, disseram conhecer bem seu pai. Y . durante muito tempo ru-
minou o fato e concluiu, finalmente, que Q. pai queria impedi-lo de co-
nhecer suas "fraquezas sexuais", eufemismo usado para a palavra im-
potência. ·
A estada junto ao pai não durou mais que dois ou três meses. De
volta à casa, Y. não sabe dizer se sentiu saudades ou se passou a tratar
o pai COIJ! mais carinho. Do convfvio restaram lembranças de excita-
ções, curiosidades, medo5, surpresas, mistérios, etc. Nada mais além
disso. Só tem certeza de que sua vida mudou depois do reencontro.
~omeçou a fumar maconha, "levado por colegas de rua'', a negligen-
Ciar os estudos e a perambular por esquinas, botecos e praias. Foi o
início da escalada de tóxicos e da carreira de drogado.
. Visto o mau desempenho escolar, mudou de colégios numa velo-
cidade geométrica. Entre expulsões e abandonos passou por 19 insti-
tuições, dentre as quais dois reformatórios para menores-problema.
Nestes reformatórios, presenciou toda sorte de violências fisicas, mo-
rais e sexuais. Curras, espancamentos, punições e humilhações mistu-
ravam-se a drogas, furtos e delações num desfile de atrocidades coti-
dianas. cujo sentido lhe escapava completamente. O uso de droga in-
lensificou-se, principalmente o de cocafna e psicoestimulantes. Parou
definitivamente de estudar. Abriu mão de qualquer projeto profissio-
nal, afetivo ou outro. Vivia nas "bocas" dos morros em contato com
marginais, alguns dos quais conhecera nos reformatórios.
Dos 18 anos até a época em que nos conhecemos, diz que tudo em
sua vida girava em torno da obtenção da droga. Nada mais tinha sen-
tido ou interesse. Só pensava em drogar·se e em abastecer-se de dro-
gas. Tentou neste meio tempo uma experiência psicoterápica, cedo in-
terrompida. Aos 20 anos, após um perfodo de uso especialmente inten-.
so de drogas, entrou em falência psíquica. Nos seus termos, teve um
"acesso de paranóia": "Eu tava assim ... meio doido de pó ... e foi dan-
do uma angústia... Eu via uma mulher rebolando pra cima de 'mim ....
Ela se transformava em sapo e em cobra.Tinha os olhos e a lfngua de·
fogo como o diabo. Entrei em pânico. Pensava que a mulher era mi-
nha mãe. Sentia um medo horrível. Tinha medo de morrer. Não sabia
~ a mulher ia me matar. Não conseguia cortar aquela. As imagens
não desapareciam. Eu gritava, suava, só pensava que ia morrer...''
Foi hospitalizado e seu quadro tratado como um surto psicótico.
Durante a hospitalização fez uma grave tentativa de suicídio. Após um
t!atamento com neurolépticos, deixou o hospital e começou uma aná-
lise. Parou porque achava o analista "frio", "cínico". e "gozador".

80
Não queria conversar com ele e respondia as suas perguntas com
··subterfúgios". Voltou a usar tóxicos, foi apanhado pela policia, no·
vamente hospitalizado e submetido a um pesado tratamento medica-
mentoso.
No momento em que o vimos pela primeira vez, mostrava os efei-
tos clássicos de impregnação neuroléptica, além de um penoso descaso
para com a higiene corporal. Afirmou-nos que passava dias e dias sem
tomar banho, trocar de roupa, escovar os dentes, etc...
Sua vida afetivo-sexual sempre foi superficial. Nunca teve amigos
de quem realmente gostasse ou ligações amorosas que o apaixonas-
sem. No plano sexual propriamente dito, a mesma sensação de vazio,
incompletudt e desorganização. Queixava-se de impotência. Dizia ter
tido somente duas relações heterossexuais completas. A masturbação
era mecânica, rara e sem prazer. FreqUentava, contudo, prostfbulos e
dizia admirar muito cafetinas e prostitutas, por considerá-las mulheres
vividas e donas de grande sabedoria. Num dado momento, veio a des-
crever as circunstâncias em que conseguiu realizar plenamente o coito.
In vocou os deuses do panteào africano, Exu e outros, e, após ter can-
tado os pontos necessários à "descida" das divindades, foi tomado por
uma enorme força e concretizou a relação sexual desejada.
Mas a atividade mental de Y. não revelava apenas terrores e im·
possibilidades. Todo um setor de sua vida pslquica havia sobrevivido à
devastação dos tóxicos. Mostrava interesse por música, pintura e pelo
que chamava de história. Este último tópico merece um comentário à
parte. .
Pouco a pouco fomos tomando conhecimento do que ele entendia
por história e percebendo a relação ·privilegiada entre o gosto pelo
tema e seus conflitos pessoais. História significava, numa primeira
acepção, digamos, um vasto conjunto de interrogações e especulações
sobre as origens da vida e do mundo. Era, na verdade, um grande pai-
nel composto de informações sobre os mistérios da vida extraterrestre
e de idéias colhidas em obras de vulgarização cientffica sobre paleon-
tologia, arqueologia, astronomia, astrologia, práticas mágicas medie-
vais, etc ... Conforme ficou claro. no curso da análise, história era tudo
o que lhe per.mitia pensar sobre os destinos do homem: como surgira,
por que surgira, que sentido tinha o que fazia e o que queria; etc; ..
A forma ingênua com que exprimia. estas inqujetações conferia a
seu discurso um tom patético. O contraste entre a simplicidade do fa-
lar e a grandeza dos sentimentos e preocupações era tocante. O mesmo
efeito comovente irrompia quando, referindo-se a história, narrava a
impressão que lhe causavam cenas urbanas do passado, costumes de
"populações antigas", documentos arquitetônicos de outros tempos e,
por último, relações entre brancos e negros, senhores e escravos nos
p~riod?s .c~lonial e monâr_quico brasileiros. Nesta acepção, divaga- as
çoes h tstoncas de Y. cammhavam sempre .rara a análise das relações·
de poder entre fracos e fortes; oprimido.s e opressores.
Com estes dados iniciamos sua análise, ocupando-nos imediata-
mente da medicação. Os neurolépticos foram diminuídos e Jogo retira-.
dos. Os tranqOilizantes, suprimidos ao cabo de 3 ou 4 meses. Desde
que o processo terapêutico começou, Y. não mais voltou a usar tóxi-
cos, e em ~ois ano~ conseguiu um trabalho regular, enfrentou o julga-
mento (fcu absolv1do); retomou o hábito de pintar e viveu relações
amorosas de uma qualidade nunca experimentada antes. A análise foi
mantida até o final, ultrapassando o período de melhora sintomática
descrito.
~i~do o processo, começaram nossas interrogações. Perguntamo-
nos, mumeras vezes, qual a razão da paixão de Y. pela droga. Cons-
truímos algumas hipóteses. Em todas elas, um aspecto salientou-se: o
papel da violência na constituição da identidade.
Em nossa opinião, Y. forjou sua identidade de "drogado" e "de-
l i.~qü_ente'' ~orno meio de escapar à violência. Neste sentido, sua expe-
nencla, cunosamente, assemelha-se à do impostor. A delinqüência
como a impostura são identidades geradas pela violência. Mas embora
presas a uma ~esma m~triz, ocupam posições diversas diante daquilo
· que. l~es deu on~em . O 1mpostor, em sua clássica caracterização psica-
nahtJca. apropna-se. da técnica da violência, subordinando-a a seus ·
propósitos. Na impostura, o sujeito é o mestre, a violência, o escravo.
Além disso, o impostor explora a força de modo visível e ruidoso
aliando indissociavelmente violência e exibição. A impostura nutre-s~
da expropriação de atributos de poder pertencentes a outrem: nome,
status, bens. etc... A identidade cobiçada é a socialmente reconhecida.
f: atrav~s _da manip~lação da honra e prestígio sociais que o impostor
logra suJeitar o ambaente a seus desejos e intenções• 2• Na impostura o
falso self.. a f~lsa identidade, procura definir-se pela posse, ostentação
e manuse1o violento do s_ocialmente aceito como belo, bom, forte, po-
d~roso, etc... A for~a da Impostura reside na exibição do que fascina o
olhar da ví~ima e ~a ocultação do que é desprezível sem thulos, rosto
ou nome dtante do olhar impostor.
A . imag.e~ . "delinqüente" de Y. nasceu de uma estratégia opos
ta. O t1po soctal adotado sofreu o impacto da violência . Mas fu rtou-se

1.. Ver. GREI:::NACRE. Phyllis."Les imposteurs". in L 'iá~rwjication. vários autores.


Tcnou. Paris. 1971!. pp. 2b7-2X7.
_2: Ver, ABRAHAM. Karl. " Histoirc d'um chevalier d'industrie",in L'id~ntificalion.
lh Jd.pp. 221-261.

!.!2
a?s s~.us efeitos e~t remos , detendo-a nas fronteiras da "aparência mar-
gmal . ~ . subtraiU ao olhar do mundo e do outro o que sentia e pensa-
v~t possu1r de melhor . Em vez de mostrar as insígnias·de poder e prestí-
g iO. aprendeu a preservá-las do contato com o exterior. Encenou a
derrota, copiando os vencidos, e não a vitória, imitando os vencedo-
res. A lógica da resistência apoio u-se no segredo e não na exibição. A
identidade c~i ada real!z?u assim uma impostura ao inverso, impostura
que lhe serviU de refug1o num mundo de violência.

l . Delinqüência: a identidade necessária


Fizemos notar a importância do binômio violência x identidade
na est ~ut u ração do con flí to vivido por Y. Tentaremos agora precisar o
que fot afirmado. examinando sucessivamente a questão da identidade
c da violência.
A circunscrição da noção de identidade perma nece problemática
na teoria psicanalítica. O tradicional parentesco do termo com a filo-
sofia dificulta sua tematiza.ção metapsicológica striclo sensu .' Quase
sempre, as definições mais rigorosas acabam ganhando em extensão fi-
losófica o que perdem em conteúdo clínico, enquanto que definições
menos ambiciosas terminam por limitar a noção, reduzindo-a a um ar-
tefato operacional que falseia sua complexidade teórica. Estam os cien·
tes da estrutura deste obstáculo. Por isso mesmo, não pretendemos en-
frentá-lo • .elegendo-o nosso objeto de aná lise. e sim contorná-lo, op-
tando por Y!lla terceira vi~. Vamos simplesmente recapitular alguns
marcos teoncos do conceato pontuando aquilo que tem relevância
para o caso estudado.
Tomaremos por fio condutor da discussão dois pequenos traba-
lhos sobre o assunto. No primeiro, da autoria de De Levita1, a noção
de identidade preva]ente é construída a partir das visões de Price-
Williams e Erikson. Do pensamento de :.,rice-Willíams, De Levitare-
tém a idéia de identidade como o sentimento que emerge do corpo, em
sua existência fisica, muscular e víscera!. Esta concepção é em certo
sentido avalizada pela aproximação que o autor estabelece entre ela e
a concepção psicanalítica de Phyllis Greenacre. Esta autora, igualmen-
te citada no artigo, vê na imagem do corpo o fundamento da identida-
de pessoal.
Em Erikson, De Levita vai buscar a noção de identidade como
produto dos papéis que o indivíduo ássume em seu desempenho social.

J. DE LEVITA. D. J .." On thc psycho-analytic concepl ofidentity". in /m. Journal oj


Pq·dm·allal.. 1966. 47. pp. 299-JOS.

10
Resumindo, o conceito de identidade formulado no trabalho apóia-se
em duas referências básicas: o corpo e o conjunto de papéis sociais. A
identidade surge, concomitantemente, como correlato da imagem do
corpo ou dos estímulos fisicos dele provenientes e corno p~>nto de con-
densação dos papéis do indivíduo em sua interação soc1al. .
O segundo trabalho, de Margolis•, també~ inspí~a-se ~ Enk~
son. Este autor afirma que identidade, para Enkson, e o senllmento
experimentado pelo sujeito de que sua existência apresenta .u~a cons-
tância e continuidade perceptíveis internamente, por ele propno, e ex-
ternamente, pelos outros. Entretanto, vai mais além n~ descrição, re-
tratando a identidade sob um outro ângulo: o do sentimento de ser a
parte, de ser diferente dos outros. Esse sentim~nto, em _primeira ins-
tância, deriva da experiência sensivel da altendade fistca do outr~.
Mas sua instauração só é plena quando à experiência da diferença flst-
ca soma-se a criação, no sujeito, de segredos pessoaü. .
Retomando certas intuições de Fairbairn e Federn, Margohs pos-
tula que estes segredos são os pilares onde assenta-se o sentimento de
ser a parte. Em suas próprias pal avras: "É somente quando ela - a
criança - começa a dar-se conta de que existem coisas sobre si mesma
que ela sabe e outros não (os segredos) que pode sentir-se separada e
independenle e ser um indivíduo (pelo menos nestes domínios secre-
tos)"~.
Estas definições são ricas em sugestões teóricas e achados t:líni-
cos. Mas, antes de perseguirmos este veio, é preciso assin~la~ o qu_e ne-
las foi deixado em branco. Os autores, defendendo uma tdéta de Iden-
tidade baseada em preliminares psicossociológicas, relegaram a segun-
do plano a dinâmica intrapsiquica. A questão da identificação, respal-
do indispensável a qualquer leitura psicanaUtica do tema, ou é apres-
sadamente abordada ou francamente subestimada em seu valor. Nos
textos, a noção de identificação é dada por resolvida e, o que é mais
importante, perfeitamente compatível com a sér~e de raciocfnios que
informam o acabamento teórico do ponto de v1sta sustentado.
Ora, em Freud, para não mencionarmos outros a'!tores, a idéia de
identificação questiona a solidez do conceito de identidade, em vez de
estabilizá-lo. Na teoria freudiana, a identidade não é um fenômeno
simples mas um complexo produto de mecanismos identificatórios d is-

4. MARGOLIS, Gerald J .. ..ldentité et Secret", in Nouvel/e Revue dt P.tJrhanalyse.


Gallimard. Paris. 1976. n' 14, pp. 131-139.
5. ld .. ibid .• Jl. 132.

84
tintos em gênees, natureza e efeitos'. Sua essência nada tem de inde:
componível e a feição invariante que ordinariamente assume. frente a
consciência é, na verdade, uma resultante de processos psfqutcos per-
tencentes a registros de significação diversos.
Se quiséssemos preservar a terminologia até o momento emprega-
da diríamos que a identidade aparece ao sujeito como um "pré-
dado" . como um irredutível. porque é uma ficção necessária à ação.
Bcil entendido, falamos de ficção no sentido psicanalítico do termo,
ou seja. como categoria adscrita à ordem da realidade psí~uica. Fi.cção
deve ser compreendida corno uma representação verdadeira e efic1ente
para o psiquismo do sujeito. Ela não é urna f?rmação supérflua.~ na.da
tem em comum com a mentira, erro dos sent1dos ou falsa consCienc1a.
Quando equiparmos tal concepção da identidade à ficção, quere-
mos diz.er que só no nfvel consciente e em situações pragmáticas o s~­
jeito percebe-se ou sente-se como indiviso, constante, con~inu~ ?u l.t-
vre de conflitos. Estas situações são aquelas em que a açao uttlttána
impõe juízos sintéticos e escolhas definidas, em função de razões e in-
teresses socialmente típicos 7 • A identidade eriksoniana é uma identida-
de cujo modelo é o individuo em situação de competê~cia e eficácia s~­
ciais. Sua coerência é dedutível da realidade que destgna. Em uma SI·
Luação típica, as atitudes típicas do indivíduo fazem-no perceber e re-
presentar sua identidade com a congruência, linearidade e continuida-
de refletidas na teoria deste autor. Relaxada esta postura, afastadas
tais situações, a identidade para o sujeito não é mais uma certeza e sim
uma interrogação. Assim ocorre no sonho, na psicopatologia, na fan-
tasia acordada. etc ...
f: esta outra versão da identidade que a teoria freudiana procura
dar forma e sistematização. Para Freud, a identidade é um amálgama
de afetos e representações que o sujeito experimenta e formula como
sendo a natureza de seu Eu e do outro, do corpo-próprio e do mundo
de coisas e objetos . Estas representações e afetos são transitivos, mó-
veis e múltiplos. Mudam conforme a posição que o sujeito ocupa nas
relações com os outros, posição constantemente cambia~ te e ~ermutá­
vel. Só a força das identificações culturalmente normativas, Impostas

6. A questão da idcntilicação é indissociável de tod o o conjunto da obra de Frcud.


F.nvia remos. por isso. o leitor apenas àqueles trabalhos que tratam o problema em ter-
Jlllls explicitamente mctap~icotógícos e que já se tornaram clássicos pontos de partida
Jl;tr:.: o estudo do tem<J: Uma introáucào ao narcisismo: Luto e melancolia; Psicologia das
massa.<I' unáli<t' do F:ga; O Ego e o Jd. . .
7. Sobre a noção de razões, interesses c a titudes típicas, ver: ~CHULTZ, Alfred. Ft-
rwmt>no/ogia t' rt'lações sociais, Zahar, R io, 1979.

85
pelo princí pio da reali dade e pelos processos secundários, impede o su-
jeito de derivar para o terreno do imaginário, onde 01 sentido da identi-
d<~de ê a bsolutame nte subalterno ao princípio do prazer e aos proces-
sos primú rios.
Süo c-;tas premissas q ue legitimam o uso de expressões, corrente-
mente encontradas na literatura analltica, como "identidade escondi-
da··. "cisão da identidade'', "falsa identida de", etc. Toda esta termi-
nologia seria um contra-senso teórico, ca so· admitissem os a idéia de
um átomo da identidade inviolável em sua " ipseidade". Filosofica-
mente é possível afirmar. como o faz J aspers, que a identida de é uma
característica formal do ego, considerando-a assim Llm a priori da exis-
tência do sujeito. Mas na med ida em que aceitamos tal afirmação, de-
vemos renunciar a toda idéia de temporalidadc e historicidade, que
são os modos concretos do sujei to viver sua identidade. Esta form a
abstrata de conceber a iden tidade demo nstra como a noção pode exis-
tir na teoria e não como o fen ômeno existe na vida.
Todavia, não o bstante estas res trições, seria fatlso opor, termo a
termo. as concepções de Freud às concepções dos autores menciona-
dos. Certos textos freudianos su blinham aspectos da noção de identi-
dade que nos remetem di reta mente às observações de Margolis e De
Levita. No ensaio A.ç teorias sexuais infantú, Freud valoriza de modo
inequívoco, se bem que implícito, o papel do segredo na constituição
psíquica da criança. Da mesma fo rma, no estudo o Ego e o /d é explici-
tamente afirmado em d ois trechos que o "Ego é ante.s de mais nada
uma entidade corporal" e que "não representa senão nosso corpo".
Estas duas faces de identidade, uma voltada pa.ra o corpo e outra
para o segredo. serão decisivas na compreensão do conflito identifica-
tório de Y. Po r esta razão, vamos prolongar o pensamento de Freud,
M argolis e De Levita, analisando a co ntribuição dada ao tema por
Piera Aulagnier. ·
N o que diz respeito ao corpo, Aulagnier afirma que o Eu, na rela-
ção com este existente. é obrigado a operar um tríplice reconhecimen- .
to. sob pena de comprometer seu projeto identifica tório. Primeiro, o
de que o corpo f mortal; segundo, de que é fonte de prazer; terceir o, de
que é fome dt• sofrimemo. Esta exigência de reconhecimento não se rea-
liza. é claro, de maneira simples. Pa ra que o Eu aceite a fin itude do
co rpo c continue apesar disto a investi-lo, é necessário criar a ·represen-
tação da inocência deste corpo. O Eu tem que inocentar o corpo da
"responsabilidade.. da morte, caso co ntrário poderá desinvesti-lo,
pondo em r isco sua própria sobrevivência. A causa mortis do corpo,
por isso. vai sempre ser encontrada fo ra dele, na doença, no acidente,
no poder e desejo de morte do o utro.
De for ma si milar, pa ra que o Eu possa reconhecer o "poder eró-
geno do corpo" (fonte de prazer e inversamente de sofrimento), ser-
lhe-á necessário criar e reencontrar na cena do real um objeto que con-
lirme a existência destas propriedades. Quando o corpo não pode ser
inocentado, qua ndo a realidade não oferece ao sujeito a s provas de
que necessita para sentir e pensar o corpo como-lugar de dor e prazer,
o Eu passa a desenvolver uma relação persecutória com o pró prio co r-
po r com a realidade ambiente.A
Quanto ao segredo, Aulagnier radicaliza as conseqüências pa ra o
psiq uismo do pensamento de Margolis. 9 Este a utor, em seu ensaio, de-
monstra como a criação do segredo prende-se à exigência , psiquica-
mente vital para o sujeito, de lidar com certas situações interpessoais.
na posição de quem possui um saber sobre alguma coisa que o parcei-
ro da relação desconhece. Aulagnier vai mais adiante, afirma ndo que
o segred o é a condição de possibilidade do pensamento exercer-se com
prazer. Prazer que não é dado pelo conteúdo do pensamento (fantasias
eróticas, por exemplo), mas pela própria atividade de pensar. Assim
sendo, prazer de pensar e liberdade de pensar em segredo são sinônimos
menta is e condição sem a qual torna-se impossível ao sujeito constituir
sua identidade, diferenciando-se do outro. .
Em maior ou menor grau, a análise do conflito identificatório de
Y. pôde confirmar estas teses. Tendo q!Ue enfrentar provas contínuas
de que seu corpo era principalmente fonte de sofrimento e ameaça de
destruição, ele conseguiu através da droga desmentir o real. Inocentou
o corpo de maneira mágica, convertendo-o o u tentando convertê-lo
exclusiva mente em lugar de prazer.
Muitos a utores dedicaram-se ao es;t udo das châma das personali-
da des a nti-sociais, sobretudo de jovens drogados. Winnicott, um de-
les, observo u que a exploração compulsória de sensações corpo rais é
um tipo de defesa maníaca que esconde u m grave aspecto depressivo. 10
Fez ver a inda qu~, para certos adolescentes, a gula, o furto e a depen-
dência de drogas representam uma cobrança co m j uros do que lhes era
devido." I! n

8. AULAGNIER, Piera, "A 'filiação' persecutória", in, T~Mpo psfcanalíriro, Rio,


Inst. Mcd. Psicológica, vol.. III, n9 I, 1980, pp. 11-21.
9. ld .. ·· Le droit au sccret: condition pour pouvoir penser". in, Nouw/1~ R~vu~ de Psy-
chuiiO~\·.,·e. 1976. n• 14. Paris. Gallimard. pp. 14 t-157.
10. WINN ICOTT, D.. "La défense maniaque," in, D~ la pédiatrie à la Psydrqnalyst .
Paris. Payot, 1971, pp. 15-32.
11. ld .• " la tendance anti·socia1c," ibid .• pp. 175- 184.
12. ld .• " l"adolescence,'' ibid., pp. 251·266.
13. ld.. ."Conccpts actuels du développemcnt de l'adolescent: leurs conséquenccs
q uam à l'cducati?n", in, Jeu et Realité,Paris, Gallinard. 1971. pfl. 192-207.

87
Alguns destes el~m~ntos ce~tamente determinaram a composição
do mundo de fantastas mconscrentes de Y. Porém dispuseram·se de
modo a. c?n~ergir pa~a um objetivo: redefinir a representação do cor·
ro ~a dmamrca psrqutcã. O corpo drogado, eternamente em gozo, res-
sarciU-se das experi~ncias de curra, espancamentos e humilhações, in-
terpondo uma barretra de prazer entre a possibilidade de vida e o peri-
go de morte.
. Porém a droga não se limitou a dar a Y. o que o ambiente lhe ha-
vw recusado. Além de fornecer-lhe as provas de prazer que inocenta-
mm o corpo, também favoreceu a criação no psiquismo de um espaço
de ,çegredo. O prazer da droga não era um prazer qualquer, era um pra-
t.er desconhecido po r todos aqueles que o cercavam. Sua natureza po-
~iforma, ~nica e não-reiterável, tornava-o, além do mais, praticamente
t~t!ad~ztvel na linguagem convencional, partilhada pelas pessoas sig-
nrhcatrvas ao seu redor. A voz e o julgamento do ambiente materno ou
de seus representantes não podiam penetrar neste território. Y. conse-
guiu. ass~m. manter a representação do corpo como fonte de prazer e
o~ enuncrados sobre esta sua identidade imunes a qualquer contesta-
çao. O pensamento, como resultado, isentou-se da provo da dúvida 14
protegendo-se do confronto com a "verdade" do outro.
. E~ta identidade, encouraçada pelo segredo, manteve·se blindada
ate o mstant~ em que a ~roga tr~iu a promessa de prazer que vinha
sendo c~~~r1da. ("- paru! de entao, o sonho acaba, dando lugar ao
~.urtc:> P~~cou~? e a ~cntattva de suicídio. A personalidade '\1.·ogadat',
dehnquente • hav1a esgotado a capacidade de manter de pé ""la or·
ganização ps~quica frágil e inviável nos seus próprios termos.
. Com ~feito, .a droga re.stituiu a Y. a dimensão de prazer que seu
c~rpo havta perd1do. Mas stmultaneamente obrigou-o a pensar nos~
frn!Jento .c~mo sendo antinômico em relação à vida. Ao corpo foram ·
asstm sohc&tadas duas tarefas i mpossiveis: primeiro, a de tornar-se ori·
gem exclu~i~a do prazer, dispensando o concurso do outro; segundo, a
de pro~uz1r mcansavelmente p ..azer, contraprova necessária à negação
do sofr~me~to e da ameaça de morte. Em função disso, o corpo passou
a ser mm.u~rosa~ente contr?lado por suas eventuais falhas. A situação
persecutona tem&da ressurgiU por outra via, a do medo da interrupção
do prazer.
. A ~o!ltra?ição in~talada era evidente. Y., quanto mais se drogava,
ma1s pamco tmha de mterromper o prazer e mais droga era levado a

14. AULAGN~ER, J>iera. "Les destins du plaisir", Paris. PUF, 1975.

88
consumir. O círculo vicioso, não duvidamos, poderia tê-lo conduzido
à morte real por superdose de tóxico, caso o pensamento não tivesse,
. antes, entrado em colapso.
Este último acontecimento foi fundamental a sua sobrevida. As-
sim como Y. tentou criar uma representação da auto-suficiência eróti-
ca do corpo, também tentou reduzir o pensamento a uma atividade so-
Jipsistica. Os segredos que procurou defender da intrusão externa dila-
taram seus limites, envolvendo quase toda a atividade de pen.sar, Ao
longo do tempo, não apenas os pensamentos vindos de "fora" foram
rechaçados. Todo pensamento, mesmo os vindos de "dentro", que pu-
desse evocar a participação do outro na definição de sua identidade foi
posto fora de circulação. Y, foi ficando surdo ao outro externo e ao
outro interno. Seu pensamento foi gradativamente perdendo a arqui-
tetura dialógica e tornando-se um monólogo, sem interlocutores reais
ou imaginários.
Paulo Fernando Siqueira, em seu estudo A Super-realidade (..sur-
realité"), mostrou como, em certos indivíduos, o pensamento tende a
adquirir uma textura dinâmica e econômica que lhe retira as carac-
terísticas habituais de derivado dos processos secundários e do princí-
pio de realidade. Em vez de dispositivo seleto r e metabolízador de afe-
tos e representações, o pensamento reage aos enunciados ou emoções
contrárias à definição da identidade, de que é parte, como uma su-
perfície-limite, tênue e hiperestésica, pronta a sentir a palavra do outro
como um "rompimento doloroso". 1 ~ A identidade e os pensamentos
que a representam deixam de ser uma metáfora da representação cor-
poral para se tornarem uma espécie de prolongamento metonímico da
coisa corpórea.
Y. levou este estado à exasperação. No momento em que a depen-
dência à droga atingiu seu pico. o pensamento estava reduzido a uma
atividade pontual, anódina, mero efeito redundante das sensações cor-
porais. Já não mais representava o corpo, fotografava-o. Sua dinâmica
significante transformara-se numa simples alegoria sem vida ou movi-
mento. A distância entre o sentir e o pensar caminhava para a extin·
çào, reificando a fantasia do corpo-pensamento e do pensamento-
corpo.
Dado este contexto, pode-se entender os percalços de .sua sexuali-
dade. O sexo é o ponto' de interseção entre o prazer do corpo e a ori-
gem da ~ida . Aceitar o sexo, de acordo com a ordem cultural, implica,

15. SIQUEIRA. P. F. de Queiroz. "Sur-realité", in, Nouvellt Rí'VUí' dt Psy(honalyst,


Paris. Gallimard. 1975. nt 12. pp. 125·136.

89
portant?, em assumir um a dívida e uma certeza . Dívida para com o
o utro. lonte por excelência do prazer e princípio da vida. Certeza de
que o prazer tem limites e de que a vida tem um fím que não podemos
revogar, pois independem de nosso desejo.
Impossibilitado de fazer face a estes imperativos da condição hu-
mana e de eliminar as injunções sexuais, Y. foi forçado a um compro-
misso. ~dmitiu o sexo, mas dissociou-o da origem do prazer e da vida,
subordtnando-o à fantasia da auto-suficiência erótica de seu corpo. A
form a como viveu sua sexualidade avaliza esta hipótese.
A inibição quase completa de sua vida sexual genital certamente
r.oderia ser explicada pelos motivos que nos habituamos a ver e a t.eo-
n~ur: horror à castração, medo da simbiose, recuo diante da imago da
mae devorudora, etc. No entanto, as circunstâncias em que se deram
s~as pouc~s relações sexuais consumadas pedem uma outra interpreta-
çao . Cons1 derando que a mediação do sobrenatural foi absolutamente
necessária à realização do coito, temos que valorizar este elemento. O
ato sexual só chegou a seu termo quando os deuses africanos encarna-
ram $eU corpo. Em nossa opinião, porque enquanto Deus ele estava
protegido de qualquer pensamento que, através do sexo, lhe trouxesse
de volta o enigma das origens e limites do prazer e da vida. Estas ques-
tões só existem para os mortais. Os deuses estão além da vida, do amor
e da morte.
Do mesmo modo, acredita mos que o reencontro com o pai foi re-
presenta do obedecendo a esta mesma exigência de rebaixamento e ne-
ga~ã~ ~o valor d.a ~~x ualidade objetai. O término de sua visita !\O pai
comc1dm com o IniCIO do consumo de drogas. A estada junto a ele (oi
decepcionante. O carinho, proteção e amor esperados não se fizeram
presentes. O mundo paterno, idealizado como alternativa possível ao
universo da mãe, diluiu-se na banalidade de um contato frio , superfi-
cial, sem compromisso afetivo ou perspectiva de continuidade. Deste
enco ntro árido, Y. guardou apenas as lembranças que mencionamos: a
ida a bares, onde aprendeu a beber e a f umar com o pai e a proibição
de ir a prostíbulo. '
O remanejamento imaginário d.este acontecimento mostrou-nos
que Y. "aprendeu" o que já "sabia" ou estava em vias do saber. O prà-
zer não deve ser buscado no corpo do outro mas no próprio corpo. A
permi ss~ o para beber e fumar, atividades auto-eróticas, e a interdição
de sua 1da ao bordel confirmavam aquela interpretação. · '
A posterior freqüentação compulsiva e intensiva aos bordéis ins-
creve-se neste espaço imaginário. As visitas aos prostíbulos adquiri-
ram o significado, entre outros. de um ritual confirmatório de sua in-
dependência diante do prazer sexual vindo do outro. Expor-se ao sexo
sem a ele render-se, instigá-lo para em seguida inibi-lo, constituíam o

90
ce rim onial onde a cena inconsciente de triunfo, controle e desprezo em
relação ao objeto sexual era interminavelmente r<:presentada.
Um outro dado, a suposta impotência paterna em que acreditou
durante muito tempo, foi o corolário desta elabor ação mental. O pai
impotente representou, sem dúvida, a ausência de lei e ordem que de-
veriam organizar o caos imaginário do filho. Mas também foi para
este último o índice de uma auto-suficiência erótica , fantasiada à ima-
gem e semelhança de sua própria identidade. O pai. como el:, recusava
o sexo do outro enquanto fonte de prazer .
Esta fant asia, entretanto, negava concomitantemente a paternida-
de até então reconhecida. Se o pai eri! impotente, como teria sido ele
concebido? Por um outro? Mas quem? Exclusivamente pela mãe?
Como assim? Sua origem recobriu-se de mistérios. Dado seu isolamen-
to afetivo e social. nenhum interlocutor pôde confirmar ou negar o
que ele passou a imaginar. As perguntas. privadas de respostas, foram
postas en tre parênteses, reforçando, desta fo rma, a tendência de seu
pensamento a conceber a vida como um evento sem começo ou fim.
Contudo, estas interrogações, suspensas da ligação como sua vida,
não cessaram de existir. Apenas deslocaram-se, ressurgindo a título de
preocupação com a história das espécies, das populações e cidades ou
com os insondáveis desíg•1ios cósmicos.
O pai, ao cabo desta operação, foi conservado, porérn despido de
sua função. Permaneceu como um nome vazio, puro espelho encarre-
gado de refletir as projeções do filh o. Este, sem a referência paterna de
quem esperava os instrumentos para a criação de uma o utra identida-
de, perdeu-se no universo do mesmo. do instantâneo, de um presente
sem passado ou futuro.
A adesão à droga, ocorrida naquele momento, veio cumprir um
duplo papel: primeiro, o de sedar a angústia provocada pela situação;
segundo. o de dar um sentido qualquer a uma experiên cia que se es-
vaía no imediato das sensações.
Não e difícil imaginar a sobrecarga de um pensamento incumbido
de inventar, a cada momento, um sentido radicalmente novo para
complexos de afetos e representações que clamavam por um sentido
antigo. Impermeável à comunicação com os outros, pelo pavor do des-
mentido às suas "verdades" sobre o corpo e a identidade, e dependeo·
te da renovação incessante do prazer da droga para manter a coerência
desta identidade, o pensamento de Y. entrou pouco a pouco em exa us-
tão.
O período que precedeu a primeira hospitalização comprova, a
nosso ver. este desesperado estado mental. Y., conforme suas próprias
palavras. já não pensava ou queria nada, exceto drogar-se. A ficção da
auto-suficiência erótica não mais se sustentava. O rendimento de pra-

91
1.cr proporcio nado pela droga, no fin al, era mínimo. U pensa ment o,
refúgio contra o mundo, ruía. E, paradoxalmente, foi este eclipse da
atividade de pensar que 'lhe salvou a vida, apontando-lhe uma via de
escape para o universo de violência que o aprisionava.

2. A identidade da violência
Quando na vida corrente empregamos a palavra violência. du<~s
idéias nos ocorrem de imed iato. Primeiro, a idéia de coerção ou intimi -
dação pel a força de alguém em situação de inferi oridade física ou
constrangimento moral. Violência, aqui. está associada à desigua!dade
de poder entre os atores do connito. A segunda idéia complcmenta a
primeira, introduzindo um outro elemento- a referência à lei ou à jus-
tiça. Violência. neste sentido, evoca ruptura de um contrato ou de uma
de suas cláusulas, por alguém que os con hece mas que deliberadamen-
te os infringe. abusando da força que detém .
Rebatendo estas noções para o campo da teoria psicanalítica, ve-
rificamos que elas podem aclarar o conceito de violéncia apropriada à
. prática clínica. Violência em psicanálise é um a noção com co ntorn os
metapsicológicos imprecisos. A idéia que mais se aproxima do termo,
no vocabulário analítico usual, é a do trauma. Porém, nem todo trau-
ma é violento. A fantasia da sedução, por exemplo, é tr::.umática mas ·
não é em si violenta. E. mesmo quando se adjetiva o trauma, descre-
vendo-o como "violento" ou "comultatívo" . como fa z Kahn '", fica
ohscura a nat urer.a específica do qualificativo usado.
Via de regra. costuma-se classificar de "violenta" toda experiên-
cia físico-psíquica que pela repetição ou intensidade ultrapassa a L"apa-
cidade de absorção do aparelho psíquico. O critério metapsicológico
empregado aqui é o econômico. A violência traumática seria produzi·
da pelo acúmulo de excitações que. rompendo a barreira do dispositi-
vo protetor do ego. desestabiliza a homeostase psíquica por meio da
dor ou <~ngústia.' ·
Esta concepção de violência presta-se a eq uívocos por duas prin·
cípais razões. A primei r<~ delas decorre de uma redução pouco explici-
tada da violência psíquica à injúria ou sevícia t1sicas. O econômico psi·
canalítico é como que equiparado ao efeito de um choque . O ataque de

16. KAH N. Masurt. Li.• .w i cach;, Paris. Gallimard. 1974.


17. A re~pei to da me:tapsicologia da dor e ungústia. ver: LAPLANCH E. Jean: Pmh/1-
mutiqu(•.f 1. l .'anKoi.w •. Paris, f>U F. 19~0.

