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Cadernos IHU em formação é uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU que reúne

entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados na revista IHU On-Line e nos Cadernos IHU
ideias. Desse modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, sobre temas considerados
de fronteira, relacionados com a ética, o trabalho, a teologia pública, a filosofia, a política, a economia,
a literatura, os movimentos sociais etc., que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Memória e justiça:

quando esquecer é imoral


Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ

Vice-reitor
José Ivo Follmann, SJ
Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor
Inácio Neutzling, SJ

Gerente administrativo
Jacinto Schneider
Cadernos IHU em formação
Ano 8 – Nº 41 – 2012
ISSN 1807-7862

Editor
Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos
Profa. Dra. Marilene Maia – Unisinos
Dra. Susana Rocca – Unisinos

Conselho científico
Prof. Dr. Gilberto Dupas (") – USP – Notório Saber em Economia e Sociologia
Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia
Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências Sociais
Prof. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História
Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em Comunicação
Prof. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia
Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS – Doutor em Psicologia Social e Comunicação

Responsável técnico
Marcelo Leandro dos Santos

Revisão
Isaque Gomes Correa

Projeto gráfico e editoração eletrônica


Rafael Tarcísio Forneck

Universidade do Vale do Rio dos Sinos


Instituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467
www.ihu.unisinos.br
Sumário

Prefácio: As faces da memória e as sombras da violência


Por Castor M. M. Bartolomé Ruiz ......................................................................................... 5

A memória, uma categoria central do cristianismo


Entrevista com José Antonio Zamora .................................................................................... 8

Doze perguntas sobre o inferno


Entrevista com Alfredo Jerusalinsky ...................................................................................... 14

O Holocausto e o dever da memória


Entrevista com Abrão Slavutzky ............................................................................................ 20

O império do instante e a memória


Entrevista com José Antonio Zamora .................................................................................... 27

A impunidade alenta o retorno da barbárie


Entrevista com Alfredo Jerusalinsky ...................................................................................... 33

“Não se deve confundir o perdão com o esquecimento”


Entrevista com Cecília Pires .................................................................................................. 37

Ninguém aceita a morte por suposição


Entrevista com Alfredo Culleton ............................................................................................ 41

Lembranças vivas, feridas abertas: a punição aos torturadores da ditadura no Brasil


Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Filho ................................................................ 44

“Nossa transição democrática está incompleta”


Entrevista com Paulo Abrão .................................................................................................. 51

Lei da Anistia: “O medo falou mais alto”


Entrevista com Pedro Serrano ............................................................................................... 54

Memória e ditadura militar: “Precisamos passar a limpo o que aconteceu”


Entrevista com Christa Berger ............................................................................................... 57

A ditadura e a cultura do medo


Entrevista com Paulo Abrão .................................................................................................. 61

Os 30 anos da anistia no Brasil


Entrevista com Jair Krischke ................................................................................................. 64

“É imoral igualar o terrorismo do Estado brasileiro à luta que se empreendeu contra ele”
Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Filho ................................................................ 69

De ditadores a imperadores com pés de barro


Entrevista com Roberto Romano ........................................................................................... 75

3
Reféns da lei. Que Justiça é essa?
Entrevista com Lenio Streck .................................................................................................. 79

O regime do medo continua


Entrevista com Deisy Ventura ................................................................................................ 83

Brasil: uma democracia pela metade


Entrevista com Dalmo Dallari ................................................................................................ 86

Ninguém está acima da lei


Entrevista com Kathryn Sikkink ............................................................................................ 89

A apuração da verdade: grande medo das instituições militares


Entrevista com Edson Teles ................................................................................................... 93

A lei da anistia e o esquecimento da barbárie da ditadura


Entrevista com Jair Krischke ................................................................................................. 97

A anistia não é esquecimento ou amnésia


Entrevista com José Carlos Moreira Filho ............................................................................. 101

Pinochet e a herança grotesca da ditadura


Entrevista com José De La Fuente......................................................................................... 108

As marcas indeléveis da tortura


Entrevista com Cecília Coimbra ............................................................................................ 117

Esquecer a violência: uma segunda injustiça às vítimas


Entrevista com Castor Ruiz ................................................................................................... 123

Parque da Memória, um monumento para não esquecer o terrorismo de Estado


Entrevista com Nora Hochbaum ........................................................................................... 131

Justiça, o dever da memória


Entrevista com Reyes Mate ................................................................................................... 136

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Prefácio

As faces da memória e as sombras da violência

Depois, desde quando eram desembarcados na ilha tituiu a abertura para a alteridade. A alteridade
onde seriam vendidos, dava dor no coração de qual-
constitui a condição de possibilidade da subjetivi-
quer um que tivesse um mínimo de piedade, vê-los nus
e famintos, que caiam desmaiados de fome meninos e dade humana. Essa fratura abre o humano para
velhos, homens e mulheres. Depois, como se fossem a experiência do outro como diferente e para a
cordeiros afastavam pais de filhos, maridos de mulhe- experiência do tempo como desdobramento da
res, fazendo manadas de dez a vinte pessoas e botan-
do sorte sobre eles, para que levassem os ganhos os
finitude. O (in) finito humano se confronta com
armadores, que põem o dinheiro para armada de dois a experiência do tempo. A temporalidade institui
e três navios, e para os tiranos salteadores que vão a o humano como ser capaz de vivenciar a alteri-
capturá-los e raptá-los nas suas casas. dade do presente em relação a um passado, que,
A memória é o espelho do paradoxo hu- todavia, lhe pertence, e a um futuro que pode-
mano. A contradição atravessa a memória como rá construir. A experiência da temporalidade ar-
uma linha imperceptível do agir humano. Ela não quiteta a memória como potência de sentido. A
é boa por natureza; no entanto é indispensável experiência da temporalidade nos faz humanos:
para se viver. Ela tem perigos; no entanto sem memorizar é dar sentido ao tempo vivido. A me-
ela corremos o risco de repetir permanentemente mória temporaliza as vivências, articula-as com
nossos erros. os sentidos. Por isso a memória é genuinamente
Ainda cabe fazer uma distinção antropoló- humana.
gica importante. Os animais têm lembranças, Da memória, como do humano, só se pode
enquanto que só o ser humano tem memória. A falar em plural. Há muitas formas da memória, ou
lembrança é uma recordação pontual e insignifi- há muitos modos da memória a se constituir. Esse
cante do acontecido. A memória é uma reconsti- é o primeiro paradoxo: o plural da memória exige
tuição significativa dos acontecimentos vividos. A a singularidade de cada sujeito, a especificidade
memória é uma produção criativa do imaginário de cada sociedade. A memória é plural e singular,
social humano. Ela cria o sentido do vivido, dá mas não universal no sentido ontológico do con-
sentido à vida, faz o sentido da história. A história ceito. A memória, como todo o humano, existe
existe como memória, a memória cria a história. como prática histórica e não como um universal
A memória existe como ruptura da tempo- dedutivo. Haveremos de falar das múltiplas me-
ralidade. Os animais não têm memória porque mórias possíveis, mas teremos que nos confrontar
não têm temporalidade. O ser humano existe de com as práticas concretas de memória.
forma fraturada, ele é aberto para a alteridade. A publicação que ora apresentamos – Me-
A alteridade instaurou no humano a experiência mória e justiça: quando esquecer é imoral – é
da finitude e a abertura para a infinitude. A fra- uma leitura plural, caleidoscópica sobre a memó-
tura do naturalismo, na qual se encontra imersa ria. Mas a pluralidade converge num recorte si-
a mera condição biológica do resto dos seres vi- nérgico de pensar a memória em relação à violên-
vos, provocou uma abertura interior que instituiu cia, à memória, à justiça e às vítimas. Tal recorte
o humano como humano. O humano só existe introduz a memória na arena conflitante da justiça
porque nele se fraturou o naturalismo e se ins- histórica.

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Um segundo paradoxo transparece quando trato. A justiça também é uma prática humana
se percebe que a memória, como prática humana, que não pode ser deduzida a priori, tal como pre-
não é naturalmente boa ou má. A valoração axio- tendem os princípios procedimentalistas. A justiça
lógica da memória, como todo o humano, emerge tem que se confrontar com a alteridade singular
do caráter histórico das práticas. Ninguém pode se das vítimas injustiçadas. A singularidade histórica
intitular defensor ou detrator a priori de qualquer das injustiças recoloca a justiça num frágil terreno
memória, como se de um universal metafísico se da especificidade histórica do justo.
tratasse. A vida requer a memória para sobreviver, A memória não mais permite esconder a jus-
mas em muitos casos exige esquecimento. tiça na aplicação da norma, uma vez que exige
Afinal, quando a memória se torna impor- a restauração da injustiça cometida à vítima. A
tante, imprescindível? Qual o critério para definir justiça procedimental se limita a aplicar a norma,
a validação ética da memória? Talvez sejam es- a normalizar os sujeitos para restaurar a ordem. A
sas duas questões o pano de fundo invisível que memória das vítimas exige uma justiça restaurati-
norteia os diversos ensaios, entrevistas e reflexões va do dano feito pela injustiça. Desde a memória
desta obra. das vítimas, o prioritário da justiça é reparar a in-
A memória se torna importante, imprescindí- justiça e a alteridade ferida. Em segundo lugar,
vel, para pensar a justiça. Por quê? Porque a jus- ficam as questões penais e procedimentais de cas-
tiça existe em relação à injustiça cometida. Para tigo por transgressão da lei.
implementar uma justiça real, há de se recuperar Esta nova perspectiva da justiça ainda tem
a injustiça histórica cometida. Sem a memória da muitos outros desdobramentos epistemológicos,
injustiça não é possível fazer justiça efetiva aos éticos e políticos. Entre eles, esta obra propõe o
injustiçados. Talvez esteja aqui o “calcanhar de debate com a questão da memória histórica. Mais
Aquiles” que torna as formas de justiça procedi- concretamente, a injustiça histórica cometida por
mental algo formalmente bem construído, mas regimes autoritários que, em nome da lei e da
vazio de justiça efetiva. A justiça procedimental, ordem, impetraram a barbárie como tecnologia
que demarca o modo hegemônico das justiças biopolítica.
institucionais nas sociedades modernas, prescin- O autoritarismo é a sombra que assombrou
de da memória como critério do justo e em seu nosso continente latino-americano desde que no
lugar propõe os princípios formais abstratos. A século XVI se tornou um território de colonização
justiça sem memória reduz-se a um procedimento e conquista. A memória histórica revela-se espe-
formal de preservação da lei e da ordem vigentes. cialmente importante nos contextos biopolíticos
A memória devolve à justiça seu sentido ori- em que as estratégias dos Estados modernos fize-
ginal: fazer justiça às vítimas. E aqui encontramos ram da vida humana um meio útil para ser escra-
a resposta à segunda questão. O critério para (in) vizado ou exterminado segundo os interesses de
validar um ato de memória é sua relação com a cada momento.
(in) justiça das vítimas. A memória é condição A memória histórica é condição necessária
necessária para que injustiça cometida possa ser de uma justiça também histórica. Sem memória,
trazida ao presente como critério de justiça. Sem as vítimas das barbáries ficam esquecidas e insig-
memória, a justiça é cega. Sua cegueira não re- nificantes. Os vencedores sempre implementaram
presenta a imparcialidade, como pretende a justi- políticas de esquecimento das barbáries como
ça procedimental, mas a sua incapacidade de ver estratégias hermenêuticas para legitimar seu do-
as vítimas que demandam a justiça. A memória mínio político. Para os vencedores das barbáries,
recoloca a condição das vítimas como critério pri- o esquecimento é seu principal aliado e a memó-
meiro de qualquer forma de justiça. A memória ria o maior perigo. Para as vítimas, a memória é
da injustiça outorga à alteridade humana das víti- o recurso que resta para tentar reaver a injustiça
mas uma importância política desconhecida pelo impetrada e demandar a justiça histórica possível.
formalismo procedimental. A justiça também se Ainda há de se destacar, entre outras muitas,
diz em singular, para cada vítima, e não em abs- a coimplicação negativa que há entre memória

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e violência. A violência, todo tipo de violência, perpetua a violência como uma prática normal.
produz um efeito mimético sobre os sujeitos que Ao normalizar-se, a violência deixa a sociedade
a praticam e sobre os que a padecem. A violência vulnerável para que ela venha a se impetrar como
contamina a todos que toca desencadeando uma uma forma normal de governo ou de polícia em
espécie de mímese violenta em todos os afeta- qualquer momento.
dos. A violência se propaga, entre outras formas, Essas reflexões sobre a memória, a violência
como uma espécie de instinto contaminante que e as vítimas, têm um eco muito particular no con-
leva os sujeitos a se tornarem naturalmente vio- texto latino-americano e brasileiro, em particular,
lentos e fazer da violência um fenômeno natural. que quer se confrontar com as políticas de esque-
A mímese naturaliza a violência, a normaliza na cimento lavradas pelos últimos regimes de exce-
sociedade como uma prática normal das pessoas ção na segunda metade do século XX. A violência
no comportamento cotidiano. A imitação miméti- das últimas ditaduras latino-americanas e brasi-
ca da violência induz a normalização das subjeti- leira nada tem de normal ou anormal na sequên-
vidades violentas. cia da violência histórica de nossas sociedades.
A principal alavanca do mimetismo da vio- A normalidade institucionalizada da violência
lência é o esquecimento. A violência produz sub- só pode ser desmascarada por atos de memória
jetividades violentas que, sob aparência de terem histórica das vítimas. Encontramo-nos na encruzi-
esquecido a violência cometida ou até sofrida, lhada histórica em que, talvez pela primeira vez,
recalcam a violência nos porões da subjetividade as sociedades latino-americanas e brasileira não
e das instituições à espera de retornar como com- estejam aceitando a violência institucional como
portamento normal. O esquecimento aparente da uma prática de normalização e estejam se pro-
violência induz a sua propagação e possibilita a pondo a desconstruir os dispositivos de natura-
sua continuidade institucional. As estratégias de lização da violência e sua perpetuação histórica
esquecimento da violência possibilitam sua per- nas instituições sociais.
manência de forma recalcada nas subjetividades O grande esforço social e histórico que as
e nas instituições sociais. O esquecimento promo- diversas sociedades latino-americanas e a brasi-
ve a perpetuação da violência. leira, em particular, estão fazendo para garantir
Em contrapartida, a memória produz um a memória da violência de Estado cometida nas
efeito neutralizante da mímese violenta. A memó- últimas ditaduras nada tem a ver com revanche,
ria tem um potencial antimimético pelo qual, ao e sim com justiça. A justiça das vítimas é o meio
trazer para a luz as barbáries da violência, conse- através do qual poderemos desarmar os disposi-
gue mostrar para os sujeitos e as sociedades as tivos de normalização da violência que, secular-
consequências reais, e não só aparentes da vio- mente, se perpetuaram no Estado e na sociedade
lência. A memória neutraliza a potência miméti- como algo normal. Só a memória da barbárie
ca da violência. Sem ela a violência tende a se possibilitará julgar os atos de violência como atos
reproduzir como ato de normalidade. Mas não é de barbárie e implementar políticas de transpa-
qualquer memória que neutraliza o potencial mi- rência que façam da memória das vítimas o cri-
mético da violência. Só a memória das vítimas, tério de justiça. Muitas das violências de nosso
a memória das barbáries cometidas, a memória presente são perpetuação mimética das violências
da alteridade ferida dos injustiçados mostrará o históricas mal resolvidas. Se quisermos neutralizar
verdadeiro rosto da violência. A memória dos com eficiência o potencial mimético da violência
violentos e dos vencedores tenderá sempre a le- estrutural enquistada em nossas instituições e
gitimar a violência como um ato útil e necessário. subjetividades, haveremos de apelar para a me-
Escravidão, genocídio indígena, torturas, desapa- mória histórica.
recimentos, ditaduras, todas as formas de violên-
cia encontraram seus meios de se legitimar ape- Prof. Dr. Castor M. M. Bartolomé Ruiz
lando à memória dos vencedores. Tal memória Programa de Pós-Graduação em Filosofia
provoca o esquecimento das vítimas e com isso Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

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A memória, uma categoria central do cristianismo

Entrevista com José Antonio Zamora

“Metz sempre tem dito que o problema do Madri. Doutorou-se na Universidade de Müns-
cristianismo não tem sido de crenças, senão de ter, na Alemanha, com uma tese sobre Theodor
sujeitos, e neste sentido há uma proximidade en- Adorno, orientada por Johann Baptitst Metz.
tre a Teologia da Libertação e a teologia políti-
ca, na medida em que os processos práticos de IHU On-Line – Poderia traçar um panorama
constituição dos sujeitos são processos históricos, intelectual da Espanha hoje?
sociais, processos de luta por chegar a ser sujei- José Antonio Zamora – Não é fácil traçar um
tos, por chegar a constituir-se como sujeitos em panorama intelectual de um país que é composto
condições sociais e históricas dadas”, afirma José por uma realidade tão complexa, ampla e diver-
Antonio Zamora, na entrevista concedida, pes- sa. Na realidade, assim como acontece nos paí-
soalmente, à jornalista Márcia Junges e publicada ses desenvolvidos, os intelectuais espanhóis têm
na edição 352 da IHU On-Line de 29 de novem- formado parte daquilo que se poderia descrever
bro de 2010. como indústria da cultura. Somos um elemento
Em seu ponto de vista, “há uma relação mui- a mais dessa indústria. Aqueles intelectuais que
to estreita e de muito diálogo entre a Teologia da produzem saberes que são diretamente utilizáveis
Libertação e a teologia política”. Zamora pontua nos processos produtivos, ou nas organizações,
ainda que não é possível se falar em justiça para na administração, na urbanização social, têm uma
o presente “se não somos capazes de descobrir os função de produzir saber numa sociedade que se
mecanismos que têm produzido vítimas no pas- chama de “sociedade do conhecimento”. Talvez
sado, porque, senão, nosso combate pela justiça o mais difícil é a posição dos intelectuais críticos e
atual está condenando a reproduzir a injustiça a relativa autonomia que a sociedade e a cultura
passada. E então temos algo que aprender da burguesa concedeu a eles, pois é algo que vai se
memória do sofrimento passado para o presente. perdendo. Ao intelectual resta integrar-se à cultu-
Nesse sentido, a solidariedade atual carrega uma ra de massas, como o fazem diversos intelectuais
herança – a herança das esperanças e a herança na Espanha, que participam da cultura midiáti-
dos fracassos, das mutilações, das destruições que ca (filósofos, literatos, autores reconhecidos com
têm sofrido os sujeitos no passado”. grandes vendas ao público). Eles são, evidente-
José Antonio Zamora é docente no Institu- mente, intelectuais que têm uma postura crítica,
to de Filosofia do Conselho Superior de Investi- mas têm que produzir um tipo de discurso que
gações Científicas – CSIC da Espanha, é autor é assumível pelo mercado. Dizer que existe algo
de, entre outros, Th. W. Adorno: pensar contra como um pensamento espanhol é uma afirmação
la barbarie (Madrid: Trotta, 2004) e Ciudadania, difícil, sobretudo em função dos efeitos da guerra
multiculturalidad e inmigración (Navarra: Verbo civil e o exílio subsequente. O panorama intelec-
Divino, 2003). Estudou Filosofia, Psicologia e Te- tual espanhol tem vivido muito da importação, de
ologia na Universidade Pontifícia de Comillas, em correntes europeias, francesas, italianas, e é difícil

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

afirmar que exista um pensamento filosófico e de belecida, a Teologia Política é uma teologia bas-
outro tipo que possa distinguir-se. tante sozinha, e evidentemente que é reclamada
por sujeitos eclesiais ou sujeitos crentes, que leem
IHU On-Line – O senhor foi orientando do o mundo da fé a partir dessa teologia. Há uma
renomado teólogo Johann Baptist Metz1. relação muito estreita e de muito diálogo entre a
Qual é a importância da obra deste teólogo Teologia da Libertação e a Teologia Política.
para a Teologia da Libertação?
José Antonio Zamora – Eu acredito que a Te- IHU On-Line – Como Metz influencia a
ologia da Libertação e a Teologia Política, a nova Igreja de nossos dias? E que contribuições
Teologia Política de Metz, são duas teologias ir- traz para uma ligação mais estreita entre a
mãs, que poderíamos chamar de teologias pós- Teologia, a memória e a solidariedade?
-idealistas, que colocam no centro da teologia a José Antonio Zamora – Poderíamos dizer que
práxis e a constituição dos sujeitos crentes. Metz a teologia de Metz tem sido muito importante. Ela
sempre tem dito que o problema do cristianismo tem tido certo peso no panorama teológico euro-
não tem sido de crenças, senão de sujeitos, e nes- peu, mas eu não supervalorizaria sua influência
te sentido há uma proximidade entre a Teologia eclesial. Há uma diferença com respeito à Teolo-
da Libertação e a Teologia Política, na medida gia da Libertação, então digamos que essa influ-
em que os processos práticos de constituição dos ência, talvez em torno ao Concílio Vaticano II, se
sujeitos são processos históricos, sociais, proces- dá na medida em que teve um renascer da Igreja
sos de luta por chegar a ser sujeitos, por chegar a e uma valorização de certas posições teológicas.
constituir-se como sujeitos em condições sociais e Pensemos em tantos teólogos que nesse momento
históricas dadas. Esse é um elemento constitutivo têm tido relevância, como Hans Küng2 ou o pró-
do discurso teológico. A diferença que podemos prio Metz, a revista Concilium, e evidentemente a
traçar ente a Teologia da Libertação e a Teologia contribuição que teve Metz para a renovação do
Política é algo geral. Contudo, a diferença entre
essas teologias e a doutrina social da Igreja é que,
2 Hans Küng (1928): teólogo suíço, padre católico desde
em grande medida, esta parte da existência de 1954. Foi professor na Universidade de Tübingen, onde
um corpus dogmático e se pergunta sobre sua também dirigiu o Instituto de Pesquisa Ecumênica. Foi
realização na história por meio da dimensão consultor teológico do Concílio Vaticano II. Destacou-se
por ter questionado as doutrinas tradicionais e a infabilida-
política e ética. O que vem a dizer a Teolo- de do Papa. O Vaticano proibiu-o de atuar como teólogo
gia da Libertação e a Teologia Política é que em 1979. Nessa época, foi nomeado para a cadeira de
o político é constitutivo do próprio discurso Teologia Ecumênica. Atualmente, mantém boas relações
dogmático e do próprio discurso teológico. com a Igreja e é presidente da Fundação de Ética Mun-
dial, em Tübingen. Um escritório da Fundação de Ética
Assim, o teológico é político. A Teologia Políti- Mundial funciona dentro do Instituto Humanitas Unisinos
ca se entende mais como uma teologia corretiva, desde o segundo semestre do ano passado. Küng dedica-
como uma teologia de crítica da religião burgue- -se, atualmente, ao estudo das grandes ‘religiões, sendo
autor de obras, como A Igreja Católica, publicada pela edi-
sa, que é a religião da maioria na Europa. Esta-
tora Objetiva e Religiões do Mundo: em Busca dos Pontos
Comuns, pela editora Verus. De 21 a 26 de outubro de
1 Johann Baptist Metz (1928): teólogo católico alemão, 2007 aconteceu o Ciclo de Conferências com Hans Küng
professor de Teologia Fundamental, professor emérito na - Ciência e fé – por uma ética mundial, com a presença de
Universidade de Münster, Alemanha. Aluno de Karl Rah- Hans Küng, realizado no campus da Unisinos e da UFPR,
ner, desfiliou-se da teologia transcedental de Rahner, em bem como no Goethe-Institut Porto Alegre, na Universida-
troca de uma teologia fundamentada na prática. Metz está de Católica de Brasília, na Universidade Cândido Mendes
no centro de uma escola da teologia política que influen- do Rio de Janeiro e na Universidade Federal de Juiz de
ciou fortemente a Teologia da Libertação. É um dos teó- Fora – UFMG. Um dos objetivos do evento foi difundir no
logos alemães mais influentes no pós Concílio Vaticano II. Brasil a proposta e atuais resultados do “Projeto de ética
Seus pensamentos giram ao redor de atenção fundamen- mundial”. Confira no site do IHU, em <http://migre.me/
tal ao sofrimento de outros. As chaves de sua teologia é R0s7>, a edição 240 da revista IHU On-Line, de 22-10-
memória, solidariedade, e narrativa. Dele publicamos uma 2007, intitulada Projeto de Ética Mundial. Um debate. Visi-
entrevista na 13ª edição, de 15-04-2002, disponível em te, também, a Fundação de Ética Mundial, no site do IHU:
<http://migre.me/2zn3s>. (Nota da IHU On-Line) <http://migre.me/R0sQ>. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

panorama teológico. Dessa maneira, também a re- Horkheimer5. Como a Teoria Crítica6, que tem re-
novação da Igreja tem sido muito importante. Mas velado que o projeto de emancipação moderno
se podemos dizer que movimentos eclesiais recla- é um projeto que não se tem ilustrado sobre si
mam para si mesmos a Teologia Política, pois isso é mesmo e no qual o sujeito não é consciente de
mais difícil de nomear naturalmente, tem havido os suas próprias contradições na afirmação da sua
movimentos especializados da ação católica, que liberdade, de sua autonomia, digamos que a ra-
em grande medida na Europa têm importado a Te- cionalidade moderna, na medida em que tem
ologia da Libertação de maneira errônea, como se destruído sua capacidade de memória, tem fe-
fosse uma espécie de transfusão de sangue jovem. chado os olhos frente a seus próprios déficits. É
Entretanto, os grupos e as comunidades cristãs de necessário recompor a relação com o passado
base e os grupos especializados da ação católica e, sobretudo, com o passado das vítimas, dos
têm olhado para a própria América Latina e nesse sujeitos que têm sido aniquilados, destruídos. É
sentido são muito poucos os que têm sabido ver o preciso reconstruir a relação com o passado das
que aportava a Teologia Política não no panorama injustiças que têm sofrido nossos antecessores,
teológico, mas na realidade eclesial. Eu digo que reconhecer a dívida que o presente tem sobre
tem havido muito aporte da teologia de Metz na o passado e tem aniquilado para se redimir da
Europa e em muitos outros cantos. cegueira à própria pretensão de autonomia ab-
soluta e liberdade do sujeito moderno.

