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Omnia Vanitas: uma radiografia do poder oligárquico

Wagner Cabral da Costa

“Há nos próceres republicanos uma necessidade


extraordinária de serem gloriosos e não esquecidos pelo
futuro, a que eles se recomendam com teimoso interesse”
(Lima Barreto, O Triste Fim de Policarpo Quaresma).

De como um astuto interesse se apropriou do Convento

O historiador francês Pierre Nora, ao analisar o processo de constituição da


memória da República na França, construiu o conceito de “lugares de memória” para
designar os “restos”, os lugares onde “subsiste uma consciência comemorativa”
republicana e cuja razão de ser é “parar o tempo”, “bloquear o trabalho do esquecimento”,
“imortalizar a morte”. “Lugares de memória” são fortalezas onde a memória se defende
dos ventos e tempestades da história. História que representa a morte e o esquecimento
tão típicos da modernidade, esta destruidora dos laços de identidade com o passado e
dos atores sociais portadores de uma dada memória. Daí, a necessidade de fundação dos
“lugares de memória”, de uma “memória histórica”, um compósito de história e memória,
porém um compósito ameaçador e desvirtuante, pois, por um lado, nega a “experiência do
vivido” peculiar à memória, e, por outro, inutiliza a crítica do passado inerente ao ofício do
historiador.
Há nove anos, comecei com essas palavras um breve artigo, publicado nas
páginas do jornal O Imparcial, sobre a toponímia maranhense. Nele argumentava que as
elites maranhenses haviam construído, ao longo do século XX, um discurso sobre a
história regional sob a ótica dominante, através do ato aparentemente neutro de nomear
as cidades. Estas formam um conjunto toponomástico centrado na louvação e celebração
de duas tradições. A primeira seria a tradição literária, consubstanciada no mito da Atenas
Brasileira, contando com municípios como Gonçalves Dias, Graça Aranha, Humberto de
Campos, João Lisboa e Nina Rodrigues, dentre outros. A segunda, a tradição política,
cristalizada num discurso de celebração do poder oligárquico, perenizado na história do
Maranhão via a constituição de um Pantheon político no qual os sucessivos grupos da
oligarquia inscrevem os seus representantes, como que “naturalizando-os”, ao torná-los
parte da paisagem, elementos da natureza mesma do Maranhão.
No altar-mor deste Pantheon figuraria o Bequimão, “herói” do nativismo e da
luta pela liberdade, um “herói” político, mas também “amoroso”, pois ama tanto a sua terra
que por ela “morre contente”. Manoel Beckman fundaria uma distinta dinastia de líderes
políticos “amorosos” que se estenderia à atualidade, pois, afinal, o Maranhão é “berço de
heróis”, segundo fomos condenados pelo hino estadual. Haveria uma linhagem formada
por políticos do Império (Barão de Grajaú), da República Velha (Benedito Leite, Urbano
Santos e Magalhães de Almeida), do Estado Novo (Paulo Ramos), da República Nova
(Vitorino Freire, junto aos governadores Sebastião Archer, Eugênio Barros, Newton Belo e
Nunes Freire), e, finalmente, a partir da ditadura militar de 1964, “resplandeceria” todo o
“fulgor” do Presidente Sarney e seus aliados, os senadores Alexandre Costa e La
Rocque, os governadores Luís Rocha e Edson Lobão. Percebe-se, portanto, a intenção
deliberada de constituir os cardeais de cada geração da oligarquia dominante em “lugares
de memória”, de torná-los “gloriosos e não esquecidos pelo futuro”.
Pois é de um teimoso interesse que trata este livro, escrito por Emílio
Azevedo dentro dos parâmetros de um jornalismo investigativo e comprometido com a
denúncia política e social. Nele, o jovem jornalista, apoiado em farta documentação,
disseca de forma crítica o processo de apropriação do secular Convento das Mercês pelo
autoproclamado “poeta e defensor da liberdade”, numa estratégia de nobilitação pessoal
sem precedentes na história maranhense – e, quiçá, nacional –, através da qual o atual
senador pelo Amapá pretende erigir em seu nome um museu / mausoléu em São Luiz.
Por meio de uma fundação privada e utilizando-se de uma vasta rede de tráfico de
influência (que abarca vários governadores de Estado, Assembléia Legislativa, Poder
Judiciário, Senado Federal), o vaidoso interesse pretende estabelecer uma espécie de Taj
Mahal maranhense, um monumento à morte que celebra a dominação política entre os
vivos. Em síntese, objetiva a instituição de um “lugar de memória”, que é
fundamentalmente um “lugar de poder”.