92
fora ê assimilado ao ataque instintivo e a energia pulsional, sob as es-
pécies do fisicalismo que caracterizou as primeiras raizes biologizantes
do ·pensamento de Freud, cauciona o deslizamento conceitual. A vio- .
lência é impressionisticamente fixad a à idéia de impacto físico de gra n-
de amplitude, seja por sua ordem de grandeza absoluta, seja pela gran-
dew relativa do aparelho p'sfquico receptor.
A imagem das neuroses traumáticas ow· a do próprio "traumatis·
mo cumul.itivo" é paradigmática desta concepção. A violência apare-
ce. nestes casos, como um fato quase que exclusivamente quantitativo.
Como uma variável dependente da intensidade, freq üência ou repeti-
ção do estimulo. Em conseqüéncia, a noção estende-se a situações que
contradizem e descaracterizam a intuição que temos do fenômeno. Por
vezes, vemos autores fa larem do trauma do nascimento como uma
violência fundamental contra a quietude intra-uterina: Outras vezes,
afirma-se que existe uma violência necessária à entrada do sujeito na
ordem da cultura ou do simbólico. O sujeito. sem escolha, seria obri-
gado a renu11ciar à infinita potencialidade expressiva de seu imaginá-
rio, curvando-se ao estrito código da linguagem imposta pela cultura.
atraves dos pais.
Tal linha de raciocínio não nos parece adequada à compreensão
de fatos que intuitivamente definimos como violentos .· tsto porque a
referência unilateral ao critério quantitativo retém. mutatü mutandü,
da noção .ordinária de violência. apenas sua primeira acepç.io. Sob a
óptica quantitativisla, o que conta é a desproporção entre a força do
estímulo e a capacidade de absorção do objeto ao qual a força se apli-
ca. A relação com as situações sociais ou intersubjetivas onde um in-
div íduo, ou instituição mais forte. subjuga o indivíduo ou coletividade
mais fraca, salta aos olhos. Estas situações são aquelas que descreve-
mos como fazendo parte da primeira acepção de violência, no sentido
comum .
No entanto, nem toda si tu ação de desigua ldade onde se emprega
a força como modo de coerção é por si mesma violenta. A visão quan-
titativista nivela fenômenos heterogêneos. criando uma indetermina-
ção considerável no uso do termo. Não que a intensidade da força
nada tenha a ver com a violência. Mus a dissimetria de poder e o uso
da força só adquirem um caráter violento quando associados a outros
predicados q!Je lhes dão a feiçào.particular, distintiva de outras formas
de coerção. 1
3 Esta discriminação teórica torna-se palpável quando valemo-nos
de acon tecirií'entos co rriq ueiros. perceptíveis a cada um de nós. O pai e
a màc. por exemplo. podem obrigar uma criança a abrir mão ue uma
gratilic;açào pulsional imediata, em favor de uma convenção social,
utilizando a força fisica ou a intimidação moral. Houve, como ainda

93
há, pais que batem nos filh os. Existe, como sempre existiu, pais que le-
vam os fil hos fi abandonarem certas atitudes alegando mágoa, vergo-
nha. tristeza ou decepção q ue tais atitudes lhes causam . A palm ada e o
recurso à culpa talvez sejam hoje em dia mais s uaves e men os difundi-
dos do q ue foram tempos atrás. Entreta nto, no passado com o no pre-
se nte crianças educadas neste sistema de normas morais não foram
nem são necessariamente crianças violentadas. A identidade da violên -
cia não é determina dé:f' pelo peso da mã o dos genitores nem pela fre-
qüência do gesto de bater. Tam pouco pode-se atr ibuir às admoesta-
ções morais ou religiosas o papel de vetor de violência em si. Durante
muito tempo. quem sabe a té hoje, muitos pais intimidaram moralmen-
te os fil hos em nome do compro m isso ético-religioso de honra r pai e
mãe, sem q ue isto revertesse .obrigatoriamente em violência. Basta
atentarmos pa ra a história da fam ília e·da educação infantil em nossa
cultura. O bem-fundado d o que foi afirmado não necessita de outra
j ustificativa.
A vio lência psíquica não é um s ucedâneo ou uma varia me quanti-
tativa de seu homôni mo fí sico . O q ue torna uma "neurose traumática"
e um " tra uma tismo cumulativo" violentos não é o montante da excita-
ção. mas a representação q ue lhe é associada a título de causa.
o "senso clínico comum " pode provar o que afirmamos. mostran-
do a preeminência do elemento representativo sobre o fator quantitati-
vo. Todos sabemos, por exe mplo, que atitudes de indiferença, desa-
mo r o u desprezo dos pais para com os fi lhos são atitudes violentas.
O ra, neste caso, é a representação que ineludivelmente dá ao afeto o
timbre da violência. O exemplo em questão exclui qualquer analog)a
ou identida de com uma est imulação fisica exterior o u com uma reivin-
dicação pulsional interna. A violência só existe quando a atitude do
mais forte é interpretada no sentido sugerido pela representação.
N a natureza da representação reside portanto o potencial de vio-
lência de um ato psíquico. Naturalmente pode~se objetar que ninguém
pretende falar de violência na c línica, estipulando a existência de um
a feto sem represe ntação. A própria descrição do fato implica em con-
siderar uma ou o utra represent'c:lçào co mo responsável pela excitação
excessiva. Esta asserção é grosso modo verdadeira. Mas mere.:e eer-
tas reservas. Vinc:utar implicitamente a violência a uma representação
não significa dotar esta representação de um valor causal. O que se
cost uma fazer é estabe lecer uma regularidade de fato entre os dois fe-
nômenos, mesmo po rque seria impossível evitar o paralelo. e não uma
regularidade causal. A causa da violência continua a ser buscada no fa-
to r qua ntit ativo.
t verdade que às vezes o constituinte representacional é favoreci-
do em detrimento do compo nente quantidade. A representação é acei- ·

94
ta como o termo que antecede o surgimento do estímulo. Mas esta é
uma f~ lsa ap~rência explicativa. A natureza da representação não é es-
cla recida, po1s a e~plicação proposta ê tautológica. A intensidade ê
a po ~t a ?a c?mo ~feno mas também como causa da representação. A
v1o lenc 1 ~, d1z-se: e produzida quando uma representação gera um estí-
~ u l? CUJa a mphtude supera a capacidade de absorção do psiquismo.
l _or:m .. se perguntarn~os o que ê uma representação apta a 'Provocar
v•olcnc•a. a resposta e novamente a intensidade afetiva que ela pode
desencadea r.
• . A tautologia beneficia o aspecto q uantitativo. E, d ada a inespeci-
IICJdade deste fator. como tentamos demonstrar, continuam inexplica-
das ~ ~atureza da violência e a nat ureza da representação que poderia
eluc•da-la.
.E~te ~.o se~un~o _motivo pelo qual creditamos à co ncepção "eco-
no m1c1sta. ~~ vwlenc~a a. r~spo~sabilidade pelos equívocos antes cita-
dos. O cnteno quantJtatTVJsta Impregna tão fortemente o raciocínio
sobre a violência que obscurece a reflexão so bre sua qualidade cons-
ta nte, a representação matriz ou geradora do fenômen o observado. A
explicação da violência através da intensidade do estfmulo além de es-
tar na base d.a hesitação ~ocional que o termo adquiriu, ta~bém impe-
de o conh~c1mento da t1picidade da representação geradora.
• _ Ac~ed1tamos que a segunda acepção, leiga ou usual, do termo vio-
len~•a _aJu_d a ~ orde~ar m~lhor as indecisões anotadas. Nesta acepção,
a v1olencta e defimda nao só como coerção mas simultaneamente
c? mo desrespeito _à l~i. ou. ao contrato. Pressupõe-se. então, a existên-
cta de um uso ~rb1trano e gratuito da força por parte do mais podero-
so co ntra o ma1s fraco. Violência é, antes de tudo, abuso de f orça, abu-
J~ de po~er. A representação indutora da violênciá é uma representa-
çao a?u s1 ~a qu ~ porta em si a patente do arbítrio e da gratuidade. ·
Em v1sta d1sso. cumpre reafirmar que violência e necessida de são
m utuamente excludentes, do ângulo do sujeito violentado. Existe uma
certa negligê ncia terminológica quando fala mo s de "violência tra um á-
~i~a ~o n~scimento'' ou d.e ·:vi~l!ncia necessária à humanização do su-
Jeito . Nao pode haver vtolenc•a no gesto ou desejo de quem dá vida a
um ~ utro o.u de quem leva este outro a respeitar os tabus da cultura e
a s le1s d_a hn~uagem. Estes eventos só são pensados co mo violentos
quando 1magmamos o homem como um mítico ser de natureza·coagi-
do pela ordem cultural. Entretanto, o homem só existe quando inter-
nal~za a cu_ltur~. a~ray~~ da linguagem e do trabalho. Neste processo
de mternahzaç~o, mev1tavelmente coercitivo, nada pode existir, por-
tanto, de abusiVo. Falar de violência nestes casos seria tão absurdo
q uanto afirmar que nossa constituição biológica é violentà por fazer-
nos obedecer suas leis de rigidez essencial. Intuitivamente, nunca che-

95
garíamos a cha~ar de violenta a obrigação de comer ou a impossibili-
dade d~ vo~r, d1spondo apenas de nosso equipamento anatômko, bem
como JamaiS pensaríamos que existe violência no ato de ensinar uma
criança a falar.
QuaJquer uma destas condutas impõe, como condição de sua rea-
lização, momentos de coerção e, por conseguinte, de desprazer. Toda-
via, o essencial é que nenhuma delas, em seu funcionamento ideal, se
exerce à revelia da lei. O sujeit o que a elas se submete saberá. portanto,
reconhecer o caráter necessário da submissão.
Totalmente diferente é a experiência da violência. Nela o que do-
mina é o sentimento ou pensamento da gratuidade e do arbítrio. O su-
jeito violentado é o sujeito que sabe ou virá a saber, sente ou virá a
sentir, que foi submetido a uma coerção e a um desprazer absoluta-
mente desnecessários ao crescimento, desenvolvimento e manutenção
de seu bem-estar, enquanto ser psíquico.
A violência é portanto um fato da cultura e só existe em ·relação a
uma lei. Psicanaliticamente falando, esta lei ou contrato diz respeito
ao direito que todo sujeito tem de ocupar um lugar irreversível na ca-
deia das gerações e uma posição em face da diferença dos sexos con-
forme o sistema de regras qu.e ordena seu meio sócio-cultural. Ó que
equivale a dizer que a todo sujeito é assegurado o direito a uma identi-
dade compatível com o investimento erótico de sua vida e de sua histó-
ria e com o investimento do próprio sistema de regras. Esta identidade
é o que garante a transmissão deste direito às gerações futuras e a obe-
diência a suas leis no tempo presente, condições necessárias à sobrevi-
vência do sujeito e do grupo social.
. A representação causal da violência é aquela que infringe este
cont~ato, em extensão e forma diversas. Dependendo desta variação,
te~e~?s· na clínica, conseqüências neuróticas, perversas, caracteriais,
ps1cottcas, etc. T oda representação violenta exprime, portanto, uma
certa relação ent_re a lei, seu intérprete e o sujeito violentado. Relação
que, por sua vez, compõe-se de um elemento genérico, a infração à lei,
e um eleménto particular, o tipo de infração que dá especificidade ao
quadro psicopatológico.
Procuraremos. analisar a posição desteS elementos no caso dínico
partindo de um fenômeno estudado por Fcrenczi, que reputamos im-
pdortant_e, pela proximidade metapsicológica com o problema debati-
o.
Em seu trabalho O principio da relaxação e a neocat:arsis", F e-

llS. FERENCZI, Sandor. "The principies of Relaxation and Neocatharsis", in Final


Comributions To tht> Prob/mrs Mtthods of P:rycho-Anafysis, London, The Hogarth Press
and Thc lnstítute of Psycho-analysis, 1955, pp. 103-125.

96
renczi relata o surgimento do que chamou de "alucinação negativa",
como uma resposta possível ao choque traumático. Este mecanismo
psíquico n~o s~ri~ para ele uma defesa, no sentido do recalque, mas
u_~a expenenc1a a parte, da ordem da paralisação mental, seguida de
c!sao do ego ou da personalidade. As seqüelas deste mecanismo varia-
nam, e nos estudos Confusão de línguas entre adulros e crianças19 e A ná-
lise da criança na análise de adulto~0 são dados exemplos dos diversos
~feitos psíquicos sucessivos a esta experiência singular do trauma. Não
Importa no momento discutir estes efeitos. Vamos deter-nos no fenô-
me~o da alucinação negativa, tentando ampliar sua compreensão e re-
laciOná-lo com a violência.
Antes, porém, afastemos algumas objeções. Poder-se-ia argumen-
tar que a alucinação negativa nada mais seria que o recalque freudiano
e~ nova vers~o. Esta suposição é improvável. A alucinação negativa
nao era um Simples apelido dado a fatos antigos. O autor, criando a
noção, buscava realçar um fenômeno novo. Não se tratava de retratar
sob outro prisma a mera incapacidade de representar o estímulo con-
for~e a convenção aceita como mais apropriada a sua real natureza.
Ass1 m como dizemos da criança que, ainda em fase de maturação, in-
terpreta um acontecimento sexual de forma imaginária não adequada
ao sentido que lhe é dado pelos adultos. '
. Esta conting~ncia, comum a todo sujeito, era sobejamente conhe-
Cida p~r Fer~ncz1. Seu desenlace já estava teoricamente previsto na
metaps1cologta do recalque. O sujeito traduziria o estímulo consoante
a linguagem pulsional predominante no estágio de evolução libidinal e
maturação egóica em que ocorrera a experiência. Nada existiria de ne-
gativo nest~ forma de lidar com o trauma. O sujeito representaria o
e~ento afet&vo. de acordo com o código vigente no estágio de desenvol-
VImento de seu aparelho psíquico.
Na alucinação negativa o processo desenrolar-se-ia de maneira
d!ferente. Foi istc:> ~ue ele quis mostrar, falando de paralisação da ati-
Vidade mental, ctsao do ego ou da personalidade e não de recalque.
A _conseq~ncia._lógica desta constatação clínica é a de que existe
u"! ~t1mulo CUJO atnbuto especifico é o de impedir sua representação
ps1qU1ca. Se detxarmos de lado, agora, a linguagem ferencziana, para
retomar.mos. os _termos da reflexão seguida até aqui, diríamos que,
como na o. h a e.stu~ ui~ sem representação desencadeadora, a qualidade
que lhe fo1 atnbu1da e, na verdade, propriedade da representação. Ou

19.. ld ., "Confusion of Tongues Betwcen Adults and the Child"', ibid., pp. i56-167.
.20. ld .• "Chíld Analysis in the Analysis of Adults", ibid., pp. 126-142.

97
seja, haveria um tipo de representação cujo traço característico seria o
de induzir a abolição de sua própria existência psíquica . Chegados a ·
este po nto, não há como fugir a duas perguntas: I •) que rep·resentação
poderia ser esta? 2•) como explicá-la metapsi ~ologicamente? .
Comecemos pela segunda, que embora importante é tangencial
ao núcleo de nosso problema. Bem sabemos que o fenômeno descrito é
de difícil solução teórica, sobretudo quando tentamos figurá-lo do
ponto de vista tópico. Assinalaremos, desde logo, que a literatura
analítica interessada no tema ainda não chegou a um acordo conclusi-
vo sobre a explicação do fato. Permanece enigmático postular a exis-
tência de uma representação sobre a qual se afirma que marcou o apa-
relho psíquico de maneira eficiente, mas que não deixou traços mnési-·
cos no inconsciente, tal qual o entendemos, a partir de Freud . f: clàro,
pode-se recorrer à idéia de cisão ou à tópica lacaniana do real, simbóli-
co e imaginário, e localizar no registro do real a representação descri-
ta. No entanto, por mais que esta categoria do real pareça clinicamen-
te convincente, sua referência tópica, aquém ou além do simbólico e
e
do imaginário, continua obscura. dificil entender como um fenôme-
no pode ser psiquicamente eficaz situando-se numa região pslqu~ca
.
onde é mantido fora do estado de representação. .
De qualquer modo, quando afirmamos que eKISte uma represen-
tação capaz de suscitar u~ defesa que anula sua própria existência
psíquica, queremos dizer que os processos primário e secundário não
acusam sua presença. M ais precisamente, d iríamos que esta represen-
tação, exilada em algum confim do psiquismo, j>ersiste naquela condi-
ção enquanto a defesa descrita por Ferenczi como cisão ou alucinaçã o
negativa mantém-se ativa e eficiente. No momento que esta defesa fa-
lha, no curso espontâneo da vida ou .no processo de análise, ela emer·
ge, tornando-se visível.
N ão se trata conseqüentemente de uma hipótese puramente espe-
culativa, in ferida por dedução, em virtude de uma qualquer necessida-
de de coerência teórica. A noção de alucinação negativa. ou de uma re-
presentação que provoca sua própria anulação não é da mesma or-
dem-da noção de recalque primário, por exemplo. Sua legitimidade é
afiançada pela clínic;t, como buscaremos demonstrar.
De fato, se a idéia discutida perm anece um tanto opaca em sua
vertente tópica, não se pode dizer o mesmo de sua dinâmica. Neste
nível. a clinica parece compensar os austeros obstáculos da teoria.
Não foi difícil perceb~r que Y. era completamente incapaz de imputar
a qualquer pessoa ou fator existente na realidade a culpa ou responsa-
bilidade por seu mal-estar em viver. Todo seu meio ambiente, dos pais
à realidade sócio-econômica, era sem exceção poupado de critica ou
acusação. Sua consciência não conseguia racionalizar motivos onde

98
coubessem cúmplices ou autores de sua atribulada trajetória psico\ógi-
ca.
O que lhe acontecera de mau era devido ao acaso ou a uma vaga
vo ntade supra-humana, de origem sobrenatural. Seu discurso absolvia
sistematicamente o mundo do real por tudo o que sofrera, traduzindo
no regist ro do pensamento aquilo que denominamos ausência de re·
presentução.
O monolitismo desta defesa só conseguiu ser fraturado no mo-
mento do surto psicótíco e, posteriormente, no evoluir da análise. Na-
quelas ocasiões. principalmente no surto proveniente do excesso de
drogas. a representação oculta veio à tona com uma força proporcio-
nal ao impacto da violência que causara e que a mantivera banida do
psiqui smo.
Como já mencionamos, Y. durante a crise psicótica fantasiou a
mãe como uma espécie de animal diabólico, diretamente associado à
sensação iminente de morte que, por seu turno, foi vivida como uma
realidade inevitável. Do mesmo modo, no decorrer da análise, penosa-
mente, deu-se conta de que os adultos responsáveis por sua vida expu-
seram-n(J d situações de sofrimento absolutamente gratuitas, desneces-
sárias e insuportáveis para uma criança.
A relação entre esta necessidade de absorver o outro e a necessi-
dade de inocentar o corpo é eviden~e . Ambos mostram, a céu aberto,
as razões que inviabilizam a representação mental de um evento emo-
cional. A represe'ntação que induz sua própria eliminação psfquica é
·portadora de um coefi ciente de. violêncja particularmente intenso, por-
que coloca o sujeito violentado diante de um paradoxo afetivo, em
todo o rigor do termo. O sujeito percebe que o agente da violência é
concomitantemente condição inelutável de sua sobrevivência e porta-
voz onipotente de sua sentença de morte. y não podia representar a
o

mãe como agente causal da violência, pois assim fazendo capitularia


diante da morte. A saída encontrada para o impensável foi, por um la-
do, a de redefinir o valor erótico do corpo através da droga; por outro
lado, preservar intacta a função matern a, desvinculando-a desta mãe-
em particular e deslocando-a para um outro " sujeito" que, como vere-
mos, será a própria realidade social.
A dinâmica da revalorização erótica do corpo foi abordada na
parte do texto co nsagrada à identidade. Analisando agora a última
parte da afirmação, penetramos diretamente no terreno da violência e
dos destinos da representação.
A experiência que originou o connito psicopatológico de Y. foi
violenta porque seu cerne era formad o por uma representação infrato-
. ra da lei. A mãe e demais adultos que dele se ocuparam na infância
romperam as regras do contrato ao qual deveriam obedecer. Pouco

99
importa considerar, no momento .. se o agen.t~ da v~olência. ignor~ ou
não a natureza da infração cometida. Na chmca ps1can~lit•ca ~ s•.tua-
çào mais freqüentemente enç;ontrada é aquela em qu~ a tnfraçao e7.de
fato. um processo inconsciente. O maior.ou menor mvel de c?n~c•e.n­
cia que o agente possui da infração modtfica a n~~ureza da vtolencta.
Mas neste trabalho, deixaremos de lado esta vanavel. Levaremos e~
cont~. apenas. a repercussão da violência no suj_eito vio!entado. Este e
o elemento genérico, com um a toda representaçao matriZ de um ato de
violência. .
Mas nem toda violência mostra a fisionomia parttcular deste
problema psicopatológico. O sujeito nem sempre é obrigado_a r~usar
0 estatuto de representabilidade psíquica a uma representaçao v•o~en­
ta. Esta defesa é acionada quando o Eu defronta-se com o se~u•.n~e
con nito: ou aceita definir sua identidade segundo a palav~a ~rb.ttrana
do intérprete da lei -o que significa mo~rer - ou nega a ex1ste~c•a .des-
te intérprete, abolindo sua representaçao. Deste modo, f!lant~m Inte-
gras a lei e a possibilidade de vida, embora amputando a sdenudade de
'um significante fundamental. . . .. .
Foi este tipo de conflito que deu o toque esp.~1fico da v101ênc1a
sofrida por Y. Impossibilitado de ver na mã.e o SUJeito-suporte de sua
identidade, viu-se impeliido a delegar a um outro _suporte, se.m .as ca~
racterísticas exigidas pelo sistema de regras, a funçao que de duesto ca-
beria a sua verdadeira mãe. . .
É importante notar, contudo, 9ue m~s~o te~do stdo pmado .de ..
um bom ambiente materno, no sentido wmmcotllano, Y. guardou m-
tacta a capacidade de reconhecer a lei e o caráter infr~tor da ~epresen­
tação violenta. Caso esta possibilidade também lhe ttve.sse stdo s~ne­
gada, provavelmente teria recorrido à psicose, como me10 de dommar
a violência. . .
O delírio, Aulagnier bem demonstra1 ', representa uma ulttma ten_-
tativa de compatibilizar o arbítrio com a lei, a gratuidade com a neces.~l­
dade. A representação do agente da violência acaba por .v.encer. a resl~­
tência do Eu que. para ex.orcizar a morte, procura conc1ha~ o mco~Cl·
liável. Não podendo alucinar negativamente a repre~entaçao morhfe-
ra o Eu renuncia ao direito de sujeito perante a le1, deturpando-a e
de~tituindo-a de sua universalidade. A lei toma-se um simulacr~, na
medida em que exprime a penas o .desejo de um. A ~alavra do a~bte~te
materno (pai, mãe ou seus substitutos) consegue tmpor-se arbltrana-

21. AULAGNIER, Piera. La violenct' dt' L'interpreltltion. Paris, PUF, 1975.

100
mente como universal e passu a legislar sobre urna função que a trans-
cende c <I Qllal ela deveria' estar submissa.
É assim que Schrcber. após rebelar-se co ntra a ordem de emascu-
lação proferida por Deus-pai-Fiechsig, cessa de resistir e aceita o vere-
.dícto, invocando a mesma.ordem do universo que, até então, sua aliada,
fortalecia-o no combate contra o arbítrio. Admitindo copular com
.Deus para procriar a raça sa lvadora da humanidade, Schreber sucum-
be à violência paterna. A formação cronológica de seu delfrio ilustra o
caminho percorrido entre a resistência ao arbítrio, apoiada na lei, e a
rendição a este arbítrio. quando a lei desmorona.
·A conjuntura erri.que a defesa psicbtica contra a v1olência pode .
advir tem como pré-requisito o descrédito e a derrota da legalidade.
Não foi esta a experiência de Y. No seu caso, a estrutura do am-
biente materno não conseguiu dissolver as fronteiras entre a "verda-
de" dos enunciados si ngulares sQbre sua identidade e a "verdade" dos
.enunciados universais, de~nidos pelo sistema de regras. Y. aboliu are-
presentação da imago materna, fonte de ameaça de morte e aniquila-
mento da identidade, mas pôde substituí-·la por outros agentes encar-
regados de s~:~prir sua função. De início, pela imago paterna, idealiza-
da como justa ~boa, dada a ausência concréta do pai; em seguida pelo
mundo da droga, imagem de mãe opulenta, sempre prestes a oferecer-
lhe um prazer perene e uma constante promessa de vida.
A ausência do pai e a presença da droga permitiram-lhe, desta
forma, lidar com a violência sem ingressar na psicose. A anulação da
tepresentação violenta preservou intocado o espírito da lei, se bem que
alterando uma de suas cláusulas.
Y.. após a decepção do encontro com o pai, começou a exigir da·
realidade social aquilo que deveria ser propiciado ou mediado por wn
indivfduo. Todas as funções que em nossa cultura são atribuídas ao "u-
niverso do privado'', basicamente a família, passaram a ser cobradas
do "universo do público". Donde o caráter estranhamente "real-
irreal" que a realidade social, num caso como o dele, pode ganhar aos
olhos do observador. Y. quis que a real\dade social como um todo
viesse a realizar uma função que esta própria realidade previamente
circunscreveu à esfera familiar.
Este tipo de conduta, expressão de um desejo inconsciente, expli-
ca. em parte, as infindáveis discussões a respeito da natureza do super·
ego, da culpa ou da reparação em individuas anti-sociais. A nosso ver,
os ataques, agressões, pedidos ou súplicas que estes indivfduos dirigem
ao social não são apenas tentativas de extrair do mundo gratificações
imediatas. Tampouco podem ser interpretados como simples provoca-
ções masoquistas, produtos de uma qualquer culpa inconsciente. Estes
sujeitos, exigindo da realidade o que lhes foi extorquido pelo ambiente

lOt
materno, manifestam, por um caminho "ilegal". a crença na lei e nos
seus direitos a uma vida psíquica, fora da psicose. A· delinqüência é
·uma trincheira contra a perda do sentido da realidade ou, o que é mais
·grave, contra o avanço da própria morte.
O subn,.undo de Y ., marginal e ilegal diante da justiça ou da nor-
ma social, foi, na verdade,. um habeas-corpus requerido em nome da
mais legitima <las leis. Este mundo, embora ilusório e efêmero, ofere-
ceu- lhe a única possibilidade q ue teve de construir sua identidade con-
fo rme o princípio do prazer e da preservação da vida.
Não saberíamos afirmar se a interpretação que demos a esta his-
tória pode ou não ajudar-nos a renetir sobre histórias de vida seme-
lhantes. Em todo caso. acreditamos que muitas de nossas teorias sobre
o delinqüente precisam ser revistas, pois boa parte delas esquece o es-
sencial da vida destes sujeitos- a luta contra a violência. Esquecimen-
to, quem sabe, sintomático. Assim como foi sintomático o esqueci-
mento da sexual idade, até o surgimento da psicanálise.

102
Da cor ao corpo: a vic!ência do racismo

Há l i anos, publicava-se em Paris as cartas de 'prisão do ne·


gro americano George Jackson. A Jean Genet coube a tarefa de intro-
d uzir a obra ao público francês. Introdução que, já no inicio, traia as
expectativas do leitor pois nada tinha em comum com os usuais prefá-
cios ou comentários do gênero. Genet, o comentarista, tragado pela
emoção do texto, despediu a pretensão da critica, convertendo-se em
aliado do combate e do amor do negro pelo negro. As cartas de Jack-
son, dizia ele, eram um "poema de amor e combate" .
Prefaciar o presente livro colocou-nos diante de um dilema seme-
lhante. Perguntamo-nos, insistentemente, o que acrescentar a esta de-
núncia feita de depoimentos que falam por si. A autora empresta seu
talento aos oprimidos. Põe a serviço do negro sua generosidade e fir-
meza intelectuais. E, como resultado, temos esta condenação sem má-
goas, .este alerta que nos martela a consciência e ecoa aos ouvidos
como um grande grito de solidariedade aos injustiçados.
- Lendo este trabalho, não nos foi possível deixar de evocar a ins-
crição definitivamente gravada no monumento às vitimas do holo-
causto nazista em Paris: "Pardonne, mais n'oublie pas." ·
Impossível, do mesmo modo, foi abordá-lo cóm o olhar de quem
· julga mais um produto de nossa incipiente indústriá acadêmica de te-
ses. A credibilidade do que é afirmado não nasce. primordialmente,
dos conhecidos passaportes para o tantas vezes insípido mundo dares-
peitabilidade científica: ..rigor te<>rico", "coerência conceitual". "fide-
c.lignídade do fato emplrico'', etc. Aqui, a dor cria a noção; a indigna-
ção, o conceito; a dignidade, o discurso .

103
Ketomando as palavras de Marilena Chauí, diríamos que este não
é um d iscurso competente. Nele, os cânones do protocolo científico,
apesar de respeitados, não mumificam o saber. O esqueleto teórico-
metodológico é apenas suporte de uma substância viva que pulsa,
transpira e nos transmite um sentimento de honestidade radical. A cri-
tica contundente não recorre ao ódio ou ao ressentimento para seres-
cutada. A liberdade e a igualdade são exigidas, reclamadas. Mas, em
nome dafraremidade. Não nos enganemos, esta adesão terna e apaixo-
nada à verdade contra a opressão tem fornecido aquilo que de melhor
possuímos nas ciências humanas.
Comentar um trabalho deste gênero exige, portanto, q ue abdi-
qul!mos rapidamente de nossos velhos hábitos de pensar. ~ inútil, nes-
te caso. duelar com a palavra. Ou, o que é mais corrente, procurar cin-
di- la e buscar no verso e reverso de seu âmago a verdadeira intenção,
ideologicamente travestida.
O trabalho crítico, aqui, não deve procurar desvendar um suposto
sentido latente emudecido pela ruidosa máscara do manifesto. Muito
ao contrario, deve deixar-se conduzir pela visibilidade do testemunho
daqueles a quem foi dada a palavra. Deve acompanhar a postura da
autora. prolongando seus propósitos e intenções, quais sejam. tornar o
saber um instrumento de transformações e não um objeto de disputa
escolast ica .
Neste sentido, o estudo sobre as vicissitudes do negro brasileiro
em ascensão social levou-nos, incoercivelmente, a refletir sobre a vio-
Jtíncia. A' violência pareceu-nos a pedra de toque, o núcleo central do
problema abordado. Ser negro é ser violentado de forma constante,
continua c cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a. de
encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar,
neg:.:r e anular u presença do corpo negro. ·
Nisto reside. a nosso ver, a espinha dorsal da violência racista,
Violência que.mutatis mutandis, p~eria ajudar-nos a melhor entender
o fardo imposto a todos os excluídos da norma psico-sócio-somática
criada pela classe dominante branca ou que se autodefine desta ma-
.neira.
Em que consiste esta violência? A autora, sem ambigüidades,
aponta-nos seu primeiro traço, visto sob o ângulo da dinâmica in·
trapsiquicu. A violência racista do branco é exercida. antes de mais na·
da, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro.
Este, através da internalizaçào compulsória e brutal de um Ideal de
Ego branco. é obrigado a formular para si um projeto identificatório
incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo. Entre o
Ego e seu Ideal cria-se. então, um fosso que o sujeito negro tenta trans-

104
por, à custa de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu
equilíbrio psíquico.
O Ideal de Ego ~o negro, em contraposição ao que ocorre regu-
larmente com o branco. é forjado. desrespeitando aquilo que, em lin-
guagem psicanalltica, denominamos regras das identificações normati-
vas ou estruturantes. Estas regras são aquelas que permitem ao sujeito
ultrapassar a fase inicial do desenvolvimento psíquico onde o perfil de
sua identidade é desenhado a partir de uma dupla perspectiva: I•) a
perspectiva de olhar e do desejo do agente que ocupa a função mater-
na: 2') a perspectiva da imagem corporal produzida pel~imaturo apa-
relho perceptivo da criança.
A .esta fase inaugural da construção da identidade do sujeito cha-
mamos de narcisica, imaginária ou onipotente, termos indissociáveis c
funcionalmente complementares na dinâmica mental que os preside e
organiza.
As regras das identificações normativas ou estruturantes são uma
barreira contra a perpetuação desta posição originária da infância do
homem . Acompanhando o desenvolvimento biológico da criança, elas
permitem ao sujeito infantil o acesso a uma outra ordem do existente:-
a ordem da cultura-, onde a palavra e desejo maternos não mais serão
as únicas fontes de definição da "verdade" ou "realidade" de sua iden-
tidade. O dueto exclusivo entre a criança e a mãe é interrompido. Em
primeiro lugar, pela presença do pai e, em seguida, pela presença dos
pares. que serão todos os outros su~itos exteriores à co~unidade fa·
miliar.
Estas instâncias vão m.ostrar ao sujeito aquilo· que lhe ~ permiti-
.do, proibido ou prescrito sentir ou exprimir, a fim de que sejam garan·
tidos, simultaneamente, seu direito à c:xistancia, enquanto ser psiquico
autônomo, e o da CJlistancia de seu grupo, enquanto comunidade ~iJ­
.tórico-sociaJ. As identificações normativo-estruturantes. propostas pc-
los pais aos filhos. são a mediação necessária entre o sujeito e a cultu-
ra. Mediação que se faz .através das relações flsico-emocionais criadas
dentro da família e do estoque de significados lingtlisticos que a oültu-
ra põe à disposição dos sujeitos.
· ·o ideal do Ego é-um produto da deçantação destas expenenctas.
Produto formado a partir de imagens e palavras, representações e atf>-
;tos que circulam incessantemente entre a criança e o adulto, entre o su-
jeito e a cultura. Sua função, no caso ideal. é a de favorec;cr o surgi-
mento de uma identidade do sujeito. compatfvel com o investimento
.erótico de seu corpo e de seu pensamento, via indispensável a sua rela-
e
ção harmoniosa com os outros com o mundo.
Ao sujeito negro, esta possibilidade é, em grande parte, sonegada. :
O modelo d~ ideal de Ego que lhe é ofe~ido ~m .troca da antiga aspi-

lOS
ração narcísico-imagináría não é um modelo humano de existência ·
psiquica con ereta. histórica e, con seq üen temente, realizável ou atingi-
vel. O modelo de identificação normativo-estruturante com o qual ele
se defronta é o 'de um fetiche: o fetiche do branco, da brancura.
. Para o sujeito negro oprimido, os indivíduos brancos, diversos em
suas efeti vas realidades psíquicas, econômicas, sociais e culturais, ga-
nham uma feição ímpar. uniforme e universal, a brancura. A brancura
detém o olhar do negro antes que ele penetre a falha do branco. A
brancura é abstraída, reificada, alçada à condição de realidad~ autô-
noma, in4ependente de quem' a porta ~nquanto atributo étnico ou,
mais precisamente, rácial. A brancura é o fet iche simétrico inverso do
que a autora designou por mito negro. Funciona como um pré-dado,
como uma essência que antecede a existência e manifestações históri-
cas dos indivíduos reais, que são apenas seus arautos e atualizadores.
O fetichismo em que se assenta a ideologia racial faz do predicado
!manco. da brancura, o "sujeito universal e essenCial" , e do sujeito
branco JJm "predicado contingente e particular" .
.V itima dos efeitos desta alienação, pouco importa, então, ao su-
jeito negro. o que o branco real, enquanto indivíduo ou grupo, venha a
fazer, sentir ou pensar. Hipnotizado pelo fetiche do branco, ele está
conden:tdo a negar tudo aquilo que contradiga o mito da brancura.
O neg ro sa be que o branco criou a inquisição, o coloniul ismo, o
imperiulismo. o anti·semiti smo. o nazismo, o stalirtisino e tantas ou-
tras fo rmas de despotismo e qpressão ao longo da história. O negro
também sabe que o branco crio1..' a escravidão e a pilhagem, as guerras
e ns destruições. dizimando milhares de vidas. O negro sa~t.. igualmen-
te que. hoje como ontem, pela fome de lucro e poder, o tlranco conde-
nou e condena milh ões e milhões de seres humanos à mais abjeta e de-
gradada miséria física e moral. .
O negro sabe tudo isto e, ta lvez, muito mais. Porém a brancura
transcende o hrunco . Eles- individuo, povo, nação ou 'Estado brancos
- podem "enegrecer-se". Ela, a brancura, permanece branca. Nada
pode maculm esta .brancura que, a ferro e fogo. cravou-se na consciên-
cia negra como sin ô nimo de pureza artística, nobreza estética, majes-
tade moral. sabedoria científica etc. O belo, o bom, o justo e o verda-
deiro são brancos. O branco é, foi e continua sendo a manifestação do
Espírito, da Idéia. da Raz:"\o. O branco. a brancura, são os únicos artí·
!ices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem.
Eles são a cultura, u civilizaçã o, em uma palavra, a "humanidade".
O racismo esconde assim seu verdadeiro rosto. Pela re')ressão ou
persuasão. leva o sujeito negro a desejar, invejar e projetar.um futuro
identiricatório antagônico em relação à realidade de seu corpo e de sua
história étnica e pessoal. Todo ideal identificatório do negro converte-

106
se. desta maneira, num ideal de retorno ao passado, onde ele poderia
ter sido branco, o u na projeção de um futuro, onde seu corpo e identi-
dade negros deverão desaparecer.
Não é fácil imaginar o ciclo entrópico, a direção mortífera impri-'
mida a este ideal. O negro, no desejo de embranquecer, deseja, nada
mais, nada menos. que a própria extinção . Seu projeto é o de, ilO futu-
ro. dei.~ar de existir: sua aspiração é a de não-ser ou não ter sido.
Esta é, de maneira sucinta, a argumentação nodal da autora,
quando desmonta e explicita os mecanismos da violência racista.
Porém , como não ver, através desta mesma demonstração, que a
ideologia de cor é, na verdade, a superficie de uma ideologia mais dani-
nha, a ideologia do corpo. De fato, parece-nos evidente que o ataque
racista à cor é o close-up de uma contenda que tem no corpo seu verda-
deiro campo de batalha. Uma visão panorâmica, rapidamente, nos
mostra que o sujeito negro ao repudiar a cor. repudia radicalmente o
co rpo .
Nos depoimentos colhidos e nas análises feitas, a autora mostra
como o mito negro constrói-se às expensas de uma desvalorização sis-
temática dos atributos físicos do sujeito negro. Ecom desprezo, vergo-
nha ou hostilidade que os depoentes referem-se ao "beiço grosso'' do
'negro. "nariz chato e grosso" do negro, "cabelo ruim .. do negro,
" bundão" do negro, "primitivismo" sexual do negro e assim por dian-
te.
O segundo traço da violência racista, não duvidamos, é o de esta-.
hclecer, por meio do preconceito de cor, uma relação persecutória en-
tre o sujeito negro e seu corpo. O corpo ou a imagem corporal erotica-
mente investida é um dos componentes fundamentais na c.:>nstrução
du idc1ll idude do indivíduo. A identidade do sujeito depende·, em gran-
de medida. Ja relação que ele cria com o corpo. A imagem ou enuncia-
do identilicatório que o sujeito tem de si estão baseados na experiência·
de dor. prazer ou dcsprazer que o corpo obriga-lhe a sentir e a pensar.
Para qu~ o sujeito construa enunciados sobre sua identidade, de
mod o a criur um a estrutura psíquica harmoniosa, é necessário que o
corpo seja predominantemente vivido e pensado como local e fónte de
vida e prazer. As inevitáveis ~ituaoões de sofrimento que o corpo im-
põe ao sujeito têm que ser " esquecidas", imputadas ao acaso ou a
agentes externos ao corpo. Só assim o sujeito pode continuar a amar e
cuidar daquilo que é, por· excelência, condição de sua sobrevida.
No dizer de Piera Aulagnier, criadora da teoria que inspira esta
ret1exão. o futuro identifica tório do sujeito depende desta possibilida-
de de "inocentar" o corpo. Um corpo que não consegue ser absolvido
do sofrimento que innige ao sujeito torna-se um corpo perseguidor,
odiado, visto como foco permanente de ameaça de morte e dor.