Teoria Crítica e Teologia Política


Discurso da Teologia Política
Por outro lado, sobre o vínculo entre teologia,
memória e solidariedade, digamos que a Teologia Tudo isso é muito típico da Teologia Política,
Política é uma teologia que coloca a lembrança e a e não sei se a teologia pública se entende assim.
memória como uma categoria central do cristianis- A Teologia Política nunca fala só para os sujeitos
mo. Essa categoria recebe sua importância natural- crentes. O discurso da Teologia Política acredita
mente tomando em consideração a perspectiva que que o discurso sobre Deus é um discurso relevan-
o cristianismo é uma comunidade que se manteve te para o mundo, então seu interlocutor não são
no tempo e que vive dessa referência rememorativa. só os sujeitos eclesiais, senão nos sujeitos em ge-
O que Metz faz é mobilizar essa categoria tão impor- ral, é o mundo. Então, quando se pensa em de-
tante da cultura judaico-cristã como uma categoria terminadas categorias como solidariedade e me-
crítica da cultura moderna, dos processos de cons- mória, o discurso da Teologia Política é destinado
tituição da subjetividade dos sujeitos e da liberdade a ter uma incidência crítica no meio da sociedade,
moderna. Seu ponto de encontro é com pensadores no meio da história, no meio do mundo, como
como Theodor Adorno3, Walter Benjamin4 e Max
5 Max Horkheimer (1895-1973): filósofo e sociólogo ale-
3 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): sociólo- mão, conhecido especialmente como fundador e principal
go, filósofo, musicólogo e compositor, definiu o perfil do pensador da Escola de Frankfurt e da teoria crítica. (Nota
pensamento alemão das últimas décadas. Adorno ficou da IHU On-Line)
conhecido no mundo intelectual, em todos os países, em 6 Teoria Crítica da Sociedade: abordagem teórica
especial pelo seu clássico Dialética do Iluminismo, escri- que, contrapondo-se à Teoria Tradicional, de tipo carte-
to junto com Max Horkheimer, primeiro diretor do Insti- siano, busca unir teoria e prática, ou seja, incorporar ao
tuto de Pesquisa Social, que deu origem ao movimento pensamento tradicional dos filósofos uma tensão com o
de ideias em filosofia e sociologia que conhecemos hoje presente. A Teoria Crítica da Sociedade tem um início
como Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line) definido a partir de um ensaio-manifesto, publicado por
4 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão crítico Max Horkheimer em 1937, intitulado “Teoria Tradicional
das técnicas de reprodução em massa da obra de arte. e Teoria Crítica”. Foi utilizada, criticada e superada por
Foi refugiado judeu alemão e diante da perspectiva de diversos pensadores e cientistas sociais, em face de sua
ser capturado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Um dos própria construção como teoria, que é autocrítica por de-
principais pensadores da Escola de Frankfurt. (Nota da finição. A Teoria Crítica é comumente associada à Escola
IHU On-Line) de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

comumente fala Metz. Quando Metz fala com só houvesse o nosso próprio trabalho. Com esse
pessoas fora da igreja, do mundo, fala de Deus círculo, nossos horizontes se abriam, porque con-
de um modo que questione suas categorias secu- tinuamente estávamos falando de filósofos, de
lares. Quando fala para pessoas da igreja, o faz problemas de ciências sociais, de novas teologias.
com uma linguagem secular para questionar-lhes
um discurso autossuficiente, teológico. IHU On-Line – Qual é o seu contato atual
Evidentemente, nós não podemos reclamar com a Universidade Centro-Americana
uma justiça para o presente se não somos capazes (UCA)? Tem viajado para El Salvador com
de descobrir os mecanismos que têm produzido frequência?
vítimas no passado, porque, caso contrário, nosso José Antonio Zamora – A relação com a Uni-
combate pela justiça atual estará condenando a versidade de Centro-Americana de El Salvador
reproduzir a injustiça passada. E então temos algo – UCA – provém de que o Instituto de Filosofia
que aprender da memória do sofrimento passado do Conselho Superior de Investigações Científi-
para o presente. Nesse sentido, a solidariedade cas – CSIC da Espanha tem mantido sempre uma
atual carrega uma herança – a herança das es- boa convivência com a faculdade de filosofia da
peranças e a herança dos fracassos, das mutila- UCA. Muitos professores do CSIC lecionam como
ções, das destruições que têm sofrido os sujeitos visitantes da UCA, como José María Mardones7,
no passado. Reyes Matte8 e José María Gonzalez9.
Certa vez o decano da faculdade de filosofia
IHU On-Line – Como aluno de Metz, quais da UCA, Hector Samur, pediu-me para dar um
são as maiores recordações que tem dele, curso de doutorado naquela instituição. Sou inte-
dentro e fora do ambiente acadêmico? grante da equipe de professores do doutorado da
José Antonio Zamora – Para compreender faculdade de Filosofia. Por outro lado, coordeno
Metz é necessário situar-se na Alemanha e atentar um fórum em Murcia, uma cidade do sul da Es-
para as diferenças das suas regiões. Até sua apo-
sentadoria, Metz viveu em Münster, na Westfalia.
7 José María Mardones (1943-2006): filósofo e sociólogo
Os habitantes dessa região são camponeses mui- espanhol. Formado na Alemanha, professor de sociologia
to fechados, pouco comunicativos. Metz é natural na Universidade do País Basco e pesquisador do CSIC no
da Baviera, onde os “bárbaros” têm uma relação Instituto de Filosofia desde o seu início, foi um fecundo
autor no campo da filosofia e da sociologia da religião.
natural com a religião e uma relação religiosa com Escreveu diversos livros, dentre os quais citamos Dialéc-
a cerveja. Metz, em particular, tem uma persona- tica y sociedad irracional. La teoría de la sociedad de M.
lidade muito expansiva e aconchegante. Com os Horkheimer, Habermas y religión, Capitalismo y religión e
estudantes vindos da Espanha ou da América La- Postmodernidad y cristianismo. (Nota da IHU On-Line)
8 Reyes Mate: filósofo espanhol, professor do Instituto de
tina ele era especialmente muito cordial. Filosofia do CSIC (Conselho Superior de Pesquisas Cien-
Metz sempre teve um círculo de discípulos tíficas) e autor do livro Justicia de las víctimas. Terrorismo,
muito amplo. Assim, se formava um colóquio memoria, reconciliación. (Barcelona: Anthropos, Editorial
del Hombre, 2008), entre outros. Em português, citamos
de doutorandos numeroso, de pessoas de todo
Memórias depois de Auschwitz (São Leopoldo: Nova Har-
o mundo. Para um estudante que faz doutorado monia, 2005). Confira a entrevista concedida à IHU On-
com Metz, essa é uma fonte de enriquecimento -Line 291, de 04-05-2009, intitulada A memória como
constante, porque, além de seu aporte intelectual, antídoto à repetição da barbárie, disponível em <http://
migre.me/2zrbJ>. (Nota da IHU On-Line)
há todo o grupo de estudantes das mais variadas 9 José María González García (1950): filósofo espanhol.
partes do mundo. Entre os colóquios dos dou- É professor de Investigação no Conselho Superior de In-
torandos nunca se falava das teses, muito rara- vestigações Científicas, de cujo Instituto de Filosofia foi
mente. O assunto era, quase sempre, o debate diretor entre 1998 e 2006. Trabalha nos campos da socio-
logia do conhecimento, teoria sociológica e a filosofia po-
teológico atual. Esses colóquios programados em lítica, prestando especial interesse à obra de Max Weber, e
forma de seminário era algo muito enriquecedor na atualidade trabalha na Universidade de Cambridge. Es-
porque, quando se faz uma tese, tendemos a nos creveu, dentre outros, A Máquina burocrática. Afinidades
electivas entre Max Weber e Kafka (Madri, Visor, 1989).
comportar como um cavalo de viseiras, como se
(Nota da IHU On-Line)

11
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

panha, cujo nome é Fórum Ignacio de Ellacuría. José Antonio Zamora – Não cheguei a conhe-
Então, nossa relação é muito próxima. cer a Ignacio de Ellacuría. Mas conheci Jon So-
brino na UCA. Visitei-o e falei com ele. Quando
IHU On-Line – Conheceu Ignacio Ellacuría10 pensamos em formar em Mursia um fórum de
e Jon Sobrino11? Qual é a importância des- debates, de discussão, de difusão de pensamen-
ses dois teólogos na contemporaneidade? to crítico, convertemos intelectuais como Sobrino
em nossos referenciais. Isso porque entendíamos
10 Ignacio Ellacuría: filósofo, especialista em Zubiri, je- que primeiro compartilhamos a opinião de que a
suíta, foi assassinado no dia 15 de novembro de 1988, realidade só é revelável na sua verdade, quando
juntamente com mais quatro companheiros jesuítas e se olha a partir da perspectiva dos últimos, das
duas senhoras, em San Salvador, El Salvador. Ele era
vítimas. E o pensamento só pode ser verdadeiro
reitor da Universidade Centro Americana, em San Sal-
vador, confiada à Companhia de Jesus. Ele e seus com- quando se compromete com essa perspectiva e
panheiros foram barbaramente assassinados por terem com a libertação das vítimas. Então, nesse sentido
conseguido fazer da Universidade uma importante força foi como os escolhemos estes intelectuais como
social na luta pela promoção da justiça social. Sobre Ella-
curía, confira a entrevista especial concedida por Héctor
nossos referenciais.
Samour, em 16-11-2007, ao site do Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU, <www.unisinos.br/ihu>, intitulada IHU On-Line – Em que aspectos o pensa-
Inteligência, compaixão e serviço. Celebrando o martí- mento de Benjamin nos ajuda a compreen-
rio de Ignacio Ellacuría e companheiros, disponível em
<http://migre.me/11DN8>. Na mesma data, nosso site
der melhor os rumos da Teologia hoje?
publicou a notícia Ignacio Ellacuría e companheiros as- José Antonio Zamora – Penso que é preciso ter
sassinados no dia 16-11-1989, disponível em <http:// cuidado para que não ocorra uma teologização
migre.me/11DO7>. No site do IHU visite a Sala Igna- de pensadores que não são teólogos. Esse é um
cio Ellacuría e Companheiros, onde podem ser lidas
notícias, a história dos mártires jesuítas e o memorial pequeno vício dos cristãos, ou do cristianismo.
criado pelo IHU em sua homenagem: <http://migre. Sempre pretendemos batizar a todos. Benjamim
me/11DOt>. (Nota da IHU On-Line) é relevante para a teologia na medida em que
11 Jon Sobrino: teólogo espanhol, jesuíta, que em 27-12-
ajuda a desentranhar o momento histórico que
1938 entrou para a Companhia de Jesus e em 1956 e
foi ordenado sacerdote em 1969. Desde 1957, pertence vivemos. Para uma teologia pós-idealista, pós-
à Província da América Central, residindo habitualmen- -metafísica, que não elabora seu discurso sobre
te na cidade de San Salvador, em El Salvador, país da Deus desde fora da história, fora da sociedade e
América Central, que ele adotou como sua pátria. Li-
cenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de St.
dos processos que se vivem na história e na so-
Louis (Estados Unidos), em 1963, Jon Sobrino obteve ciedade, aqueles pensadores que nos ajudam a
o master em Engenharia na mesma Universidade. Sua compreender essa história e essa sociedade são
formação teológica ocorreu no contexto do espírito do fundamentais. Nesse sentido, Benjamim teve in-
Concílio Vaticano II, a realização e aplicação do Vatica-
no II e da II Conferência Geral do Conselho Episcopal tuições que têm a ver com as transformações do
Latino-Americano, em Medellín, em 1968. Doutorou-se capitalismo a partir do final do século XIX, a per-
em Teologia em 1975, na Hochschule Sankt Georgen de cepção dos processos que conduziriam às gran-
Frankfurt (Alemanha). É doutor honoris causa pela Uni-
des catástrofes do século XX, o final do socia-
versidade de Lovain, na Bélgica (1989), e pela Universi-
dade de Santa Clara, na Califórnia (1989). Atualmente,
divide seu tempo entre as atividades de professor de Teo-
logia da Universidade Centroamericana, de responsável duziu uma edição especial, intitulada Teologia da Liberta-
pelo Centro de Pastoral Dom Oscar Romero, de diretor ção, no dia 02-04-2007. A edição 214 está disponível em
da Revista Latinoamericana de Teologia e do Informati- <http://migre.me/UHKa>. Sobre a censura do Vaticano a
vo “Cartas a las Iglesias”, além de ser membro do comitê Sobrino, confira: Teólogos espanhóis criticam a condenação
editorial da Revista Internacional de Teólogia Concilium. de Jon Sobrino, disponível em <http://migre.me/UHKF>,
A respeito de Sobrino, confira a ampla repercussão dada ‘Jon Sobrino, com o tempo, será reabilitado’, afirma Er-
pelo site do IHU em suas Notícias do Dia, bem como nesto Cavassa, disponível em <http://migre.me/UHL3>,
o artigo A hermenêutica da ressurreição em Jon Sobri- Notificação a Jon Sobrino. Teólogos apelam por reforma
no, publicada na editoria Teologia Pública, escrita pela da Congregação para a Doutrina da Fé, disponível em
teóloga uruguaia Ana Formoso na edição 213 da IHU <http://migre.me/UHLk>, O caso Jon Sobrino como sin-
On-Line, de 28-03-2007, disponível para download em toma. Um artigo de Andrés Torres Queiruga, disponível
<http://migre.me/UHJB>. A IHU On-Line também pro- em <http://migre.me/UHLN>. (Nota da IHU On-Line)

12
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lismo, além de sua compreensão da estética, da de mais ou menos adaptada às leis do mercado.
produção cultural no capitalismo do século XX. Percebo, inclusive, uma religiosidade de brico-
Walter Benjamim não é só um pensador, mas, em lagem e a emergência de uma configuração re-
certa medida, é uma testemunha que pagou com ligiosa de determinados fenômenos chamados
a sua própria vida. Ele é uma testemunha do pe- seculares. Então, o perigo que pode correr a te-
rigo, e compreendeu que essa proximidade com o ologia é de se retrair num debate inacessível. A
perigo tem um valor capital para desentranhá-lo. teologia quer fazer um discurso racional sobre
Benjamin é um pensador que segue atual. Deus, não só para os crentes, mas para todos.
Acredito que se a teologia pode ter futuro e sen-
IHU On-Line – Considerando o panorama tido é no descobrimento de sua missão de ser
cada vez mais secularizado do Ocidente, uma reflexão voltada para o mundo, para as rea-
quais são os rumos da Teologia no século lidades do mundo. Aqui há muita potencialidade
XXI? para que a teologia tenha uma função a partir de
José Antonio Zamora – Não estou muito se- seus próprios recursos, com capacidade de críti-
guro sobre essa secularização. Está havendo, ca, dos processos culturais de ressacralização da
desde sempre, uma transmutação do sagrado e economia, da política, além de uma capacidade
uma transmutação do religioso. O religioso está para intervir criticamente nos processos sociais e
em permanente transformação. Provavelmente, culturais. Arrisco-me a afirmar que o futuro da
hoje temos um panorama muito diversificado, teologia depende de que ela não se retraia e não
desde os fundamentalismos até uma religiosida- evite o diálogo com o mundo.

13
Doze perguntas sobre o inferno

Entrevista com Alfredo Jerusalinsky

Alfredo Jerusalinsky aponta a impossibilida- concedida com exclusividade por e-mail a Márcia
de de uma reconciliação nacional no caso da di- Junges e Mario Corso e publicada na edição 323
tadura argentina. “Nem Deus consegue perdoar o de IHU On-Line de 29 de março de 2010, Jerusa-
Diabo”, responde ele quando questionado sobre linsky debate, também, a profusão de filmes que
as relações entre o Mal, a vingança e a memória retratam os horrores das ditaduras e do Holocaus-
no caso da ditadura da Argentina. Para ele, “o to. “Os filmes, como os livros, podem mostrar a
único modo de apagar o desejo de vingança é realidade sem realizá-la”.
que desapareça por completo qualquer vestígio Alfredo Jerusalinsky é psicanalista e mora
do sistema de poder que causou e legitimou esses no Brasil desde 1977. Mestre em psicologia clí-
crimes, que o povo que foi cúmplice castigue e nica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
repudie definitivamente seus autores, e não mais Grande do Sul – PUCRS, é doutor em Educação
os mantenha sob uma auréola de heróis injustiça- e Desenvolvimento Humano pela Universida-
dos, acaçapados na espera de uma brecha para de de São Paulo – USP. Além disso, é membro
ocupar novamente algum lugar na história”. O da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da
mínimo que devemos é manter viva a memória Association Lacaniènne Internationale. De sua
de quem sucumbiu sob a bota da ditadura. Vi- vasta bibliografia, destacamos La formación del
vendo no Brasil em busca de ares de liberdade, psicoanalista (Buenos Aires: Editora Nueva Visi-
e ao vivenciar a perseguição e morte de inúme- ón, 1989), Psicanálise e desenvolvimento infantil
ros intelectuais, seus companheiros, ele desabafa: (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998), Para
“Quando passo por um café de Buenos Aires, vejo entender al niño, claves psicoanalíticas (Quito:
meus amigos que não estão sentados aí. Quando Ediciones ABYA-YALA, 2003) e Quem fala na
me convidam a dar uma aula na Universidade de língua?: sobre as psicopatologias da fala (Bahia:
Buenos Aires, de repente, encontro-me com um Ágalma, 2004).
sobrevivente ou com um exilado que retornou,
nos abraçamos, olhamos em volta e vemos que IHU On-Line – Do ponto de vista da psi-
os jovens estão esperando que comecemos a dar canálise, de que forma podemos compre-
nossa aula. Começamos a falar para os jovens, ender o lado oculto do ser humano, o mal
e, sem que eles o saibam, também falamos para que é contido a duras penas e que floresce
essa geração (a nossa) ausente e congelada no em ocasiões como o Holocausto e nas di-
meio da sala como um puro fantasma”. Em seu taduras sangrentas da América Latina, por
ponto de vista, só se pode falar em um “esfria- exemplo?
mento”, e não em uma reconciliação nacional: “O Alfredo Jerusalinsky – A civilização nasce por
que ocorre é que as pessoas que passaram por um pacto de não agressão entre os irmãos que
isso, e sobreviveram, inevitavelmente morrerão. assassinaram o pai da horda primitiva, estabele-
E, sem dúvida, os sentimentos dos mortos são cendo regras para a circulação das fêmeas. Se, a
bem mais frios que os dos vivos”. Na entrevista partir desse ato, a vigília da fratria passou a ser

14
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

um pouco mais tranquila, doravante os sonhos Presidente General Rafael Videla13 na Argentina,
daqueles homens primitivos ficaram bem mais ou de Pinochet14 no Chile.
agitados: o pai morto, ora transformado num
agressor intangível, retornava naqueles desde IHU On-Line – Por que o ser humano faz o
as sombras imaginárias. Homenagens, rituais, Mal, se é capaz de fazer o bem?
sacrifícios, autoflagelações, cerimônias e oferen- Alfredo Jerusalinsky – Sua pergunta supõe que
das foram inventadas para apaziguar sua fúria e saibamos o que é o Bem para o outro quando, em
acalmar suas vinganças. Em todas as religiões, os verdade, talvez sejamos apenas capazes de intuir o
deuses, em algum momento, sofrem uma ofensa, que poderia ser o Mal para ele. Quando um sujeito
e os homens, causadores dela, tornam-se culpa- não se faz responsável das consequências que seus
dos e merecedores de castigo e constrangimen- atos têm para seus semelhantes, está abando-
to. Perdas, privações e sofrimentos representam nando o terreno da ética. Quando abandona esse
o poder desses deuses assim como suas dádivas terreno, ele se transforma num “analfabeto radi-
e premiações. Capazes de impor as dores mais cal”. Não se trata de não saber ler os grafismos
atrozes e os prazeres mais almejados, é, no míni- de uma escrita, mas de não saber ler as diferentes
mo, curioso o quanto os deuses das mais diversas significações das letras que marcam os corpos e
culturas possuem as mesmas paixões que carac- as vidas de cada um. O totalitarismo lê as ideias,
terizam os humanos. Por isso, sempre ficou tão os sentimentos e as histórias de cada um como se
fácil estabelecer representantes dos deuses na Ter- fossem todos iguais ou, se assim não fossem, de-
ra, e justificar os atos desses representantes como vessem sê-lo. Os tiranos, em verdade, não leem,
intermediários das vontades de Deus. O Estado eles repetem sempre o mesmo texto, fingindo que
nasce como representante desse Grande Outro, estão lendo. Essa é a forma mais radical, extensa
Pai onírico pleno de autoridade porque lhe de- e profunda de fazer o Mal.
vemos a vida. Não a nossa, mas a dele (leve-se
em conta que qualquer Estado se considera no IHU On-Line - Como é possível lidar com a
direito de exigir de seus cidadãos que defendam memória sem que essa se converta em vin-
sua existência ainda ao custo de suas vidas). Esta gança ou revanchismo?
estrutura inconsciente de características paranói- Alfredo Jerusalinsky – Quando, no século XIX,
cas que define o modo do laço social civilizado a Rainha Vitória15 da Inglaterra dobrou o valor
facilita, naqueles que acedem a posições de po-
der, o desdobramento de delírios messiânicos cionou chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio no
e a obediência cega de seus comandados. A seu Quartel-General (o Führerbunker) em Berlim, com
o Exército Soviético a poucos quarteirões de distância. A
posição messiânica torna o sujeito em questão
edição 145 da IHU On-Line, de 13-06-2005, comentou
representante da única versão possível do bem. na editoria Filme da Semana, o filme dirigido por Oliver
Portanto, para ele, toda e qualquer diferença Hirschbiegel, A Queda – as últimas horas de Hitler, dis-
que seja meramente enunciada constitui um ponível em <http://migre.me/s7hk>. A edição 265, inti-
tulada Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da bar-
mal radical que deve ser extirpado. Tal a posi- bárie, de 21-07-2008, trata dos 75 anos de ascensão de
ção do Führer Adolf Hitler12 na Alemanha, e do Hitler ao poder, disponível em <http://migre.me/s7gM>.
(Nota da IHU On-Line)
13 Jorge Rafael Videla (1925): militar e ditador da Ar-
12 Adolf Hitler (1889-1945): ditador austríaco. O termo gentina, presidente entre 1976 e 1981. (Nota da IHU
Führer foi o título adotado por Hitler para designar o On-Line)
chefe máximo do Reich e do Partido Nazista. O nome 14 Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006):
significa o chefe máximo de todas as organizações mili- general do exército chileno, foi presidente do Chile entre
tares e políticas alemãs, e quer dizer “condutor”, “guia” 1973 e 1990, depois de liderar um golpe militar que der-
ou “líder”. Suas teses racistas e anti-semitas, bem como rubou o governo do presidente socialista, Salvador Allen-
seus objetivos para a Alemanha ficaram patentes no seu de. (Nota da IHU On-Line)
livro de 1924, Mein Kampf (Minha Luta). No período da 15 Vitória I do Reino Unido (1819-1901): rainha do Rei-
ditadura de Hitler, os judeus e outros grupos minoritá- no Unido de 1837 até a morte, sucedendo ao tio o rei
rios considerados “indesejados”, como ciganos e negros, Guilherme IV. A incorporação da Índia no Império Bri-
foram perseguidos e exterminados no que se conven- tânico em 1877 conferiu a Vitória o título de Imperatriz