Da invenção de uma tradição jornalística de oposição

Se outras razões não houvesse para a leitura do livro, esta bastaria: a


decidida e corajosa denúncia de toda a operação orquestrada pelo oligarca e seus
associados, apoiada em minuciosa pesquisa realizada concomitantemente ao trabalho do
jornalista como assessor parlamentar. Dessa maneira, Emílio Azevedo satisfez tanto o
objetivo imediato de crítica, num momento em que a política maranhense encontra-se às
voltas com uma acirrada crise intra-oligárquica cujos desdobramentos se definirão nas
eleições de outubro deste ano; quanto o objetivo mais amplo de produzir um denso
registro histórico das práticas políticas patrimonialistas ainda adotadas no Maranhão em
fins do século XX e neste início do século XXI. Uma obra de interesse para estudiosos e
historiadores do presente e do futuro, pautada no compromisso com a história, conforme
as palavras do autor.
Alguns, talvez, achem prematura tal afirmação. No entanto, gostaria de
lembrar que algumas das melhores fontes para a história do Maranhão foram elaboradas
por jornalistas exatamente no calor da hora, a partir da vivência e engajamento nos
embates e disputas entre as parcialidades políticas. Material jornalístico que o
pesquisador submete ao escrutínio da crítica histórica, visando compreender o papel e a
estratégia dos atores sociais, o lugar de produção do discurso, o conjunto de interesses
envolvidos. É um conjunto documental em que está presente a opinião autoral, a
intertextualidade, a interpretação dada pelo jornalista aos fatos, a adjetivação (às vezes
excessiva) de pessoas e grupos, a defesa de sua própria visão de mundo, o compromisso
pessoal, o partidarismo (em graus variáveis) – nada disso diminui, nem empobrece as
fontes jornalísticas, pois os historiadores há muito abandonaram a idéia de um jornalismo
“neutro” e “imparcial”, nem trabalham mais com a existência de uma “verdade” objetiva, a
ser extraída dos documentos para recriar “os fatos tal como eles realmente aconteceram”.
Na historiografia contemporânea, toda e qualquer fonte é encarada como uma produção
social, um discurso socialmente elaborado, capaz de instituir realidades e de ao mesmo
tempo ser instituído por estas mesmas realidades. Foi desse modo que recebi com prazer
a tarefa de ler os originais d’O caso do Convento das Mercês, submetendo-o ao crivo de
historiador.
Como, portanto, não inserir o trabalho de Emílio Azevedo numa desprezada
tradição maranhense, constituída por jornalistas combativos que, cada qual a seu tempo,
foram severos analistas da realidade local? Em terras tão pródigas na invenção de
tradições, por quê não (re)construir também esta tradição de jornalismo de oposição?
Sem querer ser exaustivo e enciclopédico, quero lembrar alguns nomes dessa linhagem,
a começar por Estêvão Rafael de Carvalho e seu periódico satírico Bemtivi (1838),
envolto nas lides entre conservadores e liberais do Império que culminaram com o
advento da extraordinária revolta popular que foi a Balaiada. Sobre este, o padre e
historiador Astolfo Serra escreveu em seu livro sobre a insurreição:
“Conjugavam-se-lhe na personalidade predicados os mais chocantes. À austeridade
impressionante de sua vida pública unia um temperamento irrequieto e combativo,
atirando-se à luta de corpo aberto, com um desprendimento de verdadeiro Quixote...
Era um inimigo perigosíssimo; as suas zombarias tinham algo de veneno selvagem, que
penetrava fundo na alma popular... Atirava-se com o mesmo desassombro contra os
adversários políticos, como contra os homens do seu partido. Temível e irreverente,
não trepidava, apesar de ser homem de partido, em vir declarar em público os crimes e
erros de seus partidários... Entretanto, não lhe faltavam talento e cultura para dar
equilíbrio a tão contraditórias atitudes”.