107
Pode-se imaginar quais as seqQelas psíquicas derivadas desta últi-
ma situação. A relação persecutória com o corpo e'lpôe o sujeito a
uma tensão mental cujo desfecho, como seria previsivel, é a tentativa
de eliminar o epicentro do conflito.
· A partir do momento em que o negro toma consciencia do racis-
mo, seu psiquismo é marcado com o selo da perseguição pelo corpo
próprio. Daí por diante, o sujeito vai controlar, observar, vigiar este
corpo que se opõe à construção da identidade branca que e~ foi coagi-
do a desejar. A amargura, desespero ou revolta resultantes da diferen-
ça em relação ao branco vão traduzir-se em ódio ao corpo negro.
A discriminação de que seu corpo ~ objeto não dá tréguas à hu-
milhação sofrida pelo sujeito negro que não abdica de seus direitos hu-
manos, resignando-se à passiva condição de "inferior". Curiosa c trá-
e
gica contradição. no momento mesmo em que o n·egro reivindica
sua condição de igualdade perante a sociedade que a imagem de seu
corpo surge como um intruso, como um mal a ser sanado, diante de
um pens~mento que se emancipa e luta pela liberdade. Um dos entre-
vistados dizia: ''Eu sinto o problema racial como uma ferida. t uma
e
coisa que penso e sinto todo o tempo. um negócio que não cicatriza
nunca."
· Os esforços para curar a "ferida,. vão então suceder-se numa es-
calada patética e dolorosamente in6til. Primeiro tenta-se metamorfo-.
sear o corpo presente, atual, de modo penoso e caricato. São os "pre-
gadores. de roupa" destinados a afilar o nariz ou os produtos qufmicos
usados para alisar o "cabelo ruim". Em seguida, vêm as tentativas de
aniquilar, no futuro, o corpo rebelde à mutação, no presente. São as·
uniões sexuais com o branco e a procriação do filho mulato. O filho
mulato e o neto talvez branco representam umá louca vingança, suici-
da e homicida, contra um corpo e uma "raça" que, obstinadamente,
recusam o ideal branco assumido pelo sujeito negro.
O andamento deste processo torna percepdvel, assim, um outro
fenômeno, tão bem anotado pela autora. O sujeito negro, possuído.
pelo ideal de embranquecimento, é forçado a querer destruir os sinais
de cor do seu corpo e da sua prole. Mas, para executar este intento,
compromete seu pensamento com o trabalhó de lidar quase que exclu-
sivamente com afetos e representações vinculados· à dor e à morte.
O pensamento do sujeito n~gro, parasitado pelo racjsmo, termina
por fazer do prazer um elemento secundário na vida do corpo e da
mente. Para o psiquismo do negro em ascensão, que vive o impasse
consciente do racismo, o importante não é saber, viver e pensar o que
poderia vir a dar-lhe prazer, mas o que é desejável pelo branco. E,
como o branco não deseja o corpo negro, o pensamento vai encarre•
-gar-.se de fazê-lo inexistir, desaparecer enquanto representação m~ntal.

108
Este é o terceiro elemento constitutivo da violênci.a racista. O ra-
cismo que, :ttravés da estigmatização da cor, amputa a dimensão de
prazer do corpo negro. também perverte o .pensamento do sujeito, pri-
vando-o da possibilidade de pensar o prazer e do prazer de funcionar
em liberdade. O pe~samento do negro é um pensamento siti~do, a~a­
do e acossado pela dor da pressão racista. Como conseqQ&ncJa, a dinâ-
mica da organização mental é subvertida: Um dos princ(pios régios do
funCionamento p~lqu ico, ·o principio do prazer, perde a hegemonia de
que goza na organização dos processos mentais. A economia psíquica
passa a gravitar em 1torno da dor, deslocando o prazer do centro do
pensamento.
. Em termos psic.analfticos, afirmamos que ·o principal vetor de
crescimento e desenv•olvimento psicológicos é a experiência de satisfa-
ção. O sujeito busca sempre reencontrar na realidade um objeto que
corresponda ao traÇo mnésico de um objeto primordial, matriz de
uma experiência de satisfação inesquecível. Este movimento do psi-
quismo com vistas à reedição do prazer constitui o desejo. O desejo,
em sua vertente erótka. é este impulso, esta moção em direção ao ob-
jeto e à situação de !Prazer.
Nesta busca nos1tálgica da satisfação perdida, o sujeito esbarra, é
inevitável, com a decepção. O prazer esperado, moldado pela lem-
brança -do objeto ideal de outrora, jamais encontra na realidade o ob-
jeto adequado à fant;nsia. Todo objeto substituto do objeto primordial
será falho, imperfeito,limitado. O desejo está fadado à incompletude.
Mas. esta falta consubstanciai ao desejo de prazer é o sal da terra
do continente pslquico. A esperança de realizar o prazer sonhado leva
o sujeito a transformar-se, idealizando o futuro conforme seu ideal de
Ego, e a transformar o mundo, na busca do objeto desejado. O pensa-
mento,. função e instrumento do Ego na definição de sua identidade,
ao defrontar-se com :a decepção, faz do desprazer o motor propulsor
de novas esperanças e expectativas. A polarização prazer-despra1.er
faz o pensamento tr~msitar. na esfera de representações e afetos que
concernem o pra:er de pmJar e a possibilidade de viver. de novo, o
prazer.
O desprazer, tod•Js sabemos, não pertence a uma linhagem psíqui-
ca autônoma, diversa em natureza e objetivos da linhagem do prazer.
Ele é tão-somente o 11nomento negativo, o passo atrás dado num pro-
cesso imantado pela p•ositividade da eKperiência de satisfação. Prazer c
desprazer são facetas de uma mesma ordem de orientação psiquica ou,
se se quiser, de um mesmo princípio do funcionamento mental. Por ·
conseguinte, o pensamento voltado para a elaboração do conflito es-
truturado pela oposi•;ão prazer/frustração é um pensamento fluido,

109
criador, levado sempre adiante pela promessa de: prazer do objeto
idealit.ado.
Diversa é a situação do pensamento atraído pa1ra a órbita da dor.
A dor não é um fenômeno pertencente à série de ellementos que com-
põem o tegime erótico. A experiência da dor insc:reve-se no reg~s~ro
das represen1ações e afetos adscritos à ordem da morte, da destruu~ao.
Diante da dor, o que interessa é recompor a integridade do aparelho
psíquico esgarçado pelo estímulo excessivo. Na ..ex:periência de ~or_" ,
ao contrário da "experiência de satisfação", o movimento do pSIQUIS-
mo rigidilica-se. Reduz-se a acionar defesas cujo único objetivo é con-
trolar, dominar, fazer desaparecer a excitação dolorosa. O modelo ~e
compreensão das reações psíquicas em face da dor é o da compulsao
de repetição, como Freud demonstra a propósito das neuroses trau-
máticas.
O pensamento do sujeito em situação de dor permanece inse~sível
ao apelo erótico. O refluxo narcísico, em direção ao c~rpo -própno ou
ao Ego, observável nestes casos, é um elemento ~adJuva.nte, no dra·
ma central do psiquismo. Os fenômenos narcístcos sublmhados n~s
quadros da " experiência de dor" representam, em nos~o ponto de vts-
ta, uma neutralização, mais ou menos duradoura, mats ou menos ex-
tensa, do princípio do prazer. Quando a dor f~ sua entrada raa cena
psíquica, o prazer retira-se, recolhe-se aos bastJdo·res. .
' A dor não nasce, portanto, da frustração, nem é sinômmo de des-
prazer. Sua orige_m não se encontra na decepção amorosa_. Seu pont~
de irradiação não é o obstáculo à realização do pra:ler, e stm o rompi·
mento da homeostase psíquica provocado por um trauma específico
produzido pela violência. . . . .
Não iremos, no momento, deter-nos nas JUSttficattvas metapstco-
lógicas que apóiam as distinções que acabamos de propor. Em outros
trabalhos, procuramos demonstrar as razões cllnioo-teórica:s 9.ue .sus-
tentam a oposição entre "experiência de dor", fruto ~a vt~lencta, e
"experiência de satisfação/ frustração", correlato d.o pnncfpt~ do p~a­
zerf desprazer. Basta-nos, agora, sem entrar em maiOres ~ns1der~ç~
a respeito da natureza da dor e da violência, postular esta dtferenctaçao
interna ao campo psiquico. E assinalar que é neste estreito quadrante
que o pensamento do sujeito negro se debate. .
A reação do pensamento negro frente à violênçia do ide~l, b.ranco
não é uma resposta ao desprazer da frustração, elemento penfenco do
conflito, mas uma réplica à dor. O sujeito negro diante da "feri.da" 9ue
é a representação de sua imagem corporal tenta, sobretudo, ctcatnzar
o q ue sangra. f: a este trabalho de cerco à dor, de re,generação da lesão
que o pensamento se dedica. A um custo que, como se. vê nes~e t!aba-
lho, será cada vez mais alto. O tributo pago pelo neg;ro a espohaçao ra·

I lO
cista de seu direito à identidade 6 o de ter de conviver com um pensa-
mento. incapaz de formular enunciados de prazer sobre a identidade
do sujeito. O racismo tende a banir da vida psfquica do negro todo
praur de ~nsar e todo pensamento de prazer.
Pensar sobre a identidade negra redunda sempre em sofrimento
para o sujeito. Em função disto. o pensamento cria espaços de censura
· à sua liberdade de expressão e, simultaneamente. suprime retalhos de
sua pr"ó pria matéria. A "ferida.. do corpo transfonna-sc em ·" ferida"
do pensamento. Um pensamento forçado a não representar a identida·
de real do sujeito é um pensamento mutilado em sua essâlcia. Os·
enunciados do pensamento sobre identidade do EU são enunciados
constitutivos do pensamento eles mesmos.
A violência racista subtrai ao sujeito a possibilidade de explorar. e
extrair do pensamento todo o infinito potencial de criatividade, beleza
e prazer q~c ele é capaz de produzir. O pensamento do sujeito negro é .
um pensamento que Se auto-restringe. Que delimita fronteiras mesqui·
nhas a sua área de expansão c abrangancia. em virtude do bloqueio
imposto pela dor de refletir sobre a própria identidade. ·
. As estratégias, táticas c compromissos que o pensamento do sujei·
to negro cria diante do racismo demonstram o que foi afinnado. Atra-
vés dos testemunhos dos negros entrevistados é possível captar os ras-
tros deste combate do pensamento contra a realidade do corpo e da
·identidade negra.
Um primeiro expediente do pensamento na luta contra a negritu-
de em favor do ideal branco, já observamos, consiste em tentar rever-
ter a situação biológica do corpo, por meio de técnicas de correção
física. O pensa~ento abandona a verdade partilhada pelo grupo cultu-
ral a respeito da imutabilidade das leis da hereditariedade. Deixa-se
contaminar pela ilusão de poder interferir sobre o patrimônio genéti-
co, mediante o emprego de artefatos mecânicos aplicados à superflcie
corporal.
A inutilidade deste procedimento, comprovada ao longo das ge-
rações. não tem o poder de desme.n tir á ficção psíquica de que o atri-
buto étnico não é um atributo arbitduio, assim como o são os fatos da
ordem da cultura. O negro herda de seus ancestrais a crença mágica na
possibilidade de alterar o tipo racial, sem atingir as estruturas genotf-
picas. A dissociação no campo do pensamento é evidente. Assim como
ocorre com o branco. em outros setores da existência e da experiência
psicossociais, a racionalidade lógica não consegue sobrepor-se ao im-
pulso irracional para a realização imag~nária do desejo.
Para alguns, entretanto, esta etapa é vencida. A magia do proce-
dimento consegue ser batida pelos desmentidos constantes da realida·
de. ó pensamento avança, então, em direção a técnicas de mudanças

111
mais exeqüíveis e eficazes. O sujeito já não mais tentá converter o cor-
po negro em corpo branco. Contenta-se em renegar o e.ftereótipo do
comportamento negro, copiando e assumindo um estereótipo de com -
portamento, que pensa ser propriedade exclusiva do branco e em cuja
supremacia acredita.
O comportamento é, por su;t naturza, mais plástico e flexível. A
meio cami~ho entre o fato natural e Q fato cultural, o comportamento
ou conduta _compõe-se. ao mesmo tempo, de elementos físicos, predi-
cados mora1s, condutas sociais, maneiras de exprimir-se e possibilida-
des de localizar-se na ecologia urbana, em situações de prestígio e as-
censão social. Assim se exprimia uma entrevistada: "Aí eu não sabia
meu lugar, mas sabia que negra eu não era. Negro era sujo, eu era lim-
pa; negro era burro, eu era inteHgente; era morar na favela e eu não
morava; entretanto negro tinha lábios e nariz grossos e eu não tinha."
A combinação de certas regras de higiene com certas manifesta-
ções intelectuais unem-se às condições de moradia e à miscigenação de
traços flsicos para definirem um contorno de condutas e posturas fisi-
co-morais, tidas como índices de bran<:ura. O pensamento entrega-se a
uma verdadeira garimpagem, tentando colher na "ganga" do corpo
negro o "ouro puro" dos traços brancos. Os supostos predicados
brancos são catados a lupa. Selecionados, catalogados e armazenados
de tal sorte que o corpo e a identidade do sujeito são divididos em uma
parte branca e outra negra. A primeira age, desta forma. como um
an tídoto contra a tota l identificação do sujeito com a condição de ne-
gro.
O pensamento, neste nível, opera um compromisso. Afirma e
ne~a a presença da negritude. Admite, implicitamente, que o negro
ex1ste, quando enumera qualificativos brancos, cuja es<:assez nega, ao
mes.mo tempo, a totalidade. A submissão ao código do comportamen-
to tido como branco concretiza a figura racista criada pela mistifica-
dora democracia racial brasileira, a do "negro de alma branca".
No entanto, o exercício de negação da identidade a que se livra o
pensamento não chega, também neste caso, a escotomizar a realidade
da percepção. O pensamento não sucumbe por completo ao impact o
da dor, interpretando a realidade corpórea de maneira totalmente fa1n- .
tasiada. Sua função essencial, a de dispositivo seletor e metabolizador
de estímulos pulsionais e excitações vindas do mundo externo resta
intacta. A alteração que podemos notar circunscr.eve-se a certas'zonas
de sua organização ou a certos momentos de seu funcionamento.
Em outros casos, mais dramáticos, a distorção é bem máior e
mais radical. Um depoente dizia: "Eu estava crescendo como artista e
então ia sendo aceito. Ai eu já não era negro. Perdi a cor... O racismo
continuava. Eu era aceito sem cor, mas eu ia vivendo."

112
_ Pe~der a c~r significa para o individuo uma sujeição completa ao
1m~rat1vo rac1sta. Aqui, pelo menos dois processos psíquicos de alte-
raçao do pensamento devem ser assinalados.
O primeiro deles concerne à relação do sujeito ao enunciado
sobre a ..verdade" d~ sua identidade. proferido pelo branco. O negro
qu~ ~rde a cor a d~1te que esta metonímia do corpo e da identidade
comt;1de com a totahdade destes existentes, o que é eminentemente fal-
so. Ade~i~do à ideologia racista da cor, o sujeito cauciona o mito ne-
gro fabr.1 cad~ pelo branco. Não apenas aceita sua éor como um predi-
~do peJorativo, como pensa que suprimindo-a enquanto representa-
çao do espaço, do pensamento, suprime sua identidade negra.
o.mesmo ~e:anism? de construção da identidade total da pessoa
a par~·~ de um umco atr1buto tem sua rontrapartida na identificação
do SuJeito a? papel O';' função social ~e artista. Deixando de ser negro
para ser arttsta, o SUJeLto troça o atnbuto desprezado por um outro
a_Pre~iado ~ valorizado pelo branco. A situação de alienação, por te;
stdo mverllda, não perde, entretanto, suas características fundamen-
tais. Tanto faz "perder a cor" para tornar-se "artista';. O resultado é
sempre o mesmo: a identidade negra existe como um apêndice do dese-
jo e da palavra do branco.
Este é o segundo processo a que fizemos referência. O sujeito ne-
gro delegando ao branco o direito de definir sua identidade renuncia ·
a~ diálog_o que mantém viva a dinâmica do pensamento. Um pensa-
~e~to pr1va~o do confronto rom outro pensamento perde-se num so-
hpsJsmo, CUJas conseqüências são a autolegitimação absoluta da "ver-
dade" pensad a ou, inversamente, sua absoluta negação. Esta lei do
tudo ou na~~ reenvi~ o pensameot~ d? sistema que ordena os proces-
so~ secundanos ao s1stema caractenst1co dos processos primários. Ou
seja, o pensamento tende a romper seus elos com a realidade e a refor-
çar suas ligações com os processos que estruturam as leis do incons-
ciente, do imaginário, ou qualquer outro nome que se prefira.
_ Recorrendo, novamente, a Piera Aulagnier, diríamos que esta fi-
ilação do p~nsamento ao sistema dos processos primários não se dá. é
cl~~o, gratut~amente. Como mostra e:'ta autora, o sujeito impelido a
ut1hzar este tipo de defCia procura fug1r à "prova da dúvida", que sur-
ge do confronto com o pensamento de outro sujeito. Neste ronfronto,
as ••verdades.. n~rcisicas enunciadas snbre sua própria identidade po-
d~ ser contraditas, levando-o à experiência do sofrimento. Contudo,
ev1tando o desprazer de duvidar e de ver infirmados seus enunciados
de verdade, o sujeito também impede seu ingresso no terreno das riva-
lidades e acordos que fonnam as "verdades partilhadas" por seus pa-
res, base do oonvívio humano e da sobrevivência cultural.
Esta ten~ência virtual à exclusão da ..prova da dúvida'' está pre-

113
sente em todo sujeito, dada a inclinação do psiquismo para evitar o
desprazer. Contudo, para que esta virtualidade se atualize é preciso:
a) que a "verdade" posta em dúvida atinja um aspecto nevr,lgico da
identidade do sujeito; b) que este encontre na realidade um outro su-
jeito com as condições necessárias para fazê-lo crer na ilusão de pensar
em liberdade, sem duvidar.
Defrontado com uma ou outra circunstância, ou, ainda, com as
duas simultaneamente, o sujeito é levado a abrir mão da arQuit~tura
dialógica do pensamento. E, conforme a dinâmica c a trajetória de sua
vida psíquica, isto pode ocorrer, basicamente, de duas maneiras.
Na primeira delas, o sujeito impermeabiliza o pensamento contra
a intrusão do pensamento do outro. Encerra, por assim dizer, a co-
municação com o ellterior. Vai buscar no mundo interno - sensações
flsicas, afetos e representações .. o aval para os enunciados de verdade
sobre sua identidade. Pensamos em alguns tipos de pensamento psicó-
tico ou mesmo no pensamento de alguns toxicômanos, em que a dúvi-
da sobre o que é pensado cessa de existir.
Na segunda, a direção do processo é como que invertida. o·sujei~
to pára de pensar autonomamente, conferindo a um outro o direito ar·
bitrário e onipotente de definir a verdade indubitável sobre sua identi-
dade. Esta possibilidade caracteriza o que Piera Aulagnier chamou de
"estado de alienação". ·
Acreditamos que este último fenômeno descreve satisfatoriamen-
te o que acontece com o pensamento do negro que ''perde a cor" e a
identidade negras. para ganhar a " alma branca" (artística., folclórica),
também definida pelo branco. Visando a evitar a dor, o negro desiste
de defender sua "verdade" contra a "verdade" da palavra branca. Ex-
purga de seu pensamento os itens relativos à questão da identidade
que ele poderia criar c outorga ao discurso do branoo o arbitrário po-
der de definir o que ele pode e deve pensar sobre si mesmo.
Todavia os entraves ao livre exercício do pensar podem ir mais
além. O sujeito, na tentativa de desfazer-se da identidade negra, disso-
cia a percepção de sua representação psfquica. Cria no sistema do pen·
sarnento um ponto cego, ativamente encarregado de dissipar os traÇos
das imagens e idéias constitutivas desta identidade.
Aproximamo-nos, nestes limites, de um fenômeno francamente
aparentado ao que conhecemos na clinica psicopatológica como aluci-
nação negativa. E. assim como acontece na psicopatologia, o emprego
desta defesa traz consigo conseqGências drásticas. O repúdio à identi-
dade persecutó ria, fundado na alucinação negativa, não consegue
manter-se ao longo do tempo. Dinimica e economicamente onerosa,
esta defesa provoca uma esp6cic de exaustão na capacidade de pensar.
A identidade negra, negativamente alucinada, pressiona as barreiras

114
erguidas contra sua irrupção no espaço psíquico reservado às repre- ·
sentações. O pensamento não resiste à tensão de continuar "represen-
tando-a em branco". Sua estrutura desmantela-se. Sua função de in-
térprete de percepções e moções, desejos e defesas, cai por terra. O su-
jeito como que desiste de encontrar escapatórias e negociar soluções.
A violência racista obtém seu máximo efeito.
Assistimos, então, à invasão catastrófica de afetos e representa-
ções sem nome ou sentido. com seus correlativos sentimentos de perda
da identidade e despersonalização: "Contavam que (quando era pe-
quena) falava muito sozinha, tinha amigos invisíveis, falava muito na
fren te do espelho; era uma sensação de me sentir, de me. reconhecer, de
identidade minha. Falava comigo mesma, me achava muito feia, me
identi licava como uma menina negra, diferente; não tinha nenhuma
men ina como eu. T odas as menin as tinham o cabelo liso, o nariz fino.
Minha mãe man dava eu botar pregador de roupa no nariz para fic ar
menos chato. Depois eu fui sentindo que aquele negócio de olhar no es·
pelho era uma coisa ruim. Um dia eu me percebi com medo de mim no
espelho! T ive uma crise de pavor. Foi terrível. Fiquei um tempo·gran·
de assim; não podia me olhar no espelho com medo de reviver aquela
sensação." ·
O nada, o vazio, tecido no lugar da rep resentação da identidade
negra, é subitamente preenchido. A identidade temida c: odiada emer-
ge como um corpo estranho que o pensamento, surpreendido em suas
lacunas, não sabe qualificar. Apó s ter sido recusada, melh<'f dito, alu-
cinada negativamente, volta à tona. Não com a "inquietante estranhe-
za" do retorno do recalcado mas com a tonaJidade afetiva e represen·
tacional própria do fato alucinatório. O pavor sentido foi o produto
de um pensamento que, momentaneamente, esvaiu-se, carregando, em
·sua derrocada, as defesas construídas contra o surgimento daqueJa
'identidade. ·
O percurso de vida desta pessoa recapitula; de maneira translúci-
da, o que poderia ser t<>mado por uma história prototípica da violenta-
ç.ão do negro pelo branco. É uma história psíquica onde são admira-
velmente resumidas as etapas de reação à violência, desde o momento
inicial da resi.stência ao instante final da rendição.
No começo, era o diálogo com o esp.e lho e com os interlocutores
imaginários. Imagem comovente da solidão do sujeito em face doam-
biente hostil. A entrevistada procura, sozinh a, garantir seu direito a
uma identidade passível de ser amada. No entanto, as reticências que
acompanham o processo já dão mostras da dúvida que ela tinha em in-
vestir amorosamente na imagem do corpo e no ideal de Ego negros.
Em seguida, vem o con fronto com o ideal de Ego branco da mãe e d a
realidade racista do seu meio social. Nasce, então, a dor e a tentativa

115
de forçar o espelho a reproduzir a imaaem branca desejada ou, em
.caso de impossibilidade, a opacificar-se, deixando de refletir a imagem
negra desprezada. Finalmente, o tour de force agônico representado
pela recusa em olhar o espelho que.- retratando o estertor do pensa-
mento, deixava passar, através das brechas das defesa~ a imagem cau-
telosamente mantida à distância.
A violência racista pode submeter o sujeito negro a uma situação
cuja desumanidade nos desarma e deixa perplelos. Seria di fiei I encon-
trar o adjetivo adequado para nomear esta odiosa fonna de opressão.
Mais diflcil ainda, talvez, é entender a flãcida omissão com que a teo-
ria psicanalitica tratou, até então, este assunto. Pensar que a psicanáli-
se brasileira, para falar do que nos compete, conviveu tanto tempo
com estes "crimes de paz", adotando uma atitude cúmplice ou com-
placente, ou, no melhor dos casos, indiferente, deve conduzir-nos a
uma outra questão: que psicanálise é esta? Que psicanalistas somos
nós'?
De Reich, todos conhe<;emos a exortação que se tomou quase um
sim bolo de alerta contra a alienação: "Escuta, Zé Ninguém!" De Fa-
non, tar.tbém conhecemos a mensagem vigorosa, emitida no mesmo
diapasão: "Escuta, branco!" Deste trabalho parece surgir, agora, um
· apelo de timbre idêntico: ..Escuta, psicanalista! Presta atenção· a estas
voze$ que a autora nos fez ouvir. Ela nos mostra o que fomos incapa-
zes de ver. Seus olhos, como disse: Genet de Jackson, 'são claros. Eu
disse claros e nio azuis'".

116
Sobre a Geração Af·S:
Violência e Narcisismo

No conto "Os sobreviventes", de Caio Fernando Abreu, lemos a


certa altura: ..... éramos diferentes, ai, como éramos diferentes éramos
melhores. éramos mais, éramos superiores, éramos escolhidos: éramos.
v~gamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos
nao endureceram e o teu pau não levantou, cultura demais ·m ata o cor-
po da genté, cara, filmes demais, livros demais, só consegui te possuir
me masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos
corpos, enfiava fundo o dedo na boceta, noite após noite, pedindo
mete fundo, coração, explode junto comigo, depois virava de bruços e
chorava no travesseiro porqúe naquele tempo ainda tinha culpa, nojo,
ver~onh~. mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta."'
Mat~ ~~• a nte,_pros~gue o personagem: "Já Ji tudo, cara, já tentei ma-
cro~tottca ,. pstcanáhse, drogas, acupuntura, suicfdio, ioga, dança, na-
tacao, . cooper, astrologia, patins, marxismo, caqdomblé, boate gay,
ccolog1a, ~obrou só esse nó no peito, agora o que faço?m Enfim, encer-
ra o monologo: ..Te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não im-
porta o quê, .c omo aquela fé que a gente teve um dia, me deseja tam-

I. ABR EU, Caio Fernandes, Moranaos Mofados, 2•. ed .• Sio Paulo, Bnwücme.
19112. pg. 14. .
2. lbid. p. 15

117
bém uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me
faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de no-
vo ... "J
Em outra obra de ficção· recente, Tonto faz, de Reinaldo Moraes,
é dito num certo trecho: "Estou atrás de Sabine. Ela fala me olhando
direto nos olhos, pegando na minha mão, sem perceber que estou, Aa
verdade, atrás dela, no grànde espelho onde me contemplo."• Logo em
seguida, continua o personagem: "Me acho bonito triste assim no es-
pelho. Minhas mãos brancas, meus dedos longos. Meus olhos escuros
atrás de duas mechas de cabelo que me cobrem parcialmente a testa.
Sabine cochila. Ele no espelho continua me seduzindo com esses olhos
escuros." 5 Pouco antes, este mesmo personagem pensava: "Matutan-
do. A cidade está fora do meu quarto, mas eu estou dentro da cidade.
Dentro e fora. A hierarquia sensfvel da realidade é a seguinte: primeiro
meu quarto, depois a cidade lá fora. Aí vêm o pais e o mundo. O país e
o mundo são notícias impressas no jornal intacto jogado no chão. Um
gole descuidado de cerveja faz um frio gelado lhe escorrer pelo canto
da boca e pingar no peito peludo. Corrige-se: primeiro meu corpo. De-
pois o quarto, a cidade, o pais, o mundo.''• .
Os heróis, todos jovens, habitam um mundo de descrença; cinis-
mo e perplexidade. Parecem convencidos de que a história perdeu o
prumo e a terra está devastada, povoada pelos homens ocos. Compla-
centes ou cruéis com os próprios sofrimentos, comprazem-se em dar a
cada palavra um ar de ponto final. Contemplam o caos e sobrevivem à
espera da ''coisa maravilhosa". Mas, enquanto o milagre não surge,
concentram-se no próximo orgasmo e no próximo "barato''. Céticos
em relação a tudo, parecem buscar no corpo e no prazer que dele po-
dem extrair o que lhes resta do sentimento de identidade histórica e
pessoal. É como se o "penso logo eKisto" tivesse sido substituído pelo
"gozo, logo sou".
·Ficção ou documentário? É dificil responder. ''Primeiro meu cor-
po. Depois o quarto, a cidade, o país, o mundo" é um achado literário,
ficcional. Mas poderia ser o resumo de uma certa concepção de mun-
do disseminada nas grandes cidades brasileiras. Esta cosmovisão, com
matizes diversos, é, hoje em dia, partilhada por uma numerosa faixa
6

de população urbana, sócio-economicamente privílegiada. Natural-

3. lbid. p. 17
4. MORAES, Reinaldo, Tanto Faz, 2• ed., São paulo, Brasiliense, 1982, p. 9.
5. lbid. .
6. lbid. p. !I

118
mente, os in~ivid_uos que a elaboram não interpretam s.eus comporta-
mentos c asprraçoe-; como parte integrante de um mesmo modo de vi-
ver <~s r~l ações, soci:~is. ~s v.ariações deste ethos apresentam uma poli-
morha rrrcdutrvel. a pnmerra vista, a um denominador comum.
Num extremo da escala, temos aqueles que justificam suas condu-
tas ~omo liberadas e revolucionárias. Seus gestos e intenções são per-
~cbrdos como um não dado à repressiva moralidade burguesa e à
rgual.mente repressiva moral social apregoada pela esquerda marxista,
polltrcamente o.rtodoxa e conservadora. to pólo vanguardista e inte-
le~tual do m~wrmento, que ~em suas bases no estrato formado pelas
elrtes cultura•s. No outro extremo, encontra-se a variante terra- ;a ter-
r~ do fenômeno. Neste nível, a preocupação com o corpo não tem em
vrsta nenhuma critica à totalidade dos valores socialmente estabeleci-
d.?s. A j~stífi_cativa do modo de vida aceito fundamenta-se na repeti·
çao dos Jargoes em voga nos meios de comunicação de massa. Todo
indivíduo, diz-se, deve defender sua saúde e bem-estar, cada dia mais
ameaçados pelos desgastes da vida moderna. Feita esta constatação,
ar~umentos médicos, ecológicos e psicológicos justapõem-se num mo-
sarco de razões que visam, em última instância, a reforçar a velha re-
presentação do munqo como uma selva. onde cada um tem de lutar
como pode para sobreviver.
. Entr~. '?s dois ~ipos, desdobra-se uma variadíssima série de tipos
mte~me~mrms. A hnha que vai do mais utópico e libertário ao mais
conformista e conservador é praticamente ilimitada em sua gradação.
Não obstante a diversidade, é possível esboçar o perfil esquemático
deste "tipo urbano ideal".
Em linhas gerais, este indivíduo é um indivíduo em trânsito. Ele
tem um pé no universo constituído pela herança da tradição cultural
hurguesa e outro no mundo de valores citadinos, que tende a tornar-se
h~~cmôni~?· O prim~iro universo é formado pelo tríplice eixo da reli-
gwo, .fcmulta e propnedade, com seu corolário que é a ..dignidade do
trabalho livre". Este trinômio ético é visto como ultrapassado edemo-
d~- p~r uns, repressivo e reacionário, por outros. No segundo, a reli-
~m~ ~ contr.aposta à ideologia do bem-estar fisico-psicossexual, a ética
lam1har ant1ga. ao dúcurso técnico sobre a normalidade das relações en-
tre o.~ nu•mhro.~ dajàmí/ia, e a ética do trabalho, à compulsão ao con.tu-
mo .mpérflrm. ·
. Esto.t oposição termo a termo dos elementos pertencentes aos dois
um versos não esgota. é óbvio, a com pie:~~ idade das interações culturais
realmente existentes. Os itens mencionados não são fenômenos sim-
ples, indecomponíveis em suas feições sociais. A morfologia familiar,
religiosa e da divisão do trabalho em sociedades simbolicamente plu-
rais. por si só. excluem qualquer pretensão tipificadora de caráter uni-

I 19
dimensiona l. De modo que a formalização proposta só é pertinente em
função do problema específico que pensamos analisar. Sob este aspec-
to, acreditamos que a generalização feita é plausível e corresponde a
observação do fato social.
Apresentada esta ressalva, passemos ao essencial. Neste ensaio
procuraremos estudar as relações existentes entre o surgimento deste
novo universo de valores e a criação de novos hábitos psfquicos indivi-
, duais. Em primeiro lugar, mostrando como a moral urbana moderna é
indiridlltH't'tllrada e como ela se distingue da velha moral individualis-
ta. pela ênfase posta no bem-e.Har corporal, Em segundo lugar, mos-
lrundo como este recentramento corpóreo do individualismo repercu-
te penosamente no psiquismo do sujeito, levando-o compulsoriamente
u recorrer cada vez mais a agências de controle e manutenção da iden-
tidade pessoal. ·
Na análise do primeiro aspecto vamos utilizar, basicamente, as
contribuições de três autores interessados no tema, e na do segundo
as pecto, o refer.e ncial teórico da psicanálise.

I - Luciano Martins e a Geração A/-5


Luciano Martins foi o primeiro autor brasileiro a propor uma in-
terpretação de conj unto desttt nova ideologia urbana, no contexto da
reulidade nacional. Em seu trabalho sobre a Geração A 1-5 ele argu-
menta que o novo individualismo urbano, dos grupos privilegiados, é
um produto do regime de exceção surgido em 64 e cujo arbítrio se exa-
cerba a partir de 68.' Para Luciano Martins o quadro político-
econômico pós-6t( difundiu no país, ao lado da prática policial explici-
tamente repressiva, uma "cultura autoritária que \:'eio preencher o lu-
gar do discurso manifestamente autoritário, dos totalitarismos dos
anos 30". Esta cultura aparece no cotidiano através da censura à liber-
dude de expressão. da violência impune aos direitos do cidadão, da ar-
rogância burocrática, do monopólio tecnocrático das decisões sobre o
destino da sociedade, etc. · ·
A conseqüência mais visível e brutal desta situação política foi a
supcrexploraçào econômica dos trabalhadores e o desrespeito aos di-
reitos individ~ais, em nome da ideologia da segurança nacional. Mas,
além destas repercussões gritantes, o autoritarismo políti<:o atingiu o
indivíduo de maneira mais daninha quando subtraiu-lhe a condição de
"sujeito da própria história" . Condição que, para o autor, cedo ou tar-

7. MARTINS. Luciano. A Gcraçio AI-S, in, Ensaios de Opinião. Rio, Paz c Terra,
1979, vol. li, pp. 72-103.

llO
de, tende a ressurgir e a recompor-se sob a forma incoercível de resis-
tênciu ao poder.
Entretanto, s~ o movimento em direção ao resgacc da condição de
sujeito é irreprimível, a forma pela qual ele se dá pode sofrer distor-
ç?es, comprometedoras dos objetivos desejados. Os indiv[duos, impe-
didos de exercerem a cidadania plena pela participação política, po-
dem desenvolver formas "reativa~" de oposição à cultura autoritá~ia
que, em vez de po-la em xeque, Simplesmente reproduzem-na em ou-
tra clave. A Geração Al-5 é um ellemplo tipico deste modo historica-
mente equivocado de resistência à opressão. Os jovens desta geração,
em suu ma ioria pertencentes às elites urbanas, procurando recuperar a
· CQndiç-;io de sujeito que lhes foi seqüestrada, assumiram uma ideologia
subjetivista, grotesco simulacro da subjetividade perdida.
Os sintomas nagrantes deste subjetivismo seriam o culto da droga,
a desarticulação do diuur.~o e o modismo psicanalítico. Estes fenômenos
mostr.ari~m como o ímpeto para a liberdade pode ser pervertido pelo
~ut?~Jtansmo. s.em ter acesso à lógica politica do mal que os aflige, os
mdJvtduos termmam por lançar mão de um remédio que cronifica c:
agrava a doença. A suposta solução encontrada nada mais seria que:
um novo modo de alienação. A evasão através da droga, a conversão ·
de connitos so.ciais em dilemas pessoais por meio da psicanálise e a
c r i~ção de um a linguagem despida de conteúdos voltados para a ação ·
soc1al prolongaram e reforçaram a cultura autoritária, dt:smobilizan-
do a .atividade política capaz de combatê-la.
. . ~ste tmv~ res~mo das teses de Luciano Martins não faz:iustiça à
lcrtthdade de tntUições presente no texto . Todavia, diante do nosso
objetivo. é suficiente constatar que as premissas da análise e sua clarn
rinal.idade polêmico-política (o texto, publicado em 79, é um libelo
conH:~ o regime ditato(ial e um elogio da ação política) deixaram em
nhcrto quc~tões sujeitas a revisões e aprofundamentos.
Em nossa opiniào, a primeira questão discutivel concerne à fili'a-
çiio direta e unilinear estabelecida entre o aotoritarismo polftico, como
c:tusa, e a ideo logia subjetivista, como efeito. Não negamos a cxistên-
CI<t de um nexo causal entre os dois fatos. Mas as condutas subjetivis-
tas d~scr!tas não são privilégio de sociedades regidas por padrões de
autontansmo semelhantes ao padrão brasileiro. Nas sociedades libe-
ral-democráticas européias e norte-americanas o fenõmeno também
l'ni assi nalado e. o que é mai s importante, ellplicado através de coorde·
n:tdas sodnis sem relação com o autoritarismo ditatorial .
O rcgí me autoritário-militar pode ter dado um colorido especial à
ideologia subjetivista no Brasil. Porém esta provável marca registrada
na~ional mio é dedutível da interpretação levantada pelo autor. Isto
implica em considerar o .problema lev~ndo em conta outras vincula-

121
ções lógicas ou mediações causais entre os fatos sociais e as condutas
individuais, ausentes no estudo de Luciano Martins . f: o que tentare-
mos fazer, mais adiante, expondo as idéias de outros autores.
!::> A segunda questão ê mais intrincada. Ela pressupõe, de certa for-
ma, a primeira, e nos introduz diretamente no campo específico de
nosso interesse, qual seja, o do impacto da norma moral na dinâmica
intrapsíquica.
Este aspecto do problema concentrará nossa atenção, e a alusão
de Luciano Martins do modismo psicanalítico oferece um bom ponto
de partida para desenvolver o assunto. Vejamos como o autor expõe
sua visão do fenômeno.
Em poucas palavras, o modismo psicanalítico é visto no trabalho
como uma contrafação da psicanálise. Isto quer dizer que, esta última,
enquanto corpo de conhecimentos científicos, obriga-se a definir seus
objetos, métodos e objetivos de maneira tão clara quanto possível, po·
dendo, por isso mesmo, ser refutada ou confirmada em suas asserções.
Numa psicanálise que respeita o protocolo científico, teoria e prática
articulam-se de forma coerente e ganham objetividade social não só
através do exercício clínico mas também da produção intelectual, ma·
terializada em publicações específicas . Este último traço da objetivida-
de social da psicanálise é importante. f: por meio da produção intelec-
tual visível que a psicanálise leva ao conhecimento público o que vem
.,: · ~ndo feito e pensado por seus profissionais. Sem uma atividade inte·
lectual desta ordem, a ciência psicanalítica furta-se ao diálogo conven-
cional da comunidade cultural e encastela-se num suspeito silêncio
sobre o que faz, indica tivo do receio de submeter-se a criticas.
O modismo psicanalítico é <J justo oposto deste procedimento
científico. A psicanálise servida e devorada pela Geração Al-5 é uma
psicanálise incapaz de justificar-se teoricamente. Os psicanalistas, ape-
sar do prestígio que gozam, não se preocupam em legitimar suas práti-
cas, a não ser dentro de suas próprias instituições e nos termos que me·
lhor lhes convém. A comunidade científico-cultural como um todo é
privada de qualquer informação que mostre como funciona uma psi:.
canálise que parece fazer do segredo da seita oculta a chave de seu su-
cesso social.
Mais grave ainda, por incompetência ou irresponsabilidade
científica, os psicanalistas desconhecem ou fingem desconhecer qual-
quer critério definidor dos limites e propriedades terapêuticos da disci-.
plina que exercem. Com isto, não apenas demitem-se de uma função
que lhes cabe, como devolvem à clientela a tarefa de dizer quem, como·
e por que se deve procurar um tratamento psicanalítico. À indiscrimi-
nada demanda de análise provocada pelo modismo ideológico, o psi-

122
canalista responde com um indi.scriminado sim, cujo único freio é o
volume do .bolso do cliente ou o espaço de sua própria agenda .
A rigor, diz o autor, o analista teria a obrigação ética de saber que
razões indicam ou contra-indicam um tratamento psicana lítico. Pois,
das duas, uma: ou estas razões eltistem e a psicanálise, definindo seu
alcance, afirma-se como uma teoria científica, ou estas razões não
bistem e a psicanálise revela seu caráter de panacéia ideológica fanta-
siada de ciência. O autor opta pQr acreditar n~ . primeira hipótese e a
imputar ao quadro psicanalftico brasileiro a responsabilidade pela
inépcia em distinguir o que é ou não uma verdadeira indicação de tra-
tamento psicanalítico. Sem entrar em detalhes quanto às restrições te-
rapêuticas feitas com base nas classificações nosológicas, ele afirma
que pelo menos uma grande distinção deveria ser feita: o psicanalist~
teria que .t er a Ç.QtnPetência necessária para discernir o que são distúr-
bios psicopatológicos de osigem pessoal e idiossincrática e o que ~ª-o
problemas emocionais derivados de conflitos sociais~ Sem esta distin-
ção, a psicanálise, inevitavelmente, se transforma numa mera modali-
dade de consultório sentimental, dirigida aos ricos e à classe média. A
melhor prova é o modismo psicanalltico. .
Este raciocinio, a nosso ver, peca pelas premissas de que parte. O
modismo psicanalítico, tão bem descrito por Luciano Martins. não é o
. lado escuro e abastardado da psicanálise científica, nem a ela se opõe,
segundo a dicotomia ideologia x ciência. Esta premissa, implícita nos
julgamentos do autor, não encontra respaldo na realidade histórica. O
recurso massificado à psicanálise como forma de solucionar conflitos
morais pode perfeitamente proliferar em locais onde a teoria psicanalf·
tica mostra-se refinadamente conseqüente em seus postulados cientffi.
cos.
A França de Lagache, Lacan,. Laplanche, Pontalis, Viderman,
Piera Aulagnier e tantos outros teóricos de peso possui uma psicanáli·
se extremamente sofisticada em sua elaboração científica. Isto não im-
pediu~que o modismo psicanalftico, em sua versão gaulesa, caminhasse
ombro a ombro com sua suposta arquiinimiga, a ciência. Pelo contrá·
rio, o que mostram Foucault', Casteli e Donzelot10 , para citar apenas
os nomes mais conhecidos do leitor brasileiro, é que naquele caso ciên-
cia psicanalítica e modismo ideológico nutrjram·se reciprocamente de
seus efeitos sociais.