15
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pago pela colheita aos latifundiários da Irlanda, na espera de uma brecha para ocupar novamente
provocou três consequências: a primeira foi a algum lugar na história.
aliança da aristocracia irlandesa com os interesses
da coroa sobre as Ilhas Britânicas, a segunda foi IHU On-Line – A vingança é redentora? Por
a morte por fome de mais de dois milhões de ir- que razão o ser humano se vinga?
landeses porque todos os alimentos foram vendi- Alfredo Jerusalinsky – A meu ver, definir o que
dos à Inglaterra devido às vantagens nos preços, é redentor a priori equivale a garantir que seu cri-
e a terceira foi o nascimento do IRA (o Exército me será perdoado. Dito de outro modo, é uma
Revolucionário Irlandês). Será que a Rainha Vi- figura cínica. Nem a vingança nem o perdão, por-
tória pensou que estava apenas fazendo um bom tanto, são, a priori, redentores. As razões da vin-
negócio? Quando o povo alemão viu desapare- gança são variadas (pagar a dívida com a vítima
cer de suas cidades três milhões de judeus, suas amada, medir forças com o agressor, devolver o
lojas devastadas, suas casas saqueadas, seu di- mal para quem o causou etc.), mas, de um modo
nheiro confiscado, seu alimento sucateado, arria- geral, toda vingança obedece ao desejo de esca-
dos como gado pelas ruas, discriminados com a par da angústia de impotência que a condição de
marca visível que os identificava como uma clas- vítima impõe. Assim são atores da vingança não
se sem direitos, aqueles que até meia hora atrás somente aqueles que ficaram como vítimas reais,
eram seus vizinhos, o povo alemão pensou que mas também os que se identificam com elas.
esses, seus vizinhos, estavam partindo para uma
viagem de férias? Quando os povos que se enri- IHU On-Line – O recente filme Bastardos
queceram com a exploração dos escravos africa- Inglórios aborda o nazismo por um ângu-
nos declararam a abolição, deixando a população lo ímpar, afinal, trata-se de uma fantasia
negra em liberdade de gozar plenamente de seu de vingança, ou pelo menos de uma revan-
desemprego, da falta de moradia, da dispersão de che. Como o senhor acredita que esse filme
suas famílias, de seu analfabetismo longamente pode ajudar quem foi vítima da barbárie
cultivado pelos seus patrões, da degradação de nazista? Não seria simplesmente estar do
sua cultura originária, do apagamento de suas ra- outro lado da violência, identificado com
ízes, da condição de cidadãos de segunda classe, os agressores?
esses povos pensaram que estavam fazendo justi- Alfredo Jerusalinsky – Os livros nos permitem
ça e que tudo se resumia em que prevalecessem vivenciar situações que nunca vivemos e que,
os bons sentimentos? bem provavelmente, nunca viveremos. Eles nos
poupam de cometer certos atos porque nos ofere-
IHU On-Line – Quando a memória implica cem o gozo de imaginá-los. Os filmes são uma
carregar uma série de lugares vazios a seu forma atualizada de volumosos livros belamen-
lado durante a vida toda, exigir o castigo te ilustrados. É a diferença entre a fantasia e o
dos autores desses vazios significa vingan- ato, entre o real e a ficção. Os filmes, como os
ça ou revanchismo? livros, podem mostrar a realidade sem realizá-
Alfredo Jerusalinsky – O único modo de apa- -la. Por meio da ficção, elaboramos o ódio e o
gar o desejo de vingança é que desapareça por amor que as coisas nos causam, antecipamos as
completo qualquer vestígio do sistema de poder consequências de nossos atos. Bastardos inglórios
que causou e legitimou esses crimes, que o povo é um filme, e não uma vingança. Por outro lado,
que foi cúmplice castigue e repudie definitiva- esse filme não propõe uma identificação com o
mente seus autores, e não mais os mantenha sob agressor: em nenhuma expressão desse filme se
uma auréola de heróis injustiçados, acaçapados vislumbra qualquer proposta de extermínio em
massa do povo alemão.
da Índia. O reinado de Vitória ficou conhecido como a
Era Vitoriana. Este período foi marcado pela revolução IHU On-Line – Esse filme faz parte de uma
Industrial e por grandes mudanças a nível econômico,
série, afinal são inúmeras produções recen-
político, cultural e social. (Nota da IHU On-Line)

16
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tes sobre o nazismo, como, por exemplo, Alfredo Jerusalinsky – As vítimas das quais es-
O Menino do Pijama Listado, O Leitor, A tamos falando, ou seja, as que o foram ou ainda o
Onda, Um Homem Bom. O nazismo não te- são, de atos de barbárie política, preferem, é claro,
ria se tornado um paradigma do Mal, com que seu calvário não seja esquecido, porque se o
isso indo além dos povos envolvidos, e tal- fosse, seu sofrimento teria sido em vão: a huma-
vez por isso haja tantos filmes, como uma nidade não teria aprendido nada com isso. Esse
maneira de curar o trauma de uma ferida de seria seu pior destino. Os filmes que contribuem a
todo o Ocidente? lembrar esses calvários mostram para essas vítimas
Alfredo Jerusalinsky – Se há algo que a Mo- que os sofrimentos e maus tratos que padeceram
dernidade não esperava do progresso burguês era despertaram maiores desejos de justiça, e isso lhes
precisamente o efeito nazi-fascista da rivalidade devolve algo da dignidade que seus carrascos lhes
capitalista. Poderíamos dizer que o mundo todo arrancaram. Por outro lado, alguém que estabelece
se surpreendeu com isso, embora Karl Marx16 já o uma identidade de vítima, ou bem vive incessan-
tivesse antecipado de algum modo em O Capital temente sua tragédia sem conseguir desprender-se
acerca dos efeitos racistas da oposição competi- dela, ou bem se transforma num farsante queixoso
tiva entre capitais identificados com as fronteiras que tenta obter privilégios em função da tragédia
nacionais. Desde esse ponto de vista, poderíamos que o vitimou. Em qualquer um desses dois casos,
dizer que se fosse situada hoje a Segunda Guer- trata-se de uma condição psíquica doente.
ra Mundial, ela seria um anacronismo. A ferida
causada pela barbárie nazi-fascista (não devemos IHU On-Line – No caso da ditadura na Ar-
esquecer o extermínio da esquerda e da inte- gentina, como poderíamos relacionar o
lectualidade espanhola e italiana) não é somente mal, a vingança e a memória?
uma ferida nos sentimentos humanísticos, mas Alfredo Jerusalinsky – Nem Deus consegue
uma profunda ferida na confiança da humani- perdoar o diabo.
dade nos ideais da modernidade que nos dei-
xa completamente inseguros no que se refere a IHU On-Line – O senhor faz parte de uma
nosso futuro mais próximo. Todos esses filmes geração que, em seu país, foi mutilada,
que você menciona têm uma particularidade: quando a maior parte da intelectualida-
mostram-nos que o pior pode se desenvolver de argentina foi suprimida. Pessoalmente,
bem ao nosso lado, e nós, embora o vejamos, como se sente em relação a essas perdas?
fazemos um tremendo esforço para impostar o E como o país reagiu a esses fatos?
papel de cegos. Alfredo Jerusalinsky – Quando passo por um
café de Buenos Aires, vejo meus amigos que não
IHU On-Line – Essa profusão de filmes não estão sentados aí. Quando me convidam a dar
reforçaria a identidade de vítima de quem uma aula na Universidade de Buenos Aires, de re-
sofreu com o Holocausto ou a guerra? pente, encontro-me com um sobrevivente ou com
um exilado que retornou, nos abraçamos, olhamos
16 Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo, cientista so- em volta e vemos que os jovens estão esperando
cial, economista, historiador e revolucionário alemão, um que comecemos a dar nossa aula. Começamos a
dos pensadores que exerceram maior influência sobre o falar para os jovens, e, sem que eles o saibam, tam-
pensamento social e sobre os destinos da humanidade
no século XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estudos Re-
bém falamos para essa geração (a nossa) ausente
pensando os Clássicos da Economia. A edição número e congelada no meio da sala como um puro fan-
41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda Ma- tasma. O país perdeu o ritmo de seu desenvolvi-
ria Paulani tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx, mento, o fio de sua produção científica e cultural
disponível em <http://migre.me/s7lq>. Também sobre o
autor, confira a edição número 278 da IHU On-Line, durante duas décadas, embora a extraordinária
de 20-10-2008, intitulada A financeirização do mundo e coragem e tenacidade da intelectualidade argenti-
sua crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível para na conseguiu manter ocultas e protegidas as bases
download em <http://migre.me/s7lF>. (Nota da IHU
e fundamentos de sua produção que, ao término
On-Line)

17
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

da ditadura, soube unir os mais jovens, gestando com Rafael Videla e Agosti20 – que transformou a
um verdadeiro renascimento. Isso se percebe na Escuela de Mecánica de La Armada num campo
ciência, na literatura, no teatro e no cinema argen- de concentração e tortura, que criou o engenhoso
tino, nas suas expressões mais recentes. método de soltar prisioneiros vivos sobre o ocea-
no desde aviões e helicópteros e que sequestrou
IHU On-Line – Como é possível manter a e ordenou sequestrar dezenas de crianças, filhos
memória viva de fatos traumáticos como de prisioneiros, privando-os de suas relações e de
esse sem perpetuar um sofrimento nos que suas identidades familiares? Confesso que não
sobreviveram? Nesses casos, o que não consigo imaginar em que consistiria tal perdão,
deve ser esquecido? tais reconciliações. Tenho certeza de que compar-
Alfredo Jerusalinsky – Manter viva a memória tilho com a imensa maior parte do povo argenti-
dos que sucumbiram sob a brutalidade da ditadu- no essa dificuldade. Sim, um esfriamento. O que
ra é o mínimo que lhes devemos. Não deve ser ocorre é que as pessoas que passam por isso, e
esquecida a dignidade com que lutaram por um sobrevivem, inevitavelmente morrerão. E, sem
ideal de justiça e liberdade, e tampouco deve ser dúvida, os sentimentos dos mortos são bem mais
esquecido quem fez de cada cidadão um inimigo. frios que os dos vivos.

IHU On-Line – Acredita que existe perdão, IHU On-Line – Quando as pessoas, es-
num sentido de reconciliação nacional, ou pecialmente os familiares dos mortos e desa-
o que acontece apenas é um esfriamento, parecidos, pedem esclarecimentos, mais in-
um distanciamento dos fatos? formações, movem processos e clamam por
Alfredo Jerusalinsky – É possível se reconci- justiça, às vezes, isso é interpretado como
liar com um torturador? Em que consistiria uma revanchismo, como uma forma de vingança.
reconciliação nacional com aquele que vendeu Qual é a sua percepção sobre isso?
literalmente a nação, como Carlos Menem17, por Alfredo Jerusalinsky – Nunca se viu uma “Ma-
exemplo, ou Martínez de Hoz18 que destruiu sua dre de Plaza de Mayo”21 ou uma “Abuela”, ou ain-
economia? Pode se perdoar alguém como o Al-
mirante Massera19 – integrante da Junta Militar que passaram 5000 (cinco mil presos) e entre eles uma
centena sobreviveu. Massera foi julgado e condenado
a prisão perpétua em 1985. Indultado pelo governo de
17 Carlos Saúl Menem (1930): político argentino. Gover- Carlos Menem, Massera se tornou novamente alvo da
nou o país entre 1989 e 1999, pelo Partido Justicialista justiça após Néstor Kirchner reabrir os processos contra
(peronista). (Nota da IHU On-Line) os militares da última ditadura. (Nota da IHU On-Line)
18 José Alfredo Martínez de Hoz: conduziu a economia 20 Orlando Ramón Agosti (1924-1997): militar argen-
durante toda a presidência de Jorge Rafael Videla, na tino, membro do Processo de Reorganização Nacional,
Argentina. Suas medidas econômicas, baseadas na aber- que governou de fato seu país entre 1976 e 1981 após o
tura dos mercados e no desmantelamento da legislação golpe de estado que destituiu a presidente María Estela
trabalhista vigente, contribíram para o desmantelamento Martínez de Perón. Julgado após a restauração da demo-
dos sindicatos e a polarização das diferenças de classe. cracia, Agostí foi declarado culpado em oito casos de
Devido à eliminação das barreiras tarifárias, a queda da tortura e roubo, sendo sentenciado a quatro anos e seis
produção industrial e o saldo negativo da situação exte- meses de prisão além de ser destituído do cargo. (Nota
rior de Argentina durante o Proceso, o valor nominal da da IHU On-Line)
dívida externa se multiplicou por quatro. (Nota da IHU 21 Mães da Praça de Maio: mulheres que se reúnem na
On-Line) Praça de Maio, Buenos Aires, para exigirem notícias de
19 Emilio Eduardo Massera (1925): militar argentino, seus filhos desaparecidos durante a ditadura militar na
anti-peronista convicto, participou do golpe que destituiu Argentina (1976- 1983). Alguns pais, considerados sub-
Juan Perón em 1955. Membro integrante da junta mili- versivos, tiveram seus filhos retirados de sua guarda e
tar ao lado de Jorge Rafael Videla (Exército) e Orlando colocados para a adoção durante os cinco anos de dita-
Ramón Agosti (Aeronáutica), Massera protagonizou atra- dura. Quando acabou a ditadura, muitos filhos estavam
vés da Marinha Argentina uma repressão implacável aos sob guarda de famílias de militares. Ainda hoje, todas as
opositores do regime, com um saldo de milhares de mor- quintas-feiras, as mães realizam manifestações na Praça
tos. Comandou o centro de detenção clandestino da Ma- de Maio, em frente à Casa Rosada, buscando manter o
rinha em Buenos Aires, conhecido como ESMA (Escola desaparecimento de seus filhos vivo na memória de to-
Superior de Mecânica da Armada). Neste local estima-se dos os argentinos. (Nota da IHU On-Line)

18
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

da qualquer familiar de desaparecido exigir que protege nenhuma segurança de Estado (que ame-
raptassem ou fizessem desaparecer o filho, neto aça pode representar uma mãe desesperada ou
ou parente de qualquer delinquente das forças uma ossada inerte?), mas consiste numa estratégia
policiais, nem tampouco que torturassem um tor- de terror e esmagamento emocional da população
turador. Isso evidencia que não se trata nem de oposta à ditadura por meio de táticas de crueldade
vingança, nem de revanchismo. Trata-se, sim, da psicológica. Que se informe sobre o destino dos
imperiosa necessidade de preencher em parte o cidadãos, que a lei se aplique sobre o delinquente
cruel vazio que, durante décadas, deixou o familiar qualquer que seja sua condição ou classe, que os
desaparecido, com o agravante de que se sabia que direitos humanos sejam respeitados, é o mínimo
alguém sabia onde estava, ou qual tinha sido seu que qualquer habitante de um país civilizado não
destino. A negativa a fornecer essa informação não somente pode pedir, mas que deve exigir.

19
O Holocausto e o dever da memória

Entrevista com Abrão Slavutzky

Analisando o Holocausto e suas conexões tólica de Medicina do Rio Grande do Sul. Desde
com a vingança, o Mal em si, a memória e vingan- 2001, é colaborador do jornal Zero Hora e de
ça, o psicanalista Abrão Slavutzky pontua que “a diversas revistas. Entre outros, é autor de Quem
humanidade é mais louca do que conseguimos pensas tu que eu sou? (São Leopoldo: Unisinos,
imaginar, porque, na verdade, o homo não é só 2009) e Psicanálise e cultura (Petrópolis: Vozes,
sapiens, mas é homo demens também”. Segundo 1983). Alguns dos livros que organizou são O De-
ele, preferimos falar que a crueldade é desumana, ver da Memória – O Levante do Gueto de Varsó-
porque nos choca compreendê-la como um fenô- via (Porto Alegre: AGE, 2003) e A paixão de ser –
meno humano. “Já a vitimização é a expressão depoimentos e ensaios sobre a identidade judaica
do masoquismo, é a valorização do sofrimento, (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998).
logo uma expressão da pulsão de morte. Quando
se dramatizam as dores, o sentimento de vítimas, IHU On-Line – Como é possível manter a
se cai numa atitude passiva diante do destino, memória do que aconteceu no Holocausto
diante do outro. O desafio é sair deste lugar para sem que isso seja fonte de sofrimento para
uma atitude ativa de luta por um espaço inde- quem se sente envolvido? Ou seja, existe
pendente, um espaço construtivo”, pontua. Por uma outra maneira de olhar para aquele
outro lado, Slavutzky assinala que é fundamental horror sem que se diminua a sua importân-
mantermos a memória, aquela “obrigação bíblica cia de forma que possamos seguir tirando
de não esquecer”. Tecendo relações entre a fé e o lições e não repeti-lo?
processo de perdão e superação do Mal, afirma: Abrão Slavutzky – Muitos historiadores en-
“A fé deveria ser pensada não só como uma ques- fatizam que o Holocausto foi único na História
tão religiosa, mas como uma necessidade do ser dos povos, pois o nazismo visou à eliminação do
humano de manter a ilusão”, fantasia que alivia a Povo Judeu não por motivos econômicos, geo-
dor, ainda que não resolva a questão existencial. gráficos, militares, mas simplesmente por serem
E conclui: “Depois do que ocorreu, como se pode judeus. Cada vez que se lê sobre os campos de
sustentar que o homem foi feito à imagem e à se- extermínio, se vai a um museu sobre o Holocaus-
melhança divina, como consta na Bíblia? O pro- to, ou se vê um filme, o sofrimento pode ocorrer
blema da identidade judaica e alemã mudou com de repente. Ficar diante do que se passou sem
o nazismo, mas também a imagem que se fazia do sofrer não é fácil, mas a segunda parte da per-
ser humano”. As ideias fazem parte da entrevista, gunta abre a questão do que se pode aprender
a seguir, concedida, por e-mail, a Márcia Junges com a tragédia que exterminou seis milhões de
e Mario Corso, publicada na edição 323 da IHU judeus, milhares de ciganos e homossexuais. Per-
On-Line, em 29 de março de 2010. ceber o quanto a ingenuidade frente à cruelda-
Abrão Slavutzky é psicanalista e médico de pode facilitar a ação dos assassinos. Por outro
psiquiatra com formação em Buenos Aires. Gra- lado, descobrir como, no meio da violência, hou-
duou-se em medicina em 1971, na Fundação Ca- ve milhares de pessoas que arriscaram suas vidas

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

para salvar os condenados à morte. Impressiona de Auschwitz23 até Birkeneau. Durante a Segun-
a leitura do que foi criado nos tempos de guerra da Guerra, esse caminho ficou conhecido como
quanto ao humor, à manutenção da espiritualida- a marcha da morte, isto é, os judeus faziam este
de, à solidariedade e à resistência armada. trajeto até o campo de extermínio para morrer
nas câmaras de gás. Ora, essa Marcha da Vida é
IHU On-Line – Aliás, todos os anos se pu- uma forma de recordar os mortos, mas também
blicam livros sobre este tema... É um as- de reafirmar a vida, reafirmar a dignidade huma-
sunto recorrente. na frente à crueldade. No ano passado, saiu um
Abrão Slavutzky – Li, neste ano, por exem- livro com fotos e pesquisas cujo título é, justamen-
plo, Quem escreverá nossa História – os ar- te, A Marcha da Vida (Opeca, 2009), de autoria
quivos secretos do Gueto de Varsóvia (Rio de de Marcio Pitliuk.
Janeiro: Companhia das Letras, 2009), de Sa- Já a vitimização é a expressão do maso-
muel Kassow. O livro conta como o historiador quismo, é a valorização do sofrimento, logo uma
Emanuel Ringelblum22 organizou um grupo que expressão da pulsão de morte. Quando se dra-
se reunia todos os sábados à tarde, em péssimas matizam as dores, o sentimento de vítimas, se cai
circunstâncias, para distribuir tarefas que consti- numa atitude passiva diante do destino, diante do
tuíram os arquivos secretos que foram enterrados outro. O desafio é sair deste lugar para uma ati-
e descobertos depois do fim da guerra. Conheci tude ativa de luta por um espaço independente,
este historiador ao ler seu livro Crônicas do gueto um espaço construtivo. Lembro um trabalho do
de Varsóvia (Lisboa: Livraria Morais, 1964), ao psicanalista Renato Mezan24 Os que não foram
escrever o meu O Dever da Memória, sobre o le- heróis: sobre a submissão dos judeus ao terror na-
vante do gueto de Varsóvia. O livro de Kassow zista em que ele estuda temas como a submissão,
impressiona pelo relato do esforço das pessoas o terror, a ilusão e a alienação ocorridas durante
em historiar o cotidiano de quinhentas mil pes- o nazismo.
soas fechadas em dois km quadrados.
IHU On-Line – Quais são as origens do mal
IHU On-Line – Como é possível diferenciar no ser humano? Somos maus por essência?
o dever de mantermos a memória de uma Abrão Slavutzky – Quantos livros já foram es-
simples vitimização? critos sobre o mal ao longo dos séculos desde
Abrão Slavutzky – Todos os anos, em Aus- as mais variadas perspectivas! Creio que o mal
chwitz, desde 1988, se bem me lembro, ocorre
a Marcha da Vida, na qual se reúnem milhares 23 Auschwitz-Birkenau: nome de um grupo de campos
de pessoas, de todo o mundo, para caminharem de concentração localizados no sul da Polônia, símbo-
los do Holocausto perpetrado pelo nazismo. A partir de
1940 o governo alemão comandado por Hitler construiu
22 Emanuel Ringelblum (1900-1944): historiador, pe- vários campos de concentração e um campo de exter-
dagogo e escritor polonês. Trabalhou em organizações mínio nesta área, então na Polônia ocupada. Houve
sociais, destacando-se na ajuda aos judeus poloneses três campos principais e trinta e nove campos auxiliares.
deportados da Alemanha entre 1938 e 1939. Com o iní- Como todos os outros campos de concentração, os cam-
cio da Segunda Guerra Mundial e a ocupação alemã da pos de Auschwitz eram dirigidos pela SS comandada por
Polônia, sua família e todos os judeus de Varsóvia foram Heinrich Himmler. (Nota da IHU On-Line)
realocados para o Gueto de Varsóvia em 1940. Dirigiu 24 Renato Mezan: filósofo e psicanalista brasileiro, profes-
sociedade secreta chamada Oyneg Shabbos integrada sor no departamento de Psicologia Social da PUC-SP. Es-
por outros historiadores, escritores e rabinos judeus, que creveu, entre outros, Freud, pensador da cultura (6ª ed.
consistia em registrar a vida no gueto coletando depoi- São Paulo: Brasiliense, 1997), Figuras da Teoria Psicana-
mentos, posters, diários e outros documentos. Próximo lítica (São Paulo: EDUSP/Escuta, 1995), Escrever a Clí-
da destruição do gueto em 1943, o arquivo foi posto nica (2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000) e A Vin-
em três latas de leite e em caixas de metal e enterradas. gança da Esfinge (3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo,
Ringelblum, sua esposa e filho conseguiram escapar do 2002). Confira a edição 179 da Revista IHU On-Line,
gueto. Entretanto, em 7 de março de 1944 seu refúgio foi de 08-05-2006, intitulada Sigmund Freud – o mestre da
descoberto pelos nazistas. Tanto Ringelblum e sua família suspeita, na qual Mezan concedeu a entrevista A inven-
como a família polonesa que lhes dava dava abrigo fo- ção da situação terapêutica. O material está disponível
ram executados. (Nota da IHU On-Line) em <http://migre.me/s7X3>. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