Ainda na época do Império, lugar de destaque cabe ao jornalista e


historiador João Francisco Lisboa, nome maior na tradição da Atenas Brasileira, que, ao
lado de Estêvão Rafael de Carvalho, foi também participante ativo nas disputas das
décadas de 1830, 1840 e 1850. Liberal e humanista que, já desiludido, escreveu o Jornal
de Tímon (1852), apresentando-se como um “pintor dos nossos costumes políticos”,
através do exame da vida partidária e de “sua influência sobre os costumes e a moral
pública e privada”, traçando um panorama crítico da vida política provincial. Tímon, “um
grego nascido e criado nas históricas margens do soberbo rio Itapecuru” – este era o
pseudônimo através do qual João Lisboa recuperava a memória do ancestral helênico,
apelidado de Misantropo, pois seria um homem que “votou um ódio tão entranhável ao
gênero humano, e de maneira o reputava entregue aos crimes e aos vícios, que se
pagava mais do desprezo que da estima dos homens”. Um João Lisboa capaz de
formulações que, à luz da conjuntura contemporânea, poderiam ser consideradas mesmo
proféticas, quando se refere à morte da política e dos partidos em terras maranhenses:
“Os nossos partidos são intolerantes e insaciáveis. Qualquer vitória lhes não basta, e
ainda a completa aniquilação dos partidos contrários os deixaria talvez pouco
satisfeitos e mal seguros de si... Se os nossos partidos fossem mais fortes, mais cheios
de fé, menos divididos e multiplicados, não teriam tamanho medo uns dos outros e
poderiam andar de ombro a ombro e em muito amigável companhia, procurando cada
um alargar a sua influência, melhorar a sua posição e fazer valer os seus direitos sem
negar os alheios. Nisto é que consiste a vida política; tudo mais é antes ausência dela,
ou, para melhor dizer, a morte” (Eleições na Antiguidade e Eleições e partidos
políticos no Maranhão).

No rol dos combativos, saltando para o século XX, ergue-se a figura de


Nascimento Moraes, professor e jornalista, um crítico impiedoso dos costumes de São
Luís após a Abolição e a Proclamação da República, descritos no romance Vencidos e
Degenerados (1915), onde se volta para uma espécie de “história vista de baixo”, com
verniz naturalista, a partir dos segmentos explorados da sociedade. Um intelectual negro
a se contrapor aos mandos e desmandos das elites dominantes, bem como de sua
expressão intelectual, o grupo dos “Novos Atenienses”, capitaneado pelo patrono da
Academia Maranhense de Letras, Antônio Lobo (a quem ferinamente alcunhou de Antônio
Bobo). Auto-definindo-se a partir da divisa “Eu sou um lutador”, Nascimento Moraes
escreveu ainda Neurose do Medo (1923), uma denúncia do governador Raul Machado
(preposto político do oligarca Urbano Santos). Livro sobre o qual o poeta Nauro Machado
teceu as seguintes considerações:
“... mediando entre a verrina mais contundente e a comiseração mais extremada para
com os desamparados e oprimidos, numa análise que alia a radiografia do poder a
conhecimentos da desmontabilidade afetiva da psique humana esmiuçada pela
psicanálise freudiana... Nascimento Moraes toma como ponto de partida uma
arbitrariedade policialesca, tão ou mais comum ainda em nossos dias, para
explosivamente fazer sacudir a facção política àquela época dominante em nosso
Estado” (As esferas lineares, p.73-5).

Tomando a liberdade de me apropriar das palavras do poeta para fazer


referência ao texto de Emílio Azevedo, eu diria assim: é uma radiografia do poder
oligárquico, criticamente exposto em suas mazelas a partir de uma arbitrariedade jurídica
e patrimonial (a posse ilegal do Convento) – esta, talvez, uma boa definição para o livro
que está em suas mãos, prezado leitor.
Mas continuemos nossa (re)invenção da tradição jornalística. O período de
domínio do senador Victorino Freire (1945/1965) foi particularmente marcado pela
presença de inúmeros jornais e jornalistas combativos, vinculados às Oposições
Coligadas. Como não citar Erasmo Dias (o Agônico dos Apicuns, na pena de Nauro
Machado) e seus editoriais explosivos no jornal O Combate? Ou o Jornal Pequeno, “o
órgão das multidões”, de José de Ribamar Bogéa (com as críticas mordazes de Zé
Pequeno, hoje continuadas através do Dr. Peta)? Ou o ainda hoje atuante Neiva Moreira,
o Caramuru das batalhas da Campanha de Libertação, travadas na Greve de 1951? Ou o
periódico que marcou a trajetória deste último, eternizado nos versos do poeta João do
Vale, quando canta que o “Jornal do Povo descobriu outro roubo”? Sobre a greve, a mais
expressiva mobilização popular contra o domínio oligárquico e a fraude eleitoral, existe a
novela Revoltoso Ribamar Palmeira (1978), de Adailton Medeiros, com seu poético e
trágico início:
“Mudo, antes o tiroteio comeu alto, roçou de ponta a ponta: a lei falou sua fala. Sim, a
fala-força dos fuzis, das balas, não belas, amarelas. Bolos de mortos. Para se ir à morte
não é preciso passaporte. Um quieto domina a Praça Dom Pedro II. Gente morrida
matada, corpos sangrando, lares sem pais, filhos, tudo, a prostituição. As gentes
estavam rebeladas: a corrupção, as velhas estruturas, o caciquismo e o sindicato da
fraude. Universidade da fraude (A mão maquiavélica de Vitorino. ‘Uma porca será
eleita, até pro Senado, se ele desejar’ – diziam) assim chamaram”.
“— Escuta esta, fala baixo, dizem que foi muita gente enterrada viva, só com a perna
quebrada, por exemplo, mas era ordem superior. Moradores dali de junto do [cemitério
de] São Pantaleão contam que ouviam os gemidos, os apelos”.