11. FOUCAULT, Michel, História da sexualidade, 2• ed., Rio Graal, 1979.


9. CASTEL. Robert, O Psicanalismo, Rio Graal, 1978.
10. OONZELOT. Jacques. A politica das famílias, Rio, Graal, 1980.

123
Do mesmo modo, nos Estados Unidos de Kohut, Searles, Kern·
berg, Bettelheim, etc., a gula psicanalítica atingiu proporções e carac-
terísticas absolutamente idênticas ao fenômeno brasileiro, sem que a
produção científica tivesse a menor condição de contê-la. Nos Estados
Unidos como na França, o melho da psicanálise alimentou o pior dQ
psicanalismo, como comprovam os estudos de Berger11 , Szaszl 2 e Sher-
ry TurkleL'.
Não queremos com estes argumentos questionar a validade epis-
temológica da distinção ciêncía x ideologia. Esta discussão escapa a
nossa competência e a nossos propósitos. Pretendemos apenas de-
monstrar que o modismo psicanalítico não é o negativo ideológico da
científica psicanálise. Ele é um fenômeno com uma positividade pró-
pria, regido por leis que independem dii vigência ou não de uma práti-
ca psicanalítica científica.
\.. O cerne da questão não consiste em explicar o modismo como .
corruptela da ciência. E, a bem da verdade, não foi esta a tônica inicial
dada pelo autor ao estudo. A innexão do argumento neste último sen-
tido surgiu como um complemento expliçativo, destinado a resguardar
a credibilidade do conhecimento psicanalítico contra suas deturpa-
ções. O desvio, no entanto, revelou uma faceta da questão insuficiente-
mente analisada e que reputamos importante aprofundar.
Observando o panqrama psicanalítico brasileiro, Luciano Mar·
tins sublinha, com justeza, a ausência de uma produção teóriç_a..a.utóc-
tone, ilustrativa de sua pobreza científica e de sua riqueza ideológica.
Todavia, acreditamos que a referência à ciência, embora apagada da
superfície, jamais deixou de agir nas profundezas do modismo psica-
nalítico. O que ocorre de fato é que o próprio saber psicanalítico di fi.
culta esta "regionalização" , dados os seus postulados. Se os psicana-
. listas brasileiros não teorizam a psicanálise que praticam, isto se deve
apenas em parte à inércia mental gerada pelo conforto econômico. No
atacado, a inexistência de uma produção teórica nacional deve-se à
crença no pressuposto da universalidade das estruturas elementares do
psiquismo.
Tal pressuposto não é uma invenção brasileira. Ele encontra-se

11. BERGER, Pcter, Pua umll compreensão sociológica da psicanálise, in, Psicanálise
e Ciências Sociais. ors. Sérvulo Fj.sueira, Rio, Francisco Alva, 1980, pp. 11 -27.
12. SZASZ. Thomas J. Thc manufacture of madness. N. Y., Delta Book, 1970.

. Ideologia e doença mental. Rio, Zahar, 1977.


13. TURKLE. Sherry. Psychonalylic Politics,- Freud's Frcncll Revolution, London.
Burnell Books. limitcd. 19711.

124
plantado no coração da psicanálise, desde que a metapsicologia de
Freud passou a ser vista como o protótipo de uma lógica ou de uma
ontologia do inconsciente e não como uma teoria construída para dar
conta da vida psicológica de sujeitos históricos. Este movimento de caça
aos invariantes psfquicos redundou, em certos meios, numa verdadeira
cadaverizaçâo formalista da psicanálise, cada. vez mais voltada para
uma pseudo-interrogação metafisica sobre a essência do homem e
cada vez mais cega diante da realidade humana à sua volta.
Ora, se todos são iguais perante o f:dipo, tanto faz pensar a psica- .
nálise por conta própria quanto comprá-la pronta, no mercado de
idéias. Como comprar é sempre mais fácil que fabricar (quando se tem
dinheiro), os profissionais brasileiros, com uma boa dose de pragma·
tismo responsável, preferiram importar a mercadoria européia, de
qualidade comprovadamente cientffica.
A ciência, por conseguinte:, não estava ausente ou desatenta quan·
.d o o modismo ideológico invadiu seu território. Ela estava lá, presente
e vigilante, representando a .. universalidade do psiquismo" francesa,
inglesa, norte-americana ou alemã. Por isto, não foi notada pelo críti-
co que, cheio de boa vontade, acreditou que a psicanálise nacional já
detivesse o know-how suficiente: para criar uma "universalidade psiqui-
ca" em português.
Para evitar mal-entendidos, diga-se de: imediato que a "universali:-
dade psíquica" criticada nada tem a ver com a necessidade: que tem a
teoria de postular leis genéricas do funcionamento psíquico. Toda teo-
. ria, como demonstra Ryan, necessita de "generalizações que atuem
como leis abrangentes em relação aos eventos particulares que precisa-
mos explicar". 14 Quando criticamos este postulado, que se tornou um
' preconceito, por um lado pensamos no etnocentrismo de certas teorias
que não conseguem imaginar que o "Homem", cuja psicologia preten-
dem explicar, é uma realidade mutável, em função da diversidade his-
tórico-cultural. Por outro, queremos reafirmar que as ações humanas
são ações significativas e o significado, como diz Winch, "não é uma
categoria aberta à análise causal." u As lei~ do comportamento huma-
no são leis explicativas baseadas em razões e interesses ou, de maneira
. mais gçral,·são leis em. que as seqüências causais não podem ser enten-
, didas como conexões.de çausa e efeito mas como conexão de significa-
: do. Isto implica dizer que, na medida em que a teoria psicológica re-
: corre à razão c não a causas para explicar os fato~ ela entre obrigato-

14. RY AN, Alan, Filosofia das ciências sociais, Rio, Francisco Alves, 1977, p. IS3 .
15. WINCH. P. G. The ldea of a Social Sciencc, citado por Ryan. A. ibid. 178.

125
riamente no terreno de valores e ver-se-á lidando com problemas de é-
tica ou moral. Assim sendo, é imp~ssível dissociar a psicanálise dos
contextos sociais onde ela se exerce, alegando que a estrutura, sistema
ou cadeia de elementos mínimos que compõem o psiquismo são "uni-
versais" . .
Como quer que seja, a psicanálise cientlfica é menos imaculada
do que pensa Luciano Martins. E por apostar em virtudes que a psica-
nálise não tem é que exige um a outra tarefa hercúlea do psicanalista
brasileiro, qual seja, a de distinguir a demanda psicanalítica apropriada
d~ demanda artificialmenre criada pela deformação social.
Retomem os o problema conforme os termos do autor. A deman-
da apropriada e legitima seria aquela motivada pelo sofrimento de ca-
ráter psicopatológico, enquanto que a artificial seria motivada pela
operação ideológica que transforma problemas sociais do individuo
em conflitos pessoais.
Se decompusermos esta questão, vamos encontrar três elementos
que merecem ser estudados separadamente, a fim de facilitar a com-
preensão da análise. O primeiro, é o da legitimidade ou não da deman-
da de tratamento, conforme o critério proposto pelo autor. Este ele-
mento dispensa maiores comentários, pois é sobejamente sabido que a
psicanálise (como aliás a psiquiatria e a própria medicina orgânica)ja-
tlJais consen ti u em restringir sua aplicação terapêutica aos casos psico-
,. patológicos. Como toda terapêutica científica moderna, a psicanálise
nasceu comprometida com objetivos sociais mais amplos que a cura de
doentes. A história da família, da educação e da moralização do com-
portamento público das massas e das elites mostra como a medici na, a
psiquiatria e a psicanálise fun cionaram como dispositivos 4isciplinares
imprescindíveis à ordenação da sociedade industrial, capitalista ou
burguesa, como se prefira. Nunca houve, portanto, este momento ori-
ginário, on de a razão pura da ciência jurou fidelidade a seu objeto,
' desprezando o concubinato com o poder. Esta ficção já viveu sua Ida-
de de Ouro. Hoje, tem seus dias contados.
O segundo elemento é mais complexo, mas também retira da psi·
canálise brasileira o demérito de ser a única incapaz de distinguir entre
um sofrimento psicopatológico e um outro de origem social, converti·
· do em problema individual. Foi a psican álise cientifica, proveniente
dos grandes centros produtores de saber, a primeira a defender o espe-
cioso raciocí nio de que não existe diferença qualitativa entre o norm al
e o pa tológico. Mesmo entre as mentes mais lúcidas, a começar por
1-'reud em <~lgu m as partes de sua obra, este argumento é freqUentemen-
te encontrado. A confusão entre continuidade e homogeneidade é moe-
da corrente na literatura psicanalítica mundial. Não obstante a contra-
prova oferecida pdo conj unto da obra de Freud, não obstante as ma-

126
gistrais dem onstrações de Lacao feitas a este propósito'•. boa parte
dos psicanalistas ainda não consegue entender ou admitir qu.e "a conti·
nuidude de uma transição entre um estado e outro é perfeitamente
compatível com a heterogeneidade destes estados". 11
Esta alírmação de Canguilhem , notável em sua clareza, resume.
tudo o que poderia ser dito sobre o tema, da maneira mais simples e
.elegante possível. Ou seja, não precisamos admitir uma a/terídade ab·
soluta do universo psicopatológico em relação ao universo psicológico
p~ra entender que a linha de continuidade entre um processo psico16-
gtco e um processo psicopatológico não abole a diversidade dos extre-
mos desta cadeia. Com base nesta indistinção é que se costuma afir·
mar com uma ligeireza digna dos digestos psicanalíticos de revistas de
moda que "todo mundo é neurótico", que o delírio é um sonho acor-
dado, que a patologia do adulto é a repetição defasada de situações vi-
vidas normalmente na infância, etc.
Todas estas banalidades apóiam-se no argumento que afirma a
continuidade entre o psicológico e o psicopatológico. Porém distor-
~e'!l -no porqu: tornam homogêneos fatos heterogêneos. A mais super·
llctal observaçao mostra que, se "todo mundo é neurótico" , então ne-
c~ssitamos criar uma nova terminologia para designar o que é uma fo-
bia, uma obsessão, uma histeria, etc. Pois equiparar estas formas de
orga nização do vivido a toda e qualquer organização mental existente
é uma in verdade que a evidência empírica, a todo instante, demonstra.
Da mesma maneira. dizer que o delírio é uma forma de sonhar,
em.que o sonho é imposto à realidade, é uma mistificação lógica. Pri-
meiro, porque um sonho que se impõe à realidade já não é mais um so-
nho. A delíníção de sonho implica ou pressupõe a vigência do sentido
de realidade no ato de sonhar. Ninguém confunde o sonhar ac~rdado,
a revhie. com um delírio, justamente pelo modo como o sentido de
realidade localiza e restringe o espaço do sonho na consciência vígil,
atravé!i da predominância dos processos secundários. Segundo, por-
que este tipo de raciocínio define o psicopatológico como o negativo
do psi-cológico ou como um estado onde falta um componente presen-
te no funcion amento psíquico normal. O delírio seria um sonho ao
qual foi subtraído o sentido de realidade.

16. Ver. em especial, a rigorosa crítica feita por Lacan ao Reducionismo psicológico
das psicoses.
LACA N. Jacques. Le sémfnaire, livre 111 - Les psychoses. Paris, Seuil, 1981.
17. CANGUILHEM. Georges, le no rmal et le pathologique, 2• ed., Paris, PUF,
1972. p. 25.

127
. , Na verdade, não se conhece nenhum estado delirante onde o in-
d1v1duo tenh~ perdido o sentido de realidade, se por este termo enten-
de-se a capac1~ade ~e apreender o mundo, segundo as convenções da
cultura_ e as le~s lóg1cas do pensamento. O que acontece no delirio é
qu_e a h1erarqu1a dos pr~cess~s mentais na consciência é subvertida. Os
c~amados proc~ssos ~ramános, que comandam a realização imaginá-
r!a do deseJO, nao maas se submetem ao princípio de realidade e posi-
ceo~am-se ~orno uma nova realidade. Com Laplanche, diríamos que 0
delirante nao .s~fre de _uma falta mas de um excesso de realidade." 0
dra~a do deh~Jo cons1ste no esforço do sujeito em compatibilizar 0
s~nttdo de realidade ordenado e estabilizado pelos processos secundá-
nos~do pe~samento com_ o sentimento de realidade que emana da pro-
duçao delirante ou alucmatória:
. Este fenô~e.no, cuja dinâmica não importa no momento estudar,
e ~otal~ente _d1stmto do ~onh?, onde o sentido de realidade jamais per-
mite a mvasao. ~a conscaêncaa pelos processos primários.
A contrad1~ao observada nestes dois tópicos também pode ser no-
t~da na_afirmaçao de se~so co~~m psi~analitico que assimila a psico-
patologla d? adulto à ps1colog1a mfantll. Se a psicopatologia do adul-
to_na~a _ma1s fosse que~ reedição fora de tempo do desenvolvimento
pst~ol~g1co ~ormal da cr1ança, como poderíamos explicar a psicopato-
logea mfa~td? O que, _neste sis~ema simplista de causação patogênica,
antecederia o patol?g1co na cnança? A patologia dos país? ~possível.
~a.s, ne~te caso, ca1 po~ terra a_tes~ postulada, pois a origem do pato-
loglc~ na_o se encont~ana n_o ps1~olo~!co, mas em um outro patológico.
A craança_ no_rmal nao sena o pa1 do adulto patológico, que não
cresceu ps1qu1camente. O presente da patologia não é dedutível de um
passa?~ normal. mas de um passado já marcado pela distorção psico-
patolog•ca.
. Como se_vê. n~o é apena~ o modismo psicanalítico brasileiro que
1mp~de os ps1canahstas de dJ~ere.nciarem o normal do patológico e,
desta fo~~a, filtrarem, em me•_o a ~~manda, o legítimo do ilegítimo,
ter~peut!camente falando. A ps1canahse, apagando a fronteira entre os
doe~ fenomenos, term!?ou por _d~finir ,o i~divíduo passível de ser psica·
nahsado co~? sen~o todo ~u~e1to ps1qutco". E, a partir disto, ajusti·
ficar sua pratica cnando obJetivos adequados à teoria: "autoconheci-
ment~o", "acesso à verdade do EU", ou, o que é mais moderno...as-
sunçao da falta e da castração".

18. l.APLANCHE, Jean, Vie et mort en psychanalyse. Paris. l'l:unon:1rion. 1970. p.


105.

128
No entanto, poderíamos perguntar se não existem outras razões
para a aceitação desta irrefreada demanda terapêutica, além do modis-
mo ou das justificativas encontradas pela própria psicanálise. Esta
pergunta implica em discutir um terceiro aspecto da questão posta por
Luciano Martins, isto é, a transformação de problemas sociais em
conflitos individuais. Procuraremos mostrar que esta assertiva é teori-
camente insuficiente. por não definir as noções de conflitos sociais e
conflitos psíquicos de maneira conceitualmente· oportuna.
Em nosso entender, a impropriedade da questão nasce de uma de-
fin ição estreita do social, e de um a definição acadêm ica do psiquismo.
' No texto. o psiquismo aparece como uma mônada regida por leis
extrínsecas ao social· que, por sua vez, tem uma só face, a face política
propriamente dita. Partindo deste pressuposto, o autor postula à pos-
sibilidade ou a realidade da conversão do conflito político em conflito
individual.
No entanto, a alquimia do processo permanece obscura. Não fi-
camos sabendo o que catalisa a transformação de um fato de natureza
X em um fato de natureza Y. A água torna·se vinho, mas o "milagre"
da transformação não é demonstrado, é dado como evidente.
Acreditamos que a dificuldade desta demonstração é devida à im-
precisão da definição do social. O social é o político, mas não é só o
político. O social comporta inúmeras visões de mundo ou, como diz
Schutz, inúmeras "esferas delimitadas de sentidos" .19 Cada uma des-
tas esferas tem o seu estilo cognitivo particular (ao que acrescentamos
cogn itivo-afetivo) formados por categorias que são apreendidas (>elo
sujei!o como "reais" ou "quase-reais". A interpretação do ·social
como político e uma destas esferas, assim como o é a experiência do
social como psíquico. Todo psíquico é desde sempre social. Não faz
sentido opor uma noção à outra, como se fossem fenômenos irredutí-
veis entre si. Se o social pode tornar-se psíquico, na acepç~o dada à
idéia por Luci ano Martins. é porque elementos comuns permitem o
salto empírico-teórico entre os dois estados.
No entanto, o autor sintetizandc o social na figura do político
não permite a visibilidade do processo de mudança. Acontece que o
político é apenas uma esfera do social, ou seja, sua "esfera pública",
consoante a expressão forjada pele''> teóricos da Escnla de Frankfurt.
Nesta "esfera do públ ico", o sujeito vive sua exi'eriência do mundo

19. Ver. SCHUTZ. Alfred. Fenomenologia e ralaÇões sociais. Rio. Zahar, 1979.Ver
também . CAPALBO. Creus~. Metodologia das Ciências Sociais- A fenomenologia de
Alfred Schutz. Rio Edições Antares, 1979.

129
através da condição polftico-jurídica de cidadão e da condição P.Olítico-
econômica referente a seu modo de inserção na produção social, ambas
dialeticamente r.elacionadas.
O que Luciano Martins parece dizer a todo momento, a menos
que nos equivoquemos, é que os conflitos po/ítico-juridicos e político-
econômicos migram da órbita que lhes é própria e !localizam-se no psi-
quismo individual, sob a pressão da cultura autoritária e da ideologia
subjetivista que ela segrega. Como já notamos, a metamorfose torna-
se in inteligível, pois a passagem de uma esfera à ou.tra é descrita como
possível, sem que se mostre quais as 'condições dt: sua possibilidade.
A contraprova lógica deste argumento é, conforme dissemos, for-
necida pela impossibilidade de se pensar a transiçã·o de um para outro
universo a menos que a presença de elementos comuns aos dois favo-
reça o entendimento da conversibilidade. A contraJProva de fato acha-
se na setorização social do fenômeno analisado.
Explicitemos este último raciocfnio. Se a cultura autoritária aba-
teu-se sobre a sociedade brasileira como um todo, por que apenas a
zona sul do Rio de Janeiro ou seu equivalente nas o~tras grandes cida-
des (estrato sócio-demográfico estudado pelo autor) recorreu à ideolo-
gia subjetivista, como forma alienada de resistência à opressão? Mais
ainda:· se é apenas a privação dos direitos de cidadã:o ou a privação da
condição de sujeito da história que faz com que os indivíduos desarti·
culem seus discursos, abusem de drogas ou droguenn-se com psicanáli-
se, como explicar a ausência destes fenômenos junt•::> à imensa maioria
da população brasileira que sempre foi privada de sua cidadania e su-
perexplorada economicamente?
Esta parcela da elite é "mais alienada" que o ·rc:sto da população?
Porém, mesmo admitindo este a priori, por que a alienação manifes·
tar-se-ia como exacerbação do intimismo subjetivista e do culto ao
corpo? Além do que, afirmar que o subjetivismo tem sua origem no
autoritarismo moderno não significa desconhecer qiUe a visão do mun-
do construída a partir do indivíduo e de sua moralidade é um patrimô-
nio de cultura burguesa, desde que esta solidificou-se na cultura oci-
dental? E, no Brasil, pode-se dizer que no período a:nterior a 68 as eli-
tes possuíam uma visão não-subjetivista dos problemas políticos?
Finalmente, mesmo considerando improcedentes todas as obje-
ções anteriores, poderíamos repetir e de certo modo prolongar a ob-
servação feita por Sérvulo Figueira ao es.tudo de Robert Castel, sobre
o "psicanalismo" francês. 20 Neste estudo, Castel aproxima-se bastante

20. Ver CAST EL. Robcrt, op. cit.

130
do ponto de vista de Luciano Martins, quando afirma que a psicanáli-
se, no interior de sua teoria e de sua prática, despoütiza o real. remeten-
do-o a contlitos individuais privados. A observação de Sérvulo Figuei-
ra é a seguinte: "Quando se diz (Castel) que tal trabalho (o trabalho
psicanalítico) elide a problemática do poder e da objetividade, salta-se
do ponto de vista dos sujeitos-pacientes reais ou potenciais para o
ponto de vista do sociólogo que v~ o processo de fora. Para estes sujei-
tos, o 'privado' existe, enquanto a 'apolitização-privatizaçào' não exis-
te: quem diz que o privado é resultado de um processo de apolitização
que domina as sociedades industriais avançadas...é Castcl; quem diz.
que o privado é privado são os sujeitos. Para estes sujeitos, o polftico
existe sob a forma da awincía. Assim , dizer que a psicanálise neutrali-
za-privatiza, quando pensamos do ponto de vista de seus pacientes, é
chover no molhado ... " 21 ·
Mutatis mutandis; a reflexão poderia aplicar-se à interpretação
dada por Luciano Martins ao modismo psicanalltico. Com um aden-
do: enquanto que para o "tipo ideal" analisado por Sérvulo Figueira o
polltico existia sob a forma da au~ncia, entre muitos dos indivfduos
estudados por Luciano Martins o político estava presente. Quando
procuraram a psicanálise, estes individuas estavam plenamente cons-
cientes d~ que tratàmc:,nto psicanalítico não é nem nunca foi substituto
de ação política. E, o que é mais, muitos deles experimentaram e inter-
pretaram o processo psicanalítico como uma maneira de resolver con-
flitos pessoais, a fim de me/hor.desempenhanm s~ms atividades políticas.
Seriam eles a exceção que confirma a regra? Talvez. Mas isto é
uma maneira fácil de solucionar questões complexas. Pensamos que a
relação causal entre autoritarismo e subjetivismo deixa de lado media-
ções sociais imprescindíveis à compreensão do problema. Sem o apoio
destas mediações torna-se diflci) perceber por que vias o conflito poli-
tico pode ou não se tornar um conflito psicológico. Tal como foi colo-
cada. a interpretação da ideologia subjetivista mostra-se canhestra por
duas principais razões: I') por fazer do autoritarismo, um fenômeno p
nérico, a causa específica de um tcnômeno restrito, o subjetivismo; 2•)
por deixar inexplicado o surgimento do subjetivismo em sociedades li-
berais e por não apontar em que o subjetivismo de agora distingue-se
dos congêneres, de periodos históricos anteriores. Em outras palavras,.
a: e11plicação não convém a todo o explicado e não se aplica só a ele.
Diante dis.to, julgamos oponuno propor uma hipótese explicativa

21. FIGUEIRA, ~rvulo Auauato, O con~to IOCial da plican'liao, Rio, Francúco .


Alv~. 1981, p. 12. ·

131
que possa esclarecer parte das deficiências anotadas na expli~açâo pre-
ce~ent:; Vamos tom~r co~.o referência as noções de "esfera do públi-
co e esfera do pnvado , conforme a terminologia da Escola de
Fran~fur~. a fim ?e trazer à tona a mediação social imperceptível na
polanzaçao confl1to político x connito individual.
Para os teóricos de Frankfurt (em especial Adorno Horkheímer e
Ha?er'!las) ~ experiê~cia que os indivíduos têm do soei~!. no Ocidente
car,ttal~sta.• ~ apreend1da nesta dupla dimensão .u Na "esfera do públi-
: co . o ~n d!yl duo elabora.sua ".identidade pública", cujas regras de ma-
n~t.en~ao obedecem a le1s ma1s ou menos impessoais e, ·em principio,
val1d~s para todos. ~ ~ uni~erso da cidadania jurídica e da posição
eco.nom1ca e de prestlgto soc1al que o sujeito ocupa na hierarquia da
socJeda~e. N~. "esfera do privado", o individuo constrói sua "identi-
dade pn vada . que tem nos afetos e emoções ligados ao amor e ao
sexo as grandes coordenadas. É o universo da família e da casa, onde
.as regras de co~por.tan:tento e aspirações supostamente distanciam-se
das regras funcJOnaJs, Impessoais, do ..mundo de fora" .· ·
~ ~!aro que esta tipologia ideal da Escola de Frankfurt deixa de
lado mu~eras zonas fronteiriças entre as duas esferas e não considera
out~os um versos .. como o religioso, o artístico, etc., onde elementos or-
gamzadores das Identidades pública e privada interpenctram-se agin-
do em. u":l ~ u o utro sentído. 2' Mas, de modo geral. é possível afirmar
que ?.md1v1duo moderno vive essa cisão como verdadeira e é capaz de
mamlesta.r com.portamentos. e se~ti~entos absolutamente antagôni-
cos, :"a v1da pr1vada e na v1da pubhca. O homem de negócios ou 0
poli.tJco pode mostrar-se frio e impiedoso com seu concorrente, se-

~2. A biblio~r11.fia sobre este tema, dentro da chamada Eecol1 de Frantrurl, é extensís-
~·m a: Vam os. hr~utar-no~ a dar como referência as obru destes teóricos, mais facilmente
a mao do pubhco brasileiro.
HORKHEIM ER. Max e ADORNO. Theodor W., Temas básicos da Sociologia, 2•ed
~o paulo, Cultrix, 1978. .,
HORHEIMER, Max, sobre el c~ncepto del hombre y otros ensaios, 3• ed.• Buenos Ai-
res, SUR. 1970. .
HABER~AS, Jilergen . ~amí~ia b~rgu~ e a institücioiiJllizaçio de uma esfera pri·
!"
vada refend.a. à esfera pubhca, m, Dialética da FamUia. org. Massimo Canevacci São
Paulo, Brasthense, 1981, pp.226-234, ,
2~. Ana M a~ia Rib~iro ~outinho, ~m comunicação pessoal, observo u, com peMinen·
Cta, que esta dtcolo~ta
det~a de _lado múmeras atividades da vida pública que sãg instru-
mentos de elaboraçao da tden ttdade privada. Ela cita como cxtmplo, particularmente
oportuno
. d nosso
para . . estudo, .as chamadas profiSSÕeS " r-
noci" e, _ _,_ · • li das
~lila ocupaçocs ga
ao umverso as ~ecmcas de ajuda emocional. Nestas profissões, o individuo está cons-
!a~lementt exercitando no " mundo de fora" a consciencia de suas particularidades sub-
settvas.

132
guindo as regras que orientam sua conduta pública, ·e considerar-se
uma pessoa terna, carinhosa, solícita e amorosa, em virtude de sua ex~
periência como pai, marido, filho , amigo·, etc.
Procurando compreender o fato, Adorno e Horkheimer obser-
vam que "a consciência ingênua vê as relações privadas como uma ilha
situada em pleno nuxo.da dinâmica social, como um resíduo do estado
natural", quando, "na verdade, a família não só depende da realidade
social, em suas sucessivas concretizações históricas, mas também está
socialmente mediatizada. mesmo em sua estrutura Intima" .14
Qual seria esta "estrutura fntima" vista como um "resíduo does-
tado natural", pela "consciência ingênua"? Habermas dá uma·respos-
ta sucinta: "Ela (a família burguesa) aparece (à consciência de seus
membros e dos demais indivlduos) fundada voluntariamente e por in-
divíduos livres, de modo ·a se manter sem coerções; parece apoiar-se
sobre a duradoura comunidade de afetos dos dois cônjuges e assegurar
o desenvolvimento desinteressado de todas as capacidades que carac-
terizam a personalidade culta. Os três momentos- caráter voluntário,
comunidade de afetos e a educação- se articulam num conceito de hu-
manidade que.deve ser inerente aos homens como tais, e que é a única
coisa capaz de estabelecer verdadeiramente sua posição absoluta, ou
seja, a emancipação de qualquer espécie de finalidade exterior, uma in-
terioridade que se realiza segundo suas próprias leis, que emerge ainda
quando se fala do puro ou simplesmente humano."u Esta "emancipa-
ção de qualquer espécie de finalidade exterior" , esta "interioridade
que se realiza seg~ndo suas próprias leis", este humano puramente hu-
mano, d iz Habermas, em outro J?Onto de seu trabalho, é o que o in-
.div(duo vive e representa como sua eJJência psico/6gica.1'
Do que foi dito, podemos. então, inferir alguns raciocínios que
elucidam o problema do subjetivismo. Em primeiro lugar, inferimos
que um conflito político só se torna psicológico quando, de alguma
maneira, desestrutura a "esfera do privado". Não basta afirmar, por
e~emplo, que a famflia é UIJI aparelho ideológico de Estado, um dispo-
sitivo disciplinar ou uma instância de socialização primária para daf
deduzir a possibiliaade de uma transição direta do polftico para o psi-
cológico. Isto porque, na vida ordinária, uma das funções básicas da
famflia é j ustamente a de equipar o individuo com o instrumental ideo-
lógico capaz de dissociar, em sua consci~ncia, a origem social <:omum

,24. HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W., op. çit. p . l33.


25. HABE~MAS, JOerJett, op. àt. p. 229.
'26. Jbid. p. 221.

133
aos ~ois univer~~s. Em fa se de maior estabilidade cultural. as questões
pollttcas. confltttvas ou não, são mantidas à distância da "esfera do
privad? ' '. que co~_ti nua ancorada em seus pontos de fixação habituais.
• So ~or oca~ta~ de mudanças bruscas ou ao longo da lenta evolu-
çao. d~ vt~~ soc1al e que podemos perceber o desequilíbrio da "esfera
do mt1mo , provocado por mutações políticas. Ainda assim na cons-
ci~ncia dos indivíduos estas mutações do público que desest;uturam 0
pn~ado não a~ol~m. a referida dicotomia. A crise de estruturação do
tnttmo leva os md1v1duos a buscarem auxílio junto às instâncias man-
tenedoras da identidade privada já conhecidas ou a criarem novas
agências encarregadas de suprir esta mesma função. 2' •

Nos termos de Berger, diríamos que a "realidade psicológica''


abal a~ a . pela mudança na "estrutura social" tende a equilibrar-se
const•turn do uma nova "realidade psicológica". 2' O privado modifica-
se, mas sem perder seu caráter de privado.
. . ~ his_tó~ia das men~alidades e sentimentos no Ocidente greco-
JUda•co-cTJStao mostra ate que ponto a convicção nesta divisão do so-
cial é vivida como natural. Desde a Grécia Antiga, segundo' Hannah
Arendt 2v. passando pelo cristianismo católico e pela Reforma protes-
tante, segundo Marcuse}0 , o público e o privado contrapõem-se como
esferas autônomas de sentido.
O que parece mudar, no curso da história oéidental não é a exis-
tência desla cisão, mas o peso atribuído a cada uma das ~sferas na de-
finição do que é universal e essencialmente humano. Assim, pa;a Han-
nah Arendt, "o surgimento da cidade-estado significa que o homem
receb~ra", ~l~m de sua vida privada, "uma espécie de segunda vida, o
seu b10J poilltkos. Agora cada cidadão pertence a ·duas ordens de exis-
tê~cia_: e ~á. uma grande .diferença em sua vida entre aquilo que lhe é
propno (tdton) e o que e comum (koinon)." 31
. A esfera familiar do privado distinguia-se da esfera pública, a po-
lls, porque nela os homens viviam juntos compelidos por suas próprias
necessidades, donde a desigualdade entre senhores e escravos, homens

2!. Excluimos, naturalm~nce, dest.e raciodnlo as chamadas situações-limite, psjcolo·


g~camente fal~ndo. Estas SJtuações provocadas por catá1trofes naturais ou sociais tfm o
poder de desestrutu rar o sistema psicológico do individuo dissolvendo fronteiras entre
universos de sentido delimitado, construidos ao longo d~ socializaçil.o.
28. BERGER, Peter, op. cit. ·
29. AR ENDT, Hannah, A condição humana Rio Forensc-edusp - salamandra
19111 . • • •
30. . MA~CUSE, ~erbttl, Estudo sobre a autoridade c a família, in; Idéia sobre uma
teona crlttca d11 soc1edade, 2• ed., Rio , Zabar, 1981.
31. AR ENDT, Hannah, op. cit. p. 83.

134
e mulheres. Diante da necessidade, justificava-se o uso da força e da
vio lência, forma s pré-pollticas de convívio social. A "esfera dapolis",
pelo contrário. era a esfera da liberdade entre iguais . Aí, o homem rea-
lizava sua verdadeira universalidade, pois "ser livre significa ao mes-
mo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando
do outro, e também não comattdar". Não significava domínio, como
também não significava submissão.32
No cristianismo, segundo Marcuse, a separação entre "pessoa e
oficio" criou uma "dupla moral" que transferia a liberdade para a "es-
fer a íntima" da pessoa (reinado da igualdade e universalidade perante
Deus), ao mesmo tempo em que "consagrava a submissão do homem
exteri or ao sistema terreno". u
Como se observa, a oposição entre as duas visões de mundo não
exclui a divisão do social em público e privado. A idéia de uma identi-
dade íntima, construída segundo leis próprias diversas das que organi-
zam a identidade pública, absorve a mentalidade ocidental desde a an-
tiguidade grega.
Acreditamos que o relevo histórico deste fenômeno é de tal porte
que levou Michel Foucault a rever s ua teoria da normalização discipli-
nar e a admitir a presença em todo o Ocidente das chamadas "tecnolo-
gias do .se/f'. Estas tecnologias, segundo entendemos, seriam constitu-
tivas do que denominamos esfera do privado ou do íntimo. O ajusta-
mento e o controle dos corpos à ordem social teriam nas técnicas e dis-
positivos disciplinares apenas ~m dos instrumentos de normalização.
Paralelamente a este instrumental, cuja ação seria imposta de fora ao
indivíduo, ter-se-iam desenvolvido tecnologias da alma e do corpo
exercidas pelos próprios sujeitos, com a finalidade de produzir interio-
ridades ou identidades íntimas e com características peculiares a deter-
minados períodos históricos. ·
Vejamos como Michel Foucault, ele próprio, situa o problema: "I
wished to study those forms of understanding which the subject crea-
tes about himself. But since I started with this last type of problem, I
have been obliged to change my mind on several points. Let me intro·
duce a kind of auto-critique. It seems, according to some suggestions
o f Habermas, that one can distinguish three major types of teehnique:
the techniques which permit one to produce, to transform, to manipu-
late things; the techniques which permit one to use sígn ·systemas; and
finally, the techniques which permit one to determine the conduct of

32. lbid. p. 41.