não é o pior problema da humanidade, mas sim fim de sua vida, quando sustenta que esse enigma
o da crueldade, o mal absoluto, o mal pelo mal ainda está mal estudado.
em si. O último livro escrito por Primo Levi25 foi
Afogados e Sobreviventes (Rio de Janeiro: Paz e IHU On-Line – No seu livro Quem pensas tu
Terra, 1990), no qual ele faz um balanço final de que eu sou, editado pela Unisinos no ano
sua passagem como preso em Auschwitz. Há um passado, há um capítulo cujo título é “A
capítulo sobre a violência inútil, no qual enfati- crueldade é humana”. O que explora nesse
za o que foi a crueldade que viu, uma violência trecho?
sem outro propósito a não ser o de fazer o mal ao Abrão Slavutzky – Sim, porque preferimos di-
outro. Ele questiona o que é mesmo o homem, zer que a crueldade é desumana, já que ficamos
quem é esta humanidade, por que tanta malda- chocados em pensá-la como humana. O homem
de. O mesmo tema é analisado no livro autobio- ataca seus semelhantes de forma mais impiedosa
gráfico de Edgar Morin26, Meus Demônios (Rio que os animais que matam para comer. Imagi-
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997), cujo capítulo nar a civilização como enferma não é uma ideia
final é sobre as origens da crueldade no mundo. agradável. O poeta Fernando Pessoa28, apesar de
A mesma preocupação teve Jacques Derrida27 no seu otimismo na famosa frase “Tudo vale a pena
se a alma não é pequena” escreveu uma quadra
sombria pouco conhecida:
25 Primo Levi (1919-1987): judeu italiano, um dos pou-
cos sobreviventes de Auschwitz, o campo de concen-
tração onde milhões de prisioneiros, judeus como ele, A vida é um hospital
foram assassinados pelos nazistas. Sobreviveu para Onde quase tudo falta
regressar a Turim, sua cidade-natal, e escrever um dos Por isso ninguém se cura
mais extraordinários e comoventes testemunhos dos
campos de extermínio nazista. Em seu primeiro e mais E morrer é que é ter alta.
impressionante livro, Se questo è un uomo (Se isto é
um homem), escrito em 1947, Levi relata o ano que A humanidade é mais louca do que conse-
passou em Auschwitz. Em 1963, Primo Levi publica seu
guimos imaginar, porque, na verdade, o homo
segundo livro, A Trégua, em que narra os últimos dias
em Auschwitz, após os nazistas terem abandonado o não é só sapiens, mas é homo demens também.
campo, e sua viagem de volta para casa, na Itália. Seu
último livro, Os afogados e os sobreviventes, é publica- IHU On-Line – Qual é a especificidade da
do em 1986. (Nota da IHU On-Line)
26 Edgar Morin: sociólogo francês, autor da célebre co-
resistência judaica no levante do gueto
leção O Método. Os seis livros da série foram tema do de Varsóvia? Como seus protagonistas ti-
Ciclo de Estudos sobre O Método, promovido pelo Ins- nham pouca esperança de sobrevivência,
tituto Humanitas Unisinos em parceria com a Livraria seria uma aposta na memória do povo ju-
Cultura, de Porto Alegre, em 2004. Embora seja es-
tudioso da complexidade crescente do conhecimento deu como um coletivo corajoso? Como o
científico e suas interações com as questões humanas, senhor aborda isso em sua obra O dever da
sociais e políticas, se recusa a ser enquadrado na So- memória – o levante do Gueto de Varsóvia?
ciologia e prefere abarcar um campo de conhecimentos
mais vasto: filosofia, economia, política, ecologia e até
biologia, pois, para ele, não há pensamento que cor- Liberdade, 2004) e Força de lei (São Paulo: WMF Martins
responda à nova era planetária. Além de O Método, é Fontes, 2007). Dedicamos a Derrida a editoria Memória da
autor de, entre outros, A religação dos saberes. O desa- IHU On-Line edição 119, de 18-10-2004, disponível para
fio do século XXI (São Paulo: Bertrand do Brasil, 2001). download em <http://migre.me/s8bA>. (Nota da IHU
(Nota da IHU On-Line) On-Line)
27 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, cria- 28 Fernando Pessoa (1888-1935): escritor português,
dor do método chamado desconstrução. Seu trabalho considerado um dos maiores poetas de língua portugue-
é associado, com frequência, ao pós-estruturalismo e ao sa. Atuou no jornalismo, na publicidade, no comércio
pós-modernismo. Entre as principais influências de Der- e, principalmente, na literatura, onde desdobrou-se em
rida encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. várias outras personalidades conhecidas como hete-
Entre sua extensa produção, figuram os livros Gramato- rônimos. A figura enigmática em que se tornou movi-
logia (São Paulo: Perspectiva, 1973), A farmácia de Platão menta grande parte dos estudos sobre sua vida e obra,
(São Paulo: Iluminuras, 1994), O animal que logo sou (São além do fato de ser o maior autor da heteronímia. (Nota
Paulo: UNESP, 2002), Papel-máquina (São Paulo: Estação da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Abrão Slavutzky – O Levante do Gueto de que estava por ocorrer. Em 1933, quando seus li-
Varsóvia foi a primeira resistência civil organiza- vros foram queimados junto aos de autores como
da contra o exército alemão durante a Segunda Marx, Thomas Mann32 e tantos mais, em Berlim,
Guerra mundial. O mundo fala muito nesta his- na praça em frente à universidade, e em outras
tória porque mil jovens, mais ou menos, quase cidades, ele disse que, se fosse na Idade Média,
sem armas, resistiram a tanques e metralhadoras ele seria queimado numa fogueira, enquanto que
do exército alemão durante três semanas. No ma- naquela ocasião só queimavam seus livros.
nifesto que lançou o ZOB, as siglas da Organiza-
ção dos combatentes judeus, em janeiro de 1943, IHU On-Line – Por que razão escreveu esse
está escrito: “Se somos muito fracos para defender livro?
nossas vidas, somos fortes para defender a honra Abrão Slavutzky – Mas esta é uma pergunta
judaica e o valor humano”. O que estava em jogo psicanalítica! Qual teria sido meu desejo incons-
era a dignidade diante da morte, pois a opção ciente nesta iniciativa? Durante toda vida escutei
era morrer lutando, tentando sobreviver – e de meu pai dizendo que o passado ainda é o passa-
fato houve sobreviventes –, ou morrer nas câma- do. Esta frase ele pronunciava para concluir nos-
ras de gás. Todos sabiam no Gueto que os trens sas conversas, e eu ficava quieto, sem entender
levavam os prisioneiros para Treblinka29 e que lá muito bem o que ele queria mesmo dizer. Com o
eram assassinados com gás Zyclon B30 que saíam tempo, fui me interessando por História em geral,
de falsas duchas. O trabalho de relatar a história não só a judaica, e ao fazer este livro, dava ra-
do Levante me levou a rever a situação da Eu- zão ao meu pai sobre a importância do passado.
ropa entre as duas guerras mundiais e perceber, Na adolescência, estive em Israel e pude conhe-
como nem Freud31 imaginou, o grau de loucura cer uma sobrevivente do Gueto, que pronunciou
uma conferência sobre o que foi o dia-a-dia da
29 Treblinka: quarto dos campos de extermínio, onde os resistência. Ela falou com muito sentimento e dor,
judeus foram mortos em câmaras de gás alimentadas pois fizera parte da direção do ZOB e foi escolhi-
por motores a explosão. Estava localizado nos arredo-
da para sair do gueto pelos esgotos com a missão
res da cidade de Treblinka, Polônia. Também foi o pri-
meiro campo onde ocorreu a cremação dos cadáveres de contar o que ocorrera nas batalhas. Essa fun-
a fim de ocultar o número de pessoas mortas. (Nota da ção de dar testemunho se ligou à ordem paterna:
IHU On-Line) o passado ainda é o passado, da importância da
30 Zyklon B: marca registrada de um pesticida a base de
ácido cianídrico, cloro e nitrogênio, que foi utilizado pe-
memória, da obrigação bíblica de não esquecer.
los nazistas como veneno no assassinato em massa por O livro foi, portanto, uma forma de cumprir um
sufocamento nas câmaras de gás. Era ativado em conta- mandamento de não esquecer, e o fiz com satis-
to com o ar. Seu nome deriva dos substantivos alemães
dos ingredientes principais e a letra B, uma de suas di-
ferentes concentrações. Este composto foi escolhido por do século XIX, e continuam muito debatidos hoje. A edi-
proporcionar uma morte rápida e eficaz. Nos campos de ção 179 da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe
concentração, o Zyklon B foi inicialmente usado para o tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mestre da
desinfestar piolhos e evitar o tifo. Em setembro de 1941, suspeita, disponível para consulta no link <http://migre.
as primeiras experiências foram realizadas no campo de me/s8jc>. A edição 207, de 04-12-2006, tem como tema
concentração de Auschwitz para testar o assassinato de de capa Freud e a religião, disponível para download em
humanos com o veneno. (Nota da IHU On-Line) <http://migre.me/s8jF>. A edição 16 dos Cadernos IHU
31 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista e fundador em formação tem como título Quer entender a moder-
da Psicanálise. Interessou-se, inicialmente, pela histeria nidade? Freud explica, disponível para download em
e, tendo como método a hipnose, estudava pessoas <http://migre.me/s8jU>. (Nota da IHU On-Line)
que apresentavam esse quadro. Mais tarde, interessado 32 Thomas Mann (1875-1955): romancista alemão, con-
pelo inconsciente e pelas pulsões, foi influenciado por siderado como um dos maiores do século XX. Recebeu
Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em favor da o prêmio Nobel da Literatura em 1929. Foi o irmão
associação livre. Estes elementos tornaram-se bases da mais novo do romancista Heinrich. Ganhou repercussão
Psicanálise. Freud, além de ter sido um grande cientis- internacional, aos 26 anos, com sua primeira obra, Os
ta e escritor, realizou, assim como Darwin e Copérnico, Buddenbrooks (Buddenbrooks), romance que conta a
uma revolução no âmbito humano: a idéia de que somos história de uma família protestante de comerciantes de
movidos pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o trata- cereais de Lübeck ao longo de três gerações. (Nota da
mento com seus pacientes foram controversos na Viena IHU On-Line)

23
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

fação, mas inquieto, porque ler detalhes de tudo judeu que se converteu e se arrependeu, disse
que ocorreu naquela época é sofrido por mais que não sentia raiva de seus inimigos. Só dese-
que os anos tenham passado. java que ao final da vida pudesse descansar e
olhar, no horizonte, várias árvores onde estives-
IHU On-Line – Diz-se que a história sempre sem dependurados todos seus adversários. Quem
é o relato dos vencedores. O que fazer no se acostuma a ser maltratado passivamente fica
caso do Holocausto, no qual ambos os la- se sentindo um covarde e pode desenvolver uma
dos perderam: os alemães, a guerra; e os ju- perversão na qual se deixa agredir desde que se
deus e outros grupos exterminados, a vida sinta amparado pelo agressor. Por outro lado, a
e a maior parte da sua identidade? vingança faz parte da história dos seres humanos,
Abrão Slavutzky – Nas últimas décadas, os his- ela tem sua lógica baseada na coragem e astúcia.
toriadores escrevem não só a história dos vence- Mas Invictus, filme baseado numa história real, re-
dores, mas também a dos que perderam, como a vela o líder negro Nelson Mandela34, da África do
história dos índios americanos, dos negros escra- Sul, evitando a vingança dos brancos quando foi
vos e outras minorias aplastadas pelos donos do eleito presidente do seu país. Se houvesse toma-
poder. Na Segunda Guerra Mundial, o nazismo do o caminho do ódio, teria lançado a negros e
foi derrotado, mas não erradicado. Os judeus per- brancos em uma nova guerra. Logo, soube trans-
deram boa parte do mundo cultural em idische e cender o prazer da vingança.
um terço da sua população mundial. Entretanto,
depois da guerra, ele conseguiu se reerguer em IHU On-Line – Pensando nas inúmeras pro-
Israel e no mundo. Logo, conhecer o que ocorreu duções sobre o nazismo, poderíamos dizer
é um dever de memória da humanidade. que esse fato histórico se tornou um para-
A tragédia do nazismo segue sendo moti- digma do mal, com isso indo além dos po-
vo de estudos e da arte, afinal, um trauma desta vos envolvidos, e talvez por isso haja tantos
magnitude não é fácil de se resolver em poucas filmes, como uma maneira de curar o trau-
décadas. A guerra envolveu não só o povo ale- ma duma ferida de todo o Ocidente?
mão e o povo judeu, mas todos os povos, é uma Abrão Slavutzky – Para Adorno35, a ferida nar-
ferida narcisista na imagem da civilização. Depois cisista do que ocorreu na Segunda Guerra Mun-
do que ocorreu, como se pode sustentar que o dial é definitiva, conforme escreveu no seu Crítica
homem foi feito à imagem e à semelhança divina,
como consta na Bíblia? O problema da identida- cialmente a sua obra de juventude, foi musicada por
de judaica e alemã mudou com o nazismo, mas vários compositores notáveis como Robert Schumann,
também a imagem que se fazia do ser humano. Franz Schubert, Felix Mendelssohn, Brahms, Hugo Wolf,
Richard Wagner e, já no século XX, por Hans Werner
Henze e Lord Berners. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line – Como interpreta os filmes 34 Nelson Rolihlahla Mandela (1918): advogado, líder
Bastardos Inglórios e Invictus no que diz rebelde e ex-presidente da África do Sul de 1994 a 1999.
Principal representante do movimento antiapartheid,
respeito à forma com que suas histórias li-
como ativista, sabotador e guerrilheiro. Considerado pela
dam com a questão da vingança, no primeiro maioria das pessoas um guerreiro em luta pela liberdade,
caso, e de sua transcendência, no segundo? era considerado pelo governo sul-africano um terrorista.
Abrão Slavutzky – Bastardos Inglórios é uma Em 1990 foi-lhe atribuído o Prêmio Lênin da Paz, recebi-
do em 2002. Confira, nas Notícias do Dia 27-02-2010. a
ficção, filme que começa muito bem e, aos pou- notícia O jornal do Vaticano elogia o filme Invictus, dispo-
cos, perde força, especialmente no final, mas que nível para download em <http://migre.me/s8qE>. (Nota
traz à tona uma vingança que nunca ocorreu na da IHU On-Line)
realidade. Essa obra expressa o prazer da vingan- 35 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): sociólo-
go, filósofo, musicólogo e compositor, definiu o perfil do
ça. Heinrich Heine33, poeta e jornalista alemão, pensamento alemão das últimas décadas. Adorno ficou
conhecido no mundo intelectual, em todos os países, em
33 Christian Johann Heinrich Heine (1797-1856): especial pelo seu clássico Dialética do Iluminismo, escrito
poeta romântico alemão, conhecido como “o último junto com Max Horkheimer, primeiro diretor do Instituto
dos românticos.” Boa parte de sua poesia lírica, espe- de Pesquisa Social, que deu origem ao movimento de

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cultural e sociedade (São Paulo: Prismas, 1998): humanidade, um amparo talvez. Esta fé resiste às
“Escrever um poema após Auschwitz é um ato guerras, às mortes e às atrocidades como uma luz
bárbaro”. Escreve, com a ressalva de que a arte de esperança. Tenho respeito pelos que tem fé no
não pode mais ser inocentemente alegre, o mes- Todo Poderoso, por que não?
mo escreveu Walter Benjamin36 em suas famosas
Teses sobre a História. Logo, é preciso resistir à IHU On-Line – Qual é o lugar da fé den-
crueldade, como fez, por exemplo, Irena Send- tro desse processo de perdão e supera-
ler37, uma enfermeira cristã que trabalhava para ção do mal?
o governo polonês e foi responsável por salvar Abrão Slavutzky – A fé deveria ser pensada
2500 crianças judias do Gueto de Varsóvia. Sua não só como uma questão religiosa, mas como
compaixão deveria ser conhecida pelo mundo uma necessidade do ser humano de manter a ilu-
que lhe negou o prêmio Nobel da Paz. Felizmente, são. A palavra ilusão é formada de i mais ludere,
há milhares de exemplos de pessoas como Irene, ou seja, ilusão é um jogo dentro de si na realidade
que ajudam a iluminar os caminhos em tempos psíquica que se desenvolve desde muito cedo na
de trevas. Eles conseguem transcender o plano criança. A fé é, portanto, uma fantasia que alivia a
da realidade, se elevam, transformam a si e aos dor, e mesmo que não resolva a questão existen-
demais e enriquecem a imagem do ser humano. cial, ela pode ser decisiva. Vivi numa família que
tinha fé, de cunho religioso sem ser ortodoxa, e
IHU On-Line – Uma pergunta recorrente lembro com carinho a forma como todos acredi-
é: onde estava Deus enquanto acontecia o tavam num ente superior, sem dúvidas ou ques-
Holocausto? Como a fé se expressava entre tionamentos. Fui marcado por esta identidade ao
aqueles que sabiam que iriam morrer? lado de uma atitude irreverente, questionadora,
Abrão Slavutzky – Quem é Deus? Se pensar- que formam um bom paradoxo.
mos Deus, como fez o filósofo Espinosa38, não se
deveria fazer uma pergunta destas, pois Ele não IHU On-Line – Existe perdão ou sim-
intervém diretamente na História. Os religiosos plesmente esquecimento?
seguiram acreditando no Todo Poderoso mesmo Abrão Slavutzky – Recordo a história de uma
diante da morte, aliás, morriam rezando para tia que teve suas meias de nylon rasgadas, cujo
mostrar que nem a morte lhes tirava a fé. Li cenas responsável logo lhe pediu desculpas. Ela disse
de homens e mulheres que festejaram os feriados que desculpa, desculpa, mas o buraco na meia
judaicos durante os anos da guerra. É possível ficou. É difícil perdoar quem nos feriu profunda-
pensar Deus como uma ideia importante para a mente, bem mais do que uma simples meia ras-
gada. Mas, se alguém mantém o ódio, através do
ideias em filosofia e sociologia que conhecemos hoje ressentimento, se empobrece. É o que se pode
como Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line) constatar no romance As Brasas de Sándor Ma-
36 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão crítico rái, que trata da história de uma amizade, em que
das técnicas de reprodução em massa da obra de arte.
um general aposentado sofreu durante 41 anos
Foi refugiado judeu alemão e diante da perspectiva de
ser capturado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Um dos com a traição do grande amigo, que teve um ro-
principais pensadores da Escola de Frankfurt. (Nota da mance com sua esposa. Triste é a condição de
IHU On-Line) quem vive ressentido, com o outro, com a vida,
37 Irena Sendler (1910-2008): conhecida como “o anjo
do Gueto de Varsóvia”, foi uma ativista dos direitos hu-
consigo, pois sofre sempre. Quem sabe poderia se
manos durante a Segunda Guerra Mundial, tendo contri- pensar não só em perdão ou em esquecimento,
buido para salvar mais de 2.500 vidas ao levar alimentos, mas também em transcendência, em reparação,
roupas e medicamentos às pessoas barricadas no gueto, em justiça e tolerância.
com risco da própria vida. (Nota da IHU On-Line)
38 Baruch de Espinosa (1632-1677): filósofo holandês,
pertencente a uma família judia originária de Portugal. IHU On-Line – Como foi possível ocorrer o
Publicou o Tractus Tehologico-Politicus, e a Ética e deixa Holocausto em pleno século XX no coração
várias obras inéditas, que são publicadas em 1677 com o
da Europa?
título de Opera Posthuma. (Nota da IHU On-Line)

25
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Abrão Slavutzky – O espanto desta pergunta é viveu na Alemanha durante a guerra, descreve
necessário para estudar como o antissemitismo é como o nazismo penetrou na carne e sangue das
maior do que se imagina. O preconceito contra pessoas pelas palavras, frases, discursos, que o
os judeus, o que muitos chamam de judeofobia, mal era o bem. O poder autoritário fez o povo ale-
uma fobia, um medo aos judeus, tem dois mil e mão um povo obediente e submisso. Muito ainda
quinhentos anos de história. Começou no hele- temos a aprender sobre o fascínio que despertam
nismo e se desenvolveu no Cristianismo com as as ditaduras. O historiador Richard Overy40, em
Cruzadas e a Inquisição, que durou vários sécu- seu livro Os Ditadores: a Rússia de Stálin e a Ale-
los. No século XIX, o ódio religioso aos judeus manha de Hitler (Venda Nova: Bertrand Editora,
se transformou numa questão política, no qual o 2005), estuda o nazismo e o estalinismo, em suas
caso Dreyfus foi um sintoma desta nova forma semelhanças e diferenças, sistemas construídos
de agressão. Os judeus foram o bode expiatório durante vários anos, que seduziram as massas e
de tudo de ruim que havia na humanidade, os convenceram artistas, cientistas, professores uni-
assassinos de Cristo, que por sinal nasceu judeu versitários e juízes. Para quem deseja conhecer
e morreu judeu, e tantas mentiras mais que mar- mais o que ocorreu na Segunda Guerra Mundial,
caram a civilização ocidental. O nazismo teve nos sugiro não só livros e filmes, mas a visita pela In-
judeus seu inimigo principal, como expressou ternet dos museus como o Yad Vashem41, em Je-
Hitler no seu derradeiro discurso pouco antes rusalém, e o Museu Judaico, em Berlim.
da derrota, em 1945. A obra LTI- a linguagem
do Terceiro Reich (Rio de Janeiro: Contraponto,
2009), de Victor Klemperer39, um linguista que

39 Victor Klemperer (1881-1960): professor universitário


de filologia românica na Universidade de Dresden até
que foi demitido de suas funções em 1935, dois anos de-
pois da chegada ao poder de Hitler. Foi um dos poucos
habitantes de Dresden de origem judaica que sobrevive- 40 Richard Overy (1947): historiador britânico que publi-
ram ao Holocausto sem terem fugido para a Palestina, os cou inúmeras obras sobre a história da Segunda Guerra
Estados Unidos ou outros refúgios. Klemperer tornou-se Mundial e o Terceiro Reich. (Nota da IHU On-Line)
famoso pelo diário que ele manteve relatando a sua vida 41 Yad Vashem: do hebraico, a “Autoridade de Recor-
em Dresden nos anos do nazismo, um período crítico da dação dos Mártires e Heróis do Holocausto”, memorial
história da Alemanha. Trata-se de um documento histó- oficial de Israel para lembrar as vítimas judaicas do Ho-
rico de grande valor, no qual podemos hoje ler detalha- locausto. Foi estabelecido em 1953 através da Lei Yad
damente as chicanas, os insultos, as cuspidelas na cara, Vashem passada pela Knesset, o Parlamento de Israel.
proibições, prisão, o roubo da sua propriedade e outras Localizado no sopé do Monte Herzl, no Monte da Re-
humilhações que as autoridades nazistas e a grande mas- cordação (Har HaZikaron), em Jerusalém, Yad Vashem
sa dos seus compatriotas “arianos” lhe infligiram pesso- é um complexo de cerca de 18 hectares. (Nota da IHU
almente todos os dias. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

26
O império do instante e a memória

Entrevista com José Antonio Zamora

O progresso como ideologia institui o império Zamora critica esse devir cronológico, que
do instante, destruindo a experiência em função tem na elaboração ideológica do progresso sua
da fugacidade e da velocidade sempre mais ace- mais rematada concretização. A figura do rede-
lerada na modernidade capitalista. Nesse cenário, moinho seria mais adequada para compreender-
não há espaço para a memória, afirma José Anto- mos a realidade social, quando tudo é movido,
nio Zamora, inspirado por Walter Benjamin. mas nada muda.
As estruturas temporais da modernidade Zamora é docente no Instituto de Filosofia
capitalista estão marcadas pela velocidade, por do Conselho Superior de Investigações Cientí-
uma aceleração permanente. Ao mesmo tempo, ficas (CSIC) da Espanha, é autor de, entre ou-
parece que nada de novo, em seu sentido radical tros, Th. W. Adorno: pensar contra la barbarie
e autêntico, é produzido. “Novidades” proliferam (Madrid: Trotta, 2004) e Ciudadania, multicul-
em ritmo frenético, e essa avalanche de bens de turalidad e inmigración (Navarra: Verbo Divino,
consumo nos conduz ao império do instante, do 2003). Estudou Filosofia, Psicologia e Teologia
fugaz, do descartável. Ao nos inscrevermos nessa na Universidade Pontifícia de Comillas, em Ma-
lógica, acontece “uma anulação e uma destruição dri. Doutorou-se na Universidade de Münster, na
da experiência, porque a relação que o sujeito Alemanha, com uma tese sobre Theodor Adorno,
estabelece com a realidade por meio do consu- orientada por Johann Baptitst Metz.
mo está marcada por essa fugacidade, por essa
transitoriedade”. Esta é a análise de Zamora na IHU On-Line – Qual é a relação que o se-
entrevista exclusiva que concedeu, pessoalmente, nhor estabelece entre Walter Benjamin e o
à equipe da IHU On-Line, em 1º de novembro tempo e consumo no capitalismo?
de 2009. José Antonio Zamora – Walter Benjamin é um
Há uma “empatização com a mercadoria”, pensador que pretende desentranhar as chaves
assegura Zamora, referindo-se ao pensamento da modernidade capitalista. Uma dessas chaves
de Walter Benjamin. Não se trata mais de um fundamentais é a questão do tempo. Normalmen-
consumo material em si, e o valor de uso do pro- te, consideramos o tempo como uma realidade
duto fica de lado. Entra em cena a aura alucina- imutável, como se o tempo houvesse sido sempre
tória das mercadorias, que são convertidas em igual em todas as épocas históricas, mas, na reali-
objeto de desejo pelas qualidades subjetivas que dade, o tempo também é uma construção social.
conferem ao seu possuidor. Daí à conversão dos Nesse sentido, a modernidade capitalista estabe-
sujeitos em mercadoria é um passo. “Benjamin lece estruturas temporais. Estas estão marcadas
rastreia uma forma de conversão dos sujeitos por uma aceleração permanente, a velocidade.
em mercadoria que tem a ver com o fetichismo E, ao mesmo tempo, há uma sensação de que
da mercadoria, com a aura alucinatória, com a nada novo, em um sentido radical, se produz. A
experiência estética, cultural com a mercadoria, modernidade está relacionada com o novo. Este
não material”. é o tempo novo frente ao antigo, frente à Idade

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Média, frente ao antigo regime. Entretanto, a pro- sionados a consumir vorazmente. Porém, nesse
liferação de novidades e a aceleração na prolife- consumo, produz-se realmente uma anulação e
ração destas produz um certo “instantaneísmo”, o uma destruição da experiência, porque a relação
domínio do instante, do fugaz. E isso, ao mesmo que o sujeito estabelece com a realidade por meio
tempo, faz com que se produza uma desqualifi- do consumo está marcada por essa fugacidade,
cação do instante pela falta de duração. Ao não por essa transitoriedade.
ter duração, não se inscreve experiencialmente
no sujeito, e então isso produz uma sensação de IHU On-Line – A que se atribui essa acele-
vazio nisso que, hoje em dia, recebeu o nome ração do tempo? Ela está, então, submetida
de pós-modernidade. Há uma sensação de que ao imperativo do consumo?
as utopias, o sujeito, a razão, morrem. Vivemos José Antonio Zamora – Sim, porque, de um
em um mundo “pós”: pós-humano, pós-político, lado, o capitalismo, por meio da inovação tecno-
pós-histórico, pós-moderno. É uma consequência lógica, organizativa e logística, tem uma capaci-
última desse processo de aceleração. Então, diga- dade enorme de produzir cada vez mais com me-
mos, isso que faz parte das estruturas, para mim, nos. É a lógica de racionalização, de efetividade,
é uma chave para desentranhar o que a moderni- de eficácia, a competitividade. Os saltos de pro-
dade capitalista produz na sociedade e na experi- dutividade têm sido enormes. Então, isso faz com
ência que os sujeitos têm nessas sociedades. Isso que possamos produzir muito mais com menos,
por um lado. mas a criação de riqueza material não é o mesmo
que a criação de benefício. A criação de benefício
não depende da criação de riqueza, mas sim do
O tempo devorado valor de troca associado às mercadorias. Então,
para seguir mantendo a acumulação, é neces-
O problema é a mediação entre o que pode- sário produzir mais, isto é, a produtividade não
ríamos chamar de tempo concreto, o tempo em tem como consequência um ganho de tempo, de
seu caráter experiencial, e depois um marco, que, tempo não produtivo, de tempo de descanso, de
no capitalismo, é o marco do valor abstrato, que tempo fora do âmbito da produção e do consu-
é o tempo enquanto critério de quantificação do mo. O crescimento da produtividade tem que ser
valor do capital, do dinheiro. Trata-se de buscar compensado com um crescimento tremendo do
e de entender essa mediação, porque a moder- consumo. Estamos continuamente compelidos a
nidade produz uma grande quantidade de inova- consumir, senão seria impossível que a maquina-
ção tecnológica, de mudança social, de mudança ria seguisse funcionando.
de mentalidades. É uma revolução permanente
de costumes, de ideias, de afetos, de técnicas, de
todo tipo. E, ao mesmo tempo, apesar de tudo Aura alucinatória das mercadorias
estar em revolução, no entanto, o marco abstrato
do valor e o tempo abstrato do valor de troca, ou O capitalismo também é uma forma de cul-
do dinheiro, do capital, é um marco fixo, estático. tura, não só uma forma de produzir. Então, tem
Parece como se esse marco estático devorasse o que estar continuamente alimentado o desejo,
tempo concreto, engolisse, se apoderasse do tem- gerando, portanto, uma apetência permanente
po concreto e anulasse sua capacidade de pro- de mercadorias. E Benjamin consegue rastre-
duzir verdadeira novidade, algo verdadeiramente ar um fenômeno específico – e eu acredito que
novo. Evidentemente, isso tem a ver com o con- foi a pessoa que melhor o entendeu –, que ele
sumo, na medida em que o capitalismo também chamou de “empatização com a mercadoria”. É
produziu uma infinidade enorme de mercadorias, uma aproximação e uma identificação empáti-
de produtos, uma multiplicação. Mas essa multi- ca com a mercadoria, que não é seu consumo
plicação de produtos está a serviço da multipli- material, não tem a ver com o valor de uso, mas
cação do benefício, então os sujeitos são impul- sim com a aura alucinatória que as mercadorias