Nesse período, militou também Antônio Justa, o qual recriou no romance


Praia do Desterro (1965) inúmeros eventos da Greve de 1951, tais como os incêndios na
periferia e as mortes dos populares João Evangelista e José Prado. Este jornalista, ao
lado de José Chagas, publicou as ácidas Vitorinadas, nas páginas de O Combate,
invectivando o domínio do Senador de Moxotó. Acerca do poeta e jornalista José Chagas,
é preciso relembrar ainda um pequeno livro de poesias: O caso da ponte de São
Francisco (1962). Ouso dizer que, para além da coincidência de títulos (pois se tratam de
Casos), o poema de Chagas é o equivalente histórico, em relação a Victorino Freire, do
sentido mais amplo do livro de Emílio Azevedo para o estadista de Curupu, ou de
Neurose do Medo para Urbano Santos. Ao tratar do mais rumoroso caso de corrupção e
desvio de verbas do início dos anos 1960, o poeta de Maré-Memória quis sintetizar em
chave alegórica o significado do vitorinismo, enquanto estrutura de poder dominante no
Maranhão: “Falo aqui no ‘caso da ponte’. Mas há só o caso; a ponte, não. E exatamente
porque não existe a ponte é que existe o caso. O caso da ponte”. A ponte, “uma coisa
lendária” e “símbolo de nossa vida política”.
“Dizem que a ponte é curta / (apesar de infinita) / para o quanto se furta / em sua longa
escrita, / e que a ponte é um desvio / de tanto dinheiro, / que ela mesma é que é um rio /
correndo o tempo inteiro”.
“A ponte volta acima / do quanto se sonha / como a obra-prima / da falta de vergonha. /
... / A ponte é quase / uma sombra vazia / apoiada em base / de fantasia. / Que mais
construiria / essa ultramoderna / secreta engenharia / de quem nos governa? / A ponte é
um achado / como igual não há: / nem tem o outro lado / nem o lado de cá. / É pois um
símbolo vivo / na vida do Maranhão, / vida sem lado e motivo: / sem governo e
oposição”.

Em outro trecho, o poeta conta “como se resolveu o difícil problema da


pintura da ponte”. “Um dia chegou dinheiro / para a pintura da ponte. / Se era falso ou
verdadeiro, / não sei, quem souber que conte. / Sei que São Luís todinha / assombrou-se
de repente. / Que pintor do diabo vinha / pincelar o inexistente?”. Logo surge a pergunta:
“Que cores buscar no além / para essa beleza extrema?”. Verde-amarelo, vermelho, azul,
preto, cinzento, creme, branco, marrom – todas foram rejeitadas. Mas, eis que surge a
solução:
“Então a sábia assembléia, / cansada dessa tolice, / com a mais genial idéia, chamou
um pintor e disse: / ‘Com pincel comprido ou curto / pinte-a seja como for. / Se a ponte
é feita de furto, / torne a ponte furta-cor’. / Daí porque a ponte é isto: / arco-íris de
ilusão / sempre visto sem ser visto / nos ares do Maranhão”.

Esta seria, talvez, a ocasião de se indagar: além da prosa, que poesia seria
escrita hoje para O caso do Convento das Mercês? Com que imagens, que sonoridade,
que métrica (ou ausência dela), seria possível descrever o mausoléu pretendido pelo
astuto interesse? Qual bardo falaria do promíscuo caso entre a memória e o poder? Quais
signos da morte seriam apropriados para tanto? Desconheço se Emílio se aventura com
as Musas... Em todo caso, desconfio que o (in)existente poema não sairá de lavra já
consagrada, pois 19 membros da Academia Maranhense de Letras assinaram um
manifesto defendendo a manutenção do Convento nas mãos da Fundação controlada
pelo “dono do mar”. Na ausência de poesia moderna, lembro a prosa poética do barroco
padre Antônio Vieira, voz sempre abalizada para cantar o Maranhão, desta vez em seu
Sermão do Bom Ladrão (1655).
“Encomendou el-rei D. João, o Terceiro, a S. Francisco Xavier o informasse do estado
da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo
escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se
conjugava por todos os modos... O que eu posso acrescentar, pela experiência que
tenho, é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes
daquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o
verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e
esquisitos... Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos,
perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam,
furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda
esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E
quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias
suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam
carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas”.