33. MARCUSE, Herbert, op. cit. p. 60.

135
individuais, to impose certain ends or objectives. That isto say, techni-
ques of production, teçhniques of signification or communication, and
techniques of domination . But I became more and more aware that in
ai~ s~ci~t~es thcre is another type o f tc:chnique: techniques which per-
mil mdJvJduals to effect, by therc: own means, a certain number o f ope- ·
rations on their own bodies, their own souls, thcir own thougths, their
own condycts, and this in a manner so as to transform themselves mo-
dify. themselves. and to attain a certaim state of perfection, happlness,
punty. ~;upernatural power. Lc:t's callthese techniquc:s technologiies of
thc: self.
"I fone wants to analyse the genealogy of subject in )'P/.estern civili-
lation. one has to take into account, not only techniquc:s of domina-
tion. but also techniqucs of the self. 0ne has to show the interaction
between these types o f techniques. When I was studying asylums, pri-
sons and so on, I perhaps insisted too much on the techniqucs of dom i·
nation. What we call discip1ine is something really important in . thi~
k i nd o f institution . But is only one aspect ofthe art of govern people in
ou r societies. Having studied the field of power relations taking·techni-
ques of domination as a point of departure, I w'ould like, in the years·.
to come, to study power relations starting from the techniques of the
seif." ••
. Em resumo, a bipartição do social em esfera do público e esfera
d.o privado, uma vez instituída, tende a perpetuar-se através de agên-
Cias que reproduzem a distinção inicial. A transformação do político
em psicológico só é uma operação simples para a consciência analítica
do observador. Na consciência do sujeito observado, herdeiro da cul-
tural ocidental. a vida privada não é um artefato social supérfluo. Ela
é verdadeira, necessária e inconfundível com sua vida pública.
O psicológico moderno é uma extensão deste corte no social, sedi-
mentado atr~vés de séculos de cultura e sócialização. Não será, por-
tan~o. co~ uma palavra de ordem intelectual que esta situação poderá
ser mvert1da ou alterada. O que não quer dizer que ela seja irreversível.
Afirmar que um dado fenômeno é histórico significa dizer que ele é, de
certa maneira. arbitrário e, em conseqQência, passlvel de mudanças. O
que pretendemos demonstrar com esta discussão é que: o subjetivismo
da ~er.açào Al-5, longe de ser um fato social criado pelo autoritarismo
b.ras1le1ro con!e~p«?rânco, é uma mera variante da ideologia da priva·
c1dade ou da 10hm1dade, de longa data embutida nas sociedades oci-

34.. FOUCAULT. Míclu:l e SENNET, Ric:hard, Sexuality and solitude, in, London
Revtcw of Books. 21 May - l june, 1981 , p. S.

136
dentais. Interpretar de modo subjetivo o impacto da (.IOiítica ll<t vida
privada é uma prática milenar do homem do Ocidente.
Desta constatação, decorre o segundo racioclnio inferido da dis-
tinção nacional entre público e privado. A família burguesa e seu tra-
dicional correlato, a identidade privada do individuo, tomada como
essência de sua humanidade, sempre estruturou-se sobre os alicerces
da ideologia subjetivista. Na medida em que o indivíduo ignora as de-
termin ações sociais de sua realidade íntim a, privada ou psicol()gica,
ele está. sem sombra de dúvidas, imerso no subjetivismo denunciado
por Luciano Martins.
Por conseguinte, a mudança na percepção da vida social sofri·
da pela Geração Al -5 não se deu de um estado de percepção objetiva
dos conflitos políticos para um estado posterior de interpretação sub·
jetiva destes mesmos conflitos. Seria ingênuo ou falso afirmar que as
gerações anterio res a 68 ou mesmo a 64 possuíam uma visão política,
no sentido estrito. dos problemas sociais. É suficiente lembrar as ver-
sões moralistas que o indivíduo ordinário sempre deu, no Brasil, do
desemprego, da marginalidade e da miséria dos desfavorecidos, para
que possamos verificar o bem-fundado do que afirmamos. Visão sub-
jetiva de problemas sociais e subjetivização de problemas polfticos são
fe nômenos que antecederam, de muito, o surgimento da Geração Al-
5.
A nosso ver, o que acontece com a geração pós-68 é a passagem
de uma modalidade da ideologia subjetivista para outra. Indo direta-
mente ao assunto: o autoritarismo militar criou condições político-
econômicas que desestruturaram o núcleo da família burguesa e leva·
ram seus membras a redcfinirem suas identidades privadas, através de
instrumentos e instâncias até então inexistentes ou relegadas a segun-
do plano.
Esta hipótese é levantada por Sérvulo Figueira no comentáric
sobre o livro de Gilberto Velho, Individualismo e cultura.1' Rebatendo
o estudo deste autor sobre suas preocupações a respeito do hoom psi-
cologizante no Brasil, Sérvulo Figueira retoma e desenvolve neste tra-
balho as idéias lançadas em outro artigo de sua autoria: "Moderniza-
ção da fam ília e desorientação: uma das raízes do psicologismo no
Brasil-'"".
Em linhus gerais, a argumentação visa a descrever o processo de

35. FIGUEIRA, Sé:rvulo, Psicanálise e antropologia, exemplar folot:opiadó.


36. FIGUEIRA. Sérvulo, Modernização da família e desorientação: uma das raizes do'
psicologismo no Brasil, e~c~ plar fotocopiado.

137
transformação da família tradicional, hierarquizante, que, penetrada
pelas ideologias modernizadoras, tende a recompor-se como uma
f;.milia igualitária e individualizante: "O primeiro tipo, tradicional,
que. m~ntém laços significativos com o universo de parentes e .ampla
soctabtlidade, se transforma, sob o impacto de ideologias modernizan-
tes e através do processo de nuc/earização, no seglllndo tipo de família,
que opera como um indivíduo - coletivo (noção criada por Gilberto
Velho). Este segundo tipo caracteriza-se pela contração da sociabilida-
de. pela densificação e concentração das emoções dentro da família,
por maior controle de pais sobre filhos e pela o'rganização da vida
através de um projeto de ascensão social. Esta famíli a, que ·opêra
c?mo um indivíduo-coletivo, tem que, paradoxalmente, produzir in-
dtvíduos que dêem continuidade ao seu projeto de aumento de sucesso
e ~restígio . Mas os filhos, hedonistas vivendo sob o teto paterno. res-
pettam os valores de produtividade e ascensão do projeto familiar."J'
Neste último estágio, a familia igualitária est:i a um passo da de-
sorientação que vai caracterizar a família "desmapeada". Este passo
pode durar mais ou menos tempo. No Brasil ele Coi precipitado pelo
"fechamento político que acelerou a privatizaçãc:>, o isolamento da·
família. e devido ao 'milagre'(econômico) que abriu oportunidades de
ascensão social nunca antes expedmentadas, opotrtunídades que, ao
serem perseguidas, implicam ruptura com valores de classes. ".~~
Em síntese. "os filhos do milagre brasileiro" não são rebeldes sem
causa apenas porque foram privados da condição de sujeitos da histó·
ria. Se assim fosse, seus pais- burgueses- e, como já dissemos, a imen-
sa maioria da população brasileira, a ntes como agora, também teriam
sido levados a ostentar o mesmo comportamento que eles. O que sin-
gulariza socialmente a geração pós-68 é seu projeto' de vida hedonista e
seu meio familiar anónico, onde prevalecem princíp,ios idiossincráticos
de orientação social, baseados no "respeito'' à liberdade e ao desejo de
cada um . Como não pode haver consenso onde a exceção torna-sere-
gra. os indivíduos passam a buscar fora da família os meios necessá-
rios à definição do bom e do mau, do certo e do cmado. Proliferam ,
~ntã~. as agências criadoras de regras que, ao mesmo tempo , aj udam a
lamiha a "modernizar-se" e a "orientar-se socialmt•nte", em direção a
valores comuns. 1"
Esta interpretação, em nosso ponto de vista, 1tem a vantagem de
revelar a natureza do elo mediador específico entre o politico e o psi-

37. I'JGUEIRA. Sérvulo, Psicanálise c antropologia, op. cit. p. 8.


3K. FIGUEIRA. Sérvulo, Modernização da família ... op. cit. p. 9.
39. FIG UEJRA. SCrvulo, Psicanálise e antropologia, op. cit. p. 8.

138
cológico. A cultura autoritária que se reproduz atravês do abuso de
drogas, da desarticulação do discurso e do modismo psicanalftico nilo
assume esta fisionomia de maneira anárquica. Tampouco pode ser
tida como uma pura forma reativa e ocasional de resistência frustrada
ao poder político. As condutas sociais da Geração Al-5 não exprimem
apenas o desacerto dos que pretendiam dizer não à opressão e finda-
ram por tornar-se cúmplices inconscientes do que pensaram combater.
Estas condutas, reprodutoras do autoritarismo, representam princi-
palmente a conversão da família burguesa às ideologias do bem-estar
do corpo, do sexo e do psiquismo, tfpicas das sociedades de consumo.
O individuo da droga, da psicanálise e do discurso desarticulado é o
indivíduo que foi arrastado de supetão para a órbita da "moderniza-
ção" dos costumes, imposta ao pais pela concentração de renda e pela
política de industrialização de bens de consumo supérfluos. O autori-
tarismo polftico foi a alavanca deste atrelamento das individualidades
às regras do comércio c da indústria ditadas pelas economias capitalis-
tas desenvolvidas. Mas, como tentaremos demonstrar, a ideologia do
consumo não é necessariamente gestada s~b o tacão de botas, metra-
lhadoras, torturas, paralisação de atividades sindicais, fechamento de
congresso, corrupção burocrático-policial, etc. Ela pode desenvolver-
se sob a bandeira do liberalismo e do respeito dos direitos do homem,
como na Europa e na América do Norte.
O traÇo comum ao fenômeno do consumo não é a identidade en-
tre as formações políticas das sociedades responsáveis pelo seu surgi-
mento. Estas podem mostrar-se tanto liberais e democráticas quanto
autoritárias e ditatoriais. O traço comum, isto sim. foi bem observado
por ·Luciano Martins, é a reestruturação da vida mental dos sujeit?S,
no que concerne a suas identidades privadas. É sobre este remaneJa·
mento do psiquismo individual, subseqüente à crise de identidade inti-
ma e à desestruturação familiar, que pensamos rcnetir, tomando como
ponto de partida o trabalho de Lasch60, A cultura do narcisismo, c o de
Baudrillard, Sociedade de Consumo:•~
2 - Christopher Lasch e a personalidade narcfsica de nosso tempo
Os estudos de Lasch sobre o narcisismo das sociedades contcm-
por·àneas retomam a tradição de pensamento da Escola de Frankfurt.

40. LASCH, Christopher, The culture of narcissism, N. Y., Warncr Books Edition,
1970.
41. BAUDRI LLA RD, Jean. La soci~t~ de consommation, Paris, Gallimard, 1970.

139
Esta tradição pode ser resumida nas teses de Hab,ermas sobre A crise
de legitimação no capitalismo tardio, um de seus livros."1
Ne~te trabalho, Haberrnas sintetiza as preoc\Jipações de Adorno,
f-!.orkh.elmer, Marcus~ e ~~· Fromm da primeira ép•oca, quanto a rela-
çao eltiS_ten~e entre os mdlVIduos e o Estado representante das socieda-
des ~ap1tabstas a~a.?çadas. Ha~ermas argumenta •que no capitalismo
tardto as contradtçoes econômtcas foram deslocadas dos tradicionais
campos político e cultural . A economia é regulada cada vez mais pelo
~tado, t~rnando ~atentes os conflitos de classe segundo a clássica óp-
tica "!arx1sta: A~s1m com~ ~s contradições entre p•atrões e operários,
tambem ~ propna compet1ç~o entre empresários tcmde a ser regulada
pelo surgimento da econom1a do bem-estar, admi111istrada pelo Esta·
do.
O deslocam~nto da contradição, entretanto, n.ã o a elimina e é na
esfe~a da ~rópria ~dministração _que ela rc:ssurge. O planejamento dos
serv~ços pubhcos e ~~pre defictente, a v1da urbana degrada-se, a in-
flaçao torna-se endem1ca e o Estado vem a ser o foco da competição
entre ~rupos de poder. A resposta do sistema para a crise consiste na
ten~attva de racionalizar administrativamente todas as áreas da vida
soc1al ~orn_o a med.icina, a e~~cação, a família , o Jazer e a própria vida
comu~t!ána de. ba1rro ou v•zmhança. Desta forma, são minados anti·
gos cod1gos _legisladores. de .ins.tituíções, como os co:rpos profissionais,
e Mfraquec1das outras msutu1ções, como a família e a comunidade
~ ~s elt~ectativas, em face da possibilidade de pat1icipação poHtica·.
sao dtss?lv.•_d~s no ~u~o continuo de mercadorias e serviços, que tor-
nam os md1v1duos md1ferentes ao~ destinos da vida pública e exclusi-
vamente volta~os para um hedonismo privado, que gira em torno do
~nsum_o P.assJVo de bens materiais e outros. A ética do trabalho esva-
Zia-se d1ante d.as atividades rotinizadas, perdendo-se, no mesmo movi-
~~t?, o sent1do do sucesso e do esforço profissional. A imagem do
l~divl~uo autônomo, base da sociedade, segundo a. clássica visão do
hberahsmo ~urgU:ês, opacifica-se, diante da relação da produção de
massa e do gt~a~t1smo das g~andes corporações emp1resariais, dos apa-
rel~os burocrattcos dos parhdos e da administração estatal. Cria-se a
· "cnse de motivação" que, conforme Habermas, é um dos fatores res-

42. HABERMAS, Jtlergc:n, A aise de lqitimação no capitaliamoo tardio, Rio Ediçôel


Tempo Brasileiro, 1980. '
Ver também 11 interessante resenha crítica de Miller sobre: o livJ'o.
MILLER, James, Jllergen Habcnnas, Legitimation Cri.U, in, T,ela~, St. LouÍJ Telas.
Preu. ltd. 1975, nt ·25, Fali 1975, pp. 210-220. '

140
ponsáveis pelo mal-estar do indivíduo e pela decadência das socieda-
des contemporâneas.
Em função deste diagnóstico, os teóricos de Frankfurt passaram a
contestar a existência do indivíduo. como era antes concebido, na so-
ciedade moderna. E, pela tradição freudo-marxista tipica daquela es-
cola, iniciaram a revisão, pela crítica à noção de personalidade, criada
por Freud. Um exemplo desta démarche é dado por Marcuse.
No trabalho A ohsolescéncia da psicanáliu'.t, Marcuse busca pro-
var que o superego freudiano, nascido da identificação com a figura
do pai, enquar.to representante, por excelência, do princípio de reali-
dade. perdeu as características de instância primordial da lei, dadas as
transformações sofridas pela família na sociedade pós-industrial. Em
suas próprias palavras, "a subordinação das dimensões do ser, que
eram anteriormente privadas e anti-sociais (universo familiar) a uma
educação, manipulação e controle metódicos", por ag~ncias adminis-
trativas extrafamiliares, despiu o pai do papel privilegiado que ocupa·
va diante do filho, como modelo de realidade.
Ao declínio da au toridade paterna segue-se a obediência aos pa-
drões normativos impostos pelos meios de comunicação de massa, pe-
los grupos de pares, pelos. técnicos em educação, psicologia, etc. Ante·
riormente, a internal ização da norma social ocorria pela mediação da
figura paterna. donde a existência e a importância do superego, como
representante interiorizado da lei. Agora, o ego estrutura-se não em
conllito e posterior aquiescência às exigências do superego, mas dire-
tamente em contato com a realidade. O ego é assim mantido em cpndi-
ções ..regressivas'', similares àquelas experimentadas pelos componen-
tes da "massa". segundo o célebre estudo de Freud a PsicoloKia das
mana.\· e a11á/i.fe do EU.
Lasch retoma quase ponto por ponto cada uma destas teses, cor-
rigindo-as e ampliando-as conforme suas próprias intuições e observa-
ções . O primeiro a'porte de Lasch ao pensamento frankfurtiano con-
cerne a gênese histórica do fenômeno descrito. Enquanto que para os
teóricos alemães o riovo individuo era um produto da lenta e gradual
evolução do capitalismo, para Lasch, o obstetra desta gestação foram
os grupos de vanguarda radical dos anos 60-70, decepcionados com os
resullados de suas ações pollticas. Estes grupos, em virtude do con-
fronto perdido com os aparelhos políticos, burocráticos e militar nor-
te-americanos, redelihiram suas estratégias de luta através de uma des-

43. MA RCUS E. Hc:rbert, EI c:nvejecimiento dc:l psicoanálisis, in , La rc:présion sexual


·cn 1~ socic:dad contemporanc:a, Buenos A ires, Edícionc:s CEPE, 1972, pp. 11-3 I.

141
9ua~i~cação da atividade polltica e do recrudescimento dos ataques à
tam1ha burguesa e ao homem burguês, reprimidos fisica, emocional e
sexualmente, numa espécie de retomada da "sexpol" reichiana.
Lasch estabelece uma correlação entre este fato e as já menciona·
das carac~erístic,as ~a. sociedade capitalista avançada. A busca do pra-
ze~ e. ~a hberaçao fest~o-s_e~ual ~os novos radicais representa, em sua
oprm~o. _ a . mor~e do tndtvtduahsmo competitivo e a criação de um
no~~ mdiV~d~ah.smo a~~pt~.do aos tempos modernos. Esta estratégia
de so~revtvencta narc1s1ca é encarada pelo autor como sinal de de-
cadência de um a cu ltura que levou ao extremo a moral da guerra de
todos contra todos. O homem narcisista da sociedade norte-americana
é um homem que vive diante do medo da catástrofe nuclear universal e
diante da impotência em face do poder desumanizador e destrutivo da
burocracia e da publicidade.
Ma.is que isso, existindo e~clusivamente para a conscientização
do que e_b~~ e prazeroso ~ara SI, ele despreza qualquer compromisso
co m a hrstona, com a sociedade e mesmo com o outro sentimental-
mente .próximo. Seu cinismo e descompromisso ético com o que quer
que se~a e com quem quer que seja torna-o o homem certo para a bu-
rocracia certa. O modelo de homem eficaz dentro da sociedade buro-
cra~izada e planificada é este indivíduo destituído de qualquer qualifi-
catrvo pessoal, sempre apto a fun cionar como uma peça mecanizada
na engrenagem econõmico-administrativa.
A segunda adição de Lasch às teorias alemãs provém de sua for-
. f!~acão de historiador, preocupado com as origens e evolução da famí-
lia burguesa. Ao contrário dos frankfurtianos, ele não vê a família
burguesa tradicional como uma ''instituição feudal" dentro de uma
formação capitalista (Horkheimer).. , nem a família atual como um
subproduto •. mais ou menos imprevisto, da nova ordem econômica. A •
fa~íl!a, desde o _sé,culo XIX, vinha sendo posta sob a tutela de agentes
soc1ats como os JUIZes de menores, as assistentes sociais, os pedagogos,
o~ fil~ntrop~~· os médicos, os psiquiatras, etc. O estado atual de orga-
mzaçao famthar faz parte do que Lasch cham a de progressiva "sociali-
zaç~o .~a repr od~çà.o", con~rapa~tida, ló~ica da "socialização da pro·
du~ao ~~necessána a sobrev1da e a propna definição dos regimes capi-
talistas. O que acontece no momento presente é o resultado da "pro-·

~:t HO R K HEIM ER, Max, Sobre c:I concepto del bombre y otros ensaios, op. cit..p.

4~. Ver:
LASC H, Christopher, Haven in a heart!css world, N. Y., Basíc Books, 1979.

142
k t:HÍLaçào" das funções paterno-maternas, que germinava desde há
muito e que agora intensifica-se, graças à burocratização generalizada
da sociedade. Os pais, expropriados do direito de educarem moral·
mente os filhos , são induzidos a consumirem bens e serviços dirigidos
a si próprios, sob a orientação dos tecnoburocratas da sociedade do
bem-estar . Os radicais, portanto, reforçam, inadvertidamente, o pro-
grama racionaliz.ador do Estado, quando desferem seus ataques viru-
lentos à familia patriarcal.
A terceira crítica de Lasch à Escola de Frankfurt diz respeito à
teoria do indivíduo, entendido como sinônimo de personalidade, na
teo ria freudiana. O indivíduo americano típico, diz ele, reproduz os
padrões típicos de sua cultura. Estes padrões são: intenso medo da ve-
lhice; fascíni o pela celebridade; voracidade pela admiração pública;
medo da competição; declinio do espírito lúdico; deterioração das re-
lações entre homens e mulheres; sensação de vazio interior; fome insa-
ciável de novas experiências emocionais; frieza nas relações afetivas;
habilidade ca lculada em impressionar os interlocutores, etc. Curiosa-
mente, observa Lasch, estes traços culturais apresentam uma instigan-
te "afinidade eletiva" (a expressão weberiana é nossa) com a sintoma-
tologia da patologia nardsica, descrita pelos psicanalistas: insatisfação
vaga e difusa; inconsistência das relações amorosas; hipersensibilidade
à frustração; sentimentos de futili dade e ausência de finalidade da exis-
tência; sensação permanente de tédio e vazio interior; depressão; osci-
lações bruscas na auto-estima; nervosismo; dependência fugaz e auto-
mática frente a experiências afetivas calorosas, mesmo inconseqüen-
tes; medo desta dependência; sedução premeditada, com vistas à mani-
pulação do parceiro nas relações pessoais; humor autodepreciativo;
"pseudo-auto-insigh t '', etc.
Ora, todos estes sintomas seriam psicanaliticamente explicados
pela tendência irrefreada do ódio recalcado e pelo medo a este mesmo
ódio; pela insatisfação proveniente de demandas orais não atendidas;
pela incapacidade de introjetar a imago ambivalente boa e má e pela
persistência- de igual filiação teórica kleiniana- da cisão entre o bom
objeto idealizado e o mau objeto persecutório. Em última instância,
contudo, toda esta dinâmica da patologia narcísica seria determinada
pela existência de um superego punitivo e arcaico. A partir da correla-
ção entre traços culturais e sintomas patológicos, Lasch estabelece
uma regularidade de causa e efeito onde o superego arcaico da psica-
nálise é, ao mesmo tempo, fruto da destruição da famHia pela "sociali-
zação da reprodução'' e fabricante do "homem narcísico" , moto-
propulsor da sociedade moderna.
Diante disto, sustenta ele, não faz sentido supor, como querem os
teóricos alemães, que o superego desaparece, quando a figura do pai é

143
solapada em seu poder e autoridade. Os estudiosos da patologia narcí- ·
sica (Kohut, Searles, Lichtenstein, Kernberg) mostram que o superego
não deixa de existir na ausência do pai. Ele é simplesmente substituído
por uma instância idêntica. só que mais agressiva, mais violenta e mais
destrutiva. O "ego regredido" de Marcuse, existe. Mas comandado
por um superego próximo da expressão pura da pulsão de morte. t. da
ação psíquica deste superego que nascem a raiva. a inveja, a ansil!dade.
a insatisfação. a passividade e o sofrimento do indivíduo americano,
em seu cotidiano social.
O ho mem narcísico descartou-se de seu ancestral puritano, culpa-
do. moralista. reprimido e individualística mente competitivo, para dar
vez a um novo homem. pretensamente liberado, permissivo e toleran-
te. Entretanto, diz Lasch, a permissividade e a tolerância de fato exis-
tentes não significam respeito e aceitação do outro em sua diferença e
sim profunda indiferença para com tudo que não seja do interesse ex-
clusivo do próprio indivíduo. Torturado pela obsessão do prazer e da
.. autenticidade''. o narciso de nossa época tornou-se intransigente e ti-
rânico em relação a tudo e a todos que porventura possam opor-se à
gratificação imediata de -seus desejos. Liberado da culpa religiosa, nem
por isso encontrou paz. Pelo contrário, a obtenç.ão do prazer imagina-
do e da satisfação com a vida escorrem-lhe por entre os dedos, cada
vez que ele busca aproximar-se e apropriar-se dos objetos. A felicidade
que lhe cabe é a felicidade desidratada do consumo, orquestrada pela
propaganda das mercadorias. No mais, é o círculo vicioso da angústia
perante o desempenho "sadio" diante do sexo, do corpo e das relações
humanas "autênticas" . Esta seria a razão principal do embotamento
de sua sensibilidade pQlítica e do aguçamento de sua " sensibilidade te-
rapêutica".
Lasch, apoiando-se na clínica psicanalítica, consolida sua opinião
de que o americano moderno é um indivíduo narcisista. Porém, o nar-
cisismo que lhe é peculiar é um narcisismo patológico! Esta descoberta
é a pedra de toque de s ua argumentação . Antes dele, outros autores de
língua inglesa (Sennett•1·, Schur•' , North41,etc.) haviam assinalado oca·
ráter narcísico das sociedades ocidentais desenvolvidas. Contudo,
como é o caso de Sennett, tinham interpretado o fato como uma con-

46. SEN NETT, Richard, The fali of p11blic man, N. Y.• Vintqe Books, 1972.
47. SCHUR, Edwín. The awereness trap: self-absorption inslead of social changc, N.
Y .. Q:1ndr:~ ng le. 1976.
4K. NOKTH . M~ urice. T he secular priests. London, Ruskin H ouse. Museum Street,
1972.

144
seqüência da invasão da esfera de sociabilidade pública pela esfera do
privado! 9 Lasch cont ràdiz esta tese, provando a existência do fenôme-
no·· inverso. A vida familiar e a esfera da intimidade é que foram devas·
sadas no espaço que lhes era próprio, perdendo a heteronomia que
possuíam em relação à vida social. O indivíduo narcis!sta é a criatura
fabricada pela violação capitalista daquilo que a famlha burguesa tra-
dicional, real ou idealmente, sempre quis preservar. como sendo a es-
scncia de sua função: " um refúgio no mundo sem compaixão".
O narcisismo mod.erno é um narcisismo patológico. A novidade
cult ural do elhos contempqrâneo é a institucionalização social deste
narcisismo que, sem esta adjetivação, em nada se distinguiria do narci-
sismo normal, componente indispensável ao b<nn funcion amento de
todo ser psíquico.
Como seria previsível, as teses de Lach suscitaram um vendaval
de críticas em alguns meios'intelectuais americanos. Paul Picconne fez
notar que o uso de categorias psicológicas na explicação do fato social
é teoricamente inadmissível e politicamente inapropriado, já que em
nada pode alterar a situação política criticada.~0 Aronowitz e .outros
foram mais contundentes. Acusaram Lasch de ideólogo do Sistema,
moralista e defensor saudosista da família burguesa, puritana e repres-
siva. Aronowitz, em particular, enl!ampando a idéia marcusiana da
"Grande Recusa" (presente, por exemplo, no Eros e Civilizaçâor1
ponderou que o narcisismo é uma .resposta válida às exigências alie-
nantes da sotiedade americana.ll Desmoralizando a reheldia narcísica,
através de uma crítica tingida de marxismo, Lasch forneceu um bom
álibi ao reacionarismo de direita. O conservadorismo americano, es-
tropiado pela guerra do Vietname e pelos fantasmas da bancarrota
econômica, t.,.-ia em agumentos deste tipo um bom pretexto para ~es­
!l uscitar o espírito patriótico e de sacriflcio essenciais à política behco-
sa dos "duros" e ao fortalecimento da disciplina, em favor do Estado.
Neste tipo de polêmica, como é de háb\to, o justo e o injusto de-
pendem do maior ou menor entendimento das idéias discutidas e do
parti-pris teórico-poUtico de quem se engaja na discussão. A critica de
Piccoime é, neste sentido, exemplar, porquanto baseada numa posição
de principio que, via de regra, coloca como verdade social o que nada
mais é que um postulado teórico. Teoricamente falando, nada pode

49. SENNETT. Richard, The falt of public man, op. cit.


50. PICCONE, Paul. Narcissísm after the fali: what's on the bouom o f lhe pool? in, le·
los St. Loui5. Telos Press Ltd., 1980, n' 44, Summer '1980, pp. l1 2-121.
51. MARCUSE. Herbert, Eros e Civilização. s·,
ed., Rio, Zahar. 1981.
52, ARONOWJTZ, StanleY., On narcissism, in, Telos ibid. pp. 65-74.

145
impedir um pensador de tentar empregar categorias psicológicas na
apreciação do fato social, desde que a fidelidade aos fatos empiricos e
a coerência CQnceitual do modelo utilizado sejam respeitadas. Quanto·
às objeções de Aronowitz, o que se pode dizer é que repousam sobre
um mal-entendido. ·
Lasch, em nenhum momento defendeu o retorno à tradicionaL"
família burguesa como uma maneira de superar o desconforto existen·
cial e a inércia política do indivíduo americano . O vigor com que ele
critica aquele tipo de família perpassa seu trabalho de ponta a J1onta e
de modo inequfvoco. Sua proposta de solução, embora frágil e obscu-
ra, é bem outra. Concordando com Joel KoveJl' ele afirma que as rela-
ções familiares são "necessidades humanas trans-históricas" e, por
conseguinte, têm que ser mantidas no melhor nível de funcionamento
e estruturação possíveis. Mas isto não su~n tende a defesa de formas
conservadoras da ordem fam11iar. O que ele antevê como saída satisfa·
tória para o problema é a formação de "comunidades de competên-
cia".~' Esta noção não é bem esclarecida por Lasch e, sobretudo, care-
ce de um referente prático que possa dar-lhe consistência, enquanto
modelo teórico, ou viabilidade, enquanto proposta polftica.
Mesmo assim, é possível delinear os contornos do projeto, ainda
que de forma imprecisa. Lasch não acredita que a famíl ia possa estru-
turar-se recorrendo a tecnicos em orientação familiar ou saúde méntal.
Este caminho terapêutico já foi tomado e o resultado histórico é a de-
pendência cada vez maior da família em relação aos profissionais e
não a resolução de seus conflitos, como poder-se-ia esperar. Tampou-
co acredita que a simples reunião de pais e adultos, baseada na boa
vontade e na d isposição de lutar contra a medicalização de suas vidas
cotidianas, possa ser eficiente. Desavisados, os adultos ou tenderiam a
repretir, em outro tom, os clichês da ideologia do bem-estar ou tenta-
riam restabelecer as antigas formas de organização familiar coercitiva.
A alternativa seria a oriação de núcleos associativos formados por
adultos leigos, onde a discussão critica revertesse em apropriação do
conhecimento cientifico, evitando, ao mesmo tempo, a ajuda dos tec-
noburocratas e o .risco de retorno ao autoritarismo familiar do passa·
do. Estas seriam as ''comunidades de competênci~" que, como é visí·
vel, podem ser vistas como utópicas e irrealizáveis mas nada têm em
comum com a defesa da família patriarcal burguesa.
Como quer que seja, sob o ângulo de nosso interesse importa dis-
cutir o trabalho de Lasch numa outra perspectiva. Deixaremos de lado

53. KOVEL. Joel, Narcissism and the family, in Telos, ibid. pp. 88-100.
S4. LASCH. Christopher, The culture of narcissism, op . clt . p. 396.

146
os pontos acima abordados para discutir sua concepção de narcisismo
e de socit'dade de consumo. . . . .
O narcisismo será debatido em detalhes m~1s ad1ante, quando Ini-
ciarmos a discussão propriamente psicanalítica do tema. P~r enquan-
to é suficiente observar que esta noção não nos parece explicar a con-
te~to as raízes do mal-estar psíquico do indivíduo mod.e~no. Sob o~tr?
prisma. parece-nos igualmente criticá~el fazer do narc!SIS~O p.atologJ-
co uma espé<:ie de sinal patognomôn1co da cultur~ at?encana..o ~~­
prego da noção com este sentido. introduz incoerenc1as no rac10cmJO
do autor, difíceis de serem contornadas.
Vejamos. rapidamente, este últim? ~specto. Q~~ndo Lasc~ ~fir­
ma que o narcisism't americano de ~oJe e um ~arcJSJsmo patologiC~,
ele deixa em branco uina outra questao: qual sena a natureza do n~rc~­
sismo vigente na fase em que o capitalismo sobrevivia à custa do mdJ-
vidualismo competitivo, segundo suas própri~s palavras?. A sombra
desta interrogação acompanha cada frase, paragrafo e cap1tulo de se~
trabalho. No fin al das contas, o leitor fica sem saber se o au:or .co~st­
dera o narcisismo do capitalismo j ovem "saudável" - e, ent~o, JUStifi-
ca a rapacidade e a violência do capitalism? s~lvagem amencan~: por
ele conhecidas e repudiadas -. ou se lambem JUlga aque!e n~rCIStsmo
patológico, e, neste caso, a no~ão pe~d_e seu valor exphcattvo .
De brãços dados com esta 1mprecJsao, aparece uma outra afirma·
ção que, embora implícit a, compromete a lógica ~o tex.to. Las;~. a
todo momento, dá a entender que a cultura amencana ~ patOgemc~ .
posto que torna os indivíduos portadores de tr~c~s de cara~e~ patológ~­
co! Este raciocínio incorre num duplo erro: teonco e empmco. O pr~­
meiro, já t ivemos oportunidade de comentar, consiste em ho~ o ~enet·
zar o psicológico e o patológico, com fundamento na contmu1d~~e
existente entre os dois estados. O segundo, merece um comentano
mais detido, pois é mais difundido e mais dificil. de_s~r contestado,.
Afi rmando que a cultura americana p~o~uz tndtvtduos p~tologt­
camente narcisistas, Lasch confunde traco etmco com traco pstcopaco-
Jógico: o primeiro é produto <\a socfalízaçdo. o segundo representa um
distúrbio neste process.o de socialização. Em um t~ab_alho centrado nes-
te aspecto, procuramos mostrar por que o traço etmco, pr~duto da s~­
cialização é incompatível, em sua natureza, com o fato pstcopatol6gt-
co11, De ~aneira breve, passem os em revista esta discussão, a fim de
dissipar equívocos.

SS. COSTA. Jurandir Freire, Saúde mental, produto d;a educaC!o~. neste volume.

147
"!'od~ cultura imprime, pela socialização, cedos traços de conduta
e _asptraçoes em seus _membros. Estes traços compõem 0 Tipo Psicoló-
g~co Ideal (vamos deocar'de lado a questão da identidade social}. defi.
md?•,.Cntre outras coisas, pela aproximação do "modelo de conduta
sad1a e pel~ afastamento do "modelo de co nduta louca", conforme
as no_cõe~ c_na~as P?r Devereu~.~· Tais modelos exprimem a " realida-
de_P.SicologJca . denv~da das ViSo~s de mundo dos grupos e classes do-
mmante~ ou dos conflitos e nc:goc1ações entre estes estratos e os ·estra-
tos domma~os. A dinâmic~ social, através de pactos e embates, nasci-
dos destes mteresses conflitantes, formula, reformula e estabiliza em
ce.~t?s period~s. m'?del?s.de conduta que se tornam, assim, par~dig­
~at.'c.o s do T ipo PsicologJco Ideal. O perfil psicológico do homem or·
drnano cal~a-se: por assim dizer, sobre este tipo ideal, que é parte inte-
grante ~ a tdenudade étnica de todo sujeito.
• ?ra, esta identidade étnica, quaisquer que sejam seus atributos '
nao ~ nem_pode ser ~onsiderada patológica, pois é simplesmente urr:
f'!ldrao .wctal que des1gna o modelo de conduta psicológica ideal. Estar
f~r?. o~ d~ntro deste padrão não significa "estar doente" ou ..estar sa-
d.IO . s1gmfica ape~as que o sujeito p.ode ou não adotar o modelo so-
Cial da co~duta psicológica normativa. Em geral, o indivíduo ment.al-
ment~ sad1o adapta-se a esta norma por força da socialização e da
p~essao dos c~stumes, ~nq~anto o individuo mentalmente perturbado
na o consegue mcorpora-Ja a sua conduta e é coagido a assumir o " mo-
delo de con~ut.a .louca·:· Mas pode acontecer, corno na realidade acon- ·
tece, que.o m_d1v~duo sao conteste e repudie a norma psicológica ideal,
sem que l~ t o.' ~drque a presença de distúrbio mental, como pode ocor~.
rer q~e o m~Jvl?~o mentalmente perturbado consiga manter a fachada
de T1po .Ps1cologJco Ideal, embora esta eventualidade seja mais rara.
. ~ss1m ~e~do, Lasch comete um lapso de raciocínio quando faz da
1dent1dade et~Jca do americano médio um produto psicopatológico da
cultura .a mencana. A personalidade narcfsica americana não pode ser
pat?l?g•ca porque, a acreditar na interpretação de Lasch, é o Tipo Psi-
cologlco _Ideal daquela cultura. Se a cultura ameriçana é patogênica,
como deixa entender este autor, nio o é porque cria o tipo psicQiógico
por ele estudado. A cultur~ americana. como, aliás, qualquer outra ·
cultura, pode:, de fato, func•onar como estimulo psicopatogênico. Po-

56. Ver.
g~~:::~~· ~COIJes, Essais d'elhnopsychialrie aéo6rale, Paris, Flammarion, 1970.
1972. • COrJa, Eth.nopsyc:hanalysc oompl~menlarúle, Pari1, · Flammarion.

148
rém isto ocorre não porque ela reproduz e fixa certos traços étnicos,
mas porque. ao universalizar estes traços, impõe a certos indivfduos
um desempenho psicológico cujos requisitos excedem os meios de que
dispõem estes indivíduos para atingirem os fins desejados. Ou seja. não
é o troco étniC'O em .fi que é psicopato/ógico; i o tipo de estratégia empre-
~ado pdo .tujeito para apropriar-se deste:; traços que conduz à psicopato-
lof(iu. O sujeito. por várias razões, pode recorrer à psicopatologia
~o rn o meio de enfrentar as tensões causadas pela exigência da perfor-
maiiC(' psicológica ideal. A patologia emerge quando faltam ao sujeito
os meios habit uais, ou seja, culturalmente codificados e legitimados
para lidar com os connitos dt:rivado:> das imposiç~s do Tipo Psicoló·
gico Ideal. A saída psicopatológica. como veremos adiante, demonstra
que o sujeito, privado dos meios usuais de resolução dos conflitos, mo-
biliza constelações não-convencionais de recursos psicológicos para
fazer frente a estes conflitos.
Retomando. então, o início da argumentação, diríamos que, en-
quanto o traço étnico é produto da socialização, o traço psicopatológi·
co é p roduto de um entrave no processo socializador. A cultura com-
porta-se como um fa tor patogênico não por elaborar um tipo particu-
la r de identidade étnica, qualquer que seja ele. Isto, toda cultura é
obrigada a fazer, na medida em que nã o há cultura sem seleção arbi-
trária de significações. A cultura pode ser tida como elemento causal
na cadeia patogênica quando produz um descompasso, uma dissime-
tria entre as exigências do Tipo Psicológico Ideal e os meios adequa-
dos ao cumprimento destas exigências. Neste caso, é possível que o in-
divíduo venha a utilizar todo o potencial do ..imaginário radical que o
habita, como diz Castoriad is~', e criar normas psicopatológicas, como
forma de solucionar seus conflitos.
Por estes motivos, parece-nos totalmente descabido aceitar a idéia
de que a cultura americana elaborou um traço étnico psícopatológico.
O contra-senso desta afirmação salta aos olhos, pois. traduzida em ter-
mos mais simples. equivaleria a dizer que os americanos são "doen-
tes", só pelo fat o de serem americanos. Este absurdo dispensa comen·
tários. Não temos nenhuma prova de fato ou teórica que nos autorize
a dizer q ue a identidade étnica dos americanos é mais ou menos pato-
lógica que q ualquer outra identidade étnica. Tal conclusão tornou-se
possível porque Lasch. não podendo operar a distinção que propuse-

57. CASTORIADIS. Cornclius, L' institution imaginaire de la socicté. Paris, Scuil,


i97S.