28
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

adquirem no capitalismo para se converter em IHU On-Line – Voltando à questão da ace-


objeto de desejo. Aí há um processo de assimila- leração do tempo, que conexões há entre
ção, de “empatização”, diz ele, com o anorgâni- ela e o fim da história, da razão, do sujeito,
co. Isso transforma os sujeitos em sujeitos auráti- da política e das ideologias? Não se cria aí
cos mercantilizados. uma apatia do sujeito contemporâneo em
É muito curioso, por exemplo, quando Ben- função desse cenário?
jamin se fixa em tipos humanos que povoam o José Antonio Zamora – A questão da acelera-
que hoje chamaríamos de shopping, mas que ção e do fim da história aparece como duas in-
naquela época eram as passagens parisienses. terpretações opostas. A categoria da aceleração
Então, o filósofo fala da relação que os sujeitos parece ser um impulso para frente, à velocidade,
têm quando estão na massa, quando estão nessas ao rápido, a uma meta. Parece que, no conceito
concentrações humanas. E ele se dá conta de que de aceleração, há como que um esquema tec-
os passeantes se exibem diante dos outros, se ven- nológico de fundo. No entanto, o fim da história
dem diante dos outros, adquirem eles mesmos o parece propor que o que se produz é uma “está-
caráter de mercadoria que se oferece ao outros. O tica”, uma parada, uma detenção, algo que não
que Marx havia analisado, que o homem vende se move, que está detido. Benjamin, claro, não se
a sua força de trabalho e se converte em merca- refere a esse teorema do fim da história, que é um
doria no mercado de trabalho, pela venda de sua teorema hegeliano, que depois foi percorrido por
força de trabalho, é insuficiente para entender o Francis Fukuyama. Mas Benjamin tinha diante de
capitalismo na época posterior e atual. E Benja- si o teorema nietzschiano do eterno retorno. En-
min rastreia uma forma de conversão dos sujeitos tão, diz ele, tanto a ideia burguesa, marxista ou
em mercadoria que tem a ver com o fetichismo social-democrata de progresso, de avanço a uma
da mercadoria, com a aura alucinatória, com a meta, concepção teleológica da história, e esta
experiência estética, cultural com a mercadoria, outra, do eterno retorno, são duas formas de falsa
não material. Pensemos que ele está escrevendo consciência daquilo que realmente ocorre. Porque
nos anos 1920-1930 do século passado, então se só se entende o que realmente ocorre a partir da
supõe um adiantamento, uma lucidez. mediação desses dois esquemas interpretativos.
Hoje, basta entrar em um shopping para Teríamos que recorrer, talvez, a uma imagem do
entender Benjamin. É uma coisa que Theodor redemoinho. Quando você vê um fluxo de água,
Adorno também analisa. Porque o valor de troca forma-se um redemoinho, que começa a mover
em Marx era simplesmente o preço, tinha a ver tudo, mas fica fixo, está fixo, não muda, não se
com o sistema de dinheiro para trocar merca- move. Essa imagem pode nos ajudar a entender
dorias que são qualitativamente diferentes. Mas o que Walter Benjamin persegue em sua análise.
aqui estamos falando de outra coisa, estamos Porque essa aceleração tremenda, esse processo
falando dessa aura alucinatória, o brilho, o es- de inovação tecnológica, de transformação per-
plendor que as mercadorias adquirem, que lhe manente faz com que, na realidade do sistema so-
permitem ter vivências, experiências subjetivas da cial, tudo mude para que nada mude: está imóvel.
relação que não tem a ver com o substrato ma-
terial da mercadoria. Por que um carro de luxo
faz com que o possuidor tenha “sex appeal”? É O novo qualitativo e o novo cronológico
a relação da materialidade da mercadoria e os
atributos que se projetam alucinatoriamente so- A análise de Benjamin persegue essa ques-
bre ele. Então, isso permite rastrear uma coisa tão tão própria do sistema produtor de mercado-
que, por exemplo, Adorno chamava de “o con- rias de, por um lado, criar uma pluralidade, uma
sumo do valor de troca”, que, na forma habitual diversidade, um ato de inovação permanente, de
de pensar as teorias marxistas, tradicionais, não multiplicação, de diversificação. Pensemos, por
teria sentido, só se pode consumir o valor de uso exemplo, como era a vida dos sujeitos antes da
de uma mercadoria. revolução econômica que é o sistema capitalis-

29
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ta. Seu mundo de objetos, de vivência, era re- cisamente do altar da história, onde são sacrifi-
lativamente pobre comparado ao que nós hoje cadas gerações, homens, para a consecução de
vivemos em todas as ordens. No entanto, nessa uma meta futura, que é a plenitude da história.
produção contínua da novidade, realmente está Nesse sentido, o fim da história é também o juízo
se escamoteando o novo, o radicalmente novo. final. Não é preciso esperar nenhum juízo ulte-
Benjamin analisa o fenômeno da moda e rior que revogue o acontecer fático da história,
diz que as mercadorias precisam utilizar a propa- mas a própria história é seu juízo. A história vai
ganda da novidade. Mas a novidade, pela pura realizando seu juízo no próprio devir. Então, tudo
novidade, é um critério abstrato, é simplesmente é justificado como preço do resultado. Então, se
aquilo que no tempo acontece em último lugar, pensarmos que Walter Benjamin encontra dian-
não tem outra qualificação a não ser aquilo que te de seus olhos, no momento histórico em que
ocorreu por último. Então é isso que se busca: vive, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a
quando se oferece as mercadorias, prometem-nos emergência dos fascismos na Europa, o triunfo do
que teremos o último, pois aquilo que já temos nacional-socialismo na Alemanha, a perseguição
está atrasado. Contudo, não se analisa o que há dos judeus, ele não pode entender que esse pre-
realmente de novo no novo. Porque o novo, em sente possa ser, digamos, o epílogo de um proces-
sentido enfático, profundo, tem que ser qualitati- so histórico anterior. Algo falhou nessa interpreta-
vamente novo, é uma determinação qualitativa, ção da história, que nos cegou para compreender
e não meramente cronológica. Então, no império realmente os custos desse processo. E, quando
da cronologia, do devir cronológico, em um con- não somos capazes de ver os custos desse proces-
tinuum de instantes que se sucedem no tempo, so em termos de vítimas, de destruição, de ruínas
o que se produz realmente é uma sabotagem da acumuladas, estamos alimentando a própria ló-
produção do radical e do verdadeiramente novo. gica sacrificial que se sustenta como esquema de
Acrescenta-se a isso que essa concepção que cha- dominação histórico que não foi rebaixado. En-
mamos teleológica do tempo, que é expressada tão, a novidade viria só do fato de sermos capazes
de um modo muito preciso na ideia moderna de de interromper esse processo. Benjamin tem um
progresso, é a forma como nós, modernos, en- conceito messiânico do tempo.
tendemos o tempo. Entendemos o tempo como
progresso. Então, diz Benjamin, essa forma de IHU On-Line – A partir disso, como pode-
interpretar o processo histórico é uma forma de mos compreender a junção messianismo e
interpretar que reflete essa aceleração constante política nesse pensador?
do tempo, esse processo inovador constante, que, José Antonio Zamora – Não é simples a in-
no entanto, como mero reflexo, é uma elaboração terpretação que Benjamin faz do messiânico. Ele
ideológica, porque não permite ver o que, nesse tem um fragmento, que é o Fragmento Teológico-
processo, há de regressão, destruição, aniquila- -Político, em que ele fala da relação entre a ordem
mento, vítimas. do profano e a ordem do messiânico. Normal-
mente, o messiânico está relacionado à teolo-
gia, à religião. Então, ele fala dessas duas ordens
Lógica sacrificial como duas ordens diferentes, separadas e com
uma certa tensão: enquanto que a ordem do pro-
Nesse processo histórico, interpretado como fano é voltada à busca da felicidade dos sujeitos,
progresso, tudo é submetido à consecução da a ordem do messiânico é interpretada por Benja-
meta. O resultado aparece como capaz de justifi- min como interrupção. Ele não pensa o Reino de
car todos os preços pagos para a sua consecução. Deus, podemos dizer, como o fruto maduro de
Na realidade, essa ideia de progresso responde a um processo histórico, que é como muitas vezes o
uma lógica sacrificial. E, de fato, um dos autores interpretamos: pensamos que a história vai cami-
em que essa ideia tem, na filosofia da história, nhando rumo a uma plenitude, e essa plenitude é
uma interpretação mais acabada, Hegel, fala pre- o Reino do Deus, o epílogo da história. Isso con-

30
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

verteria o Reino de Deus no prêmio dos vence- deríamos dizer a Walter Benjamin: “Você exagera
dores. Então, pensando o esquema apocalíptico, um pouco o negativo desse processo. Realmente
ele diz: o Reino de Deus não é a meta da história, houve progressos”. Suponho que ele não negasse
mas sim seu final, seu final como interrupção. Na esse progresso.
visão apocalíptica, o Messias chega como aquele O que acontece é que, evidentemente, seu
que derrota o AntiCristo, é aquele que enfrenta horizonte e sua perspectiva não é a perspectiva
uma situação de dominação destrutiva dos seres dos vencedores, mas sim a perspectiva dos ven-
humanos. O Messias não é o herdeiro do trono cidos. Por isso, na tese 8 da Filosofia da história,
histórico. Então, isso é importante no sentido de ele diz: para os oprimidos, o estado de exceção
que o messiânico é entendido como a irrupção é a regra. Isto é, essa história, vista a partir dos
do radicalmente novo, que tem como condição que foram esmagados, dos que foram anulados,
de possibilidade a interrupção da prolongação da é uma história catastrófica. E, desde muito cedo,
catástrofe que foi a história. ele quis pensar messianicamente a história, que é
pensar a partir dos deserdados, dos últimos, dos
IHU On-Line – Então, a partir dessa ideia, esmagados, dos oprimidos. Pensar a história mes-
poderíamos repensar o conceito de política? sianicamente é pensá-la a partir desse horizonte.
José Antonio Zamora – Isso é o que pretende E isso já está no escrito sobre Goethe e as afini-
Walter Benjamin. Aquilo que conhecemos como dades eletivas, em que ele diz: não nos foi dada
o teorema da secularização vinha dizer que a mo- outra esperança mais do que pelos que carecem
dernidade europeia é uma tradução, translação de esperança. Então, não é a esperança daqueles
das contribuições do cristianismo levados a con- que têm perspectiva de êxito, que querem dar o
ceitos seculares. Benjamin tem um conceito dife- último salto para o paraíso, porque essa é a pers-
rente da relação entre a ordem política e a ordem pectiva dos vencedores da história. Por isso, a sua
religiosa. Ele não busca uma tradução, uma trans- crítica tão forte à social-democracia e, em parte
lação. Ele fala de uma relação como um papel se- também, mesmo que nunca o nomeie, ao comu-
cante com a tinta, mesmo que a tinta nunca pos- nismo. As classes trabalhadoras fizeram com que
sa ser absorvida totalmente. Ele tenta introduzir a as vítimas se vejam com a ideologia daqueles que
teologia dentro da política, de uma maneira que os oprimem, com a ideologia burguesa. Segundo
tanto a teologia quanto a política fiquem “translo- Benjamin, acreditar que cavalgamos na crista da
cadas”, “transtocadas” em sua dinâmica. Então, onda e que somos o motor da história – assim
para que isso possa ficar entendível, ele diz: Karl eram interpretadas, dentro da tradição marxis-
Marx secularizou a ideia de Reino messiânico e a ta, as organizações dos trabalhadores no come-
ideia de sociedade sem classes. Imediatamente, ço do século – é uma espécie de obnubilação,
diz: é imprescindível devolver à revolução seu ros- de autoengano. Porque a história aparecia aos
to messiânico, se não queremos que a classe tra- seus olhos como dotada de uma espécie de au-
balhadora seja arrasada pelo processo que ele via tomatismo de emancipação, que, de um modo
nesse momento de dissolução. Então, o que quer ou outro, bastava esperar, porque a história ca-
dizer devolver um rosto messiânico? Até agora, minhava inexoravelmente para o paraíso comu-
Marx pensou as revoluções como locomotoras da nista. O filósofo completa que nada pior poderia
história, como aquilo que faz avançar para frente, ter ocorrido com aqueles que são chamados a
que impulsiona a história para sua meta. Mas, diz transformar a história do que pensar que a histó-
Benjamin, é preciso entender as revoluções como ria, por sua própria dinâmica, conduz à emanci-
um “agarrar” o freio de emergência do trem da pação, à superação da dominação.
história. Então, devolver um rosto messiânico
quer dizer interromper uma marcha. Benjamin IHU On-Line – Em que sentido se pode fa-
pensa a revolução não como um salto à meta, lar de uma destruição da experiência a par-
mas sim como interrupção de um processo que, tir do pensamento desse filósofo? O que
até agora, tem sido um processo catastrófico. Po- isso significa?

31
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

José Antonio Zamora – O que Benjamin des- duração, os acontecimentos, os fenômenos, as


creve como destruição da experiência tem a ver coisas não podem se inscrever, não podem ser
com esses processos que analisamos no começo, apropriados pelo sujeito. O sujeito está como que
de aceleração do tempo. Já a própria industriali- “resvalando” sobre as coisas. Na realidade, a ex-
zação supõe uma mudança estrutural de grandes periência do consumo é algo assim. Essa é a dife-
dimensões na relação dos sujeitos, dos indivíduos rença que havia entre uma viagem no século XIX
com o mundo, com as coisas, com os aconteci- e uma viagem no século XX. Podemos ir de um
mentos. Ele tem um artigo em que fala sobre a lugar para o outro, porque a velocidade é imensa.
pobreza da experiência, referindo-se, precisamen- A palavra experiência, em alemão, vem da pala-
te, às pessoas que voltavam do front da Primeira vra viajar. “Erfahrung”, experiência em alemão,
Guerra Mundial. E ele diz que, diferentemente e “fahren”, viajar. E ter experiência era isso, era
de outras guerras, em que as pessoas voltavam aventurar-se pelo novo, por aquilo que não era
contando o que havia acontecido, as pessoas que conhecido, pelo estranho, era descobrir o mundo.
voltavam do front da Primeira Guerra Mundial Experimentar é descobrir o mundo. É abandonar-
vinham atônitas, sem palavras. Como se sabe, a -se, entregar-se ao que não é próprio, entregar-
Primeira Guerra Mundial foi uma guerra tremen- -se ao outro. E essa capacidade para entregar-se,
damente cruel, em que se enviavam as tropas às para abandonar-se ao outro é anulada pela verti-
trincheiras, que eram bombardeadas com os ca- ginosidade do impacto, da sensação. Nessa forma
nhões e tanques. Era uma guerra de seres huma- transformada de relação com o mundo, não tem
nos convertidos em carne de canhão. Esse cho- cabimento a recordação, a memória. Então, esse
que, essa comoção, é intragável ao sujeito, que cúmulo de impactos, de sensações, na realidade,
não é capaz de inscrever o que lhe acontece em é uma máquina poderosíssima de esquecimento.
uma sequência biográfica. Se transladarmos esse Quando falamos das gerações jovens, dize-
exemplo à experiência cotidiana, da aceleração, mos que elas vivem num instante eterno, que é
Benjamin diz que essa multiplicação de sensações o último que viveram. Produz-se uma destruição
é inassimilável. Então, não podem ser traduzidas da memória. A memória precisa inscrever o acon-
em experiências. tecer na sequência biográfica e, para isso, precisa
da duração. Romper a capacidade rememorativa
incapacita os sujeitos para isso que Benjamin re-
Máquina de esquecimento almente busca, que está muito associado à críti-
ca do progresso. Isto é, nós não podemos rom-
Nós vemos televisão e estamos sendo conti- per o curso e a sequência linear do tempo, se
nuamente impactados por imagens a uma gran- não estabelecermos uma relação diferente com
de velocidade. Por assim dizer, os videoclipes são o passado. E essa nova forma de relação, que
a vanguarda do meio televisivo. E se o impacto são as sensações, é uma destruição da memória.
televisivo não é suficientemente acelerado, aju- Poderíamos dizer que, em Benjamin, destruição
damos com o controle remoto e ficamos trocan- da experiência, destruição da memória e, por-
do de canal continuamente. É uma metáfora do tanto, a anulação da capacidade de subtrair-se
que está ocorrendo conosco. Esse desassossego a esse processo destrutivo do progresso vão de
é a experiência do choque, do impacto. E, sem mãos dadas, estão unidas.

32
A impunidade alenta o retorno da barbárie

Entrevista com Alfredo Jerusalinsky

Para o psicanalista argentino Alfredo Jerusa- ência precisamente daqueles cujos atos eram ob-
linsky, “o fato de que as pessoas vitimadas este- jeto do perdão nelas contido. Em certa medida,
jam vivas ou mortas não muda a dignidade devi- poderia se dizer que se tratava de um perdão
da ao sujeito em causa. O sujeito não se extingue que se outorgavam a si mesmos”.
pela morte do indivíduo, ele continua – quando é Jerusalinsky é psicanalista, mestre em psi-
vitima – sendo credor de uma justiça que o con- cologia clínica, pela Pontifícia Universidade Ca-
junto social ficou lhe devendo. Quando essa resti- tólica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e doutor
tuição não se opera, a impunidade, sem dúvida, em Educação e Desenvolvimento Humano, pela
alenta o retorno da barbárie”. Contudo, punições Universidade de São Paulo (USP). Além disso, é
violentas são abuso de poder, e são “o instrumen- membro da Associação Psicanalítica de Porto Ale-
to intimidatório preferido pelas ditaduras”. As gre e da Association Lacaniènne Internationale.
declarações fazem parte da entrevista exclusiva, De sua vasta bibliografia, destacamos La formaci-
a seguir, que Jerusalinsky concedeu, por e-mail, ón del psicoanalista (Buenos Aires: Editora Nueva
às jornalistas Márcia Junges e Patricia Fachin e Visión, 1989), Psicanálise e desenvolvimento in-
publicada na IHU On-Line, em 18 de agosto de fantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998),
2008 em sua edição 269. Para entender al niño, claves psicoanalíticas (Qui-
Militante ativo contra as duas ditaduras que to: Ediciones ABYA-YALA, 2003) e Quem fala na
assolaram seu país, o psicanalista afirma que língua?: sobre as psicopatologias da fala (Bahia:
esses regimes despertaram nele o “desejo de li- Ágalma, 2004).
berdade e justiça para todos, e uma profunda
aceitação das diferenças”. Em sua opinião, “a IHU On-Line – Como sua trajetória pessoal
memória sempre tende a aplacar a intensidade é marcada pela ditadura da Argentina?
das dores lembradas, até porque seria insupor- Alfredo Jerusalinsky – Fui um militante ativo
tável conviver com a suma constantemente atu- contra as duas ditaduras militares no meu país
alizada de todos os sofrimentos passados”. Aí natal: a que iniciou com o General Ongania42,
reside a importância de se contar honestamente de 1966 até 1973, e a comandada pelo Gene-
a história, nos livrando desse equívoco. Anali- ral Videla43 e sua Junta Militar de 1976 a 1983,
sando a Lei de Anistia, afirma que, no caso da e voltaria a sê-lo contra qualquer ditadura. Por
brasileira, de “obediência devida”, e, no caso da contraste, elas despertaram em mim o desejo de
argentina, de “ponto final”, elas são estabeleci- liberdade e justiça para todos, e uma profunda
das “porque se cometeram crimes que não po- aceitação das diferenças. Ao mesmo tempo em
deriam ser perdoados a não ser por uma medida
de exceção. Por essa simples razão isso cheira 42 Juan Carlos Onganía (1914-1995): militar e ditador
mal. Especialmente quando consideramos que da Argentina entre 1966 e 1970. (Nota da IHU On-Line)
essas leis foram promulgadas quando os Estados 43 Jorge Rafael Videla (1925): militar e ditador da Ar-
ainda se encontravam sob forte pressão e influ- gentina, presidente entre 1976 e 1981. (Nota da IHU
On-Line)

33
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que dizimavam e dispersavam minha geração e a serviços” para as invenções ideológicas nas semi-
de nossos mestres e professores, os tiranos mos- -colônias); a terceira, a transformação dos contin-
traram claramente onde fica a fronteira entre o gentes de trabalhadores em massa consumidora.
humano e a barbárie. Esse programa se cumpriu não somente no Brasil
e na Argentina, mas na maior parte dos países
IHU On-Line – Que semelhanças aponta- latino-americanos.
ria entre a ditadura de seu país natal e o
Brasil? IHU On-Line – O que explica o saudosis-
Alfredo Jerusalinsky – Não é por acaso que mo de muitos brasileiros quanto à ditadu-
as ditaduras militares mais recentes da Argentina ra, alegando que naquele tempo não havia
e do Brasil se desenvolveram em épocas con- desemprego, “baderna” e miséria? Essas
temporâneas, comandadas ambas por generais, pessoas não se dão conta das mortes, de-
com objetivos políticos e econômicos orientados saparecimentos e torturas perpetrados na-
pelos mesmos princípios, apresentando condutas quele tempo?
repressivas similares. Durante a primeira metade Alfredo Jerusalinsky – Esse saudosismo só
do século XX, a América Latina viu crescer uma pode se explicar pelo fato de que o incômodo de
vasta população de trabalhadores agrícolas e in- hoje costuma doer mais do que a mutilação de
dustriais que transformaram completamente as ontem. A memória sempre tende a aplacar a in-
relações dos Estados coloniais com as suas metró- tensidade das dores lembradas, até porque seria
poles. Estes passaram a representar muito mais a insuportável conviver com a suma constantemen-
vontade de suas populações do que as imposições te atualizada de todos os sofrimentos passados. A
dos países centrais. Por isso, a técnica de retenção história honestamente contada tem a função de
do poder por parte dos imperialismos da metade nos livrar desse equívoco.
desse século foi a da captura dos governos me-
diante o golpe de Estado. Tiveram de criar, para IHU On-Line – Psicanaliticamente, qual é a
isso, uma aliança militar capaz de se sobrepor aos explicação para o fascínio dessas pessoas
nacionalismos. A Guerra Fria foi o instrumento pelo poder militar?
paranóico que uniu todos os militares ocidentais Alfredo Jerusalinsky – Houve uma época em
acima de suas fronteiras, e o internacionalismo que os exércitos eram contemplados pelo povo
militar – contradizendo as expectativas leninistas do mesmo modo que hoje uma torcida se inclina
– chegou antes do internacionalismo operário. O diante de seu time de futebol. Embora, atualmen-
Estado em mãos militares garantiu pelo menos te, é quase certo que as gentes se inclinam com
três coisas: a primeira, uma abertura para o libe- maior reverência diante dos jogadores do grama-
ralismo mercantil (leia-se para a entrada de ca- do. Ocorre que, se em épocas não tão distantes
pitais estrangeiros no comando das economias os exércitos podiam representar a defesa dos ha-
locais); a segunda, a crença de que o inimigo bitantes para o exercício de suas liberdades (en-
exterior estava vilmente infiltrado na própria na- carnando por isso a condição de heróis já antes
ção e que, por lógica consequência, era urgente e de ter disparado um único tiro), sua participação
imprescindível uma purga radical (depois de seu durante os últimos 50 anos nas repressões inter-
ensaio local o macartismo44 prestou seus “bons nas tem acabado com seu antigo prestígio. Uma
certa prorrogação da contemplação popular dos
44 Macartismo: termo que descreve um período de inten- militares reside nesse desejo perverso de gozar-
sa patrulha anticomunista nos Estados Unidos, que du- mos de poderes especiais. Diria que, nesse caso,
rou do fim da década de 1940 até meados da década de trata-se mais de inveja do que de admiração. A
1950. Foi uma época em que o medo do Comunismo e
da sua influência em instituições estadunidenses tornou-se
exacerbado, juntamente ao medo de ações de espiona-
gem promovidas pela União Soviética. Originalmente, o para fazer referências a vários tipos de condutas, não ne-
termo foi cunhado para criticar as ações do senador es- cessariamente ligadas às elaboradas por McCarthy. (Nota
tadunidense Joseph McCarthy, tendo depois sido usado da IHU On-Line)