Da arte de (não) fazer provocações

Como disse antes, só o valor de denúncia bastaria para qualificar a leitura de


O caso do Convento. Porém, há outras razões, relacionadas ao não-dito no texto. Refiro-
me à sua capacidade de provocar reflexões para além do escrito, sobre questões políticas
e teóricas que não foram objeto imediato da atenção do jornalista, mas estão presentes
em suas interpretações e conclusões. Eis aqui, portanto, algumas propostas para
provocar o pensamento, o seu, nosso pensamento, amigo leitor.
A primeira questão está vinculada à própria conceituação da estrutura de
poder existente no Maranhão, se existe uma oligarquia, um coronelismo, um “esquema”,
um mandonismo, ou outro ismo qualquer. Há algum tempo, venho argumentando em
artigos, debates e entrevistas que existe uma estrutura oligárquica e patrimonialista de
poder no Maranhão – e que é necessário compreendê-la para travar o bom combate.
Esse esforço precisa ir além do senso comum e da origem etimológica da palavra
oligarquia, que, em sua matriz grega, com Aristóteles especialmente, significava um
governo impuro e viciado exercido por poucos (ricos).
Trata-se de pensar o conceito de oligarquia em termos teóricos e históricos.
Penso, dessa maneira, na existência de uma estrutura oligárquica de poder assentada na
utilização patrimonialista do Estado, ou, em outros termos, baseada no uso extensivo da
máquina pública com vistas à ascensão, reprodução e perpetuação de grupos no poder
regional. Patrimonialismo, na acepção proposta por Max Weber, enquanto indistinção
entre as esferas pública e privada, a partir do que grupos privados se apropriam do
Estado para atender seus interesses particulares. Uma estrutura patrimonialista e
oligárquica que é tecida por relações de poder, práticas políticas, visões de mundo,
conformando uma cultura política específica.
Segundo me parece, é exatamente a ausência de uma reflexão mais
aprofundada sobre o conceito e a utilização da palavra oligarquia apenas em seu senso
comum que obscurece dimensões fundamentais do problema, restringindo-o ao domínio
de uma família ou de um “esquema”, quando se trata de uma estrutura de poder e de uma
cultura política fortemente enraizadas e que sobreviveram a todas as mudanças
experimentadas pelo Brasil ao longo do século XX. Por isso, muitos falam,
equivocadamente a meu ver, que “a oligarquia Sarney acabou” (porque não está
atualmente no controle do Executivo estadual, por conta da dissidência do governador
José Reinaldo) ou mesmo que “tudo é oligarquia” (referindo-se a grupos que dominam
determinados municípios). Exprimindo ou tudo ou nada, o senso comum da palavra
oligarquia de pouco serve.
Esta vertente interpretativa, de matriz weberiana, encontra-se, por exemplo,
em Raízes do Brasil, um clássico da historiografia no qual Sérgio Buarque de Holanda
discute o tema da formação nacional, a partir da identificação de um traço constitutivo do
“caráter brasileiro”, o predomínio do “homem cordial”. Este seria fruto da sociedade
patriarcal surgida ao longo do processo de colonização, sociedade que formaria a
subjetividade dos indivíduos a partir dos valores privados da ordem familiar, em oposição
aos valores públicos e impessoais da sociedade moderna. Nestas condições, o “homem
cordial”, ao atingir postos na administração estatal, levaria consigo os valores forjados no
seio da família, com o que se estabeleceria o predomínio do interesse privado sobre o
interesse público. Este seria, na visão de Sérgio Buarque, um dos principais obstáculos a
uma efetiva democratização da sociedade brasileira.
Nesse aspecto, o presente livro é, sem dúvida, uma rica contribuição para
desvendar os mecanismos efetivos de funcionamento do poder patrimonialista no
Maranhão, reconstituindo as relações de poder tecidas pelo velho oligarca em torno de si
para a concretização da posse ilegal do Convento das Mercês, envolvendo o beneplácito
de quatro governadores, a subserviência da Assembléia Legislativa, o silêncio do
Ministério Público Estadual e do órgão federal responsável (IPHAN), a cumplicidade do
Senado da República, do Ministério da Justiça e do Supremo Tribunal Federal. A cadeia