149
mos, acaba por erigir seus critérios de julgamento político em normas
de sanidade mental.
Passemos, agora, à análise de Lasch sobre a sociedade de consu-
mo. comparando-a, em seguida, às teses de Baudrillard.
A teoria de Lasch inspira-se numa sólida tradição de estudos
sobre o te~a. levados a cabo por grande.parte dos cientistas sociais
n_orte-amenc~nos. O postulado central destas análises é o de que a so-
ctedade amencana é uma sociedade de abundância. A economia, ten-
do alcançado um progresso tecnológico capaz de satisfazer às necessi-
dades básicas da população, busca criar novas demandas de consumo
convencendo os indivíduos a comprarem mercadorias cuja utilidad~
lhes é desconhecida e qu~ são, na verdade, absolutamente supérflua s.
O processo de ~onvencunento tem na publicidade veiculada pelos
me1os de comunscacão de massa seu instrumento privilegiado.
O papel fundamental ocupado pela publicidade na sociedade de
consumo deve-se, essencialmente, a três motivos. O primeiro deles é
econômico . Segundo Galbraith, um dos expoentes da literatura sobre
o assunto, este motivo pode ser exposto como se segue: "O problema
fundamental do capitalismo contemporâneo não é mais a contradição
entre maximização do lucro e racionalização da produção (em nível do
e':"presário), mas entre uma produtividade virtualmente ilimitada (em
mvel da te~noestrutura) e a necessidade de escoamento dos produtos.
Torna-se vttal para o SIStema, nesta fase, controlar não apenas o apa-
relho de produção, mas a demanda de consumo. Não apenas os pre-
ço_s, mas o ~ue será "demandado" a este preço. O efeito geral é o de,
seJa por me1~s anterio~es ao ato da produção (pesquisas·, estudos de
~ercado ). seJa P?r me10s posteriores (publicidade, marketing, condi-
CIOnamento), ret1rar do comprador o poder de decisão sobre a com-
pra, para transferi-lo à empresa, onde pode ser manipulado.~•
• A ~ub.tí~idade teria, ent.ão, a tarefa de controlar o poder de deci-
sao do md1vtduo, fazendo-o consumir o que a indústria precisa ven-
der, a fim de que a economia capitalista continue de pé.
Os demais motivos são polftico-ideológicos. Segundo Lasch, além
da função econômica assinalada, com a qual ele concorda, embora
se~ enunciá-la ~?m a niti~ez de Galbraith, a publicidade desempenha
~o1s out~os ~ape1s estratég1cos no modo de vida das sociedades caeita·
hstas:_Pnme1ro, promove o consumo como sucedâneo do protesto e da
rebehao; segundo, converte a alienação, ela mesma, em mercadoria.

SS. OALBRAITH, J. K., L'l:re de l'opulence et Le Nouvd áat industriel, citado por
BAUDRILLARD, Jean, op. c:it. p. 97.

150
Isto é. reforça nos indivíduos a convicção de que a desolação do ho-
mem moderno é inelutável e propõe o consumo com.o cura ou remé-
dio.
Em síntese, "a propaganda que antes limitava-se a anunciar um
determinado produto. exaltando-lhe as qualidades, na época ·atual'
{àhrica seu próprio produto, o consumidor perpetuamente insatisfeito,
·an.tio.to e entediado". ~·
Este ponto de vista será revisto por Baudrillard, à luz de novas
considerações teóricas.

3 - Jean Baudri/lard e a sociedade de con.~umo


Criticando.os estudos feitos sobre a sociedade de consumo, Bau-
drillard diz que~ maioria delas parte de um grande engano ·o de vi~c~­
lar consumo à abundância. Na verdade, não existe nem nunca ex1st1u
" sociedade de abundância" nem "sociedade de penúria" , pois toda so-
ciedade, qualquer que seja ela e qualquer que seja o volume dos bens
produzidos ou da riqueza disponível, articula-se; ao mesmo tempo,
sobre um excedente estrutural e sobre uma penúria estrutural. "O ex-
cedente pode ser a plhte de Deus, a parte do sacrificio, o gasto .s~ntuá·
rio, a mais-valia, o lucro econômico ou os orçamentos de prest1g10. De
qualquer modo, esta retirada de luxo que define a riq~eza de uma. so-
ciedade e sua estrutura social - uma vez que é apanág1o de uma mmo-
ria privilegiada- tem por função precisamente _Produ~ir ~ privi~égi? d.e
casta ou de classe... Toda sociedade produz ·dtferenc1açao e dlscnm~­
nação social e esta organização estrutural funda-se, entre outras cot-
sas. sobre a utilização e a distribuição das riquezas. O fato de que uma
sociedade entre numa fase de crescimento, como nossas sociedades in-
dustriais. em nada muda este processo. Pelo contrário, de uma certa
maneira o sistema capitalista (e produtivista, em geral) elevou ao má-
ximo este desnivelamento funcional. este desequilíbrio, racionalizan-
do-o e generalizando-o, em todos os níveis. " "'1 • .. •

Baudrillard com esta afirmação, pretende de"unc1ar o m1to


igualitário" da ~ociedade moderna. Mito que define a sociedade de
consumo como uma sociedade de desequilíbrio que poderia reequi-
lihrar-se. caso as prioridades viessem a ser estabelecidas em função do
bem comum e não de interesses particulares: indivíduos, Estados ou
corporações econômicas.

S9. LASCH. Christopber, Thc c:ulturc of narc:íssism, op. cit. p. 137.


60. BAUDRILLARD. Jean, op. c:it. pp. 6S-66.

151
Valendo-se dos estudos de Marshall Sahlins sobre certas socieda-
des primitivas, ele diz que a raridade dos bens nada tem a ver com a
penúria . Pa ra Sahlins "eram os caçadores-coletores (tribos nômades
primiaivas da Austrália e do Calaári), que conheciam a verdadeira
abundânc~a. não obstante a pobreza absoluta em que viviam". Isto
~orque, VIVend~ num SiStema SOCial edificado SObre a •confiança' nas
nqueza~ naturaas, onde não existia o monopólio da natureza, do solo
ou dos mstrumentos de trabalho, estes primitivos desconheciam a acu-
mu.lação e as relações de poder que ..bloqueiam as trocas c instituem a
r~ndade". "A imprevidência e á prodigalidade características das so-
Ciedades primitivas são o sinal da abundância real. "61
O sistema industrial, ao contrário, alimenta-se de sucessivas for-
mas de hi~rarquiza~âo ~e acesso aos bens. A distorção e a desigualda-
d~, n~ste Sistema, nao sao reduzidas nem tendem ao nivelamento. Elas
sao simplesmente t_ransferidas, deslocadas e reorganizadas em torno
de novos bens e obJetos. Quando todos podem ter automóvel e televi-
s~res a. cor~s, di.z .Ba~drillard, criam-se outros bens e objetos aos quais
so a mmona pnviieg1ada tem acesso. ~o caso do espaço, do tempO, do
ar pur~ , do verde, da água, do .fi/êncio, da cultura, do bom-gosto, etc.,
no me1o urbano.
:Assim, o caf!'P~ estrutural do consumo é formado pela posição
relat1~a q~e cada md1víduo ocupa na hierarquia de acesso aos bens. As
combma~oes dos el~mentos ~este quadro hierárquico são infinitas. A
observaçao das soc1edades ncas mostra, além dos bolsões de miséria
absoluta que desnudam permanentemente a ilusão da abundância
u_ma constante si~uação de penúria dos indivíduos, sempre famintos d~
s1gnos de prestígio e status social. O homem urbano vive dominado
pe~a o~s~ssão da escassez. Donde seu estado de· perene ..pauperização
pstcologtca".
Mas, se toda sociedade onde haja um mínimo de acumulação pro-
d.uz e.spacos de segregação e hieraquização na posse dos excedentes de
nqueza, ~ caracterizaria a sociedade de consumo moderna? A resposta
de Ba.udnllard a esta questão consiste na reinterpretação dos fatores
caus~IS . apontados precedentemente: o desenvolvimento técnico-
~cono~• c? e ~ moderni~ação social, decorrentes da urbanização e da
mdus~r1ahzaçao.. A soc1eda~e contemporânea, afirma o autor, criou
um d1s~urso mlh~o. ~ respeito de sua natureza consumista. Este dis-
curso d1z que o c1rcuuo do consumo reduz-se, no essencial, à criação
de um dado produto pela indústria e à criação do desejo deste produto, no

61. lbid. p. 91.

152
indivíduo, através da publicidade. Baudrillard, entretanto, replica qu.e
nem sempre a publicidade consegue impor seu produto ao .co~suml ­
dor. E, mesmo que conseguisse, restaria e;~~.plicar por que o IndiVIduo
morde a isca. A deficiência desta explicação assenta-se, a seu ver, na
pressuposição de que objetos e necessidades são cria~os um a um, na
mesma seqüincia e ritmo, de tal modo que, a cada objeto c~rrespon~a
uma necessidade forjada pela propaganda. De fato, a soc1edade cna
sistemas de Mns e objetos e sistemas de necessiJades que não são produ-
zidos na mesma velocidade. A produção de bens ~ u.ma funç.ão da ~ro­
dutividade técnico-industrial e a cadência de produção das necessida-
des é uma função da lógica de diferenciação social: "A mobilid~de as-
cendente e irreversível das necessidades 'liberadas' pelo crescimento
têm uma dinâmica própria, diversa da produção de ben~ ~ater~ais de~
tinados a satisfazê-las. A partir de um certo teto de soc1alizaçao urba-
na. de concorrência por status e de take-off psicológico. a aspira~à? é
irreversível e ilimitada. Ela cresce segundo o ritmo de uma sociO-
diferenciação acelerada e de uma inter-relatividad~ generaliza~a::•~
A concentração urbana, herdeira do desenvolvimento econom1co
e industrial cria necessidades de diferenciação que estimulam a pró·
pria indúst;ia de consumo: "Em u~ ~upo res~r~to, as necessidades,
como a concorrência, podem, sem duv1da, estabilazar-se ... Pode-se ver
isto nas sociedades tradicionais ou nos microgrupos. Mas em uma so-
ciedade de concentração industrial e urbana, de densidade e ~romi~­
cuidade muito maiores, a exigência de diferenciação cres~e ma1s rá~• ­
do ainda que a produtividade material. Quando todo ~mverso socsal
urbaniza-se, quando a comunicação é total, as necessidades cresc~m
segundo uma assíntota vertical, não por apetite, mas por concorren-
cia" .•)
A J(>gica do consumo é a de opor os individuo~ uns aos out.ros
como elementos de um sistema de signos, onde a totalidade é o que 1m·
porta e não a necessidade ou a particularid~de de cada elemento. É a
partir desta lógica que se pode entender a dttadura da moda na g~ande
cidade. A moda é o representante prototípico deste sistema de s1~n ~s
de diferenciação social, presente na sociedade de c~nsumo. Ela eh~•·
·na, em seu cálculo de produção e ~enda ao c.on~u~udor, tod~ referen-
cia a quaisquer atributos ou necessidades do mdlv!duo, ~ara Impor ex-
clus.ivamente o esquema distintivo de seu sistema de s1~no ~.
Porém, se os indivíduos desaparecem em suas espec1ficadades; se

62. lbid., pp. 83-114.


63. lbid. pp. 36-87.

153
eles se tornam "mutuamente indiferentes" no sistema da d
consumo, 1s · 'fi1ca que o tn
· t o szgm · d'Ivtduahsmo
· . morreu? E 1 • mo a ou
acaso, diante de uma sociedade "hoJista" no sent'd. sdarDiamos, por 6
Nã d B · • I o e umont? •
o, respon e audnllard. O consumismo é • . . . ..
dualizante. T oda propaganda moderna te ' por exc.ele~c!a, mdlVI-
mento a "personalizaça·o" Pe I' m como pnmetro manda·
. · rsona tze seu apartam t
sua mdumentária, seu estilo de vida se . en o, seu carro,
nalização do modism . , u corpo, seu sexo, etc. A perso-
do e uniformizado s~~;~!u~t.sta faz co~ que o individuo, massifica-
quando se apropri~ de d~te~:~~d:~ k~ção 6-e ocu~a social~ente,
personalização que o individualismo s ~ o ~etos. na es~ezra da
de maneira endêm ' · expan e-se no mundo OCidental
a necessidade da e':t~~~~a~~v~l~i;~ ~irtu~e ~sto, Ba~drillard dedu~
sociedade moderna· a burocract'a e u ros .e~ menos Importantes na
. ~ o narc1stsmo.
A burocrat1zaçao da vida .
te individualismo à outran nasce com? uma forma de coerção des-
da':leira anomia social É c~:r~ue, sembfretos, ~esc~mbaria para a ver-
~u:~: concerne às agência~ e~daur~:ga~~~c~~t~~:~~r~l~ ~~e :~ef~~~a~
lismo
0
d~;~~:::ona:. v7o~ê~~~:n;~:t~~ton~ole
mos no univer d
burocrático, o
r . .' ~e esconcertante que presencia-
indi~idua-
ou obietivo qsoue a opu! encta. VJOiencia inexplicável, sem finalidade
J ' se vo ta contra coisa
aquilo que a realidade social tornou . s e. pessoas, tomando-as por
exclusivamente em função do . -ois. obJet~s que J;e usa ou destrói,
.. ' . s 1mpu sos estntamente pessoais
O n arclSismo e analis· d ·. · ·
posição dada ao corp a o~ pdord seu turno, como um derivado da
o na soc1e a e de cons
um dos mais "belos ob,ietos" d
o
umo. corpo tornou-se
• J e consumo no capital' t I O.
d•viduo é repetitivamente ,·nd UZI'd o a mvest1r
. ' . no prJsmo
· · a ua . m-
meosnttraandt.e .de a.t enção e cuidados inusitado. Ao contrá~f~~~a~o;~~~·e~am·
d IcJonais o corpo e d . . u -
Mas este investí:nento no: co~ vez~ e servi-lO, extste para ser servid.o.
portas, que daria vazão à sexu~ri;:~er~~r:~e;:a ~ma a~er~ura de com-
gando categorias psicanaliticas Baudrillard enst;~;epnmtd~s. Empre-
a sexualidade é recalcada debalx 0 d . e que mats uma vez
· e um erotismo de fachadoo es l
cuIar e ruedoso na superfície' mas desv1't a11.za d o nas profundezas.
,., pe a-

64. A propósito desta nnrão ver· .


DUMONT · -~ ·' .
Na l't • Lboul~, !'fomo HJerarchícus, Paris, Gallinard 1967
1 eratura ras!le1ra em particular .' . ·
ção de " holismo.. foi bem discutida ~~rc~~po lqu~.nos .d iZ dnetamenle respeito, a no-
VELHO, Gilberto, Individualismo e Cultu ra, rvuR~10, •zguehcra Gilberto Velho.
a ar, c1981.

154
O investimento no corpo também não significa investimento na-
quilo que ele tem ou pode vir a ter de singular e especíjlco. O corpo do
consumo, c aqui surge a originalidade do pensamento do a utor, é in-
vestido enquanto reflexo dos signos do sistema da moda. Ou seja. os
rredicados co rporais investidos pelo sujeito são aqueles que refletem
os tnH;os ou insignlas colocadas no topo do prestígio social. Este seria
o narcisismo dos tempos modernos. Um "narcisismo dirigido" para
aquilo que, no corpo do sujeito, exprime sua vinculação c posiciona-
mento na pirâmide de diferenciação social .
O que Baudrillard chama de "frineísmo" feminino, "atletismo"
masculino, e " hermafroditismo" do jovem, terceiro sexo da socieda-
de de consumo. são os representantes desta "beleza funcional" que
converte os corpos em meros "significantes de status social''. Toman-
do como exemplo o manequim, ele mostra como aquele corpo descar-
nado de mulher é a imagem mesma do antierotismo e da repulsa ao se-
xo. O manequim , com seus gestos mecânicos, simuladores de vida ou
desejo. é uma pura forma, uma abstração coisificada que visa tão-
somente a designar o lugar que a mulher e seu corpo devem ocupar na
hierarquia de prestígio.
No pensamento de Baudrillard, hã uma profusão de intuições
sobre a vida moderna, quase ilimitada. Condensá-lo, na integra, seria
impossível. Vamos. portanto, fixar apenas os temas vizinhos ao nosso
interesse, ou seja, as proposições sobre a sociedade de consumo e
sobre o narcisismo.
A proposição de Baudrillard sobre o consumo é interessante por-
que explica o aparecimento do fenômen o em realidades sociais como a
nossa . Desvinculando consumo de abundância, ele desfaz o aparente
paradoxo do consumismo em países pobres e economicamente atrasa-
dos. A prática consumista não redunda da abundância real ou da ten-
dência ao igualitarismo social, mitos que o autor se empenha em des-
montar. Ela cresce no terreno da desigualdade e da escassez relativa de
bens materiais e culturais. Sua semente não é a riqueza generalizada
ou a propensão à repartição eqüitativa dos bens, mas a concentração
urbano-industrial, ordenada em torno de valores produtivistas.
A sociedade, para ser ou tornar-se consumista. não necessita, por-
tanto, apresentar o perfil econômico-social do capitalismo avançado.
O caso brasileiro confirma esta hipótese. O incipiente parque indus-
trial do Brasil, complementarmente atrelado à indústria estrangeira,
conseguiu impor às elites dos grandes aglomerados urbanos a mentali-
dade do consumo. Favorecido pelo autoritarismo político e pela con-
centração de renda por ele patrocinada, o consumismo disseminou-so
no pais como um decalque, em escala menor, do similar europeu ou
norte-americano.
ISS
As observações pio neiras de Luciano Martins t~m um alcance
bem maior do que podem deixar transparecer ao leator a~ressa~o .
Modismo, podemos dizer ago ra, não é só o consumo de ps1ca~áhse .
T ampouco podemos confinar o fenômeno ao acanha~ ~ te~~ro .• Pa.n~:
menho. onde os jovens consomem drogas e cospem g 1r~as 1~dagnas
de tigurarem nos manuais de llngu~ po~tug~esa . Modas?'o e ~odo o
cortejo de hábitos pertencentes às ehtes ca.tadtnas qu~. apos 68, mgr~s­
saram na sociedade de consumo conduZidas pelo sastema da ~oda .
A ditadura da moda ou modismo é o grande artífice da so~tedade
de consumo. A mentalidade consumista não pod~ ser co~sadera.d.a
uma pura excrescência do episódio a~toritário ocorndo n~ vtda poltt~­
ca da nação. Tudo indica que a cornda para o desenvolvamento ca p.a-
talista em que a sociedade brasileira embarcou, cedo ou tarde, levana
suas elites a este ponto de chegada.
A ideologia subjetivista de que fala Luciano Martins não s~ pro-
pagou no Brasil apenas por ..falta de democracia" , d o tipo am.encana
ou européia. Na Europa de .B~udrill~ rd e nos Estados Umdos de
Lasch, 0 consum ismo e o narcas1smo nao brota~a.m dos escombros .da
democracia. O subjetivismo narclsico é filho legtu.mo da.s democr~ca~s
européia e norte-americana que, estrutural~en~e .•mpedJda s de r~spe.a­
tar 0 contrato social, como manda o texto JUrtdJc~ (t~~os sã~ .•gua1s
perante a lei), inventa ram a igualdade pe.rante o ob, ew er.satz mdus·
trial dos direitos do homem e preceito numero um do decalogo consu-
mista .
Quanto ao narcisismo, vam~s inserir ~u~. crítica no àmbit~ d.e
uma discussão mais ampla. Recapitulemos, m•c•almente. o ~ ue foa d•·
to. A ideologia subjetivista da Geração Al-5. conforme ~uc1an o Mar·
tins. corresponde à ideologia narcísica de Lasch e Baudnllard . Ambas
são cons ubstanciais à mentalidade do consumo que, por .sua vez, re ne-
te a éoncorrência generalizada por prestígio e status, ex~stente ~m so·
cicdades que a lcançaram um certo pata~ar de d~enyolvtmento md~s­
trial e crescimento urbano, dentro de regtmes capttahstas (ou com unJs·
tas) voltados para valores produtivistas.
Entretanto, se a conduta social do indivíduo u.rbano . P~r~ce-nos
satisfato riamente explicada pela noção de ideolog•a subjeltvtsta. do
consumo ou da m oda, o mesmo não ocorre quando se trata de..expl~car
sua economia pslquica, através do narcisismo. Esta categona psica-
na lítica, quando não é usada de modo impreci~o pelos aut~res , mos-
tra-~ incapaz de elucidar n umerosas part!c~]andades. da v1da ~ental
daquele indivíduo. Vejamos, em nossa op101a~, ond~J~z.a frag1hdade
da interpretação, pelo narcisismo, da ideolog1a subjetJvtsta.

156
4 - Narcisismo: os atropelos de l.!ma nação
Lasch e Baudrillard afirmam que o individuo moderno é narcisis-
ta. Contudo, este traço psicológico ou psicossocial é insuficiente para
caracterizar a sociedade atual, pois, de acordo com a psicanálise, o
narcisismo é um componente normal do psiquismo de todo indivíduo,
em qualquer sociedade. Buscando ultrapassar esta barreira teórica,
Lasch tenta mostrar que o narcisismo de hoje é patológico, enquanto
Baudrillard soluciona a questão, criando o conceito de narcisismo diri-
gido.
Resta saber, em primeiro lugar, se estas distinções encontram su-
porte na teoria psicanalltica e, em segundo lugar, se 'elas explicam a
novidade cultural, sem contradizer a teoria e o fato analisado. Acom-
panhemos, passo a passo, a demonstração dos autores.
Para Lasch, o narcisismo moderno é patológico porque se mani-
festa como uma necessidade do ego regredido, submetido a um supere-
go arcaico, dominado pela pulsão de morte. Esta seria a estrutura psi-
codinâmica do comportamento social do sujeito ansioso; voltado para
o sexo e pa_ra o corpo, ávido de celebridades, frio afetivamente, invejo-
so e destrutivo nas relações amorosas e humanas em geral. etc.
Lembremos que esta descrição psicopatológica baseia-se fundamental-
mente nos trabalhos de Kernberg, Kohut, Searles e dos autores klei-
nianos. No essencial. o narcisismo patológico derivado destas concep-
ções, apresenta as seguintes características: 19) idealização do objeto,
sob a égide do narcisismo infantil, 29) formação de um "self·
grandioso" . igualmente infantil e fonte~as projeções idealizantes do
objeto, 39) predominância da pulsão de morte na dinâmica intrapsi-
quic<t. perceptível através -de seus representantes: agressividade, ansie-
dade incontrolável, ódio, inveja, raiva, medo da retaliação, impulsos
destrutivos, etc.
A idealização do objeto, de paternidade freud iana, é, no estudo
de Lasch, referida, sobretudo, às teorias de Kernberg, Kohut, Searles e
dos kleinianos. O "seif-grandioso" é uma noção particularmente enfa-
tizada por Kohut e Searles. E. finalmente , os aspectos agressivos e des-
trutivos do narcisismo são uma obra teórica kleiniana, como mostra
Rosenfeld, num artigo sobre o tema.
· .....Oru ,' o que é notável em todo este arsenal descritivo-explicativo é
a marcante indecisão na definição do conceito de narcisismo, em espe-
cial quanto à diferença entre o normal e o patológico. Kohut, por
exemplo, diz que "o narcisismo não se define pelo lugar do investi-
mento instintivo (o sujeito .o u o objeto), mas pela natureza ou qualida-
de da carga instintiva ela mesma''.61 Ele fala de "energias instintivas

65. KOHUT. Heinz. Le soi. Paris. PUF. 1974, p. 34.

157
narcísicas···., ao mesmo tempo em que faz das fixações narcisicas no
objeto ou no Ego uma conseqüência da perturbação nas relações obje-
tais.
Esta visão rompe com a análise freudiana do narcisismo sem jus-
tificar as causas da ruptura. Conquanto seja inegável o valor das des-
crições clínicas de Kohut, a impressão que se_tem é a de que suas des-
cobertas foram rebatidas sobre o concei.to nàrcisismo, por uma ques-
tão de lealdade à tradição teórica. O ·~setf-grandioso.•( evoca, sem dúvi-
di.l, a "megalomania do Eu infantil e d.os povos primitivos'', ou o in-
vestimento narcisico do Ego, subseqüente ao desinvestimento objetai,
segundo a clássica visão de Freud. A idealização do objeto também
poderia ser identificada ao reinvestimento nardsico do obj<;to que o
Eu efetua. com vistas à restauração do elo com a realidade, noção
igualmente freudiana. Mas a noção kohutiana de narcisismo exclui de
sua definição um elemento essencial dentro da teoria de Fret~d. qual
ieja: a carga energética investida ora no Eu, ora no objeto, é l(bidina/.
A idéia de uma "carga narcísica em si" contradiz a teoria pulsio~
nal da psicanálise e, por isso, teria que ser melhor explicitada. Se
Kohut, com esta idéia, pretende reafirmar o ponto de vista freudiano
de que o Ego capitaliza a libido do ld, para em seguida redistribuí-la
aos objetos. então estamos em mares navegados e o neologismo é ocio-
so. O novo conceito só obscurece o que se deseja compreender. No en-
~anto, se por "carga instintiva narcísica" ele subentende outra modali-
dade da energia pulsional, além da libido ou da pulsão de morte, então
esta hipótese, para ser validada, teria que ser demonstrada e nuo dada
apríoristicamente como verdadeira.
Esta questão não é supérflua, como pode parecer. Considerando
a afirmativa de Las.ch de que o "self-grandioso" do indivíduo. moder-
no é um sintoma do narcisismo patológico, ela tem sentido. Primeira-
mente, porque a grandiosidade narcísica do se/f, em sua ~onçepção; ou
é entendida como secundariameme gerada pelo desinvestimento libid!-
nal do outro. do objeto ou da realidade social, ou primariamente produ-
zida pela estase da libido no Ego, conforme Freud afirmava existir na
"vida psíquica das crianças e dos povos primitivos". Fora destas alter-
nativas, toda explicação fornecida por Lasch para o narcisismo pato-
lógico apela para os conceitos kleinianos, ligados à pulsào de morte e
ao arcaísmo do superego. Não há lugar, em sua teoria, para uma "car-
ga instintiva narcísica" que poderia investir tanto o Ego quanto o ob-
jeto. como quer Kohut. Em segundo lugar, a questão é pertinente por-

66. lbid. p. 4 I.

158
que umi.l teoria cultural do narcisismo não se sustentari_a, c~s~ a~.mitis­
se uma patologia narcísica dependente d~ uma "c~r~a msttnt1va • des-
de sempre narcísica. e não da dinâmica mtersubjettva..A men~s que,
optando por seguir Kohut até o fim da linha, Lasch acellasse catr com
ele nas mesmas contradições: afirmar, ao mesmo tempo, que. ~s reta:
ções objetais estão na origem do narcisismo e que este· narc1s1smo e
uma qualidade da energia " insti ntiva". . .
Problemas semelhantes podem ser apontados na teona do narci-
sismo de Kernberg. Este autor, ao contrário de Kohut, per.~anece fiel
à teoria pulsional de Freud. Porém cri~ica ~ noção _d~ narc1stmo como
simples dellex.ão da libido objetai em d1reçao ao SUJetto. E'? seu ent:~­
der " a relação normal com um objeto representa uma ~1stura de li-
gaçÕes tibidinais objetai~· e 'li~ações narcísicas', no ~nt1do .de que o
investimento objetai e o mvesttmento do self na relaçao grat~fica n~e a
tais objetos caminham paralelamente".61 <?nde, ~ntào, estana a d1fe·
rencu entre o narcisimo normal~ o pa~ológ1co? Ets a re~posta de .Ker~­
berg: "O narcisismo adulto e 1nfanttl comporta um egocentnsmo .
Mas o investimento no self do narcisismo adulto normal faz:se em ter-
mos de objetivos, ideais e expecta_tivas ~ue atestam maturtdade, en-
quanto que o investimento no se!f mfant1l normal f~z-se em termo~ ~e .
tensões infantis, exibicionistas, ávidas de poder e extgentes. O narctsiS·
mo adulto e o narcisismo infantil normal comp.reen~em, amb?s· u~
investimento no objeto. A díferen~ entre os d?ts .re~Jde n~ ~.~~lprocl­
dade do adulto oposta à idealizaçao e dependencla mfantl~. • .
Em síntese, o narcisismo patológico represe~t~ a perSISt.enc•a do
narcisismo in fantil na vida do adulto . ~ cau s~•.ulh~a deste desco"!-
passo no desenvolvimento encontrar-se-ta nas Jdenttfi<:acões patoge-
nicas" da infância. . . ..
A dificuldade de Kernberg em defin1r o narc1s1smo norma 1e o pa-
tológico é patente. E por não conseg~ir fa~ê-lo finda. por ag~rrar:se à
tábua de Si.llvução comum a tantos pstc a ~a.hstas amen:anos, 1sto e, to-
mar critérios de adaptação a valores soc1a1s como parametros de ~or­
malidade psíquica. " Objetivos, ideais, reciprocidade e exp.e~.t.attv~s
que atestam maturidade'' não são termos que se possa opor a Jdeah-
zaçào e dependência infantis••. Os primeiros. retra~am comportamen-
tos sociais e os segundos explicam met~~s•.col~glc~~ente condutas
manifestas como " avidez pelo poder, extbtct_o~usm.o , etc. Ker~berg
não consegue enquadrar teoricamente o narctstsmo normal, a na() ser

t.7. K t::!tNBERG. Otto, La personnalité narciSSJque, ·Paris, Privat. 1980.


6lS. lbid. pp. 137·138.
valendo-se do desgastado equilíbrio quantitativo (narcisismo a mais,
·narcisismo a menos) ou do julgamento moral da personalidade, tida
como patológica.
Portanto, Lasch finca seus alicerces intelectuais em solo bastante
movediço, quando pensa encontrar, nestes autores, o respaldo para
firmar suas teses sobre o narcisismo patológico da cultura contempo-
rânea.
Mas o que dizer dos kleinianos, abundantemente citados por
Lasch? Teriam eles resolvido a questão em que tropeçaram Kohut e
Kernberg? Não é esta nossa opinião. Tomemos como modelo de ànáli-
se o mencionado trabalho de Ros.enféld. Os aspectos agressivos do nar-
cíúwno.~~
Rosenfeld inicia a renexão seguindo a trilha de Melanie Klein, o u
seja, tentando provar a importância dos instintos de morte nas o rgani-
zações narcísicas. A princípio, é ressaltado o fato de que a raiva e o im-
pulso para destruir o objeto são produtos do choque entre os interes-
ses narcísicos do Ego e as frustrações provenientes do objeto. AI esta-
riam. em primeira mão, comprovações evidentes de que narcisismo e
agressividade estão compulsoriamente ligados um ao outro. Em segui-
da, são levantados argumentos que poderiam ser considerados des-
dobramentos de uma mesma idéia: a de que o narcisismo é um estado
regressivo do Ego. Dada esta regressão, Rosenfeld infere a preeminên-
cia dos instintos de morte nas estruturas de personalidade narcísica.
Primeiro. porque toda regressão exprime, em !ri, a compulsão de repe-
tição. sinal indubitável dos instintos de morte. Segundo, porque nos
estados regressivos ocorre a desintricação instintiva, mantida em silên-
cio nos estágios superiores de evolução do psiquismo, quando os ins-
tintos de vida conseguem sobrepujar os de morte.
A partir daí, entram em jogo as conhecidas equações kleiniánas -
projeção f introjeçào; projeção identifica tó ria/ identificação projetiva;
idealizacãojidentificaçào onipotente; clivagem do egoj cli'vagem do
objeto, etc. - que farejam, perseguem e capturam os indícios agressivo-
destrutivos da pulsão da morte em todos os recantos do psiquismo
narcisisra .
O peso da explicação de Rosenfeld incide sobre a desintricação
pulsional. ·~ a presença com.pacta dos derivados da pulsão de morte,
resultantes da regressão egôica, que imprime ao narcisismo seu caráter
patológico. Entretanto esta teoria não desfaz o nó górdio do n ar,cisi~

69. ROSENI-'El D. Herbert, Les aspects agressirs du narcissismc, in Nouvelle Revuc


. de Psychanulyse, Paris. Gallinard, n9 13, Printemps, 1976, pp. 205-221.

160
mo. A desintricação pulsional é um fenômeno autárquico, no que se
refere ao narcisismo. Ela pode vincular-se ao narcisismo como pode
vincular-se a inúmeras outras formas agressivas da vida psiquica. A re-
levância deste fator na organização mental não pode ser univocamente
associada, quer como causa, quer como eféito, ao narcisismo.-~ não
ser que se abone a idéia de que toda regr~ão é ~arclsic.a. futilidade
teórica inconseqüente, pois o mesmo podena ser dtto de qualquer ou-
tro estágio pré-genital da organização libidinal. Uma coisa é afirmar a
possibilidade de existir um elcmen~o nar.dsico em t?~a regressão, ou-
tra coisa é indexar toda regressão a rubnca do narc1s1smo. Se toda re-
gressão tivesse uma mesma causa, por q~e ~ psicanalista~ ~ar-se-iam
o trabalho de isolar e entender a espec1fictdade do narciSismo? Por
conseguinte, destacar a presença de aspectos agressivos ~a ~atolo~ia
narcisica não significa alçar estes aspectos à função defimtórea da sm-
gularidade desta patologia. ·
Como é visível dos três vértices teóricos de onde parte Lasch para
escorar sua tese sobre o narcisismo patológico da cultura a!ual - idea-
lização do objeto, constituição do "self-grandioso". predominância da
pulsào de morte na desestruturação do mundo i_ntern? - ~e~hum é
bastante sólido para que se chegue a uma conclusao sahsfatona sobre
a diferença entre narcisismo normal e patológico.
Vejamos como a questão foi tratada por B~udrillard. Roso.tato
observa que a estrutura do fenômeno narclsico e composta de cmco
termos que, para efeito de clareza, podem ser descritos separadam.en-
te da seguinte forma: o rttraimento libidinal, a idealização, a dupbca-
cào (..dédoublement"), o duplo vínculo ("double-bind") e a os~ila_ção
metonímico-metafórica.' 0 os·dois últimos termos P?SSU~m pccub~nd~­
des teóricas que não nos interessa, no momento, d1scut1r. Dos tr~s. pn-.
meiros o retraimento ou retração da libido é o que usualmente t1p1fica
o narci.sismo, pois foi a perspectiva econômica e dinâmica exp?sta ini-
cialmente por Freud. Os dois outros, são mais ou menos debattdos, se-
gundo a inclinação teórica dos autores. _ .
· No presente estudo, podemos dizer que esta ob~ervaçao ajusta-se
sem falhas aos horizontes teóricos de Lasch e Baudnllard. Lasch, den-
t ro da tradição psicanalítica anglo-americana, reforça sobretudo o a~­
pecto do retraimento libidinal e da idealização quando expõe suas ht-
póteses sobre o narcisismo. Não obstante as alu~ões espar~as ao f~nô­
meno da duplicação (encontramos algumas vezes construçoes do Upo:

70. ROSOLATO·, Guy, Le narcisiJmc, in, Nouvcllc Rcvue de Psychanalyse, ibid., pp."
7·36. .

161
"He (o n<~rcisista) sees the world even in íts emptiness, as a mirror of
himself')' 1 é nos aspectos da idealização ou seus correlatos que ele
concentra a atenção. ·
B~udrillard, claramente. influenciado pelo estruturalismo psica-
nalítico francês faz pender o centro de seu interesse no sentido da du-
plicação. Esta apreciação do narcisismo salienta a importância da es-
pecularização e da relação com o duplo na gênes(: do EU e procura
acentuar a idéia de que narcisismo e identificação narcisica são termos
indissociáveis e coemergc:ntes. Contudo, a utilização da noção de nar·
cisismo feita por B.audríllard é ainda mais imprecisa que a efetuada
por Lasch. A noção de narcisismo dirigido para aquilo que no corpo
reflete os emblemas de prestígio social, determinadlos pela moda, não
consegue delimitar, mesmo de forma rudimentar, o que poderia ser a
marca exclusiva do narcisismo moderno.
Segundo a psicanálise, todo e qualquer narcisismo é dirigido para
aquilo que no corpo ou no psiquismo é percebido <:orno objeto do de-
sejo do outro: Freud já insinuava esta interpretação1 em sua Introdução
ao narciJi.fmo. Nesse ensaio ele diz que o narcisismo infantil deriva do
narcisismo dos pais. Ou seja, a criança ama em si aquilo que nela é de· .
sejado pelos pais. ·
Depois de Freud, Winnicott~ , Lichtenstein, 13 •: sobretudo Lacan,
2

em seu belo estudo sobre o estado do espelho", observaram que a cap-


tação pelo sujeito da imagem especular (experiência fundadora do
Ego, para Winnicott; do "moi". para Lacan, e da "'identidade primá·
ria'' ;para Lichtenstein) só se dá em sua plenitude q1uando esta imagem
é investida libidinalmente pelo outro. O sujeito só s1e institui enquanto
tal após viver a experiência da apreensão narclsica desta imagem dese·
jada pelo outro.
Todo narcisismo, portanto, surge e permanec,e dirigido. Quando
Baudrillard supõe a existência de um narcisismo corpóreo indepen-
dente da inserção do corpo na hierarquia social, ele não se refere a
uma verdade histórica ou psicológica, mas a uma eventualidade onto-

71. LASCH, Cristopber, The culture'or narcissism. o p. cit. !PP· 54-S.S. · ·


72. WINNICOIT, D. W., Le role de la m~re et de la familc dar)s te d6veloppment de
l'enfant, in, Jeu Et rcali!l:, Paria, Ga.llimard, l Q7S, pp. I Sl-162. .
1~3. ~IC~TEN~T~IN, . Heinz. Le role du nar..:issismc dans l'é:mergcnc:e ct le maintien
d une identtt~ prrmmrc, m, Novelle Revuc de Psychanalyse, o p. cit. pp. 147·160.
74. LACAN, JacqllCI, Le stade du miràir commc formateur de la fonction du Je teU~
qu'llc 'nous est rivél~ dali$ l'experienc:e psychanalytique in ~.crits Paris Scuil. 1966
.' pp. 43-100. • • • • '

162'
lógica. Seu argumento postula uma finali_dade do ser humano fora do
tempo e do espaço, deslize surpreendente num autor sempre prestes a
demolir as análises moralistas e finalistas do teóricos da sociedade de
consumo.
Esta teoria, coqto a defendida por Lasch, não é um bom sustentá·
cuJo para a análise psicológica do homem narclsico. Isso, entretanto,
não representa a condenação do narcisímo como uma noção teorica-
mente inútil. A utilização· do narcisismo na crítica â sociedade de con·
sumo tornou-se confusa e problemática parque o conceito foi superes-
timado em seu potencial explicati~o.
Como bem observou Lichtenstein, o narcisismo, desde que foi sis-
tematizado por Freud, vem sofrendo um verdadeiro "stress concei·
tua!". 75 Um exemplo histórico deste uso inflacionário da noção pode
ser encontrado na polêmica sobre as neuroses de guerra. Este exemplo,
que não será tomado ao acaso, mostra que o narcisismo, ao ser teori-
camente repisado como um passe-partout, não só é· reduzido em sua
amplitude nocional' como ocupa indevidamente o lugar que çaberia a
outras categorias. Através da discussãó sobre as neuroses de guerra,
poderemos reavaliar os riscos do abuso teórico de .uma noção.
Durante a Primeira Guerra Mundial os psicanalistas decidiram
estudar a fundo as 'neuroses de guerra. Impressionados com o número
de soldados que exibiam sintomas de neuroses traumáticas e acossa-
dos pelos opositores da psicanálise, que viam no acontecimento a con-
traprova empirica da etiologia sexual das neuroses, realizaram em
1918 um Co.ngresso em Budapeste; com a intenção de desvendar os
mistérios do problema. Ferenczi, Abraham e Simmell, encarregados
de apresentar os trabalhos, procuraram demonstrar que a neurose
' traumática resultava de um conflito entre os interesses narcfsicos do
Eu (o advento da segunda tópica, Ego, ld e supe~ego, foi posterior a
este evento) e as exigências da brutal realidade da guerra. Com isto,
tentava-se devolver à'sexualidade a importância que teria na etiologia
das neuroses.
Ferenczi avançou com precaução suas hipóteses . Embora achan-
do que havia um componente narcfsico na determinação do sfndrome,
admitia a possibilidade de o traumatismo de guerra ser provocado in-
dependentemente de uma constituição narcisica prévia do sújeito."
Abraham foi 111ais ousado e mais infeliz. A guerra, dizia ele,. é um trau-

75. \..ICHTENSTEfN, Heinz. Le r6lc du narc:issisme... op. c:it. 147.