34
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

inveja, por certo, é um sentimento bem próximo desse crime social, devolvendo aos sujeitos seu
do ódio, e nada próximo do amor. justo lugar, resgatando as identidades perdidas),
a impunidade, sem dúvida, alenta o retorno da
IHU On-Line – O que explica o medo e o barbárie.
silêncio em torno dos militares até hoje?
Alfredo Jerusalinsky – A instituição militar é IHU On-Line – Do ponto de vista psicana-
a única instância do Estado na qual costumam lítico, qual é a importância de cultuar os
prevalecer os atos acima das palavras. Sua dou- mortos? E que tipo de implicações psicoló-
trina prepara seus quadros para produzir atos re- gicas e comportamentais pode se observar
ais muito mais do que para produzir expressões nas famílias que sequer têm um corpo con-
simbólicas. Por isso, quando um militar de alto creto pelo qual chorar, no caso dos desapa-
comando formula uma declaração, imediata- recidos à época do regime militar?
mente se teme que por trás dela espreite um ato. Alfredo Jerusalinsky – Quando lemos a notícia
Na medida em que a história recente confirma de que se achou um cadáver num depósito de
esta prevenção, cada vez que uma alta paten- lixo ou um corpo enterrado às pressas num ter-
te manifesta sua discrepância com algum ato ou reno baldio por um criminoso assustado, ou que
idéia do governo levamos um susto. Eles sabem se encontrou uma ossada no cemitério “x” sob o
que podem assustar e muito freqüentemente se nome de NN, isso nos causa horror. Essa sensa-
valem disso (como os sindicatos se valem da ção do horrível vai por conta de que as carcaças
pressão política) para influenciar nos direciona- não estavam no seu devido lugar. O devido lugar
mentos do Estado. de uma carcaça humana é aquele em que ela for-
ma parte de uma série que costumamos chamar
IHU On-Line – Esquecer o passado é injus- de “seres queridos”. Ali, os restos mortais viram
tiçar as vítimas da ditadura? Esquecer a símbolo de uma ausência que não se apaga. O
barbárie pode promover seu retorno? sujeito do morto vive nessa ausência, nesse inter-
Alfredo Jerusalinsky – As pessoas se acolhem valo vazio que ele deixou, e cujo corpo testemu-
nos direitos e obrigações que as leis de uma na- nha. Por isso, nossos cadáveres não são jogados
ção lhe oferecem porque acreditam na promessa no lixo e, quando jogados numa vala comum,
de que essa lei as protegerá, dentro de um plano isso constitui uma ofensa grave, na medida em
de igualdade com todos, na medida em que elas que esse ato implica apagar o intervalo significan-
venham cumprir com a moral social que essa lei te, o nome que representa esse sujeito cujo corpo
promove. Dito de outro modo, elas concordam diz de sua anterior presença, dos laços com os
em se tornarem sujeitos de um discurso na me- outros que ainda persistem.
dida em que este as reconheça como parte es- Durante a barbárie fascista na Europa, o ato de
sencial de sua rede enquanto elas obedeçam à jogar os cadáveres de judeus e dissidentes numa
lógica desse discurso. As situações de exceção, vala comum, ou de cremá-los e dispersar suas
a supressão de determinadas formas de repre- cinzas, apontava para tornar real o imperativo
sentação porque convêm a uns, desmerecendo nazista de que esses seres não deveriam ter exis-
os outros, implicam num rompimento desse tido. Tornar inexistente o que existe é o que em
pacto com graves consequências para o discur- psicanálise se chama “forclusão”, o mecanismo
so que ampara isso que chamamos de civiliza- de supressão da realidade próprio das psicoses.
ção. O fato de que as pessoas vitimadas estejam Esse ato delirante foi repetido pelos nossos milita-
vivas ou mortas não muda a dignidade devida res. Não que eles fossem loucos, que certamente
ao sujeito em causa. O sujeito não se extingue não o eram, e que, certamente, não se precisa
pela morte do indivíduo, ele continua – quando ser louco para produzir delírios messiânicos. Esses
é vítima – sendo credor de uma justiça que o delírios, na medida em que servem para se defen-
conjunto social ficou lhe devendo. Quando essa der de uma realidade insuportável (nas psicoses)
restituição não se opera (castigando os autores também podem servir para justificar atos inqua-

35
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lificáveis para o mesmo sujeito que os produz IHU On-Line – Torturadores e guerrilheiros de-
(nas neuroses). Quando numa família o corpo de vem ser julgados da mesma forma? Por quê?
alguém não pode ocupar o lugar simbólico que Alfredo Jerusalinsky – A tortura é um ato cruel
o culto dos mortos lhe reserva, o sujeito perdido de exercício abusivo do poder. A guerrilha é uma
tem de ocupar esse lugar. O que resulta em que forma de sublevação contra as autoridades insti-
quando o corpo está presente o sujeito pode ser tuídas, com o objetivo político de tomar ou trans-
esquecido, mas quando o corpo está ausente o formar o poder estabelecido. A condição moral
sujeito não pode ser “enterrado”. O desapareci- de um e outro ato não é comparável. A tortura
mento do corpo causa um luto interminável. é um ato de lesa-humanidade. A guerrilha (que
não é sinônimo de terrorismo) é um ato político.
IHU On-Line – No caso brasileiro, qual sua Certamente não podem ser julgados da mesma
percepção sobre a Lei da Anistia? Criada maneira. Embora ambos estejam fora da legalida-
por políticos e militares, ela foi justa em de, não respondem ao mesmo estatuto.
sua formulação?
Alfredo Jerusalinsky – Quando uma lei de IHU On-Line – Como crime contra a huma-
anistia (como a brasileira), de “obediência devi- nidade, como deve ser punida a tortura?
da” ou de “ponto final” (como as argentinas) é Alfredo Jerusalinsky – Não sou um especialis-
estabelecida, é porque se cometeram crimes que ta em punições. Não me parece que possa emitir
não poderiam ser perdoados a não ser por uma uma opinião responsável sobre esse ponto. Po-
medida de exceção. Por essa simples razão isso rém, de qualquer modo, acho útil deixar aponta-
cheira mal. Especialmente quando consideramos do que me oponho a qualquer forma de violência
que essas leis foram promulgadas quando os Es- física numa punição. A meu entender, qualquer
tados ainda se encontravam sob forte pressão e punição violenta, além de constituir um abuso de
influência precisamente daqueles cujos atos eram poder, não faz mais do que semear uma agres-
objeto do perdão nelas contido. Em certa medida, sividade e um ódio interminável. Além disso, as
poderia se dizer que se tratava de um perdão que punições violentas costumam ser o instrumento
se outorgavam a si mesmos. intimidatório preferido pelas ditaduras.

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“Não se deve confundir o perdão com o esquecimento”

Entrevista com Cecília Pires

A filósofa Cecília Pires é enfática ao dizer, na Graduada em Filosofia, Cecília Pires é espe-
entrevista a seguir, concedida por e-mail à jorna- cialista em Orientação Educacional e mestre em
lista Márcia Junges e publicada na edição 269 de Filosofia pela Universidade Federal de Santa Ma-
IHU On-Line, em 18 de agosto de 2008, que ria (UFSM). Cursou doutorado em Filosofia pela
“não se deve confundir o perdão com o esqueci- Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
mento, pois seria uma nova forma de violência à com a tese O ISEB e a questão do nacionalismo.
memória e à história das vítimas”. Segundo ela, É pós-doutora pela Universidade Paris I, França.
esse é um dos motivos para continuar o debate Professora nos cursos de graduação e pós-gradua-
acerca dos anos de chumbo brasileiros, “até por- ção de Filosofia da Unisinos, escreveu, entre ou-
que não podemos, num simples girar de ombros, tros, Reflexões sobre Filosofia Política (Santa Ma-
apagar a dor dos que sofreram e os atos dos seus ria: Pallotti, 1986) e Ética da Necessidade e outros
algozes”. Além disso, o debate deve prosseguir desafios (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004).
para que a sociedade compreenda o que houve, Organizou Vozes silenciadas. Ensaios de Ética e
e para que isso não se repita. “Não é acobertando Filosofia Política (Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003).
um passado que faremos nossa história melhor.
Na realidade, isso incidiria de um modo mais for- IHU On-Line – Como entender a postura do
te, tal como uma doença não tratada ou tratada governo Lula em relação à não abertura dos
de modo secundário; volta a atingir o organismo arquivos da ditadura, a não resolução das
pretensamente são. Funciona como efeito bume- buscas dos corpos no Araguaia?
rangue, retorna a chicotear a face da nação um Cecília Pires – Uma postura recuada, que não
passado simplesmente olvidado e a democracia faz jus ao seu passado de luta, especialmente por-
para se consolidar precisa se emancipar dos seus que ele sentiu, como sindicalista, o peso do braço
tempos sombrios”. Em sua opinião, afirmar que de ferro da ditadura militar, nas greves do ABC,
as torturas perpetradas pelo regime militar foram em 1978. Talvez essa atitude seja uma consequên-
excessos de alguns militares não seria apenas sua- cia das alianças realizadas para composição de seu
vizar o que realmente aconteceu, mas “ofender governo. Há longo tempo, os governos anteriores
a memória das vítimas e de seus familiares”. Há já foram pressionados para uma definição face ao
famílias que sequer enterraram seus mortos e que mortos no Araguaia e nada foi conquistado. Havia
“continuam buscando explicações para isso junto uma expectativa de que no governo Lula pudes-
às autoridades”. “Isso é exigir demais?”, questio- sem ocorrer alguns avanços nesse sentido, mas,
na. Nesse sentido, Pires critica a postura recuada como referi, não há no governo uma compreensão
de Lula em relação à não abertura dos arquivos definida sobre o evento da guerrilha e os familia-
da ditadura, pois “não faz jus ao seu passado de res dos mortos e desaparecidos permanecem nesse
luta, especialmente porque ele sentiu, como sin- cone de sombras, aguardando uma decisão de go-
dicalista, o peso do braço de ferro da ditadura verno para a abertura desses arquivos. Seria estra-
militar, nas Greves do ABC, em 1978”. tégico a abertura desses arquivos, para começar a

37
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

romper os segredos de Estado no Brasil, como é o IHU On-Line – E, quando Lula pede para os
caso dos arquivos da Guerra do Paraguai. O Mo- estudantes pararem de xingar quem matou
vimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) seus heróis, não estaria pedindo, implicita-
lançou uma Campanha pela Memória e a Verdade mente, que o assunto seja enterrado? Como
como Direitos Humanos, fruto do Seminário Na- entender essa postura de um dirigente de
cional Memória da Luta dos Direitos Humanos no esquerda?
Brasil, que se realizou em Brasília, em agosto de Cecília Pires – Eu não tenho presente essa re-
2007. Essa campanha quer envolver a sociedade comendação ou exortação que Lula fez aos estu-
civil organizada em todas as suas especificidades. dantes. Eu não creio que haja um desejo expres-
A proposta é que não haja esquecimento do que so pelo esquecimento, é possível que as fraturas
ocorreu na ditadura militar. Há um documento expostas comecem a causar incômodos no corpo
chamado Carta de Brasília: pelo direito à memória do governo (?), mas é dever do dirigente nacional
e à verdade como direitos humanos, que expressa acatar as demandas dos diferentes segmentos da
de modo veemente essa questão. Parece parado- sociedade civil organizada, como os estudantes.
xal, portanto, que haja esse recuo do Presidente da A intenção de reconstruir a sede da UNE, que foi
República, na medida em que o MNDH é recebido destruída no governo militar, faz parte de uma in-
nas instâncias da governabilidade. Penso, então, tenção do Estado em recompor os laços rompidos,
que essa atitude de recuo pode aparecer como mas isso não é tudo; é preciso não obstaculizar os
uma recusa em enfrentar a lógica dos torturadores, caminhos da reconstrução democrática, em todos
que busca construir um discurso auto justificador, os seus aspectos. Quanto a Lula ser um dirigente
acerca das atrocidades cometidas, em nome da ra- de esquerda, nunca houve, em seus pronuncia-
zão de Estado. mentos, um alinhamento desse tipo. Sua liderança
se fez no âmbito do sindicato e do partido político
IHU On-Line – Há fundamento no temor do como uma liderança forte e expressiva, no sentido
presidente do STF, Gilmar Mendes, ao dizer de demonstrar a indignação diante das situações
que pode haver instabilidade institucional de injustiça e exclusão social das categorias mar-
se os arquivos da ditadura forem abertos? ginalizadas, especialmente os operários. E nisso
Cecília Pires – Penso que o Presidente do STF, ele foi brilhante e continua sua política, no ritmo
Gilmar Mendes, usa de bom senso ao gerenciar dos avanços econômicos e sociais, beneficiando
as informações que possui. Ocorre que eu desco- a massa trabalhadora. Mas, reafirmo, sua postura
nheço o fundamento dos seus temores, uma vez ideológica e política está nos parâmetros de um ge-
que no momento atual o Estado Brasileiro está renciamento sem radicalizações, à esquerda. Aliás,
vivendo a democracia possível, e não me parece já ouvi uma fala de Lula dizendo que aprendeu
que uma ação da sociedade civil, diante dos cri- a mais-valia, na prática, e não na leitura d’O ca-
mes cometidos pela ditadura, possa produzir uma pital, numa forte posição de não se alinhar com
instabilidade do regime democrático, em vigor. os parâmetros definidos como esquerda, centro ou
Trata-se, portanto, de um direito que a sociedade direita. Ela é um sujeito, cuja formação operária,
civil busca: o direito à informação, em memória na dureza da sobrevivência, tem um pragmatismo
das vítimas. A abertura dos arquivos pode não ser quase feroz e eficaz. É um brasileiro que administra
conveniente para os interesses do governo, mas as conjunturas da escassez econômica e margina-
isso faz parte da democracia e não deve ser nega- lidade social de uma forma imediata, necessária e
do. Não me ocorre pensar que um segredo de Es- racionalmente possível, mas seu horizonte político
tado ditatorial tenha uma força tão forte, a ponto não se enquadra nos alinhamentos tradicionais,
de abalar a estabilidade institucional, daí enten- daí sua estratégia de alianças lá e cá que deságua,
der que o presidente do STF possa relativizar seu muitas vezes, num mau resultado.
temor. Nós, da sociedade civil, estamos exercen-
do nossa cidadania ao exigir o cumprimento de IHU On-Line – A Lei da Anistia é justa? Ela
um direito reconhecido, o direito das vítimas. precisa ser revista?

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Cecília Pires – As revisões sempre são necessá- IHU On-Line – Quais são os maiores moti-
rias, porque os sujeitos não fazem acertos defini- vos para que o recente debate em torno da
tivos, tudo precisa ser repensado e argumentado, Lei da Anistia e da tortura continue?
a partir da dinâmica dos fatos e dos movimentos Cecília Pires – Pelas questões às quais me re-
que a história feita, pelos humanos, apresenta. feri anteriormente. A história da ditadura militar
Começaria por discutir o conceito de lei justa, que não foi passada a limpo e aqui não se movimenta
aparece nos meandros da Filosofia Política e dos nenhum espírito de vingança, como aparece na
teóricos do Direito. Nem sempre o pragmatismo personagem central do filme V de vingança, cujo
da lei corresponde à idéia de justiça como valor. argumento é extremamente atual. O debate con-
A dimensão de justiça de uma lei se orienta por tinua porque a sociedade necessita de compre-
quais parâmetros? Como saber se o espírito do ender o que ocorreu, para não repetir. Hannah
legislador intencionava uma correção de injustiça Arendt47, em seus livros, reitera muito essa ques-
ou simplesmente foi a construção de mais um ar- tão de refletir sobre os aniquilamentos do passado
tifício legal para acalmar as contendas da socieda- para que não se repitam no futuro. Assim não se
de? O positivismo jurídico não está alinhado aos recorre à memória e à história para alimentar res-
argumentos do ideário dos Direitos Humanos, sentimentos, mas para entender os fatos no modo
por exemplo. Kelsen45, respeitado jurista alemão, como ocorreram e produzir ações que signifiquem
silenciou diante das leis de Nuremberg46, como além do entendimento, uma recusa à violência.
compreender essa atitude? Face a isso, eu penso Nessa garantia, não se deve confundir o perdão
que, a partir do amadurecimento do corpo polí- com o esquecimento, pois seria uma nova forma
tico e social, as leis sempre podem e devem ser de violência à memória e à história das vítimas.
revistas e a Lei da Anistia talvez possa ser melhor Entendo que esses são os motivos substanciais
formulada. Em todo caso, tudo depende da apli- para o debate, até porque não podemos num
cabilidade da lei, do modo como os juízes tradu- simples girar de ombros apagar a dor dos que so-
zem suas compreensões na dimensão efetiva da freram e os atos dos seus algozes.
justiça e isso é o imponderável.
IHU On-Line – Por que é importante lem-
brar as vítimas da ditadura?
Cecília Pires – Pelo próprio respeito a elas e
45 Hans Kelsen: jurista austríaco, autor da teoria pura do
direito. De origem judia, foi perseguido pelo nazismo e
suas famílias. Há famílias que ainda não enter-
fugiu para os Estados Unidos da América. Viveu um pe-
ríodo turbulento da história. Suas obras foram escritas 47 Hannah Arendt (1906-1975), filósofa e socióloga ale-
desde pouco antes da Primeira Guerra Mundial, mas mã, de origem judaica. Foi influenciada por Husserl,
foi no período entre guerras e após a Segunda Guerra Heidegger e Karl Jaspers. Em conseqüência das perse-
Mundial que ela tomou uma forma mais definitiva. Kel- guições nazistas, em 1941, partiu para os EUA, onde
sen tem uma obra muito vasta. Seus livros contam-se às escreveu grande parte das suas obras. Lecionou nas
centenas, além de inumeráveis artigos. Sua obra abran- principais universidades deste país. Sua filosofia assenta
ge a Teoria do Direito, principalmente, mas também numa crítica à sociedade de massas e à sua tendência
filosofia do direito, dogmática Jurídica, especialmente para atomizar os indivíduos. Preconiza um regresso a
quanto ao direito constitucional e direito internacional, uma concepção política separada da esfera econômica,
além de obras propriamente políticas, filosofia da justi- tendo como modelo de inspiração a antiga cidade gre-
ça e sociologia. Citamos entre suas obras Teoria Pura ga. Entre suas obras, citamos Eichmann em Jerusalém
do Direito (São Paulo, Martins Fontes, 2000), Teoria ge- – Uma reportagem sobre a banalidade do mal (Lisboa:
ral do Direito e do Estado (São Paulo: Martins Fontes, Tenacitas. 2004), O sistema totalitário (Lisboa: Publi-
2000), A ilusão da Justiça (São Paulo: Martins Fontes, cações Dom Quixote, 1978) e O conceito de amor em
2000) e O que é justiça? (São Paulo: Martins Fontes, Santo Agostinho (Lisboa: Instituto Piaget). Sobre Arendt,
2001). (Nota da IHU On-Line) confira as edições 168 da IHU On-Line, de 12 de de-
46 Tribunal de Nuremberg: tribunal que julgou os zembro de 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone
processos contra os 24 principais criminosos de guer- Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século
ra da Segunda Guerra Mundial, dirigentes do nazis- XX, e a edição 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo
mo, ante o Tribunal Militar Inernacional, em 20 de moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-
novembro de 1945, na cidade alemã de Nuremberg. 1975, ambas disponíveis para download no sítio do IHU
(Nota da IHU On-Line) (www.unisinos.br/ihu). (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

raram seus mortos e que continuam buscando tipo de ordens? Que tipo de racionalidade
explicações para isso junto às autoridades. Isso permite essas atitudes?
é exigir demais? Novamente citando Arendt, ela Cecília Pires – É mais do que suavizar, é ofen-
fala no livro Entre o passado e o futuro que a sin- der a memória das vítimas e de seus familiares. É
ceridade nunca foi uma virtude da política, e que muito fácil falar de excessos, quando as vítimas
a mentira é uma ferramenta justificável do ofício não pertencem às famílias dos militares ou civis
do político. Por que isso é assim? É a questão que que agiram em nome do Regime. Aliás, eu gos-
estamos discutindo, ou seja, qual é o problema de taria de contestar a fala de um militar da OBAN,
lembrar que o Brasil sofreu pesadamente com o reconhecido por suas vítimas, que hoje chega aos
que chamamos “anos de chumbo”? Nessa época, jornais e se diz injustiçado. Como professora da
a face do terror explícito atormentava desde os UFSM, fui colega de seu irmão, hoje falecido, que
mais simples contestadores de bar até os defenso- se envergonhava das ações por ele cometidas.
res de posturas contrárias ao regime de exceção, Era uma pessoa de bem, que não subscrevia o
produtor de vítimas. É claro que são questões in- que seu irmão fazia. E tem a coragem de rebater
cômodas, na visão arendtiana, mas são questões o ministro Tarso Genro, alegando razões de or-
que devem ser debatidas, no modo como a au- dem familiar. Isso é uma falácia, que não pode
tora formula: “É da essência mesma da verdade ser aceita simplesmente, mas, como a opinião
o ser impotente e da essência mesma do poder o pública desconhece a história, as coisas são ditas
ser embusteiro?”. e recebidas como se fossem verdadeiras. Eu co-
nheço pessoas, sobreviventes dos porões da dita-
IHU On-Line – Esquecer nosso passado põe dura que foram torturadas pelo Coronel Ustra48,
em risco a democracia e os direitos huma- e essa é a memória das vítimas a não ser esque-
nos? Em que medida? cida. Qual racionalidade? A do tirano, pois não
Cecília Pires – Na medida da não efetivação da há uma razão ética sustentando tais atos. Alegar
justiça. Não é acobertando um passado que fare- razões de Estado para praticar crimes é realmente
mos nossa história melhor. Na realidade, isso in- a forma que assumiu o mal radical, no dizer de
cidiria de um modo mais forte, tal como uma do- Arendt. Ela se impressionou pelo modo como o
ença não tratada ou tratada de modo secundário; carrasco nazista Eichmann49 assumia seus crimes,
volta a atingir o organismo pretensamente são. sem arrependimento, pois havia cumprido uma
Funciona como efeito bumerangue, retorna a chi- missão em nome da nação alemã. Então essas
cotear a face da nação um passado simplesmente pessoas não têm senso crítico. Elas têm a von-
olvidado e a democracia para se consolidar pre- tade de poder exacerbada para o exercício do
cisa se emancipar dos seus “tempos sombrios”. aniquilamento.

IHU On-Line – É possível perdoar crimes


contra a humanidade? Como?
Cecília Pires – Eu penso que não, isso é destruir
a humanidade. Crimes políticos são diferentes de
crimes contra a humanidade. Estes os diversos 48 Sobre o assunto, confira as Notícias do Dia do sítio
Tribunais Internacionais já definiram, e a Tortura do Instituto Humanitas Unisinos – IHU (www.unisinos.br/
ihu), 07-08-2008. Ustra diz que sua família abrigou Tarso
é um crime contra a humanidade. Não se trata de em 64. (Nota da IHU On-Line)
qualquer transgressão. 49 Adolf Otto Eichmann (1906-1962): oficial do alto
escalão na Alemanha Nazista e membro da SS (Schut-
IHU On-Line – Afirmar que a tortura foi zstaffel). Foi largamente responsável pela logística do ex-
termínio de milhões de pessoas durante o Holocausto,
produto de excessos de alguns militares em particular pelos judeus, na chamada Solução Final.
não seria suavizar uma prática que ocorreu Organizou a identificação e o transporte de pessoas para
sobretudo entre 1969 e 1977? Onde esta- os diferentes campos de concentração, sendo por isso
conhecido freqüentemente como o executor chefe do
va o senso crítico de quem obedecia a esse
Terceiro Reich. (Nota da IHU On-Line)

40
Ninguém aceita a morte por suposição

Entrevista com Alfredo Culleton

Crimes contra a humanidade são aqueles Sul (PUCRS). Atualmente, leciona nos cursos de
contra a dignidade humana, “ações que com- Graduação e Mestrado em Filosofia na Unisinos.
prometem elementos constitutivos desse modo
esquisito de ser animal que é o ser humano”, e IHU On-Line – Conforme o pensamento ju-
a tortura é um deles. A afirmação é do filósofo daico-cristão, esquecer dos mortos é ma-
argentino Alfredo Culleton. Em entrevista por tá-los duas vezes. Como entender, então,
email concedida às jornalistas Márcia Junges e a insistência de alguns setores do governo
Patricia Fachin e publicada na edição 269 de brasileiro em “enterrar” esse assunto? Que
IHU On-Line, em 18 de agosto de 2008, ele interesses movem essa atitude?
menciona que esquecer o que houve na épo- Alfredo Culleton – Seria tão bom se pudéssemos
ca dos regimes totalitários é a negação de um esquecer a dor e enterrar os mortos, colocar sobre
ser vivo, quando é próprio dele se manifestar. A eles uma pedra. Enterrá-los bem fundo, depositar
respeito da abertura dos arquivos da ditadura, uma enorme pedra sobre eles e não falar mais
pondera que, para que isso ocorra, é preciso ma- no assunto. Mas a amnésia não é a erradicação
turidade cívica, pois “não pode ser um processo de algo, mas o seu ocultamento. O esquecimento
vingativo e expiatório”. E completa: “É um pro- apenas é a negação de um ser vivo; e é próprio
cesso doloroso e delicado, mas necessário”. do se vivo se manifestar. Essa manifestação, esse
A respeito de Leis da Anistia, Culleton sa- desocultamento pode se dar de duas maneiras: a
lienta que há legitimidade na intenção de paci- primeira na forma de uma aletheia, isto é, de uma
ficar determinada situação política, contudo ela verdade que se desvela, que se mostra, e que será
“não pode obrigar ao ocultamento de crimes a maneira mais salutar para o corpo social de
contra a humanidade, crimes conhecidos como uma nação. A outra é a manifestação patológica
de lesa-humanidade, isto é, que vão contra a que se revela no sintoma social da estupidez, na
própria dignidade humana independentemente prepotência, na corrupção e na violência.
de positivações legais ou pactos políticos”. Cul-
leton tem sua trajetória marcada pelo episódio IHU On-Line – Qual é a importância de
do Massacre de San Patrício, em 4 de julho de manter viva a memória do período da dita-
1976. À época, ele participava de uma comuni- dura e de seus mortos?
dade de religiosos em Buenos Aires, assassina- Alfredo Culleton – Nós, representantes do
dos pela ditadura argentina. povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Culleton é graduado em Filosofia pela Uni- Constituinte para instituir um Estado Democráti-
versidade Regional no Noroeste do Estado do co, destinado a assegurar o exercício dos direitos
Rio Grande do Sul (Unijuí), mestre em Filoso- sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
fia, pela Universidade Federal do Rio Grande do bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
Sul (UFRGS), e doutor em Filosofia, pela Pon- justiça como valores supremos de uma sociedade
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada

41
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

na harmonia social e comprometida, na ordem regimes totalitários, se morre de medo do que se


interna e internacional, com a solução pacífica vê, e na atualidade se morre de medo do que não
das controvérsias, promulgamos, sob a proteção se vê. Havia uma senhora que morava sozinha e
de Deus, a seguinte Constituição da República antes de deitar fechava todas as portas, conferia
Federativa do Brasil. Como povo, temos a opção as janelas, ligava o alarme, mas não olhava de-
de assumir isto como aquilo que queremos para baixo da cama porque tinha medo de que tivesse
nós mesmos, e isto custa sacrifícios como o da alguém. Aí ficava a noite inteira sem dormir e sem
aceitação do nosso passado; ou nos resignar a ser coragem de olhar. Essa é uma vida insana. É as-
o que dá para ser, nos salvando individualmente sim que muitos vivem hoje, comprando todo tipo
ou em grupos, reclamando dos governos e dos de seguro e sem condições de conferir a sua cons-
outros, aceitando a violência e a corrupção como ciência individual ou nacional. A impunidade no
coisas que não tem solução. Brasil é muito relativa. Acredito que se pune muito
severamente alguns grupos sociais, e se é condo-
IHU On-Line – Quais são as implicações lente com outros. O que eu dizia na semana pas-
em abrir os arquivos da ditadura brasilei- sada51 é que a amnésia, o ocultamento, se mani-
ra? Sob o ponto de vista democrático e po- festa na forma de sintomas sociais como o medo,
lítico, é melhor recordar ou esquecer esse a insegurança, a violência e o entorpecimento.
assunto?
Alfredo Culleton – Vou usar a analogia com o IHU On-Line – Que impasses éticos a Lei
tratamento de canal dentário. É um processo do- da Anistia trouxe consigo? Sua formula-
loroso e delicado, mas necessário. Durante mui- ção positiva se choca com o direito natu-
to tempo, se achou melhor arrancar o dente ou ral? Por quê?
tratar medicamentosamente, mas já se entende Alfredo Culleton – As conjunturas históricas
que o melhor tratamento é abrir e tratar. Não é o podem exigir a aceitação de determinadas con-
tamanho da dor o que resolve o problema, mas dições para poder avançar na construção política
a cuidadosa medida da profundidade da lesão da democracia. Seria como tomar um analgésico
e o seu adequado tratamento. Devemos evitar a para a dor de dente, mas não resolve o problema.
qualquer custo a dor desnecessária, mas não po- Em algum momento, você terá que ver um den-
deremos evitar a dor de evidenciar o que achá- tista bom e abrir o dente. A intenção de uma lei
vamos morto e enterrado, mas que está vivo e de anistia de pacificar uma determinada situação
nos olhando. política é legítima, mas não pode obrigar ao ocul-
tamento de crimes contra a humanidade, crimes
IHU On-Line – Em seu depoimento à IHU conhecidos como de lesa-humanidade, isto é,
On-Line número 268, você afirma que que vão contra a própria dignidade humana in-
não ouvir o clamor de justiça aos crimes dependentemente de positivações legais ou pac-
da ditadura pode nos acostumar à corrup- tos políticos. Para ser simples, vou dizer que são
ção, violência e sentimento de inseguran- crimes contra a dignidade humana aquelas ações
ça. Poderíamos dizer que essa é nossa re- que comprometem elementos constitutivos desse
alidade, quando a impunidade parece ser modo esquisito de ser animal que é o ser huma-
corriqueira? no. No caso, a tortura é um deles. O homem é
Alfredo Culleton – Medo é o grande sintoma pessoa porque é, em algum lugar, absolutamente
desde Hobbes50 até os dias de hoje. Durante os outro, absolutamente insondável, até de si mes-
mo. Esse mistério, esse indizível, é o que o consti-
50 Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês. Sua obra
mais famosa, O Leviatã (1651), trata de teoria política. dou na Universidade de Oxford. Ele foi secretário de Sir
Neste livro, Hobbes nega que o homem seja um ser na- Francis Bacon. (Nota da IHU On-Line)
turalmente social. Afirma, ao contrário, que os homens 51 Leia um depoimento do professor Culleton concedido
são impulsionados apenas por considerações egoístas. à revista IHU On-Line número 268, de 11-08-2008.
Também escreveu sobre física e psicologia. Hobbes estu- (Nota da IHU On-Line)

42
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tui como pessoa; a busca desse mistério e a rela- IHU On-Line – Sua trajetória pessoal é
ção admiração e cuidado para com esse mistério marcada por acontecimentos ligados à di-
é o gosto pela vida que transcende a satisfação tadura argentina. Poderia relatar-nos?
das necessidades biológicas. Na tortura se quebra Alfredo Culleton – É tão marcada que com
esse mistério. Tem povos que constitucionalmen- muita dificuldade consigo objetivá-la. Fiz parte de
te aceitam a pena de morte, mas nenhum aceita uma comunidade de religiosos que, no dia 4 de
a tortura. Neste país se tortura muito e ninguém julho de 1976, foi massacrada, no que foi cha-
quer aceitar isso. mado o Massacre de San Patrício. Em um bairro
nobre de Buenos Aires, na casa paroquial da Igre-
IHU On-Line – Como compreender que o ja San Patrício, foram assassinados com 96 balas,
Brasil é o único país do mundo a ter tido cinco religiosos palotinos da província irlandesa.
uma ditadura e não abrir seus arquivos? Vou relatar este episódio detalhadamente no dia
Como explicar esse fato frente aos exem- 5 de setembro dentro das atividades do Ciclo de
plos da Argentina e Chile, que há anos dis- Estudos De Medellin a Aparecida: marcos, trajetó-
puseram os documentos ao público? rias e perspectivas da Igreja Latino-Americana sob
Alfredo Culleton – Na Argentina antes de abrir o titulo Testemunhos de fé. Nesse dia, exibiremos
os arquivos, e mesmo em vários governos demo- o filme 4 de julho, de Juan Pablo Young e Pablo
cráticos, foram assinadas leis como a Ley del ol- Zubizarreta (Argentina, 2007, documentário, 78
vido (lei do esquecimento) e Ley de obediência min). Foram muitas as marcas dos tempos do to-
debida (que responsabilizaria apenas o presiden- talitarismo argentino, como o silêncio, a dúvida, a
te da república isentando os executores) e muitas fé, o pensar em silêncio, e o amor. A experiência
outras tentativas de ocultamento. Não é fácil abrir de íntima partilha e cuidado com gente que nun-
arquivos, exige maturidade cívica, não pode ser ca tínhamos visto antes; a diáspora, o reconhe-
um processo vingativo nem expiatório. No Brasil, cimento no discurso, e, sobretudo o luto dos de-
a propriedade privada e o passado parecem ser saparecidos. O que fazer com o quarto montado
duas instituições que não podem ser tocadas nem de um filho que foi levado pela polícia e que não
questionadas. Temos enorme dificuldade de lidar voltou mais? Para a família, ele só estará morto
até com as coisas boas do nosso passado; temos se for visto morto, ou se for atestada a sua morte.
dificuldades de ver uma relação entre o navega- Mas ninguém aceita a morte por suposição. Em
dor luso Fernão de Magalhães e o brasileiro Amir que momento se determina que aquele não será
Klink ou Robert Scheidt. Temos dificuldade de mais o quarto do Carlos ou do Ernesto?
significar, isto é, retomar o passado e projetar um
futuro; esta é a nossa infantilidade.

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Lembranças vivas, feridas abertas: a punição
aos torturadores da ditadura no Brasil

Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Filho

“A sociedade brasileira ainda está mergulha- sobre Internacionalização do Direito e Justiça de


da no sono do esquecimento. Os violadores de di- Transição – IDEJUST.
reitos humanos não só não se arrependem como
ainda comemoram os aniversários do regime IHU On-Line – O que a punição de Ustra
autoritário instalado com a ditadura militar. Boa pode representar, atualmente?
parte da população não só desconhece a brutal José Carlos Moreira da Silva Filho – O Co-
violência desses anos como apoia a prática da ronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, notoriamente
tortura pelas forças de segurança pública.” Esse conhecido pelos perseguidos políticos que foram
é um apontamento da realidade que vive a socie- por ele torturados como Major Tibiriçá, foi coman-
dade e a democracia brasileira feito pelo profes- dante da temida Operação Bandeirante no DOI/
sor de Direito José Carlos Moreira da Silva Filho. CODI, em São Paulo. Na condição de Conselheiro
Em entrevista concedida por telefone à equipe de da Comissão de Anistia já tive a chance de presen-
comunicação da IHU On-Line e publicada no ciar depoimentos de ex-presos e perseguidos políti-
sítio do IHU em 22 de agosto de 2009, ele fala cos que, com riqueza de detalhes e emoção a custo
sobre a punição que um dos principais tortura- contida, revelaram ter sido diretamente torturados
dores da época da ditadura no Brasil pode sofrer pelo Ustra. Creio que será uma grande vitória a
em decorrência dos crimes que cometeu num dos condenação dele, não só na esfera civil, mas tam-
períodos mais duros da história do nosso país. bém na esfera penal. Esta vitória, aliás, já aconte-
José Carlos fala ainda de questões como me- ceu em parte no âmbito da justiça paulista, que
mória da ditadura. “Uma das consequências mais em ação proposta pela família Teles, declarou em
atrozes desse esquecimento imposto foi a impuni- primeira instância, na histórica sentença do Juiz
dade dos agentes públicos que violaram até mes- Gustavo Santini Teodoro, que Ustra é torturador.
mo a própria lei que vigorava durante a ditadura Esta ação, porém, é uma ação declaratória.
militar, torturando, matando e desaparecendo com Como o nome diz, ela apenas declara, não tem
os restos mortais das suas vítimas. A reprovação a o efeito de impor sanções civis ou penais para
tais atos não foi catapultada para a dimensão sim- Ustra. Penso que será realmente uma grande vi-
bólica do espaço público brasileiro”, disse. tória caso estas sanções realmente ocorram, tanto
José Carlos Moreira da Silva Filho é mestre para Ustra como também para tantos outros tortu-
em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade radores que atuaram nesse período e continuam
Federal de Santa Catarina – UFSC, doutor em Di- por aí sem que sobre eles recaia qualquer pecha
reito das Relações Sociais pela Universidade Fe- de reprovação. Será uma vitória não apenas para
deral do Paraná – UFPR. Atualmente é professor os familiares de suas vítimas diretas e indiretas,
da Faculdade de Direito da Pontifícia Universida- mas fundamentalmente para o desenvolvimento
de Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Con- da democracia no Brasil. Não vejo a possibilidade
selheiro da Comissão de Anistia do Ministério da de tais punições como reflexo de uma vingança
Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos ou de uma atitude revanchista. Explico por quê.

44
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Memória do esquecimento 30 anos, revelou-se uma nítida política de esque-


cimento. É bem verdade que ela marcou o início
A sociedade brasileira ainda está mergu- da redemocratização do país, permitindo o retor-
lhada no sono do esquecimento. Os violadores no de intelectuais, artistas, militantes políticos e
de direitos humanos não só não se arrependem demais pessoas, perseguidas politicamente que se
como ainda comemoram os aniversários do re- encontravam no exílio. É verdade também que
gime autoritário instalado com a ditadura militar. ela surgiu a partir de uma intensa e ampla mo-
Boa parte da população não só desconhece a bilização nacional, como há muito tempo não se
brutal violência desses anos como apoia a prática via no Brasil, motivada de modo mais direto pela
da tortura pelas forças de segurança pública. No greve de fome dos presos políticos em 1979. Con-
Brasil, diante da ausência do arrependimento, tor- tudo, não se pode ignorar que esta anistia veio
na-se vital a construção de espaços que possam ainda na vigência da ditadura militar brasileira e
catapultar ao plano simbólico o olhar das vítimas. que, em decorrência disso, além de deixar de fora
A possibilidade de julgamentos pelo cometimen- uma boa parte dos que eram perseguidos políti-
to de crimes imprescritíveis por parte dos agentes cos, como aqueles que se envolveram na resis-
públicos que violaram direitos humanos durante tência armada, foi recebida e interpretada como
a ditadura militar não é, portanto, motivada por um apelo ao esquecimento, inclusive das torturas,
atitudes revanchistas e ressentidas, mas sim pela assassinatos e desaparecimentos forçados realiza-
necessidade das brasileiras e dos brasileiros de dos pelo governo ditatorial.
explorarem a sua própria história, de enfrentarem
sua face traumatizada e recalcada, de fazerem
justiça às vítimas que jazem sob os escombros Consequências do esquecimento
nos quais se erguem suas casas e instituições. É
preciso que se diga de uma vez por todas, em Com o esquecimento imposto pela anistia
alto e bom som que RECORRER À TORTURA É de 1979, a sociedade brasileira não teve acesso
ALGO ERRADO. Como isso ainda não foi feito, às narrativas, aos documentos e aos dados que
nos deparamos a todo instante com opiniões que poderiam ter aflorado através de investigações ju-
facilmente descartam a proteção dos direitos hu- diciais e da abertura dos arquivos. Impôs-se um
manos e legitimam a violência institucionalizada. silêncio temeroso e reverencial. A notícia dos as-
sassinatos, sequestros, torturas, desrespeito total
IHU On-Line – Na Argentina, a memória da por direitos fundamentais, ilegalidades, barbáries,
ditadura é muito viva, muitas vezes para ficaram restritas ao círculo menor dos familia-
que esse passado não volte a acontecer. res das vítimas, não obtiveram maior espaço na
Como o senhor vê a questão da memória agenda pública e midiática. Não houve, assim, o
da ditadura no Brasil? reconhecimento do papel de resistência protago-
José Carlos Moreira da Silva Filho – Já é nizado pelos perseguidos políticos. As guerrilhas
lugar comum dizer que o povo brasileiro é um urbanas e rurais que aconteceram no Brasil após
povo sem memória. De fato, apesar de a luta o advento do golpe de Estado em 1964 represen-
por direitos, igualdade e emancipação continu- taram o exercício de um direito tão antigo quan-
ar existindo em muitos movimentos populares, to legítimo: o de resistência diante da tirania. E
boa parte do senso comum que paira em nossa que fique bem claro: exercer o direito de resistên-
sociedade deixa-se seduzir por uma cantilena cia não é fazer terrorismo, mas sim lutar contra
amnésica, entoada e repetida nos espaços de o terrorismo em sua feição institucionalizada, a
comunicação existentes. Ainda temos um longo mais nociva e devastadora. A anistia de 1979,
caminho a percorrer. reafirmando este quadro de não reconhecimento
Contextualizando um pouco mais o tema es- do importante papel que a resistência teve para
pecífico da ditadura brasileira, é preciso lembrar que hoje o país esteja em um rumo democrático,
que a anistia de 1979, que, neste ano, completa apareceu como o resultado de uma “dádiva” do

45
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

governo militar e não como o resultado das lutas de lesa-humanidade, como tortura, sequestros e
sofridas empreendidas pelas forças de oposição. desaparecimentos cometidos por agentes do Es-
Uma das consequências mais atrozes des- tado e violações de Direitos Humanos”; “Garantir
se esquecimento imposto foi a impunidade dos o poder de identificar os responsáveis por graves
agentes públicos que violaram até mesmo a pró- violações aos Direitos Humanos e crimes de lesa-
pria lei que vigorava durante a ditadura militar, -humanidade, e a capacidade legal de impedi-los
torturando, matando e desaparecendo com os de continuar exercendo função pública”; “Identi-
restos mortais das suas vítimas. A reprovação a ficar e tornar públicas as estruturas de repressão
tais atos não foi catapultada para a dimensão clandestina e ilegal, suas ramificações nos diversos
simbólica do espaço público brasileiro. Não hou- aparelhos de Estado, e em outras instâncias da so-
ve nenhuma investigação, nenhum julgamento, ciedade”; e “Registrar e divulgar todos os proce-
nenhuma condenação. Nenhum militar brasileiro dimentos oficiais da Comissão, a fim de garantir o
adotou um gesto semelhante ao comandante do esclarecimento circunstanciado de torturas, mortes
Exército argentino que em 1995 pediu desculpas e desaparecimentos, devendo-se discriminá-los e
à nação pelos erros cometidos pela ditadura mi- encaminhá-los aos órgãos competentes”.
litar daquele país. Em um cenário como este, di-
ficilmente se pode concluir que o necessário luto
coletivo foi feito. A consequência para a fuga do Diretrizes
luto e do trabalho de memória é a compulsão
de repetição. Não é à toa que a tortura continua Outra diretriz importante é a de “Propor le-
sendo utilizada como método corriqueiro de in- gislação de abrangência nacional proibindo que
vestigação policial. Não é também por qualquer logradouros, atos e próprios públicos recebam
motivo que os índices de aprovação da opinião nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-
pública quanto à prática da tortura são altos. -humanidade e violações dos Direitos Humanos,
e determinando a alteração de nomes que já te-
IHU On-Line – Como o senhor analisa este nham sido atribuídos”. É como uma amiga minha
documento que pede a punição aos tortura- costuma brincar: se as coisas fossem mais sérias
dores da ditadura militar? no nosso país, em Porto Alegre, a Lima e Silva
José Carlos Moreira da Silva Filho – O do- nunca poderia se encontrar com a República.
cumento ao qual te referes é uma versão prelimi- É claro que esses pontos estão sendo objeto
nar do III Programa Nacional de Direitos Huma- de acirrada crítica por parte do Ministério da De-
nos, divulgada na última semana de julho deste fesa e de grupos militares. Até onde sei, a SEDH
ano, e que é proposta pela Secretaria Especial de está sofrendo forte pressão para reformar as dire-
Direitos Humanos da Presidência da República trizes mencionadas. Por outro lado, também não
(SEDH), comandada por Paulo Vanucchi. Esta posso deixar de manifestar o meu espanto e de-
ainda não é a versão final. A proposta possui seis cepção por não ver neste documento apresenta-
eixos orientadores, dos quais o sexto intitula-se do pela SEDH qualquer referência à atuação da
“Direito à Memória e à Verdade”. Dentre as di- Comissão de Anistia do Brasil, quando se sabe
retrizes que compõem este eixo está a de criar a que boa parte das políticas de memória hoje em
Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, prática no país sobre o período ditatorial deve-se
incluindo familiares de mortos e desaparecidos à atuação da Comissão. Espero que isso mude na
políticos, com mandato e prazo definidos para versão final do documento. Além das Caravanas
examinar casos de graves violações de Direitos da Anistia, dos projetos culturais e da construção
Humanos no período 1964-1985. do Memorial da Anistia Política na cidade de Belo
Segundo a proposta, esta Comissão de- Horizonte, a Comissão foi a responsável por colo-
verá, entre outras atribuições: “Garantir plenos car na pauta da grande mídia o tema da punição
poderes e colaboração de todas as instâncias do aos torturadores e da imprescritibilidade dos cri-
Executivo Federal para a apuração dos crimes mes de lesa-humanidade.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

A audiência pública ocorrida no dia 31 de sões de Verdade e Reconciliação da África do Sul,


julho de 2008, no âmbito do Ministério da Jus- que atuaram a partir do ano de 1994, sob a ba-
tiça, para discutir o assunto, e que contou com a tuta do bispo Desmond Tutu. Diante dos horrores
presença de renomados juristas para discutir as gerados pelo regime do apartheid, os criminosos
teses apresentadas, desencadeou uma reação em a serem perdoados não devem ser as vítimas des-
série que culminou no rompimento de um silên- te regime, mas sim aqueles que o promoveram.
cio de mais de 30 anos sobre a responsabilização As vítimas devem ser reconhecidas em toda a
dos agentes da ditadura, visto que, até aquele sua dignidade, dissociadas da imagem lodosa que
momento, o debate se circunscrevia ao âmbito justificava a sua perseguição. Igualmente, não se
mais restrito dos familiares e dos ex-presos políti- trata de esquecer e sufocar as narrativas, mas sim
cos e seus amigos, não granjeando muito espaço de trazer todas elas à tona, inclusive a dos tortu-
na grande mídia. radores e assassinos. A possibilidade da paz social
estrutura-se sobre a verdade dessas narrativas. As
Comissões sul-africanas trabalharam com a pres-
A anistia e as vítimas da ditadura suposição de que uma verdadeira reconciliação
social só é possível a partir do reconhecimento
O conceito de anistia que vem sendo prati- e do arrependimento daqueles que violaram os
cado pela Comissão de Anistia, constituída com direitos humanos e perseguiram as vítimas.
a Lei 10.559/2002, é muito diferente da anistia
tradicional. Em primeiro lugar, ele não implica no IHU On-Line – Porque para o governo é tão
perdão do Estado a um criminoso, mas sim no difícil enfrentar, ainda hoje, os militares
inverso, ou seja, no pedido de desculpas do Es- que não querem a revisão da lei da anistia
tado por ter agido como um criminoso, na possi- e muito menos a punição àqueles que tor-
bilidade de um perdão concedido pela vítima em turaram durante a ditadura?
relação ao ato criminoso do Estado. Parte-se do José Carlos Moreira da Silva Filho – É difícil
pressuposto da ilegitimidade do governo autori- porque a sociedade brasileira está dividida sobre
tário, da inexistência de qualquer justificativa que o assunto. E está porque, em nosso país, não fo-
permita a violação dos direitos fundamentais dos ram realizadas políticas de memória para revelar
cidadãos. O conceito de anistia aqui, portanto, se as barbaridades cometidas pela ditadura militar.
afasta do exercício do esquecimento, pressupon- Boa parte das pessoas, quando condena a possi-
do, antes, um exercício de memória, do qual o bilidade desses julgamentos e até mesmo quando
reconhecimento é o resultado. O reconhecimento elogia a ditadura, não sabe do que estão falando,
das narrativas sufocadas pelos registros oficiais. não conheceu os casos de tortura, ou então faz
O reconhecimento da dignidade e do papel fun- parte do imaginário compartilhado pelos milita-
damental dos que foram perseguidos políticos na res, que, até hoje, continuam sofrendo “lavagem
construção das liberdades e das instituições de- cerebral”, nas academias militares, para entende-
mocráticas que hoje existem no país. rem que a ditadura foi necessária e magnânima,
A anistia vai muito mais longe do que a eli- que a tortura foi pouca, que, se ocorreu, não pas-
minação dos processos criminais movidos contra sou do deslize de alguns mais afoitos, e que se os
os anistiados e do que a reparação econômica a militares não dessem o golpe, o Brasil viraria um
eles feita. Ela atinge uma reparação moral. Esta país comunista, e teríamos uma ditadura de tipo
reparação é vital não apenas para o necessário estalinista por aqui.
exercício de luto da sociedade e o consequente É falso o argumento. Embora existissem à
fortalecimento das instituições democráticas, mas, época grupos que defendiam a ditadura comu-
sobretudo, por uma questão de justiça. O conceito nista como uma necessária forma de tornar o
de anistia apontado pela atuação da Comissão de país mais justo (algo que discordo totalmente),
Anistia perfila-se a uma tradição muito recente, estes grupos eram muito pequenos e não tinham
demarcada de modo paradigmático pelas Comis- nenhuma possibilidade real de conseguir o seu

47
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

intento. O que estava no horizonte, na verdade, No dia 24 de maio de 2009, postei uma ma-
eram as reformas de base propostas pelo gover- téria no Blog do PPG em Direito da UNISINOS na
no João Goulart (nosso presidente deposto que qual tratei de um assunto muito próximo a este: o
só foi anistiado no ano passado, 40 anos após anacronismo da justiça militar no Brasil. O “post”
sua deposição ilegítima), que contrariavam os comentou reportagem do jornal Zero Hora publi-
interesses de muitos setores da sociedade (em- cada no dia anterior. A reportagem fazia referência
presários, industriais, donos de terra e setores da a uma decisão da justiça federal que suspendeu a
Igreja). Na realidade, o único grupo armado que punição aplicada a um militar. Tratava-se de um
queria usurpar o poder para impor uma ditadura caso banal. A esposa do militar havia enviado a
eram os militares, com o apoio desses mesmos alguns soldados cartas lacradas cobrando dívidas
setores contrários às reformas propostas por João contraídas na compra de lanches por ela prepara-
Goulart (que longe estava de ser um comunista, dos para o incremento do orçamento doméstico.
diga-se de passagem). O que eles queriam era só Os superiores do militar acharam que essa atitude
um pretexto para depor João Goulart e seguir as constrangia indevidamente os soldados, hierar-
“orientações estratégicas” dos Estados Unidos. Os quicamente inferiores ao militar punido, e que,
grupos armados de esquerda só surgiram como por isso, ele deveria ficar preso por três dias. O
formas de resistência depois da ditadura instala- militar punido não teve dúvidas, entrou em con-
da, e em especial, depois do AI-5. tato com seu advogado e conseguiu um habeas
Somente agora no governo Lula é que po- corpus na Justiça Federal. O feito deflagrou um
demos vislumbrar a existência de políticas de mal-estar entre a Justiça Militar e a Federal, se-
memória em gestação e em prática. Tudo isso, gundo relata a reportagem da Zero Hora. Aliás,
porém, esbarra na resistência de setores ainda como pode ser visto no texto da reportagem, os
empedernidos pela ignorância histórica (que títulos e subtítulos que a iniciam já dão uma pista
nada tem de inocente) e pela ambiguidade de sobre o que o episódio significa para o periódico
todo um processo como este, que necessita de estadual: trata-se de um problema de quebra na
um tempo de transição para que ocorra efetiva- hierarquia militar.
mente. Mas, de todo modo, também me surpre-
ende ver que os militares ainda possuem tanto
poder na política brasileira. A hierarquia militar e a Constituição