de compromissos e de tráfico de influência fica desnudada nas páginas mordazes de
Emílio, cadeia que se estende ainda ao patrocínio do Banco do Brasil, da Caixa
Econômica Federal e de empresas privadas, como a CEMAR e a CVRD. Desvelamento
ainda da apropriação de recursos públicos e enriquecimento privado, através de
fundações e do Sistema Mirante de Comunicação, para não falar dos dividendos políticos
oriundos do culto à personalidade do patriarca e da campanha eleitoral “fora de época” da
filha, a senadora Lunus.
Uma segunda questão a se pensar, estreitamente vinculada à primeira, é a
interpretação do padrão de relações entre a oligarquia maranhense e o poder federal, pois
o livro detalha esse padrão em algumas de suas dimensões, evidenciando o elevado grau
de influência do Estadista de Curupu na República petista de Luís Inácio Lula da Silva.
Tenho procurado discutir a idéia da existência de uma “estratégia periférica”, a nortear os
processos de ascensão dos chefes oligárquicos no Maranhão. Essa estratégia consiste
em se estabelecer na condição de mediador entre a política federal e o plano estadual, a
partir do pressuposto de que, em um estado pobre e dependente da federação, a relação
com o centro político nacional é fundamental para a obtenção de recursos políticos e
financeiros que serão utilizados de forma clientelista pelo grupo oligárquico dominante.
Um horizonte de ação política tão enraizado que se reproduz inclusive nas práticas de
boa parte da oposição, que tenta fazer o mesmo jogo, a exemplo da dissidência do atual
governador, migrando de partido e construindo uma candidatura a governador afinada
com Brasília.
Segundo essa linha de raciocínio, Victorino Freire foi um preposto do poder
central, que ascendeu após a queda do Estado Novo (1945) a partir dos eixos: apoio ao
Presidente Dutra, pertencimento à “copa e cozinha” do Palácio do Catete e filiação ao
PSD. Já o autoproclamado “defensor da liberdade”, José Sarney, foi o representante civil
da ditadura militar no Maranhão (fato sempre destacado ao longo do livro), sendo alçado
à condição de governador pelas mãos do general-presidente Castelo Branco, para se
constituir na base de sustentação do regime ditatorial através do partido do “sim, senhor”,
a ARENA. São bem conhecidos os “saltos de canguru” que ele deu depois, com o
abandono do barco da ditadura quando este naufragava, passando a compor a chapa da
Aliança Democrática ao lado de Tancredo Neves (com o que chegou à presidência, no
PMDB) e o apoio a todos os presidentes que se lhe seguiram. Um governismo inato e
dependente seria, portanto, uma característica “natural” do poder oligárquico.
Contudo, um ponto a se aprofundar é a caracterização destes dois pólos de
poder nas diversas conjunturas da redemocratização após 1985. Numa vertente, o poder
central é visto como democrático e moderno, tendo que, infelizmente, fazer alianças e
concessões às atrasadas oligarquias regionais, em nome da governabilidade. Essa é a
versão (aqui um tanto simplificada) que preponderou em boa parte das análises dos
últimos governos da República, tanto de Fernando Henrique Cardoso, quanto de Lula. A
tensão estaria estabelecida entre um centro moderno e uma periferia atrasada, havendo
uma tendência à superação do atraso, com o “fim das oligarquias”. Recordo que as
revistas semanais de circulação nacional passaram os oito anos de FHC repetindo o
jargão tucano de que esse seria um dos maiores legados do governo do PSDB (o que não
se efetivou, logicamente). Por outro lado, como dimensionar a decepção de muitos com a
aliança Lula / Sarney a partir de 2002? Quantos não sonharam que a “libertação do
Maranhão” viria de cima, por obra e graça da intervenção “saneadora” do governo
petista? Quantos não tentam reeditar no pleito de 2006 a carcomida “estratégia
periférica”?
Entretanto, a título de provocação, é possível pensar esse padrão de
relações com uma ótica diferenciada, partindo da noção de patrimonialismo aqui
discutida. Em lugar da oposição moderno x atrasado, a via de mão-dupla entre a
oligarquia maranhense e o governo federal não sugeriria a existência de um continuum