76. FERENCZI, Sandor, P1ychanalyse des n6vrotc.S de guerre., in, Pllychanalyse-3,
oeuvrcs compl~tes. torne 111 - 1919-1926. Paris, Payot, 1974, pp. 27-43 ..

163
matismo que desencadeia u'ma modificação regressiva do Eu, no senti-
do do narcisismo. Mas, prosseguia, se nem todos ap-resentam tais rea-
ç?es é porque alguns são predispostos e outros não. Os indivíduos pre-
dispostos, concluía Abraham, mantinham-se em equilfbrío, antes da
guerra, através da "ilusão narcisica na imortalidade e na invulnerabilí·
da de'' .77 Em bre,ves palavras, eram personalidades narcisicas que não
suportaram a frustração imposta pela guerra.
O narcisimo·era causa e efeito das neuroses traumáticas. Esta in-
coerência conceitual em nada abalava a convicção dos analistas na
etiologia sexual do traumatismo de guerra. Mesmo um esplrito rebelde
como Tausk, falando sobre a psicologia do desertor, variant-e do tema,
recorria à idéia de "infantilismo psíquico" e insubordinação edípica,
como matrizes psicológicas da desobediência civil.'•
Freud, um ano depois, incumbiu-sed e fazera introdução destes
trabalhos. reunidos num volume intitulado A psicanálise das neuroses
de guerra. Nessa introdução, ele avaliza as idéias dos autores mas dá
mostras de sua hesitação, conclamando os analistas a aprofundarem
teoricamente a relação entre "neuroses de guerra" e " neuroses de paz"
ou de transferência. Seu ensaio é vacilante. Ora defende a psicanálise
dos ataques endereçados à etiologia sexual das neuroses, e endossa
com veemência a tese do narcisismo, ora admite a possibilidade da
existênc.ia de outros fatores etiológicos, porém sem mencioná-los. A
conclusão do trabalho reflete a indecisão e· a perícia de Freud em con-
tornar situações delicadas: .. De fato, poder-se-ia dizer que no caso das
neuroses de guerra, em contraste com as neuroses trawnáticas puras e
de modo semelhante às neuroses de transferência, o que é temido é, não
obstante, um inimigo interno (leia-se, sexualidade). As dificuldades
teóricas que se erguem no caminho de uma hipótese unificadora deste
tipo não parecem insuperáveis: afinal de contas, temos o d ireito de
descrever a repressão, que está na base de cada neurose, como uma
reação ao trauma - como uma neurose traumática efementar.19
A saída é diplomática. De um lado, a etiologia sexual é mantida
pela assimilação das neuroses de guerra às neuroses transferenciais. A
aliança com os psicanalistas con tra os adversários da psicanálise per·
manece em vigor. De outro, Freud abre a porta para o entendimento

77. ABRA H AM, Ka rl, Contribution â la psychanalyse dcs névroscs de gucrrc, in Oeu-
vres complétes; Tome 11 ( 193-1925). Pa ris, Payot, p. 176. ·
7~. TA USK, Victor, Contributioo a la psyco1ogie du déserteu r, in, Oeuvres psychana-
litiques. Paris. payot, 1975, pp. 129- 156. ·
79. 1-REUD, Sigmund, Introdução â Psicanálise e as neurosa de guerra, in, Obru
l.'ompletils de Sigmund Freud, vol. XVll, Río, lmago, 1976, pp. 259-263.

164
das ..neuroses traumáticas puras", fora dos esquemas pré-fabricados.
Enfim , carimbo do acordo - amigos e adversários sào reconciliados
sob a alegação de que toda neurose é uma ··neurose traumática ele-
mentar", na medida em que toda ela é uma ~eação ao trauma.
Historicamente, este artiflcio polftico-teónco revelou-se um golpe
de mestre. Um ano depois, Freud escrevia Além do princfpio do prazer.
Nesse estudo, voltando a repensar a questão da neurose traumática,
ele dissocia este fenômeno do ..traumatismo em geral", tido, até aque-
le momento, como o responsável sexual pela etiologia das neuro~es.
As "neuroses traumáticas", junto com outros fatos da vida pslqU!ca,
são explicàdas como um produto da compulsão de repetição e da pul·
são de morte.
Todavia a importância do choque traumático externo, da oom·
pulsão de repetição e da pulsão de morte não o fez desprezar o papel
da sexualidade e do traumatismo psíquico por ela provocado. No final
do quarto capitulo do ensaio, uma espetacular virada teórica acontece.
Freud, que ao longo do texto criticou impl~c~tament~ a ineficácia da
explicação das neuroses de guerra pelo narctsismo, cnando as noções
de pulsão de morte e compulsão de repetição, relança a questã~ ~este
mesmo narcisismo de uma maneira absolutamente nova. O narc1s1smo
volta à cena, mas como protagonista de um outro drama. Ele é, a nos-
so ver, definitivamente coiocado como efeito de traumatismo e não
como causa. Nesta nova posição, o fenômeno narcisi~o mostra uma
dimensão inédita, que vai servir de apoio à análise que proporemos do
chamado narcisismo contemporâneo. ·
A proeminência deste trecho torna indispensável sua citação na
íntegra: ..No que concerne às ' neuroses de guerra', contanto que este
termo não designe apenas a simples relação entre o mal e a causa, ~os­
trei em outra ocasião que elas poderiam ser neuroses traumáttcas,
cuja explosão seria facilitada por um conflito no EU (a .referêncill: diri·
ge-se ao artigo que acabamos de comentar). O fato acima menctana-
do, a saber, que o traumatismo quando causa ao mesmo tempo uma
grande lesão, as-chances de aparecimentto de uma neurose diminuem,
cessa de ser incompreensível, se consideramos duas circunstâncias
sobre as quais a pesquisa psicanalítica insiste de um modo pa~ticular,
A primeira destas circunstâncias é a de que a comoção ~ecâmca deve
ser considerada como uma das fontes da excitação; a segunda consiste
no fato de que as afecções; dolorosas e febris exercem durante toda sua
duração uma patente influência sobre a repartição_da libi.do . f: _assim
que a violência mecânica, exercida pelo traumatismo, hberana um
quantum de excitação sexual que, na ausência de toda angústia corres-
po ndente à representação do perigo, seria capaz de exercer uma ação
traumática, se. de outro lado,·a lesão somãti·c a que se produz ao mes-

165
mo t~mpo IICio fÍI'<'.H<' como efei/0 fixar sobre o órgão le.tado, JNir uma
e.vpéch· d!' sohrt>corga narcMca (grifos nossos), u excitação excessiva. É
igualmente conhecido. embora não tenha sido suficientemente utiliza-
do pela teoria <.la libido. que as perturbações graves que afetam a re-
partição da libido na melancolia. por exemplo. desaparecem momen-
tanc<.~mcnte, em ~eg~ida a uma afecção orgânka intercorrente. e que
mesmo uma demenc1a precoce. em sua fase mais avançada, pode, nas
mes ma~ condições, sofre r uma regressão momentânea.''""
A~ . repercussões teóricas deste texto são inúmeras. Em primeiro
lugar. 1- reud mostra como o e:mmw, o extrapsíquico transforma-se em
;,~ren!o· imrapsíquico. O c.hoque mecânico liberaria um quamum de ex-
cnu~ao sexual que passana a agir do interior do psiquismo. com a ca-
pacidade de exercer uma ação traumática. Temos a tradução econômi·
ca. em termos mctapsicológicos. da forma como a realidade exterior
torna-se realidadt' p.l'íquica.
Em segundo lugar. 1-'reud propõe uma outra maneira de ver como
o "não-sexual" (choque mecânico, violência externa) torna-se sexual.
Ret.oma. deste modo, o que afirmara nos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade e que voltará a afi rmar em seu trabalho sobre "o problema
econômico do masoquismo", sob o nome de teoria da "co-excitação".
Ao lado da idéia da sexualidade como derivado da.r func-ões vitais não-
.wwai.t, pre.~ente na fase em que a pulsão sexual era oposta à pulsão de
conservação, teríamos agora a idéia do traumatismo mecânico. também
não-sex ual, como liberador de energia sexual.
. ~inalmente. chegamos ao que nos interessa: Freud enriquece con-
Sideravelmente sua teoria do narcisismo. Na Introdução ao narcisismo
era dito que, além da parafrenia, o narcisismo poderia ser estudad~
através de outras vias: a doença orgânica, a hipocondria e a vida amo-
ro~a dos sexos." N~ verdade ele não se detém aí, e considera, Jogo
1

adtante. o sono c a v1da men tal das crianças e dos povos primitivos. O
Importante. contudo, é que o exemplo da doença orgânica volta a ser
associado ao narcisismo em Além do princípio do prazer, mas com um
adendo. Na Introdução ao narcisismo, referindo-se à doença orgânica,
~reud observava que a pessoa que so fre perde o interesse pelo mundo:
" O doente retira seus investimentos libidinais (do mundo. dos objetos)
para o EU c os devolve, de novo. após a cura."u A me~ma interpreta-

!!0. . Au-dcla du príncipe du plaisir, io, Essais de Psychanaly·


se, Pari~. Petite Bibliothêque Payol, 1970, pp. 41-42.
!S. I. . .Pour introduire te nucissisme, in, La vie seJtuelle, 2' ed., Pa-
ns. PUF. 1970. pp. !:!!!.
K2. lbid. p. !!9.

166
cão era form ulada a propósito da ·hipocondria, doença imaginária do
corpo.
Em seguida, ele tenta comprovar o que enuncia buscando na vida
psíquica normal o modelo de compreensão. ou melhor. o molde psico-
lógico para a expressão da patologia: " Pois bem, nós conhecemos o
modelo de um ó rgão doloro.samente sensível, modificado de a lgum
modo sem ser. no entanto, doente, no sentido habitual: é o órgão geni-
tal -em estado de excitação. Ele torna-se, então, congestionado. turges-
cente, úmido e sede de sensação diversas. Se chamamos crogeneidade
de urna parte do corpo esta a tividade que consiste em enviar para a
vida psíquica excitações que a elitcitam sexualmente, e se pensamos que
as considerações extraídas da teoria sexual nos habituaram. de há mui·
to, a conceber que outras partes do corpo - as zonas erógenas - pode·
riam substituir os órgãos genitais e comportar-se de modo análogo a
eles, só nos resta. agora, tentar um passo a mais. Nós podemos deci·
dir-nos a considerar a erogeneidade como um a propriedade geral· de
todos os ótgãos, o que nos autoriza a falar de um aumento ou diminui·
çâo desta erogeneidade em uma determinada parte do corpo. A cada
uma destas· modificações da erogeneidade dos órgãos poderia corres-
ponder uma modificação paralela do investimento de libido no EU. ~
neste fenô meno que precisaríamos buscar os fa tores que estão na base
da hipocondria e que podem ter a mesma influência sobre a distribui..
ção da libido que a injúria material dos órgãos."" .
A primeira vista, inaparentes, as mudanças que Freud introduz
nessa primeira teoria do ,narcisismo, a partir de Além do princípio do
prazer, são decisivas para o futuro da noção. No primeiro estudo, a
distinção entre o EU e o corpo era teoricamente inexistente. A pessoa
que sofria , ou seja, que tinha seu organismo lesado, retirava a libido
do objeto para investi-la em si mesma. Nisto residia o narcisimo: in-
vestimento no EU e investimento no corpo que abriga ou serve de su·
porte a este EU eram uma só coisa.
Porém, se levarmos o raciocínio adiante, seguindo à risca seus
pressupostos, logo chegaremos a uma contradição, presente em Freud,
quando ele tenta identificar investimento narcísico no corpo à potencia-
lidade erógena deste mesmo corpo. Com efeito, auto-erotismo e narcisis-
mo são noções diversas. Narcisismo é o investimento libidinal no EU,
decorrente da retirada da libido dos objetos. Auto-erotismo é o modo
específico pelo qual as pulsões sexuais parciais se manifestam, produ·
zindo prazer at ravés da ó .cita.ção das zonas erógenas (prazer de ór·

83. lbid., p. 90.

167
gão), .sem a concorrência do objeto ou da imagem unificada do EU . A
manetra como Freud expõe a questão torna impossfvel a distinção en-
tre n~rcisism o _d~ co rp~ e auto-erotümo . Salvo se pudéssemos conceber
a rettrada_ d~ h~tdo obJetai em direçã? do corpo, pa.ssando, antes, pelo
EU, condtçao sme qua non da operaçao. Mas, neste caso terfamos que
admitir uma diferença tópica entre o espaço do EU e o ~spaço do cor-
po que anulasse a a nterior coincidência entre eles.. Só nesta hipótese
pode-se aceitar a ideéia de um narcisismo corpóreo que não se confun-
da com o auto-erotismo.
. Na Introdução ao narcisismo, esta distinção era impensável, donde
a dtficuldade que teve Freud em descrever coerentemente os dois fatos
como s~ nota, no trecho citado a este respeito. Em O Ego e o Jd, ficará
esc}arecJdo_es!e. problema tópico, de modo satisfattório. Mas, já em
Alem do prmc1p1o do prazer, são anunciadas as transformações da teo·
ria que permitirão o entendimento do que era, at-é então, obscuro.
Neste tra·balho, Freud fala de uma "sobrecarga narcísica do ór-
gão lesado", reafirmando, assim, a idéia de que existe um narcisismo
do co ~p~. ~lém d_isso, embora sem explicitar, postula a hipótese .de
um.a dtsttnçao tóp!ca entre o EU e o corpo, quando diz que na melan-
coha e ~a ~emênc1a ~recoce ocorrem melhoras qua1ndo o sujeito apre·
~enta ~leccoes orgâmcas. O órgão lesado atrai parte da libido narcísica
mvestJda no EU do melancólico e do psicótico. No primeiro caso. o do
"órgão lesado'', a carga narcisica era proveniente do EU em estado de
fun cionamento normal: no segundo caso. o da melancolia e da demên-
c_ia_ pre.coce, ?e um EU patológico. Nos dois casos, ·é preciso insistir. a
hb1do mvest1da no co rpo s6 é narcísi"ca porque, an h:s, estava investida
no ~l:f· Sem esta, ~ondiç~o esta libido em nada poderia distinguir-se
da ltbiáo auto-erottca, onunda das pulsões parciais., com sede nas zo-
nas erógenas.
Este seria um dos aspectos resultantes da reviravolta teórica de
Além do P,rincípio _do_prazer. É ~ distinção tópica ent re o EU e o corpo
que perm1te dJscnmtnar o que e auto-erotismo corpóreo e investimento
narcf.rico do corpo.
.O outro aspecto a ser posto em relevo são as condições em que
este investimento narcísico do corpo pode acontecer. Como fizemos
ver antes, no que tange ao narcisismo dirigido, o investimento no corpo
~e.sulta comumente do investimento libidinal do des(:jo do outro. O su·
Jeito ama nele aquilo que é amado pelo objeto. Contudo, o que Freud
~ ost ra, tanto .na Introdução ao narcisiJmo, quanto c:m Além do prinCÍ·
pto do prazer e que o corpo pode ser investido narcisicamente, não por
ser fon te de pra;:er, mas porque é cau.ta de dor.
. Esta descoberta é fu ndamental para nosso interesse especifico. O
· mvestimento narcísico do corpo, comandado pelo E;go, pode dar-se: a)

168
em função do cstabelécimento ou restauração da experiência de satis-
fação ou, b) em funçã o do controle ou extinção da experiência de dor. ·
Antecipando, brevemente, o que buscaremos provar em seguida,
diríamos que sem esta distinção, claramente colocada, é diflcil com·
preender o narcisismo moderno. O mal-estar da cultura atual não se
explica, em nossa opinião, por um "excesso qualquer de narcisismo",
ligado à economia da experiencia de satisfação. O homem narcfsico
não sofre por querer "gozar demais" ou por sonhar com o Eros órfico.
e narcísico, da utópica Grande Recusa marcusiana. Esta leitura do
fato cultural moderno arrisca-se, como querem os opositores de·
Lasch, a tornar-se um instrumento auxiliar das formas coercitiV\lS de
controle e moralização conservadora da vida social. O narcisismo mo-
derno é um narcisismo regenerador. O investimento compulsivo no
corpo que pre$enciamos hoje é uma maneira encontrada pelo indivf.:
duo de limitar os efeitos violentos da sociedade de consumo.
A devastação da vida privada, tão bem descrita por Lasch, exce-.
deu o que ele pôde supor. Tornando o corpo e o sexo objetos de consu-
mo, o capitalismo moderno obrigou o indivíduo a adotar uma "estra-'
tégia de sobrevivência narcísica" que pouco tem a ver com o prazer e
muito a ver com a dor. O indivlduo moderno é um individuo violenta·
do, antes de ser narcisiSta. ~esta violência que explica seu narcisismo e
as apàr~ncias "patológicas" que ele assume. Seu corpo e seu sexo mo·
nopoliz.am a libido objetai porque, como o "órgão lesado" ou "hipo·
condrlaco" de Freud, tornaram-se fontes de sofrimento, dor e ameaça
de morte para o EU .
Teptemos de'!'onstrar est~s afirmações.

5 - · Violência e narcisismo
Para que possamos melhor compreender a economia psíquica da
violência, precisamos elucidar previamente os conceitos de traumatis-
mo, dor e desprazer.
Laplanche, seguindo Freud ao pé da letra, observa que existe uma
diferença entre o traumatismo em geral (traumatismo infantil) e o trau-
matismo causador da neurose traumática ou neurose de guerra.•• No
traumatismo infantil, o acontecimento traumático (por exemplo, a
"sedução" oriunda dos cuidados maternos, a "observação" da cena
primitiva, etc.) é elabora~o em conformidade com o modelo da expt- .

. 84. As considerações que f!lmnos sobre este tópico si o diretamente CJ~ttraldu doa esua-
:dos de Laplancbc, . na ~rie de trabalhos reunidos sob o titulo de "Probl6ma.tiquea" e no
seu livro intitulado "Vic et mort cn psychanalyse". Seria impratidvel remeter o leitor, a

169
déncia de sati.l:(a~~o . . seguindo as regras do princípio do prazer-
deJpra:er. A e.~pemnc~a d:_ sati.ifac~o. como é sabido, significa o movi-
me~ to da pulsa? em d~reçao d_? O~J~t~ perdido. cuja falta provoca des-
pra~er. pelo a cumulo d.a tensao hbtdmal ni!o satisfeita. Este objeto é
evocado através da reativação de seus traços mnésicos e, uma vez reen-
contrado, permite a descarga pulsional ou prazer.
, . A gênese-Jógicá da experiência ·de satisfação é a realização alucina-
tor!~ do desefo. como Fr~u~ a. descreveu na Psicologia dos processos
om~tcos. A ~enese cronologtca e geralmente situada na etapa em que 0
recem-nasctdo "alucina" o seio ausente da mãe
. . A resolução do traumatismo infantil segue, portanto, as grandes
hnhas ~este modelo. Este processo, contudo, não é simples. O objeto
d_? dese~o que pela ausência produz o trauma não está préfixado â p~l­
sao, asstm co~o.o. obj.eto ap ~ziguador de uma necessidade do instinto.
O trauma,. de Jmcto, e expenmentado como puro afluxo de excitação
q~e n~ce~slta escoar-se.. Só num tempo posterior, após uma reencena-
cao pslqUt~a do acontecimento, o sujeito consegue dar sentido ao vivido.
Este senttdo produz-se quando o objeto é reencontrado e incluído
numa ~e~e dl' ~lgnificados que lhe confere uma significação precisa.
Esta Stgmfica~~o. pa.ra ~r~u~. é uma significação sexuaL O objeto
reencontrado e mvesttdo lt btdmalmente, perm itindo a descarga pulsio-
nal que faz ces~ar o ~espra_zer e surgir o prazer.
O traumatismo m.fanul obedece, assim, às leis do princípio do
prazer-despr~zer. O ObJeto-fonte de trauma é recuperado na realidade
ou n_a fantasta e transformado em s uporte da descarga energética da
pulsao.
. N os ca~o_s favorá~eis, esta "escolha do objeto" não se dá de ma-
neira aleaton~,. seg~undo exclusivamente o princípio do prazer-
~esprazer. ~s .mJu~çoes do Superego impõem ao Ego um objeto subs-
tituto do ongmal mcestuoso, apto a conceder-lhe a satisfação deseja-
da. Instaura-se, deste modo, o princípio de realidade, que é um retina-

todo i~stantc:. à obra ~c: Lapl~nche. Por isso. vamos limitar a referência bibliográfica di-
reta, soem casos. .de.cu~çã~ hte~al do autor. No mais, recomendamos a leitura da obra
de Laplanche, cuJa md1caçao b1 bliografica ~ a seguinte:
LAPLANCHE, J ean, Vie et mort em psychanalyse, op. cit.
- -- -- - . Problématiques I - L'angoisse, paris, PUF, 1980.
- - - . - - - -- · Problématiques H- Castration- Symbolisations, Paris. PUF.
19110
- -- -- - . Problêmatiques 111 - La sublimation, Paris, PUF, 1980.
- -- - - - · Problématiques IV - L' inconscient, e le ça, Paris, PUF. 1981.

170
mento ou ordenação do princípio de prazer. Nos casos patológicos, o
complexo identícatório, responsável pela saída indicada, sofre interfe-
rências que desvirtuam o processo. O objeto-fonte do trauma é reapro-
priado pelo psiquismo, mas de tal forma que sua metabolização inter-
na bloqueia o desenvolvimento do Ego e impõe à libido um curso dis-
torcido. O princípio da realidade, em maior ou menor grau, dependen-
do da patologia. tem dificuldade em ..enquadrar" o princípio do pr~­
zer e o conflito emerge, sob as mais variadas formas.
Este esquema é, naturalmente, incompleto. DesenvolVê-lo de ma-
neira satisfatória exigiria uma melhor definição do "principio de reali-
dade", do " princípio do prazer", do estatuto do objeto, da natureza ·
das identificações:, etc. Mas, diante dos nossos objetivos, não temos
necessidade de ir além do que foi dito. O importante é notar que o no r·
mal e 'O patológico, de acordo com este modelo teórico, são variações
de um mesmo sistema de elementos e de leis. o movimento psíquico é
acionado pelo princípio do prazer-desprazer, que visa a descarga pulsio-
nal. e pela experiência de satisfação, que modela a busca do objeto perdi-
do.
Na neurose traumática, a modalidade de elaboração é outra. Este
traumatismo es.pecítico (para o qual nem Freud nem Laplanche en-
contram denominação própria) caracteriza-se pela natureza e pela in-
tensidade do impacto do fator traumático contra o aparelho de " para-
excitação" ou barreira protetora do Ego. A natureza do estímulo,
como já vimos a propósito do narcisismo, é não-sexual e tem a ver
com a ameaça de morte. A intensidade, por seu turno, é de uma gran-·
deza tal (estímulo mecânico ou psicológico) que provoca um "rompi-
mento" (conceito freudiano) na superfície egóica.
Clinicamente, o sujeito vítima de um traumatismo desta ordem
experimenta pânico, terror, confusão, estupor ou fenômenos conexos,
até que medidas defensivas sejam ativadas. Todos estes sintomas
apontam para o despreparo do psiquismo diante da situação inespera-
da. Ultrapassada esta fase, inicia-se um período de evocação repetitiva
do evento traumático, mormente através de sonhos ou pesadelos. Foi
este período que despertou o interesse de Freud pelas neuroses de
guerra ou pelas reações psíquicas a catástrofes ou situações aterrori-
zantes, em tempos de paz.
De fato, do ponto de vista dinâmico, o que surpreende nestas
síndromes é a repetição do acontecimento desagradável, defesa oposta
ao princípio do prazer. Em lugar de rememorar ou "alucinar" (no sen-
tido da " alucinação onirica") o objeto ou situação portadores de pra-.
zer o sujeito reedita incessantemente o trauma, contrariando aquele
princípio.
Do ponto de vista tópico e econômico, Laplanche propõe a se-

171
guinte interpretação do enigma. Continua~do no rastro da met~psic.?·
logia freud iana. ele diz que em tra~matls~os de_sta proporç~? nao
existe, como pensava Freud, uma s1mples 'fixaçao ao trauma . mas
uma tentativa de ·~fixação do 1rauma"."·1
A diferença do traumatismo infantil, que não chega a romper a
"para-excitação" egóica, este segundo tipo de traumatismo não sere-
solve conforme o princípio do prazer-desprazer, ou seja, evacuando a
carga libidinal. O modelo resolutivo deste traumatismo é o modelo da
dor. Assim como Freud descreveu o suprinvestimento narcisico do ór-
gão lesado, assim se daria, no registro psíquico, a reação ao traumatis-
mo intenso. O' psiquismo despreparado, em confronto com o estimulo
de grande intensidade, lança-se à tarefa de "ligar" ·psiquicamente a ex·
citação, para não ser invadido e desestruturado por ela. O Ego fixa-se
ao trauma porque, antes de mais nada, tenta fixar o trauma. Esta idéia
tinha sido enunciada em Além do princípio do prazer: " Um aconteci-
mento como o traumatismo externo produzirá sempre uma grave per-
turbação na economia energética do organismo e porá em movimento
todos os meios de defesa. Mas é o princípio do prazer o primeiro a ser
posto fora de combate (grifas nossos). Como não é mais possível impe-
dir a invasão do aparelho psíquico por grandes quantidades de excita-
ção, só resta ao nosso organ ismo uma saída: dominar a. excitação, ligar
psiquicamente a.ç somas de excitação que penetraram através do rompi-
mento para. em seguida, liquidá-las progressivametrte"(grífos nossos).ftft
O traumatismo intenso leva o psiq uismo a "ligar as somas de ex-
citação" e posteriormente a fixá-las, como na dor. Ao contrário do
traumatismo infantil que é evacuado, na obtenção do prazer, a excita-
ção excessiva é aqui bloqueada, imobilizada no local.
Alcançado este ponto, vejamos em que a distinção entre 'trauma-
lismo infantil' e 'traumalismo excessivo', dor e desprazer, ajudam a de-
sobstruir o cam inho da compreensão do narcisism o da cultura con-
temporânea.
Vimos que o aparelho psíquico pode mobilizar sua energi.a para
lixar e localizar o trauma, de acordo com o modelo da dor, ou para
evacuá-lo, segundo o princípio do prazer-desprazer. A primeira even-
tualidade, epicentro de nosso interesse, resulta da recorrência de um
trauma em si absorvível e evacuável ou de um trauma em 'si excessivo e
capaz de desorganizar o aparelho psíquico, sem a força crescente da
repetição. f: a esta situação de recorrência traumática ou de trauma tis-

lSS . LAPLANCH E. Jean, Problématiqucs I - l'angolsse. op . cit. p. 197.


K6. 1-"R EUD. Sigmund, Além do princípio do prazer, op. cit . pp. 36-37.

172
mo excessivo desde a origem que denominamos violência. Violência, a
nosso ver, é toda ação traumática que conduz o psiquismo ou a deses-
truturar-u completamente ou a responder ao trauma através de meca-
nismos dt> deft>sa. análogos à economia da dor. Violenta é toda circuns-
tância de vida em que o sujeito é colocado na posição de não poder ob-
tt>r prazer ou de só buscá-lo como defesa contra o medo da morte.
A violência, portanto, radica num estímulo de natureza não~
sexual. E a sexualidade que emerge no sujeito violentado como conse-
qüênci a desta violência é sempre narcísica na medida em qu~ é uma se-
xualidade defenJiva.
E;~~;plicitemos esta afirmação. Para não parecer gratuita ela exige
uma digressão, com vistas a dissi par equívocos. ·comecemos por anali-
sar a primeira parte da afirmativa, sobre a natureza não-sexual do estí-
mulo violento. ·
Apa rentem ente, isto contradiz um certo número de evidências .
Podemos evocar, de imediato, a idéia de violência sexual e perguntar se
em casos como.este pode haver dúvidas quanto à natureza sexual do
estímulo violento. Sem descer a minúcias sobre o assunto, vamos con-
tentar-nos em afirmar que a sexualidade, na violência sexual, é o ins-
trumento e não a fonte da violência. Nosso raciocínio baseia-se nas
perspectivas teóricas abertas por Ferenczi em seu trabalho sobre a
"paixão e a ternura'', ao qual enviamos o leitor.''· Fundamentalmente,
nesse ensaio. além de outros do gênero, acreditamos que, em casos de
e.wupro, curra.f, .fadism o sexual ou manipulação perversa de criança por
adulws. o sujeito violentado, ad ulto ou criança, é invadido e desestru-
turado não por um desejo sexual do objeto violentador, mas por um de-
.feJo dt> morte. O abuso sexual sádico ou perverso é vivido pelo Ego
como uma ameaça de aniquilamento da "identidade primária", na
acepção que Lichtenstein dá a este termo. O que corre perigo, na vio-
lência sexual , não é a identidade sexual do sujeito, objeto de disputas,
desejos e reca lques nos traumatismos sexuais não-violentos . O risco,
naqueles casos, é o da desagregação do núcleo da identidade egóica. A
angústia. aqui, não é a da castração, é a angústia da morte.
Um outro esclarecimento, igualmente ne.çessário, diz respeito à
natureza não-sexual da excitação violenta. A objeçào·que poderia ser
levantada neste particular é de natureza mais metapsicológica que
clínica. Com isto queremos relembrar a postulação de Freud sobre a

IS7. FERENCZI. Sandor, Confusion of tongues betwccn adulu and thechild, in, Final
contributions to the problems &. methods or psycho-analysis, London, The Hogarth
Press and the lnstitute o f psycho-analysis, 1955, pp. l 56- 167.

173
universalidade da origem não-sexuàl da sexualidade. Esta postulação
poderia invalidar o atributo específico da violência, seu caráter não-
sexual, diluindo-o num princípio genérico, constitUJtivo de toda sexua-
lidade humana.
Para a fastar este provável mal-entendido , recapitulemos, suma-
riamente, a essência da questão. Quando Freud afirma a origem não-
sexual dá sexualidade, ele se refere ao eixo da teoria que vê a gênese da
sexualidade infantil como um fenômeno implantado "de fora" no psi-
quismo nascente do sujeito. Ao lado da sexualidade corpórea, secreta-
da, por assim dizer, pelos instintos (primeiro afluc:nte genético da se.
xualidade), a criança receberia uma sexualidade que lhe é inoculada
pelo investimento libidinal do adulto. Esta sexualidade colide çom o
instinto, remodela-o e dá-lhe o tom da sexualidade humana própria-
mente dita. Distinta da sexualidade instintiva, comum a todos os ani-
mais, esta sexualidade liga-se a um representante psíquico que vai de-
· terminar seus destinos, enquanto fenômeno intersubjetivo ou cultural.
Pois bem, um dos paradoxos da experiência humana é o de que
·esta sexualidade que envolve o psiquismo infantil é sexualidade para o
adulto mas não para a criança. Ela é sexual para um e não-sexual para
outro. No universo mental do sujeito infantil, a celfla da sedução ou do
coito primitivo não adquire, inicialmente, um sign1ificado sexual. Este
significado só é dado a posteriori. A princípio, a criança experimenta o
investimento sexual do adulto no seu corpo e no s~!U ser como pura ex-
citação, puro afluxo de energia sem qualificativos. É por esta razão
que fl\lamos, em psicanálise, do "traumatismo da sedução". A sexuali-
dade adulta é necessariamente traumática porque impõe-se à criança e
exige dela a resposta a uma dem anda (desejo do adulto) cujo sentido
foge, inapelavelmente, a seu entendimento. Só num tempo posterior,
através de uma interpretação retrospectiva, este "não-sexual" primor-
dial vai adquirir o caráter sexual ao qual o sujeito não tinha acesso, em
virtude de sua imaturidade biológica.
Sendo assim, é fácil perceber o que distingue esta origem não-
sexual da sexualidade do estímulo violento, tam!bém produtor de se-
xualidade. No primeiro caso, a sexualidade não existe para o sujeito
que sofre a ação da excitação mas está presente no desejo do objeto-
fonte da estimulação. Além disso, no trauma não-violento é dada à
criança a possibilidade de reconhecer, num segundo tempo, o índice li-
bidinal do estímulo traumático, o que não virá a acontecer na situa-
cão, desde o início, violenta.
Aprofun dando um pouco mais o tema, analisemos outra menção
de Freud à gênese não-sexual da sexualidade. Algumas linhas atrás,
chamamos a atenção para o fato de que a sexualidade humana advém
com~ corolário das necessidades vitais. Esta concepção genética desig-

174
na o que ~re~d descreveu ~orno nas~i"!ento da sexualidade apoiado
nun;,a funça? .YIIal. .A se~uahdad~ ~u~gma como um "prêmio de pra-
zer necessano a~ mvest1m~nto l•b•.dmal nas funções orgânicas que as-
seguram a sobrev1da matenal. Aqu1 também é visível a diferença entre
este "não-sexual", sinônimo de uma exigência imperativa da "ordem
vital" (eKpressão de Laplanche) que estimula o aparecimento da se-
xualidade como condição de vida, e o não-sexual da violência, gratui-
to, dispensável, arbitrário, que faz surgir a sexualidade, como defesa
contra a morte.
Em resumo, a origem não-sexual da sexualidade pode ser decom-
posta ou pensada em três acepções não coincidentes. Em duas, o não-
sexual é condicão necessária ao desenvolvimento normal, equilibrado,.
do psiquismo. Na última, produto da violência, o não-sexual é um fa- ·
tor traumático responsável pela emergência de defesas patológicas,
mobilizadas para o proteger o Ego ou a identidade do risco de destrui-
ção.
Passemos, agora, à parte da asserção onde é dito que a sexualida-
de provocada pela violência é uma sexualidade regeneradora, defensi-
va e, por conseguinte, inevitavelmente narcfsica. Demonstrar a valida-
.de desta afirmação exige um rápido retorno à discussão que acabamos
de manter.
Tanto na sexualidade implantada " de fora" quanto na sexualida-
de exigida pela "ordem vital" a criariça, ao apropriar-se da sexualida-
de, liga-se libidinalmente e de modo inelutável ao objeto-fonte da exci-
tação. No caso da sexualidade adulta, extrínseca ao sujeito .infantil e
imanente ao investimento amoroso dos pais no recém-nascido (sobre-
tudo através dos cuidados matemos), isto é particularmente visível.
Segundo a teoria do desenvolvimento libidinal e das relações de obje-
to, despertar para a sexualidade e unir-se ao representante pslquico da
excitação são uma só e mesma coisa. Vista neste quadrante, toda se-
xualidade, dentro dos padrões evolutivos normais, é sempre dirigida a
um objeto. Superada a fase originária da reação ao estimulo não quali·
ficado, a sexualidade infantil será uma sexualidade objetai. Pouco im-
porta que este objeto seja parcial ou total, formado à imagem do outro
ou do Ego.
O mesmo é verdadeiro para a sexualidade derivada das funções
vitais, como "prêmio de prazer". Neste processo, o estfm ulo vital é
imediatamente sexualizado pelo outro (objeto), encarregado de suprir
as necessidades funcionais da criança, e logo é investido pelo psiquis-
mo infantil como um objeto de desejo. Se, por acaso, a necessidade
nsica não for sexualizada pelo objeto, poderâ vir a sofrer perturbações
em seu desenvolvimento. A função vital, desinvestida pelo outro, leva-

175
rá o sujeito ao desinteresse pela função (anorexia, hospitalismo) o u a
seu .wperinvestimento narcíslco (bulimia, hipocondri~). .
Por este motivo é que afirmamos o caráter narcís1co da sexu ahda-
de "liberada' ' pelo impacto da violência. A sexualidade é co~npul.wr~a­
menie narcúica po rque não pode ligar-se ao objeto traumáfl co. _A ~ ~ o­
lência impede o surgimento da ,çexualidade objetai, dada a espe~Jfic l da­
de do estímulo rtão-sexua/ que veicula. O sujeito violentado va1 procu-
rar lidar com o objeto de outra maneira. Em vez de inves ti-_lo sexual-
mente tenta afastá-lo anular sua existência, inibir o ressurg1mento d~:
seus traços mnésicos 'o u evocá-lo para fixá-lo, assim com o antico rpos
diante de um corpo estranho. Este é o modelo da dor.
Acreditamos que este é o sentido mais palusível do que Frc~d
chama de liberação de um quantum sexual, pela ação de um traumatis-
mo. Embora possamos admitir, como quer Laplanche"R, que a libera-
ção desta energia sexual nãcrligada seja a angústia. equivalente psíquico
da dor {úica, pensamos que o raciocínio de Freud não se detém neste
ponto. Esta primeira fase do surgimento da sexualidade liberada pe~o
trauma violento é seguida, auto-!"aticamente, de uma reordenaçao
narcísica. A idéia de " sobrecarga narcísica do órgão lesado", anuncia-
da em Além do principio do prazer, confirma, em nossa opiníào. esta
interpretação.
• p.,rtindo desta premissa, podemos dizer 9ue ~ obj~to-fontc d<
violência (coisa. representação ou representaçao-c01sa) e sempre re·
prel'~"'tado pelo sujeito violentado como agente ~e _u!fla ameaça ~k
morte ou aniquilação, e não de simples frustração l1b1dmal. Este obJe·
to não é mau ou persecutório porque se furta ao desejo de praza . Um
ol;>jeto que se torna mau ou persecutório porque se auselll~. faiha ~ u
{alta é. no fu ndo . um bom ohjeto. O Ego pode atacá-lo, cind1-lo , proJe-
tá-lo. aluciná-lo oni ricamente, identific ar-se com ele ou co nvertê-lo em
instânci:t ideal , mas sempre deseja trazê-lo de volta à cena psíq uica ou
reencontrú- lo na· realidade.
O " objeto violentado~". pelo contrário. ou sempre foi ~usente e
destrutivo (é claro. na história objetai, construída retrospectivamente
pelo sujeito). ou, se em algum momento foi repres~ntad? . corno
"bom" cedo transform ou-se em " mau", pela recusa s1stemattca crn
dar pr<t~cr o u pela persistência exaustiva em p_rov_ocar_ dor. Esta om i~­
são ou intrusão tornam o objeto, em termos.wmotcottJanos, responsa-
vcl pcht experiência do impigement. . .. . . ..
O Ego. diante deste objeto traumático, pode tentar aluc~n u-lo .

l<K. LAPLANCHF.. Jean, Problématiques I - L'angoisse, op. cit.

176
projetá-lo, introjetá-lo, etc., mas para petrificá-lo, congelá-lo, mantê·
lo imóvel. A evocação mnésica do "objeto violentador", repetimos,
não é feita com vista à obtenção do prazer, mas com o objetivo de neu-
tralizar seu poder de destruição. Em certos casos, o Ego vai até o pon-
to de "aluciná-lo negativamente" . Este mecanismo, antípoda da aluci-
nacão positiva do objeto de desejo, mostra, claramente, a diferença en-
tre o trauma que se subordina aos mecanismos do prazer-desprazer e o
trauma que só é dominável pelo mecanismo da dor.
Um olhar histológico sobre este esquema interpretativo pode ob-
jetar que a experiência da violência nada mais é que o resultado de
uma cisão do Ego e do objeto, mantidos na posição esquizo-
paranóide. O objeto mau e persecutório poderia, sem prejuízo da c~m­
preensão, dar conta das repercussões psfquicas imputadas .a? obJe_to
violento. É possível. Mas, ·se assim fosse, teríamos que adm!ltr a exis-
tência da violência como um fenômeno normal no desenvolvimento
psíquico, o que julgamos improcedente, e a id~ia de 9ue a violência é a
simples manutenção, no adulto, de um estado mfantll, com o que tam-
bém não concordamos.
Discordamos da primeira parte desta afirmação porque contraria
a intuição que temos da diferença entre um traumatismo. frustração,
coerção ou desprazer quaisquer sofridos pelo sujeito e um ato de violên-
cia que pode atingir este mesmo sujeito. E se não bastasse a int.ui~.ão
do senso comum, teríamos, a nosso favor, toda uma corrente de 1de1as
psicanalíticas que demonstra a distinção existente entre o traumatismo
em geral e o traumatismo violento, como fizemos ver. Se a posição es-
quizo-paranóide de Melanie Klein é um fato indispens~vel à formaçã~
do psiquismo, não pode ser violenta. Pode causar anstedade o~ sofn-
mento, mas é óbvio que, se toda experiência de ansiedade e sofnmento
fosse etiquetada de violenta, esta palavra perderia o sentido.
A segunda idéia contida na asserção reproduz o erro, já discutido,
que consiste em considerar o patológico adulto com o psicológico in-
fantil que sobreviveu enquistado e imune às exigências do desenvolvi-
mento. Esta idéia é in defensável. Mas se por hipótese viéssemos a acei-
tá-la, chegaríamos à conclusão de que algum fator foi responsáve_l pela
intocabilidade desta posição, fator este que converteu o "mau objet~" ,
imprescindível à organização psicológica norma.J, em um "mau obJe-
to", desestruturante do psiquismo. A questão da violência permanece
exigindo solução. .
Como quer que seja, não temos nenhuma pretensão de mventar
um novo objeto psíquico quando adjetivamos o objeto traumático de
violento. Nossa meta é mostrar como este objeto violento, mau ou
persecutório, oferece uma nova possibilidade de entender o narcisismo
cultural. Narcisismo que pode ser vito não apenas como amor à pró-

177
pria imagem. dentro da dinâmic~ do prazer-despr~zer, ~as com~ um
movimento regenerativo, defensivo, em face da V!OiêncJa, atraves de
mecãnismos baseados na experiência ou modelo da dor. .
Voltemos ao nosso ponto de largada. O narcisism·o moderno, dts-
semos. é um narcisismo defensivo, voltado para o investimento do cor-
po. que se tornou foco de sofrimento e ameaça de morte pela ação da
violência. Esta hipótese choca-se aparentemente com as teses sobre o
hedonismo da sociedade contemporânea. Porém, a nosso ver, estafa-
ceta vendável da ideologia do bem-estar é divulgada para dissimular o
medo do sofrimento e da morte, que apavoram o individuo moderno.
Como mostram Lasch e Baudrillard, a conversão do corpo e do
sexo em objetos de consumo alterou. profundamente a representação
que o sujeito tem destes componentes de sua identidade. Esta ~Itera­
ção. é bom não esquecer, visa unicamente a atender as necesstdades
político-econõmicas do capitalismo tardio, isto é, _mante! os val.or~s e
a hierarquia de classes, num universo social urbamzado, mdustrtahza-
do e uniformemente integrado pelos meios de comunicação de massa.
Por conta destes objetivos, a imagem do corpo foi culturalr:nente trans-
formud·a. em dois sentidos: no primeiro, o corpo~ o sexo ~~o exaltad~s
como prova das virtudes do capitalismo. Os andtviduos sao convenct·
dos de que nenhuma sociedade é ou foi capaz de outorgar ~anta "/ib~r­
dade", autonomia, prazer e bem-estar a seus membros. Cna~se o mtt?
da igualdade diante do prazer, s~mulacr? da igualda~e- diante dos dt-
rieitos do homem e reforça-se a tdeologta da compettçao e do sucesso
individual. Só os' incapazes, os que opõem entraves psicológicos à
aquisição deste bem-estar, permanecem ma!ginalizad_os da democra-
cia do corpo e do prazer. De um só golpe, sao enaltectd~ o progres.so
técnico-cientifico. produtor de bem-estar, e o modo de vtda da. socte·
dude. Economia e política capitalistas são, deste modo, sacrahzadas.
Este é o lado feérico, festivo, da alteração da imagem corporal. É o
lado que exibe a excelência do regime. . .
O segundo sentido complementa o pnme1ro .e pr<:cura sanear as
mazelas e detritos que o decantado progresso técmco nao consegue :s-
conder . Esta mesma sociedade que diz liberar os corpos de sua funçao
instrumental (trabalho e reprodução da esp.écie) pa_ra ent~egá-l?s ao
"direito do prazer''. é a sociedade que polut o ambtent~; ancenttv~ a
competição e a concorrência por prestigio, status, celebndade; fabnca
guerra entre sexos e gerações, mata muitos de fome. e abarrota ·Uns-
poucos de comida e. enfim. ameaça a todos, democraticamente, com a
iminência do enfarte.
O lado sujo do capitalismo vem à tona como um "recalcado". E.
como não pode deixar de ser visto, tem de ser travestido. Toda a des-
truição que a irracionalidade político-econômica deste sistema fomen-

17X
ta é asseptizada e naturalizada sob o disfarce do stress . Cinicamente, a
publicidade e os meios de comunicaÇão de massa reciclam os objetos
da indústria do supérOuo e da moral do consumo, definindo-os como
uma espécie de "mal natural".
O pano de fundo da propaganda orientada para o culto do corpo
são os "inevitáveis males do progresso", as "inevitáveis tensões da
vida urbana", etc. Estes eufemismos, na verdade, destinam-se a per-
suadir os individuas do seguinte: posto que o capitalismo é inevitável,
compete a você, individuo, "virar-se" como pode para defender-se da-
quilo que você "não pode", "não deve" e "não tem direito" de criticar
ou tentar mudar. Em outros termos, já que não há nada a fazer contra
os "males necessários do progresso" e contra as ''inevitáveis tensões
da vida urbana", que se abra alas à brutalidade capitalista e que se
combata o demoníaco stress. O stress tornou-se a peste sagrada do
mundo secularizado. Em seu nome, tenta~se demover os indivíduos de
esboçarem qualquer reação contra a ''dadivosa opulência" do Siste-
ma.
Este sentido da alteração da ·imagell! corporal é, tanto quanto o
primeiro, indispensável à homeostase do regime. Sem ele, a farsa do
mundo pródigo em felicidade e bem-estar revelaria suas mentiras e ilu-
sões. Por esta raio é sistematicamente propagado, criando um parado-
xo intrínseco na definição da imagem corporal do homem urbano: por
um lado, o corpo é pintado como uma cornucópia de prazeres; por ou-
tro. como um ovo de serpente.
Evidentemente, toda civilização ocidental sempre incutiu no ho-
mem a idéia desta duplicidade de funções do corpo. O paradoxo a que
nos referimos não provém da reiteração estrepitosa deste legado cultu-
ral. O paradoxo surge na maneira como o corpo do íridivídÜo é situa-
do frente à possibilidade do prazer e da morte. ~ o modo pelo qual a
sociedade de consumo apresenta a morte e o prazer ao individuo que
redunda em violência e na conseqaente preocupação narcisíca com o '
corpo.
A sociedade patriarcal-repressiva- da poupança, do sacrificio em
beneficio das futur as gerações e da "dignidade do trabalho livre"- en-
sinava que o mundo era um "vale de lágrimas." O prazer devia ser
olhado com suspeita e administrado ou usufruído com parcimônia. O
limiar de transgressão sexual era extremamente bailto. A ousadia esta-
va confinada aos bordéis e outros centros de lultúria. Ali, libertinos.
mundanas, perdulários e devassos entregavam-se aos vícios da carne,
desafiando o fogo do inferno e as doenças incuráveis, propaladas por
médicos higienistas, pedagogos, psiquiatras, filantropos e moralistas
de toda ordem . A morte era o futuro do prazer pecaminoso. Para eví-

179
tâ-la, o indsvlduo· aprendia á moderar o prazer, t01;nando-o servo da
procriação. .
A sociedade de consumo alforriou o prazer do j ugo da morte espi-
rit\lal e material que o escravizava. A vida, ensina o capitalismo mo·
derno, é um "mar de rosas" para os que são livres. Como todos foram
..liberados para gozar, só os incapazes continuam a :Jofrer. Nesta socie-
dade, sofrer tornou-se um verdadeiro "infortúnio da virtude", uma
prova de "masoquismo" ou de resignação à ética dle renúncia burgue-
sa.
Naturalmente, a violência desta norma cultural não decorre da
generalidade manifesta destes enunciados. Propor prazer aos indivl·,
:duos em vez de sofrimento nada tem de reprovável, ainda menos de
violento. A tendência a evitar o·sofrimento e quere1r o bem-estar é, ine--
gavelmente, uma aspiração de qualquer ser humano. A mistificação da
ideologia do prazer não está no protesto contra a repressão e sim na
própria natureza do prazer que ela prega. Sofrer, nesta ideologia, sig·
nifica privar-se de um prazer que está sempre no COfJrJO do outro e jamais
no corpo próprio. O outro, fique claro, não é nenhutm agente empírico,
individuo concreto, palpável ou encontrável. O outro é uma abstração
reificada do corpo inventado pela sociedade de con~umo.
A teologia do prazer, na sociedade "puritano-·repressiva" (aceite.. ·
mos este adjetivo impreciso), procurava nivelar os corpos segundo a é-
tica da escassez. Quanto menos prazer, melhor. OI termômetro da se·
xualidade era o ascetismo monástico ou o "exemplo do el~fante",
como fez ver Foucault." Assim cómo o elefante (a metáfora ~de São
Francisco de Sales) o homem deveria copular o mínimo posslvel, com
uma só parceira e visando exclusivamente a reprodução. Aquele que
·quisesse alcançar um estágio ainda mais elevado d1e pureza, deveria la-
var-se depois do coito, como o elefante. Desta forma, estaria definiti·
vamente selado o caráter impuro do sexo.
Na sociedade de consumo, o padrão sexual é: de frinefsmo, como
diz Baudrillard. Os indivíduos são levados a crer num estado de prazer
que só e~iste no corpo da publicidade ou nos "manuais psicológicos",
que ensinam como gozar da maneira mais científiica, eficiente, econô-
imica e, "last but not least", saudável. Esta norma. sexual em conserva
~iagnostica como "disfunção" todo tipo de sexualidade que não ocu·
.p·a a vastidão de suas generosas fronteiras. Se por algum motivo al-
·guém se atreve a declinar do convit.e ao prazer feito pela p~blicidade, ~

89. FOUCAULT, Micl;lel e SENNETT, Richard, Scxuality and solitudc, op. cit.

ISÓ
· pli.ra _e .simplesmen.te estigmatizado como "doente", "neurótico"· "r~
_pnm1d~" , etc. · '
.. Por trás do apelo sexual enlatado insinua-se uma ameaça: ou o in-
diVIduo comporta-.se como manda o figurino do consumo ou está
doente e deve procurar tratamento. Ora, ninguém está à altura deste
ideal, .por um motivo muito simples: ele não é criado para ser alcança-
do e, portanto, para saciar o prazer dos indivíduos, mas para mantê·
los em estado de perpétua insatisfação, qae é o combustfvel do consu-
mo. Junto com os novos modelos de roupa, aparelhos de som, televi·
sores, calculadoras eletrônicas, vídeo-cassetes, microcomputadores ca-
seiros, relógios cronometrados, etc., os novos modelos de beleza, saú·
de e prazer são construídos numa velocidade vertiginosa. Só os ídolos
da publicidade, estes artefatos industriais, podem acompanhar este rit-
mo: O prazer do corpo do consumo é inatingível. Chegar até ele impli-
carta em desmantelar·a máquina de insatisfação descoberta pela indús-
tria do supérfluo, para continuar explorando eficazmente a força de
trabalho e a força de consumo.
A conseqüência psicológica desta moral do prazer e do sofrimen-
to é a preocupação narcisica. O individuo volta-se para si mesmo na
esperança de superar o estado de privação em que seu corpo é social·
mente mantido. É claro que não se trata de uma privação absoluta,
f~uto da r~ridade ascética ou puritana. Trata-se de uma privação rela-
t•va, nasc1da de uma oferta excessiva que é, entretanto, meticulosa-
mente distribuída segundo os interesses das classes ou grupos sociais
privilegiados.
,A. . im~ge~ freudiana do bê~ saciado, gozando da plenitude
n a rcJSI~a. e mdsferente ao mundo, na o se adequa ao narcisismo de hoje.
O narctslsmo com o qual convivemos é o narcisismo do "órgão lesa-·
do_" : do corpo privado de prazer. A insatisfação do homem urbano
ong1~a-~e nesta nova "doença" da cultural do consumo, ou seja, na
~onv1cçao de que seu corpo está sempre aquém do padrão de "norma-
·hdade" d~cretado pela publicidade. Donde a aparência religiosa que
?s ex~rclc10s de saude c bem-estar apresentam. Baudrillard procurou
•dent1~car as práticas de cultura flsica atuais aos rituais de purificação
e mo.rtlficação do corpo, na religião. No entanto, a não ser que se acei-
te a mterpretaç.ão de Luckmann sobre a "religião invisível" da socie-
dade secularizada, é dillcil conceber a exist&tci.a de uma ética sagrada
no culto contemporâneo do corpo.90

90. LUCKMANN, Thomas, La religión invis.ible, Salamanca, Edicionei, Sfgueme,


1973. -
lUCK ~AN_N, Thomas. On religion in modem socíety: individual con&ciousn~s.
world v1ew, mstitution, in, Joumal for thc Scicntilic Study of ReliJion, 1963.

181
La!ich partilha esta opinião. afinnand? q~e.as ~o.rmas ~onhecida.s
de religião possuem um ideal ~e. t.ranscendencta tn~tvtdual~ au,sent.e ."~
cultura do narcisismo. A senstb1hdade moderna, d1z ele, n~o e re~1g1o
sa. é terapêutica. no que concordamos inteiramente.. A lístonomta sa-
grada dos rituais de cultura fisica ~o~ernos ~ev~-se a. p_resem;a _d~ cer-
tos elementos igualmente encontrave1s nos ntua1s rehg1o~os. Falamo.s
dos · "dispositivos de disciplina corporal" e "tecnologtas do s~lr .
como foram conceituados por Foucault. De fato, en~re os exerctctos
fískos e espirituais dos "soldados de Cristo" de lnác1o de. loyola ~a
parafernália dietética. atlética, psi~oterápica, contemplativa, ev~s~va
ou esportiva da cultura urbana, extst_em ~lementos. fo~m.almente tden-
ticos. Ambos os procedimentos rituais ex1gem dos mdlvlduos ~m con-
trole draconiano. minucioso e constante d~ corpo_~ da~ :~oçoes, sob
a supervisão vigilante e impl acável de "gu1as esp1ntua1s do corpo e
da alma. . _
Porém os exercícios religiosos tinham em mua a salv~ç~o ~a al-
ma. na outra vida. A religião (pensamos basicamente no cnstt~ntsm?)
não prometia aos indivíduos nenhum p~raí~~ terrest~e._lsto ~ d1stanc1a
infinitamente da moral do consumo. O md1V1duo rehg10so tmha certe-
za de que um dia encontraria a paz e a quietude na presença de Deu~.
Seus esforços não seria vãos. Após a morte, ? _estado. de p~azer s~n~
obtido por toda eternidade. O alter-~~o narcts1co do md1v1duo reali-
zar-se-ia nos céus, de maneira defimttva e para todo o sempre. ,
Na ideologia do prazer, este estado d~ graça alcançado no al~_m
pelos bem-aventurados é definido como Imanente a~ corpo e nao
transcendente à vida. Sua natureza é terre~a e i~a/ca~çave(, porque. re.-
fabricada dia a dia pela moda. Mesmo asstm, ~ '.nsantdade coosumts~a
ordena que o indivíduo o persiga. como um SISifo. O corpo da mod.a,
miragem da onipotência erótica. enco~tra-se no m~~do, exposto nas
vitrinas. páginas de revistas, telas de ctne~a e telev_tsao. Mas, com? ?
rctlexo do Narciso grego, está lá para ser v1sto, cobtçado e nunca para
ser apropriado. Ao ser tocado ele some, desfaz-~e. .
Narciso. entretanto, compreendeu o desvano de seu deseJ~· A
loi.u;ura de sua consciência era uriHt loucura trágica ..su~ ~orte fo1 um
ato de rebeldia contra a lei da po/IJ que impunha ao tndtvLdu_o ou a es-
colha do objeto homossexual , com o dever de Estado (Narctso recu s~
Amioias). ~u a escolha do objeto heterossexual, como dever de Famt·
lia (Narciso recusa Eco)."'

9\ Ver u (stc propó~ito o suf!.estivo estudo de Hadot: . . N velle Re-


HÁDOT. pj~rr(. l.c mythe de narcissc et son interprétauon par Plotm, m ou
vuc d( Psychan~ly~e. op. cít .. Pfl· 1!1 · 1011 .

1H 2
Para o indivíduo moderno, a possibilidade de acesso à lógica da
coerção social é mínima . O pradoxo da injunção do consumo, embora
vivido, é ignorado pelo sujeito. A ideologia do prazer apresenta-se
com o um gesto amistoso da sociedade, em favor da liberdade indivi-
dual.
A sensibilidade terapêutica fecha-se num circulo vicioso. Comba-
tendo o stress, os indivíduos tratam o corpo ameaçado de morte; lutan-
do pelo prazer, tratam o corpo em estado de privação e sofrimento. De
tratamento em tratamento, cresce a espiral de ansiedade e diminuem
as chances que tem o indivíduo de encontrar satisfação em sua realida-
de corpórea ou em Jua imagem egóica. f: este o estado de violência que
pressiona o homem urbano.
Metapsicologicamente, esta violência explica-se pela relação que
o Ego mantém com o corpo e com a realidade do meio ambiente. Piera
Aulagnier diz que a condição para que o EU possa investir libidinal-
mente no corpo. suporte necessário à sua existência, é a de inocentar o
próprio corpo do sofrimento e ameaça de morte de que ele é portador.
Em suas palavras: "Para que a vida se preserve é preciso que o EU,
mesmo quando aprende que a última causa da morte inscreve-se na
natureza mortal do corpo, consiga 'coabitar', investir seu corpo como
um habitat, como uma possessão, um Bem a ser protegido contra uma
morte cujas causas serão sempre extrapoladas sobre o feiticeiro, sobre
Deus. um vírus, um assassino, um erro, etc., a fim de inocentar o cor·
po . Isto vai longe, porque o EU prefere se dizer responsável pelo que
acontece ao corpo; que ele exjgiu demais; que ele não cuidou bem; que
ele 'habitou ' mal, do que acusar seu próprio corpo ... Nossa experiên-
cia clinica, a mais cotidiana, prova muitas vezes que quanto mais o
corpo é efetivamente ameaçado, seja como fonte de sofrimento ou
como risco de morte, mais o paradoxo se acentua e mais o EU, para
evitar um conflito que o oporia diretamente ao corpo-próprio, vai re-
dobra r o paradoxo superinvestindo neste corpo, posto como vitima do
sofrimento e não como causa do sofrimento. ··~ 2
As observações de Aulagnier seriam facilmente aceitas por qual-
quer a nalista com razoável experiancia clfnica. lnocerrtar o corpo do
sofrimento e da morte custa ao sujeito o constante esforço psíquico de
atribuir a o utrem ou a si a responsabilidade por este sofrimento e esta
morte. Complementarmente, toda ameaça de morte ou sofrimento vai

92. AULAGNIER, Ptera, A "Filiação" Persecutória, in, Tempo Psicanalltico, Rio,


IMP, vol. 111. n• I, 1980,_p. 16.

183
exigir do sujeito um superinvestimemo do corpo que, como já mostra-
mos com Freud, é um investimento narcfsico.
A atribuição da responsabilidade a si e o s"perin'Vestimento narcí-
sico do corpo não podem. contudo, tornar-se um estado permanente
do fun cionamento psíquico. Esta situação seria incompatível com o
equilíbrio mental. Para que ela não venha a instalar-se o sujeito tem
que contar com a ajftda da cultura. Através do que Aulagnier chama
de "contrato narcísico" a cultura, entre outras coisas, legitima os áli-
bis que permitem ao indivíduo inocentar a si e ao corpo da responsabi-
lidade pelo sofrimento e morte.'l Quando este suporte cultural falha,
por deficiência do microgrupo social que é a família ou por incapaci-
dade do todo social em oferecer mecanismos de segurança ao indivi- .
duo (guerras, catástrofes sociais ou naturais), advém a patologia.
O que acontece no universo social do consumo é a quebra do
"contrato narcísico" tradicional. As mudanças econômicas, políticas e
sociais despojaram o indivíduo dos recursos clássicos empregados na
manutenção da imagem amorosa do Ego e do corpo. A cultura do
consumo, para subsistir, induz o indivíduo a crer que a responsabílida-
de pelo sofrimento ou morte do corpo compete aao próprio Ego .
-O pacto cultural toma outro rumo. Para que c• capitalismo mo-
derno possa ser poupado culpa-se o sujeito. O stress, afirma-se, existe.
Mas se o sujeito quiser e tiver competência pode vencê-lo. Os que. se
·deixam assassinar pelo stress têm a punição merecida pela irresponsa-
bilidade com que trataram o corpo. Do mesmo modo afirma-se a exi.s-
tência do sofrimento da repressão. Mas só para aqueles que hesitam
em copiar ou insistem em dizer não ao corpo da moda.
Os termos tendem a inverter-se. Na cultura tradicional, segundo
Aulagnier, o EU podia preferir atribuir a si a culpa .Pelo sofrimento e
morte do corpo. Na atual cultura urbana, para que :a demência consu-
mista se preserve. o EU é cada vez mais coagtdo a considerar-se autor
ou cúmplice destes crimes contra o corpo.
Sem muito esforço, pode-se prever o desfecho deste processo. O
Ego, acuado pela pressão culpabilizante, cria meca1nismos de'Sobreví·
v~ncia que incluem na pauta de condutas psicológka e culturalmente
estáveis, rotineiras e cotidianas a ansiedade, dc:pres!;ão e fatigas crôni-
cas; frieza afetiva e descompromisso emocinal; agressão cega indistin-
tamente dirigida a tudo e a todos, etc. f: o que Lasch denomina de
"patologia do narcisismo".

93. AULAGNIER, Pü:ra. La violenoe de !'ínterprétation, Pa1ris, PUF, 1975.

' 184
Este termo, entretanto, é impróprio . O fato patológico só existe
por oposição ao fato psicológico. isto é, ao desenvolvimento psíquico
tido como padrão de normalidade. Uma vez que a conduta psicológica
normativa, fixada pela cultura, admite em seu repertório estes meca-
nismos mentais. eles já não podem ser tidos como patológicos. O sujei-
to já não experiemnta estes estados afetivos como incompativeis com
os parâmetros universais de conduta, definidos pela cultura em ques-
tão. Sem esta cláusula. afasta-se a po&sibilidade de se interpretar o fe-
nômeno como patológico. Entramos no campo do chamado mal-estar
existencial, onde o sofr imento deriva do afastamento entre o compor-
tamento pJicológico real do indivíduo e as características do ripo psicoló-
gico ideal, determinado pela cultura. Esta tensão existe em toda socie-
dad~ conhecida, o que não significa dizer que qualquer organização
social é igualmente danosa ou benéfica para seus indivíduos. Muito ao
contrário, a crítica que fazemos à sociedade de consumo tenta provar
o oposto desta tese. No entanto, criticar uma dada ordem social pela
violência psicológica imposta aos indivíduos não equivale a dizer que
a .tociedade é doente. Tampouco implica em subsumir as características
psicológicas universais do indivíduos que a ela pertencem na categoria
do psicopatológico. O sofrimento moral pode instituir-se como forma
corrente da existência psicológica do individuo. quando comparamos
um modo de vida social a outro. Isto é razão suficiente para que criti-
quemos tal modo de viver, mas não justifica a anexação dos comporta-
mentos e sentimentos individuais ao vocabulário médico-patológico.
Esta manobra teórica visa a atacar ou defender a sociedade, da
maneira como seus partidários ou inimigos julgam mais eficiente ou
conveniente. Os adversárjos, chamando a sociedade de patológica ou
patogênica, pen sa m, com isso, atingi-la com mais contundência; os de-
fensores, procurando isentá-la dos crimes de violência, depositam no
individuo a culpa pelos males de que padece. Transposta para nosso
tema, esta troca de insultos revela-se inócua e sem conseqOências. Di- ,
zer que o indivíduo é doente ou inverter a proposição, colo<:ando em
seu lugar a sociedade, pouco esclarece o· problema. O impasse do in-
divíduo urbano não é o de saúde ou doença, sua ou da sociedade, mas
o da impossibilidade de escapar da teia de violência em que se encon-
tra. Isto porque tanto o consumo de terapias quanto os métodos de eva-
são, remédios que lhe são oferecidos pela cultura como alívio para
suas dores e desconfortos, não esterilizam os focos de violência. Estes
analgésicos morais só fazem manter acesa a relação persecutória que o
Ego estabelece com o corpo. Sintonizados com a sociedade de consu-
mo, perpetuam a "doença cultuai", por uma espécie de efeito iatrogê-
nico.
To·nemos, <.:orno exemplo, o caso das terapias que visam a dar ao

185
índivídu.~ ;1 possibilidade de otimizar o prazer. Estes mecanismos de
manutcn.;ào da identidade tornam o sujeito um eterno candidato ao
prazer. um aspirante sempre reprovado à pós-graduação nesta maté-
ria. Esperando o diploma, o estudante do prazer desenvolve sem per-
ceber uma série de comportamentos que são os efeitos colaterais do
tratamento. O prazer do consumo é intransigente. Seus seguidores, en-
quanto não atir.";em o nirvana, têm que fazer voto de solidão, de
pobreza afetiva, ~astídade amorosa, desinteresse pelo mundo e de ado-
ração ao "corpo-rei". Entretanto, na caminhada em direção à terra
prometida, começam a queixar-se da incapacidade de amar, da incom-
pre~nsão de todos que os cercam, da inviabilidade intrínseca das rela-
ções amorosas, da tristeza, do isolamento emocional, etc. O mesmo su-
jeito que, ade$trado pelas terapias, despede com um estalar de dedos
tudo c todos que possam estorvar o prazer vendido pelo consumo, em
breve debate-se com um dilema insolúvel. Para inocentar o Ego da cul-
pa pelo sofrimento do corpo, é levado a privar-se da relação com os
outros, o que também lhe traz insatisfação, infelicidade e sofrimento.
Novos sofrimentos reclamam novas terapias, que vêm substituir, no
mercado do consumo, as mercadorias velhas e ultrapassadas.
A escalada é interminável e as saídas oferecidas são sempre as
.mesmas: mais pressão sobre o indivíduo que, ao cabo de algum ttem-
po, ou torna-se "blasé", como previu Simmel''. ou procura evadir-se,
magicamente, turnando-se um adepto da droga. Deixemos de lado, no
. momento, a anMise de outras hipóteses. Os indivíduos podem recuar
historicamente a formas de organização da vida afetivo-familiar con-
servadoras e repressivas. podem adotar condutas delinqüentes, entrar
bruscamente na psicopatologia, quando entram em jogo fatores idios-
sincráticos, ou romper com o ciclo do consumo, através da crítica dos
padrões normativos de comportamento. Concentremos a atenção nas
duas possibilidades antes indicadas.
O indivíduo "blasé", pela indiferença, abdica do desejo de prazer
e da possibilidade de emocion;u-se. Não critica a sociedade nem culpa
a si. Exclui de seu funcionamento mental qualquer pensmento sobre o
prazer, mutilando a identidade, e adaptando-se ao aleijão. Em poucas
palavras, desfaz-se da ansiedade, robotizando-se. Entrega-se à "sedu-
ção da barbárie" como um turista, um "flâneur", nos termos de Wal-
ter Benjamin. A descrição do complexo psíquico responsável por este
proces$~ é intrincada. Em _um trabalho sobre o racismo, tentamos des-

99. Ver, SIM MEL, Georg, A metrópole e a vida mental. ín. o Fenômeno urbano, 3•
ed .• Rio, Zahar. pp. I 1-25.

186
trinçhar alguns destes mecanismos. tomando por base as teses de Neu-
sa Santos Souza.""'
O drogado, ao contrário do "blasé", reivindica o direito ao prazer
do consumo e, no êxtase da droga, acredita. finalmente, redimir o Ego
e o corpo da culpa pelo sofrimento. Não dependendo de ninguém, rea-
liza na plenitude o mito do prazer da sociedade de consumo. Prazer re-
novável a qualquer momento e independente de quem quer que seja.
Naturalmente. a ilusão é efêmera. A dependência de drogas. após um
certo tempo. converte-se numa fonte de sofrimento do corpo maior
que o prazer sexual reprimido pela sociedade. O drogado, por uma via
inesperada, aprende que a "obrigação de gozar" é tão penosa quanto a
impossibilidade de ter prazer. Não se pode desejar melhor prova con-
tra as injunções mistificadoras do prazer do consumo que a violência
exercida pelo sujeito drogado contra seu corpo, a fim de inocentá-lo
do sofrimento.
Em síntese. as terapias do corpo e da alma. como os meios de eva-
são, precipitam o sujeito na "ninfomania espiritual" e na "hipocon-
dria cultural ... características do nosso tempo. Esta incapacidade em
obter o prazer. sempre adiado em nome do prazer absoluto fabricado
pelo consumo, é a fonte de violência, matriz da preocupação narcísica .
O corpo tornou-se um objeto persecutório, que ameaça constantemen-
te a integridade egóica. O prazer buscado visa, primordialmente, a
proteger o indivíduo da marginalização sócio-cl,l.ltl,l.ral 01,1., o que é mais
dramático, da ameaça de morte pelo stress. Este corpo, insaciável, não
é mais 'para o Ego o objeto que realiza o desejo de prazer. ~o objeto
que o Ego tenta dominar e controlar, à custa de um crescente senti-
mento de culpa e de uma ansiedade infindável.
Freud. inspirado na lenda grega, dizia que na escolha de objeto
narcísica, o indivíduo amava no outro: a) o que ele era; b) o que foi; c)
o que queria ser, ou; d) a pessoa que foi uma parte da pessoa-
própria.'"' Se tivesse testemunhado a ascensão no ocidente da socieda-
de de consumo. Freud certamente perceberia que o indivíduo pode
voltar-se narcisicamente para si porque é obrigado a "amar"; a) o que
não é; b) o que nunca foi; c) o que nunca poderia desejar ser ou; d)
uma pessoa que jamais fez parte da pessoa-própria.
O narciso moderno não é um Narciso, é uma prosaica Moura-
Torta. Como a Moura-Torta, ele não ama a imagem de si mesmo, pelo

100. Ver: SOUZA: Neuza Santos. Tornar-se negro e as vicissitudes da. identidade do
nellro brasileiro em ascensão social. Tese de Mestrado, Río. IPUB, 1980.
101. fREUD. Sigmund. Pour introduire le narcissisme. op. cit.

187
contrário, a odeia. Como a Moura-Torta, ele está obsessivamente fas-
cinado pela invejada e odiada imagem do corpo da princesinha. Sem a
posse deste corpo principesco, o corpo da moda, as portas do castelo
lhe serão fechadas e... adeus! sonhos de celebridade, poder, riqueza e
exibicionismo.
Esta relação de ódio ao corpo-próprio. e ódio e inveja do corpo
desejado é motor do interesse narcfsico, presente na. sociedade de con-
sumo. ~ a relação de Dorian Gray com seu retrato c: a relação de Gus-
tav Aschenbach com Tadzio que fornece o modelao espiritual do Ego
con.sumans (para retomar a expressão de Baudrillard) do homem urba-
no.
"Viva! Yivá a maravilhosa vida sua! Não perca coisa alguma de-
la. Busque sempre novas sensações. Que nada o atemorize ... Um novo
hedonismo - é disto que precisa o nosso século. O senhor pode ser-lhe
o símbolo visível. Não há nada que o senhor não possa realizar com
sua personalidade. Por algum tempo, o mundo.lhe P'ertence... Juventu-
_de! Juventude! Não há absolutamente nada no mundo, senão a juven-
tude" .102 O trecho é de Oscar Wilde, mas poderia s'ervir de legenda a
qualquer propaganda de mercadorias, nos nossos dias. No "Retrato
de Dorian Gray", estas palavras de Lord Henry hiipnotizaram o he-
rói. Dorian Gray, perseguido e torturado pela juvc:ntude e beleza de
que foi eleito símbolo, por uma ordem do outro, só 'encontrou paz as-
.sassinando o odiado ideal de si mesmo. Do mesmo modo, Aschen-
bach, apaixonado por Tadzio, seu jovem e "doentio" Narciso, morreu
em Veneza, assolada por uma peste, cujo perigo mortlfero insistia em
desconhecer.
Wilde e Mann, descontados o moralismo e sentimentalismos, in-
tuiram a originalidade do narcisismo que aflige os condenados ao pra-
zer do consumo. O ideal narcfsico de hoje carrega er.n si uma promessa
de morte para o Ego, inevitável. Pois, ou o sujeito o encarno, transfor-
ma-se em sfmbolo da motúz e não mais pode conviver e habitar seu cor-
po mortal, votado·à velhice e ao sofrimentl) -o ret1rato "possui" Do-
rian Gray- ou o sujeito n4o pode encam6-/o e desenvolve uma relação.
de ódio para consigo e para com o ideal invejado e inacessível - "suicí-
dio" de Aschenbach e desejo de morte em relação a Tadzio - que só
encontra saída na morte10l.

102. WILDE, Oscar, O retrato de Dorian Oray, Sio Paulo, Abril, 1980, p. 33.
. 103. MANN, Thornas. Tõnio Kroeier e A morte em Veneza, Slo Paulo, Abril, 1982.

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Esta relação mortlfera, odiosa, do Ego para com o ideal narcísico
do consumo. é, obviamente, maquiada pela sociedade que a produz.
Mas a fúria com que o~ indiv(duos reagem à queda de seus deuses
publicitários (ódio ao ideal) e a crueldade com que atacam os deserda-
dos da juventude, beleza, poder e riqueza (representantes do corpo-
próprio) denunciam continuamente a miséria moral e mortal que o sis-
tema cria e procura, a todo custo, ocultar.
A 'Geração AI-5, mais que condenada, merece ser entendida.
Mesmo porque, ela não existiu como um lapso politico, num momen-
to de crise histórica. Ela contini.Ul existindo, vítima dos mesmos meca-
nismos que lhe deram origem. Sua existência mostra que o "fantasma
romântico", da "alienação do mundo moderno", como querem al-
guns, pode até ser romântico, mas tem muito pouco de fantasioso.

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