dentro da mesma estrutura patrimonial nacionalizada? Se for assim, a existência do
“atrasado” Maranhão não apontaria os limites e debilidades da “moderna” democracia
brasileira, como a desvendar seu fundo falso, pois que continua apoiado nas práticas
patrimonialistas ditas “arcaicas”? A fragilidade da democracia não seria maior do que se
pensa, especialmente a partir da onda neoliberal, com sua afirmação exacerbada do
privado e redução da esfera pública? Se não, como pensar as denúncias de corrupção e
favorecimento durante as privatizações de FHC? Ou a compra de votos para aprovar a
reeleição? Ou ainda o escândalo do “mensalão” no governo Lula? E a pizzaria aberta no
Congresso Nacional, servindo massa requentada para absolver deputados, ao som do
Hino Nacional e coreografia da gordinha deputada? Nestes termos, a realidade do
sistema político em seu conjunto não estaria mais próxima d’O caso do Convento? Um
caso extremo, é bem verdade, mas elucidativo da força desse continuum patrimonialista a
unir os dois pólos de poder e estruturar as relações em sociedade.
Uma última questão para reflexão remete à imagem da Queda da Bastilha,
utilizada no livro para falar da reação do senador de Saraminda, mobilizando céus e terras
para impedir a perda do “símbolo do seu império”, o monumento que havia obtido
ilegalmente e que foi destinado para servir como “atrativo turístico”, “até ponto de
peregrinação”, um “lugar de memória” para o culto à sua personalidade. Tomarei a
liberdade de ampliar o campo de aplicação dessa alegoria citada pelo autor.
Nos últimos anos, e especialmente por ocasião dos 40 anos do advento do
fatídico golpe político-militar de 1964, a confraria dos historiadores tem se debruçado em
torno de inúmeros debates envolvendo a crise da chamada “democracia populista”
(1945/1964), a escalada dos militares ao poder (com substancial apoio civil ao golpe), a
dinâmica do autoritarismo, as lutas de resistência contra a ditadura, o processo de
redemocratização, o “renascimento” dos movimentos sociais, a experiência democrática
da Nova República (já completando seus 21 anos – 1985/2006). Dentre as temáticas
abordadas, uma adquire relevo em função de seus desdobramentos na vida política
nacional, trata-se da análise das “batalhas de memória”, atualmente em curso na
sociedade brasileira, pois “a essência de uma nação... é que todos sejam capazes de
esquecer muitas coisas”, adverte o filósofo francês Ernest Renan. Essas são batalhas
através das quais os diferentes indivíduos e grupos sociais buscam atribuir sentido aos
acontecimentos da ditadura militar e da redemocratização, atribuindo-lhes um significado
(ou relegando-os ao esquecimento) na memória coletiva.
Os problemas envolvendo a abertura dos arquivos da ditadura aos
pesquisadores, a apuração da responsabilidade pelos casos de desaparecimento, tortura
e morte, a discussão do papel dos militares na ordem democrática evidenciam as
dificuldades existentes na sociedade para recordar e discutir o regime ditatorial, bem
como os limites de um processo de redemocratização que, apesar da imensa ampliação
da participação popular, foi definido em suas linhas gerais a partir de um processo de
transição pelo alto, um pacto conservador intra-elites que resultou na vitória da dupla
Tancredo / Sarney no Colégio Eleitoral. Desde então, setores dominantes da sociedade,
que participaram ativamente do golpe e da sustentação civil ao regime militar se
empenharam em reconstruir a memória social no sentido de “apagar” qualquer traço de
sua ligação com a ditadura. Conforme afirma o historiador Daniel Aarão Reis:
“Os militares, estigmatizados gorilas, culpados únicos pela ignomínia do arbítrio. A
ditadura, quem a apoiou? Muito poucos, raríssimos, nela se reconhecem ou com ela
desejam ainda se identificar. Ao contrário, quase todos resistiram... E assim, a nação
que construiu a ditadura absolveu-se e reconstruiu-se como uma nação democrática,
reconciliando-se, reconciliada... Mas a ditadura militar, não há como negá-lo, por mais
que seja doloroso, foi um processo de construção histórico-social, não um acidente de
percurso. Foi processada pelos brasileiros, não imposta, ou inventada, por marcianos”.

Trata-se da produção ativa do “esquecimento” na sociedade brasileira,


através do que os “revolucionários de 1964” (leia-se, civis e militares golpistas e
autoritários) se transformam nos “novos democratas” de hoje. Por esse prisma, os
empresários, as multinacionais, a grande mídia, a cúpula da Igreja Católica, setores
conservadores das classes médias, os políticos civis – todos foram isentos de
responsabilidade pelo regime de terror e medo que se instalou no país.
Todos se metamorfosearam em “convictos democratas”, reescrevendo
trajetórias individuais e coletivas, a exemplo do magnata das telecomunicações, Roberto
Marinho, que, por ocasião de sua morte em 2003, foi saudado como agente da
“integração nacional”, mecenas protetor da cultura e da educação, mas principalmente foi
“lembrado” como um “democrata”, que protegia “subversivos comunistas” em seus jornais
e que “sofreu a censura” da ditadura. Poucos foram os que lembraram do apoio do Jornal
O Globo ao golpe de 1964, do seu comprometimento com a direita no poder,
transformando a rede de televisão (fundada em 1965) em porta-voz do regime autoritário,
das concessões e benesses obtidas, do silenciamento produzido em torno das greves e
mobilizações, do falseamento do significado da Campanha das Diretas-Já, das
manipulações de pesquisas e debates eleitorais, só para citar alguns episódios.
Nesse sentido, a apropriação ilegal, hoje transformada em disputa pelo
controle do Convento das Mercês, a tentativa de evitar a “Queda da Bastilha” por parte do
senador marimbondo (ou moribundo?), não se referem apenas ao vaidoso interesse de
autopromoção e nobilitação pessoal, visando estabelecer um culto à personalidade, mas
também, diria mesmo que principalmente, ao “desmemoriado” interesse de reescrever a
trajetória dessa mesma personalidade, agora transmutada de subordinado civil da
ditadura militar em “poeta e defensor da liberdade” (como se afirmou na exposição da
Academia Brasileira de Letras organizada em 2000). Ao projeto de (re)escritura de uma
história oficial do Estado na qual a personagem seria o suposto “libertador do Maranhão”
das garras da Ocupação do oligarca Victorino Freire, bem como fundador do “Maranhão
Novo”, moderno (já consubstanciado na obra do “historiador” diletante Benedito Buzar,
dentre outros); agrega-se o projeto de (re)escritura da história nacional, relendo-se o seu
papel durante a transição pelo alto, com o advento da Nova República, para o de um
pretenso “estadista” e “democrata”.
Eis uma dialética singular de produção simultânea da comemoração e do
esquecimento em torno da personagem, processo elaborado de forma extremamente
seletiva e sistemática, através de várias iniciativas envolvendo livros de história, literatura,
biografias (há uma inclusive sobre o centenário do pai e a dinastia Araújo Costa), matérias
nos meios de comunicação da família e a criação de “lugares de memória”, pois não se
trata apenas do escandaloso Caso do Convento das Mercês, há ainda a Casa do Sarney
em Pinheiro, com o projeto irrealizado de formação de um centro cultural com seu nome,
ocupando meio quarteirão bem no centro da cidade (projeto que seria realizado pela
Gerência Estadual de Infra-Estrutura, mas que se encontrava paralisado quando estive na
cidade em março de 2006, em função dos conflitos do grupo oligárquico com o atual e
dissidente governador).
Por estas iniciativas (que outras tantas haveria por aí? No Amapá, talvez?),
percebe-se o quanto o senador maribondo se recomenda a seu teimoso interesse de
construir, reescrever e fortalecer sua imagética Bastilha, conjugando por todos os tempos
e modos, mas apenas na 1ª pessoa o latim vanitas. Afinal, Vanitas vanitatum et omnia
vanitas (“Vaidade das vaidades, e tudo [é] vaidade” – Eclesiastes 12:8).

Em resumo, a fluidez da escrita, a corajosa radiografia do poder, o


minucioso e bem documentado registro histórico e a capacidade de provocar reflexões
sobre variadas questões de âmbito regional e nacional se encontram entre as qualidades
d’O caso do Convento das Mercês, livro que insere o autor na boa companhia de uma rica
tradição de jornalismo combativo existente no Maranhão. Vida longa e próspera a ambos!
Por fim, pedirei ao paciente leitor que seja benevolente com este escriba,
bem como com o dedicado jornalista d’O caso, em nossas imprecisões e imperfeições.
Acontece que ambos fomos tolos e impertinentes, incapazes de seguir os sábios
preceitos do jesuíta espanhol Baltasar Gracián, que, em seu A Arte da Prudência: um
oráculo manual (1647), advertia aos homens do século XVII sobre a necessidade de “não
ser provocador, comprometendo a si ou aos outros”, pois:
“Há quem seja um tropeço para o próprio decoro ou para o alheio. Esses estão sempre a
um passo da tolice. É fácil encontrá-los e difícil com eles conviver, pois são sempre
infelizes. Não se satisfazem com cem contrariedades por dia. Estão de pêlo eriçado e
contradizem a todos e a tudo. Com o juízo às avessas, desaprovam tudo. Mas os que
mais afligem nossa prudência são aqueles que nada fazem direito e falam mal de tudo.
Há muitos monstros no vasto país da impertinência”.

* Professor do Departamento de História da UFMA. Mestre em História Social pela UNICAMP e


doutorando em História pela UFPE. Organizador da coletânea História do Maranhão: novos
estudos (São Luís: Edufma, 2004). Autor de Sob o signo da morte: o poder oligárquico de
Victorino a Sarney (São Luís: Edufma, 2006), no prelo.

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