IHU On-Line – A desmilitarização da Polí- Bem, para mim, particularmente, o episódio


cia Militar e sua desvinculação da corpo- é sintoma de um problema bem mais sério do que
ração do Exército e de seus ensinamentos o respeito à hierarquia militar. Falo do respeito à
e doutrina pode mudar a lógica da segu- Constituição e aos Direitos Humanos, falo do for-
rança pública? talecimento democrático das nossas instituições.
José Carlos Moreira da Silva Filho – Creio O Código Penal Militar é um dos subprodutos da
que este é sim um importante passo. O treina- ditadura militar brasileira, instituído por Decreto,
mento militar trabalha com a lógica do inimigo da no ano de 1969, logo após o AI-5. Boa parte do
sociedade, a ser exterminado e combatido custe o Código foi revogada com a Constituição (a pena
que custar. É uma lógica de guerra e não deve ser de morte, por exemplo). Além dos crimes ali pre-
aplicada para resolver conflitos civis e sociais do vistos e não revogados, os membros da força es-
país, e muito menos para servir de parâmetro às tão vinculados a um rígido código de conduta,
instituições responsáveis pela segurança pública. cuja inobservância pode acarretar penas de res-
Atualmente, quando o custo desta “guerra” ora trição de liberdade. O problema é que esses códi-
em curso é a tortura para se conseguir informa- gos ignoram olimpicamente o princípio constitu-
ções, ou ainda o extermínio puro e simples, não cional da legalidade penal, atribuindo aos oficiais
se tem maiores constrangimentos em legitimar e superiores hierárquicos um poder discricionário
todo o processo. de avaliar o que é ou não é adequado no com-

48
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

portamento do militar, e decretar a suspensão de da existência de um regime político democrático.


um direito fundamental e inalienável de qualquer Tal fato ficou evidente com a atuação dos Estados
pessoa: a sua liberdade. Unidos na América Latina durante a Guerra Fria,
Esse sistema de punições, por sua vez, é en- apoiando e constituindo ditaduras.
dossado pela Justiça Militar, que a Constituição No plano institucional, lembro que um dos
de 1988 não só deixou intacta como ainda incre- temas mais importantes da agenda nacional e
mentou com a Justiça Militar Estadual (e todo o internacional é o tema da justiça de transição,
custo que ela representa aos cofres públicos). É ou seja, dos mecanismos necessários para que
preciso entender que, naquela altura, o desman- os países que outrora viviam sob regimes auto-
do e o arbítrio da ditadura militar ainda estavam ritários possam se fortalecer hoje como uma de-
bem frescos na memória e ninguém ousava avan- mocracia. Os 4 eixos deste conceito são: direito
çar muito nas “garantias” da organização militar. à memória e à verdade, reparação das vítimas,
Somente hoje começam a ganhar coro as propos- julgamento e punição dos violadores de Direitos
tas de extinção da Justiça Militar no Brasil. Humanos (justiça) e o fortalecimento das insti-
Eis algumas razões para isso: não faz sentido tuições democráticas.
manter um tribunal militar em tempos de paz; os
critérios do que é bom e adequado para o ofi-
cialato militar podem estar em flagrante contra- A América Latina
dição com os valores e princípios que sustentam
a ordem jurídica, e que devem ser aplicados para Conectando todos esses pontos, está uma
todos, inclusive para os militares, e foi isto que se importante pesquisa, desenvolvida pelas cien-
viu, por exemplo, com a greve dos controlado- tistas políticas estadunidenses Kathryn Sikkink e
res aéreos durante o “caos aéreo”, punidos com Carrie Booth Walling, publicada em 2007. Ali se
prisão, e com a opção sexual dos sargentos gays, conseguiu demonstrar, através de criteriosa coleta
também punidos com prisão por isso (vale lem- e análise de dados, o desacerto da literatura da
brar que, no imaginário militar, o homossexualis- década de 1980 a respeito das transições demo-
mo dos seus membros é considerado um crime); cráticas então em desenvolvimento na América
o fato de os policiais militares não serem julgados Latina. Segundo essa literatura, citada e comen-
pela justiça comum estimula o acobertamento de tada no artigo das pesquisadoras, os julgamentos
crimes bárbaros cometidos contra a população, por violações de Direitos Humanos durante os
como já se viu à exaustão, contribuindo para o regimes autoritários não só seriam politicamente
aumento exponencial da violência. indefensáveis como também poderiam minar as
novas democracias.
IHU On-Line – Depois de 40 anos, a socie- A experiência de alguns países latino-ame-
dade, de fato, conseguiu resgatar a demo- ricanos, estudada na pesquisa, demonstrou o
cracia, atualmente? contrário. Em nenhum dos países nos quais
José Carlos Moreira da Silva Filho – Vejo a ocorreram julgamentos por violações de Direitos
democracia brasileira como um processo em an- Humanos houve um retrocesso democrático. Na
damento. Tanto na sua dimensão propriamente maioria desses países, inclusive, além de julga-
política como, e principalmente, na sua dimensão mentos, houve também a instalação e o trabalho
econômica e social. Que liberdade tem alguém de Comissões de Verdade, logo, a aplicação desses
que não tem devidamente atendidas suas necessi- mecanismos de transição não foi impedida politi-
dades básicas como moradia, educação, alimen- camente, muito pelo contrário, evidenciou-se que,
tação, transporte e saúde? Creio que aqui está o com o passar dos anos, as forças políticas que
grande calcanhar de Aquiles das economias de apoiavam as ditaduras se enfraqueceram.
mercado atuais, que condenam milhões de pes- O que chama mais a atenção na pesquisa
soas a não terem tais necessidades satisfeitas. O feita, porém, é a relação entre a aplicação desses
capitalismo não é necessariamente dependente mecanismos transicionais, em especial dos julga-

49
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mentos por violações de Direitos Humanos, e o deduz-se que esse aumento na PTS deve-se,
nível de desrespeito aos Direitos Humanos nos principalmente, às práticas da tortura e da
países em que foram aplicados. O critério utiliza- execução sumária.
do para medir esse nível é chamado de Political A pesquisa leva à conclusão de que a aplica-
Terror Scale – PTS (Escala de Terror Político). ção de mecanismos transicionais, como a instala-
Os resultados da pesquisa mostraram, em suma, ção de Comissões de Verdade e a realização de
que, nos países onde ocorreram julgamentos por julgamentos por violações de Direitos Humanos,
violações de Direitos Humanos durante os perí- é diretamente proporcional ao fortalecimento de
odos autoritários, a PTS diminuiu sensivelmente uma cultura democrática de respeito aos Direitos
em relação ao período anterior ao da realização Humanos. Inversamente, evidencia-se que a não
desses julgamentos, e que essa diminuição foi aplicação desses mecanismos colabora para per-
ainda maior nos países nos quais, além da instau- petuar, na ação dos órgãos e agentes de seguran-
ração de Comissões de Verdade, os julgamentos ça pública, o desrespeito sistemático e endêmico
se iniciaram há mais tempo. dos direitos fundamentais mais básicos dos cida-
dãos que estão sob sua tutela, desrespeito este
que se espalha e se propaga pelas relações sociais
Ditadura ontem, violência hoje de um modo geral.
As conclusões desse estudo, portanto, confir-
Segundo informam os dados apresenta- mam a idéia de que uma sociedade que não faz o
dos na pesquisa, o Brasil conseguiu a impres- luto e o reconhecimento das suas perdas e violên-
sionante marca de ser quase o único país (a cias ocorridas em períodos autoritários, continua
ele se junta a Guiana) que nem realizou jul- a repetir essa mesma violência. O alvo deixa de
gamentos por violações de Direitos Humanos ser especificamente o “esquerdista” e o “subver-
e nem instalou Comissões de Verdade. Os re- sivo” e passa a ser o “suspeito”, o “traficante”.
sultados mostram que, comparativamente ao Importante constatar também que os movimentos
período pré-transicional, a PTS aumentou. sociais organizados, assim como os defensores de
Ou seja, mesmo com a democratização das Direitos Humanos, sempre que se colocam em
instituições, o fim da censura e a ampliação uma posição de protesto e reivindicação, na qual
das liberdades, a violência não só continua não raro desafiam interesses relacionados às an-
alta, como é ainda maior. Como, no cenário tigas relações patrimonialistas do país, passam a
de democracia institucional, as prisões polí- ser alvo de uma forte tendência de criminalização,
ticas são eliminadas, e os desaparecimentos passando, com isto, a serem objeto do mesmo
forçados deixam de ser uma prática aceitável, tipo de “tratamento” que os criminosos comuns.

50
“Nossa transição democrática está incompleta”

Entrevista com Paulo Abrão

Na opinião do advogado Paulo Abrão, co- de várias obras, entre elas Anais do II Congresso
ordenador da Comissão Nacional de Anistia, Internacional Transdisciplinar Ambiente e Direito
permanece incompleta nossa transição democrá- (Porto Alegre: Edipucrs, 2005).
tica. Para ele, é necessário “avançar no conceito
de justiça de transição, que define a necessida- IHU On-Line – Na perspectiva das víti-
de da preservação da nossa memória histórica mas da ditadura brasileira e suas famílias,
pelo reconhecimento do direito à verdade”. Ele que justiças e injustiças a lei da Anistia
continua: “É preciso, ainda, a responsabilização promoveu?
dos agentes torturadores para que superemos a Paulo Abrão – Do ponto de vista dos atingidos
mácula de crimes ainda não apurados até hoje. pela repressão do regime militar, restam pendentes
É preciso que nós finalizemos os processos de re- uma série de direitos básicos ainda não atendidos
paração econômica aos perseguidos políticos e, pelo Estado brasileiro. O primeiro deles é o direito
por fim, que as nossas instituições de segurança fundamental e humano de terem as informações a
pública se vocacionem para o respeito aos direi- respeito da localização dos corpos dos desapareci-
tos humanos e deixem de praticar atos arbitrários dos políticos, para consagrar esse direito universal
tal qual no regime autoritário vigorava”. As decla- ao enterro digno de seus familiares. Em segundo
rações foram feitas na entrevista que concedeu, lugar, os atingidos pela repressão do regime mili-
por telefone, à IHU On-Line e publicada no sítio tar foram vítimas de crimes bárbaros, os quais até
do IHU em 19 de março de 2009. hoje não estão devidamente apurados pelo Estado
Paulo Abrão é graduado em Direito, pela brasileiro, crimes estes que são qualificados como
Universidade Federal de Uberlância (UFU), além crimes contra a humanidade, assim configurados
de mestre e doutor em Direito, pela Unisinos e os atos de tortura, desaparecimentos, prisões arbi-
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de trárias, assassinatos. Portanto, ainda vige em nos-
Janeiro (PUC-Rio), respectivamente. Sua disser- sa sociedade um clima de impunidade. A terceira
tação intitulou-se O poder judiciário em busca do pendência que o Estado brasileiro tem com esses
Estado Democrático de Direito: crise (diagnóstico cidadãos resistentes à ditadura militar é a de que
e versões) e transição paradigmática. Atualmen- ainda há muitos processos de reparação em rela-
te, leciona na Faculdade de Direito da Pontifí- ção aos danos morais e materiais que eles sofreram
cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e que ainda não foram apreciados, a despeito da
(PUCRS). Ele é um dos conferencistas da noite aceleração que a apreciação do julgamento que a
de 8 de abril de 2009, quando ocorre o IV Sim- Comissão de Anistia tem feito. A quarta questão
pósio da Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos central está num direito que transpassa o direito
Humanos e violência, governo e governança. O individual desse conjunto de cidadãos que é a pre-
evento inicia em 6 de abril e se encerra no dia servação de nossa memória histórica, que afinal é
8, tendo como principal tema a violência e me- do interesse de toda a sociedade, para que tenha-
mória na perspectiva das vítimas. É organizador mos conhecimento em relação a esses episódios

51
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nebulosos de nossa história, como o acesso aos IHU On-Line – Há manifestações das For-
arquivos da ditadura militar. ças Armadas contra as medidas que a Co-
missão da Anistia têm tomado?
IHU On-Line – O senhor é crítico a legisla- Paulo Abrão – As Forças Armadas têm cumpri-
ção que permite indenizações milionárias do as determinações da Comissão de Anistia na
a vítimas da ditadura. Que alternativas o implementação e no pagamento a uma série de
senhor sugere como forma de indenização perseguidos políticos militares que compõe, in-
às vítimas e suas famílias? clusive metade do total de indenizações já con-
Paulo Abrão – A Lei de Anistia atual que con- cedidas pela comissão. Porém, setores da reserva
cede as reparações econômicas aos perseguidos não têm demonstrado satisfação com a reaber-
políticos é bastante iníqua. Para corrigir essas tura desse debate relativo ao alcance da Lei de
distorções da lei procuramos aplicar juízos de ra- Anistia. Independentemente dessa posição, temos
zoabilidade e de m adequação dessa legislação levado o debate adiante.
à realidade social brasileira. Conseguimos, com
base numa interpretação constitucional da Lei IHU On-Line – As reparações que o governo
10.559, alterar esse quadro anterior de concessão têm feito às vítimas são somente financei-
de indenizações milionárias. No passado, a média ras? Que outras reparações são necessá-
de indenizações a título de prestações permanen- rias, em sua opinião?
tes e continuadas na comissão era de R$ 6 mil. Paulo Abrão – A primeira reparação é necessa-
Hoje essa média está em R$ 2,7 mil, valor compa- riamente simbólica, que é o ato através do qual
tível com o que se paga na previdência social nas o Estado brasileiro declara, reconhece a condi-
pensões regulares. De toda forma, é preferível uma ção de perseguido político e o declara anistiado
democracia cumprir a legislação legitimamente político. Isso significa, em outras palavras, que
aprovada por unanimidade no congresso nacional o Brasil oficialmente, e de forma institucional,
do que um estado legal anterior e legítimo do re- pede desculpas pelos erros que cometeu contra
gime militar, onde não imperava a força do estado essas pessoas no passado. Isso é o mais relevan-
de direito, mas vontade do soberano golpista. te no processo de anistia. Na sequência, a lei es-
tabelece os critérios de fixação das indenizações
IHU On-Line – A Lei da Anistia de 1979, devidas a cada um desses perseguidos políticos
como foi formulada, é justa? reconhecidos.
Paulo Abrão – Em 1979, foi aprovada a Lei de
Anistia para o perdão dos crimes políticos. Em IHU On-Line – Depois de 40 anos, a socie-
2002, é aprovada a lei de reparação. A Lei de dade, de fato, conseguiu resgatar a demo-
1979 serviu para a liberdade de muitos presos cracia, atualmente?
políticos. Foi por meio dela que conseguimos a Paulo Abrão – Sustento que nossa transição de-
volta de tantos brasileiros do exílio, e também ela mocrática está incompleta. É preciso avançar no
inicia o processo de ruptura com o regime ditato- conceito de justiça de transição, que define a ne-
rial com vistas à implementação de uma transição cessidade da preservação da nossa memória his-
para o regime democrático. Nesse aspecto, ela é tórica pelo reconhecimento do direito à verdade.
uma legislação que fez bem ao país. Porém, a lei- É preciso, ainda, a responsabilização dos agentes
tura que prevaleceu no seio da sociedade, de que torturadores para que superemos a mácula de cri-
essa lei também teria anistiado os crimes e tortu- mes ainda não apurados até hoje. É preciso que
radores do regime militar, é inadequada, fazendo, finalizemos os processos de reparação econômica
a meu juízo, uma interpretação equivocada dessa aos perseguidos políticos e, por fim, que as nossas
legislação, que sequer em uma única linha faz re- instituições de segurança pública se vocacionem
ferência à anistia aos torturadores. Essa interpre- para o respeito aos direitos humanos e deixem
tação levada adiante pelos tribunais é maléfica à de praticar atos arbitrários tal qual no regime au-
nossa democracia. toritário vigorava. Nesses termos, não podemos

52
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

dizer que a transição democrática no Brasil já te- permitirá que essas violações aos direitos huma-
nha concluído, até porque ela é necessariamente nos passem sem a devida apuração, sem a efetiva
um processo. mobilização da sociedade civil, sem a formação
da consciência crítica da nossa juventude, forjada
IHU On-Line – De que forma eventos como nas nossas academias, universidades e escolas.
esse da Unesco que vai ocorrer ajudam a Nunca teremos a certeza da não repetição em
construir direitos humanos sólidos e justos relação aos erros do passado. É preciso que nos
no Brasil? lembremos para que isso não se repita jamais. Por
Paulo Abrão – Iniciativas como essa, da Unisi- isso, é com muita honra que apoiamos a iniciativa
nos, nos fazem crer que o mundo acadêmico não da Unisinos na realização desse evento.

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Lei da Anistia: “O medo falou mais alto”

Entrevista com Pedro Serrano

“Nação não é um mero aglomerado de pes- período militar, o suposto benefício que esta lei
soas. É um fenômeno cultural que como tal é trouxe aos agentes públicos civis e militares, que
composto por sua história. Nação é um concei- praticaram torturas, é mais claro nos discursos
to que inclui a história de um povo. Nação é um dos que defendem as práticas da ditadura do que
povo com história.” Assim finalizou sua entrevis- no texto de direito positivo. A lei apenas anistia os
ta, concedida por e-mail à IHU On-Line e publi- delitos políticos e seus “crimes conexos”.
cada no sítio do IHU em 15 de agosto de 2008, o Ora, tortura não é um crime conexo ao su-
doutor em Direito do Estado Pedro Serrano. Na posto delito praticado pelo torturado. Que cone-
entrevista, ele ainda reflete sobre a Lei da Anistia xão há entre a tortura policial e o tráfico de dro-
a partir das propostas feitas pelos ministros Tarso gas ou seqüestros cometidos pelo torturado que
Genro e Paulo Vannuchi de punição dos tortu- praticou esses delitos? O crime político e o crime
radores da ditadura militar. Segundo ele, “faltou de tortura são condutas delitivas com motivos e
coragem e visão de estadista a nossos governan- “iter” independentes, cujas normas tipificadoras
tes. Preferiu-se indenizar pessoas, salvaguardar os protegem bens jurídicos diversos.
direitos pessoais, como se fossem substitutos su- Tanto é verdade essa ausência de conexão
ficientes do direito coletivo ao conhecimento do que muitos cidadãos que não praticaram qual-
período histórico”. quer conduta política foram torturados por serem
Pedro Estevam Serrano é graduado em Di- parentes, locadores de imóveis, amigos ou mes-
reito, pela PUC-SP, onde também obteve o título mo advogados de opositores políticos do regime.
de mestre e doutor em Direito do Estado. Atual- Às vezes, eram torturados ou mesmo mortos ci-
mente, é sócio do escritório Teixeira, Ferreira e dadãos sem qualquer relação com militantes de
Serrano Advogados Associados. É, também, pro- oposição ao regime, por pura vingança de briga
fessor da PUC-SP e da Escola Paulista de Direito de vizinhos ou coisa parecida. Até parlamentares
e escreveu o livro O desvio do poder na função e jornalistas foram torturados e mortos. Ou seja, a
legislativa (São Paulo: Editora FTD, 1997). tortura como prática foi muito além da repressão
à atividade política, atingiu diversos rincões da ci-
IHU On-Line – Que análise o senhor faz dadania pelos mais diversos motivos.
acerca da Lei da Anistia? Por essa razão, a questão é que devemos
Pedro Serrano – A Lei da Anistia foi uma le- debater no ambiente próprio, que é o da jurisdi-
gislação produzida com o texto e por decisão do ção, o sentido e extensão da Lei de Anistia, e não
regime militar, durante o período de ditadura. Ela modificá-la, mesmo porque seria inócua a modifi-
claramente beneficia as pessoas condenadas, per- cação. Ela já esgotou seus efeitos jurídicos, sendo
seguidas ou exiladas por conta de delitos ou moti- incorporada como direito ao patrimônio jurídico
vos políticos. Como o regime na ocasião não que- de quem foi por ela beneficiada, e considerada
ria assumir perante a opinião pública global que inconstitucional a alteração legislativa retroativa
houve tortura e morte de aprisionados durante o de suas disposições. O que é retroativo por na-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tureza é o caráter de imprescritibilidade do crime Argentina, Chile e Uruguai, que já abriram


de tortura, uma vez que foi estipulado por norma seus arquivos da época da ditadura?
constitucional originária. Pedro Serrano – A responsabilidade pela ilícita
não apuração dos fatos não deve ser atribuída à
IHU On-Line – O senhor concorda com a Justiça. A Justiça no sistema constitucional bra-
proposta do ministro Tarso Genro, favorá- sileiro é inerte. Ela não investiga fatos. Quem o
vel à punição de torturadores que atuaram faz são a polícia e o Ministério Público, órgãos li-
no regime militar? gados ao Poder Executivo. Compete a estas insti-
Pedro Serrano – Sou integralmente favorável à tuições, em conjunto com os órgãos disciplinares
posição do ministro, de que o Ministério Público, da Administração Pública, investigar o ocorrido,
a polícia e os órgãos disciplinares do Executivo identificar os agentes criminosos e daí acionar a
devem investigar os fatos ocorridos, identificar jurisdição para que decida, e, se for o caso, puna.
os agentes que praticaram torturas e, posterior- A Justiça não pode mandar abrir arquivos de ofí-
mente, submeter à jurisdição a decisão, no caso cio. Apenas quando provocada para tal, no bojo
se foram ou não beneficiados pela Lei de Anistia. destas investigações.
As medidas de caráter civil, promovidas
IHU On-Line – Em que aspectos essa me- recentemente pelo Ministério Público Federal,
dida é positiva ou negativa para a história são muito positivas, mas insuficientes. Primeiro,
do país? porque têm apenas caráter civil, e não criminal.
Pedro Serrano – Em verdade, o grande ganho Depois, pelo fato de pouco acrescentarem à his-
que uma conduta destas traria ao país é a possi- tória – os réus são pessoas já conhecidas como
bilidade que teríamos, como sociedade, de nos torturadores.
apropriarmos de nossa história. Se, por um lado, O adequado seria a criação de um grupo for-
nossa história é conhecida, as pessoas e organiza- mado pelo Ministério Público Federal e Polícia Fe-
ções que lutaram contra a ditadura são conheci- deral, especializado na questão, para apurar estes
dos publicamente, por outro, o mesmo não ocor- delitos de forma ampla. Obviamente, a liberação
re quanto aos agentes públicos que praticaram dos arquivos a estes investigadores seria uma ine-
crimes de estado e de lesa-humanidade, como a rência à investigação.
tortura e o desaparecimento de aprisionados.
Não podemos encarar a justa e ne- IHU On-Line – Por que os arquivos políti-
cessária indenização das vítimas como um cos da época da ditadura são um tabu para
cala-boca, um substituto do direito coletivo os governos que vieram com a democracia?
de conhecer nossa história como sociedade Pedro Serrano – Faltou coragem e visão de
e Estado. estadista a nossos governantes. Preferiu-se inde-
nizar pessoas, salvaguardar os direitos pessoais,
IHU On-Line – A Lei da Anistia comprome- como se fossem substitutos suficientes do direito
teu os direitos humanos no país? coletivo ao conhecimento do período histórico.
Pedro Serrano – Creio que não, exatamente Um grande equívoco, em verdade. O medo falou
porque entendo que ela não beneficiou agentes mais alto do que os interesses republicanos.
públicos que praticaram violências contra aprisio-
nados. O que beneficiou esses agentes foi a ilícita IHU On-Line – Como o senhor avalia a rela-
inação do Estado no que toca à apuração destes ção da questão do perdão e da abertura dos
crimes, por conta de um discurso que pressupõe arquivos políticos da ditadura e a eventual
uma amplitude semântica que a Lei da Anistia punição dos torturadores?
não tem efetivamente. Pedro Serrano – Não acho que a Lei de Anis-
tia anistiou qualquer torturador; ela não teve este
IHU On-Line – A Justiça brasileira está lon- sentido. E os agentes civis e militares de então
ge de seguir os exemplos dos tribunais da não podem se queixar, pois a lei foi por eles es-

55
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

crita e aprovada. Não há que se falar em perdão, seviciá-lo é um ato de tamanha covardia e perver-
ao menos na dimensão jurídica-institucional da são que afronta a noção de dignidade, honra e co-
expressão. ragem que animam a atividade militar.
Também não há que se falar, ao menos ju- A coragem, a generosidade cívica e o senso
ridicamente, em esquecimento, pois tortura é cri- pessoal de dignidade que compõe a imagem do
me imprescritível nos termos da Constituição e os soldado são o antônimo do que significa a covar-
torturadores de então não foram anistiados deste dia, a torpeza e a perversão do torturador. Não é
delito. à toa que eles não assumem o que fizeram, lutam
De qualquer modo, não acho o mais rele- para continuar nas sombras. A vergonha os leva
vante a questão da punição real dos torturadores. a isso.
Mais importante que isso é identificá-los, saber- Enquanto instituição, as Forças Armadas de-
mos quem são e como atuaram, bem como onde vem colaborar com as investigações, desvinculan-
estão os restos de suas maiores vítimas. Conhecer do sua imagem deste passado perverso e sujo.
nossa história. Só uma investigação profunda e
rigorosa pode nos propiciar isso. IHU On-Line – Podemos considerar que
vivemos numa democracia plena enquan-
IHU On-Line – Que influência as Forças Ar- to não soubermos a verdade sobre nosso
madas ainda têm sobre o Brasil? passado?
Pedro Serrano – Não acho que as atuais Forças Pedro Serrano – Em verdade, sem conhecer-
Armadas possam ser confundidas com essa mino- mos nossa história seremos sempre incompletos
ria que torturou no passado. A tortura, além de cri- como nação. Nação não é um mero aglomerado
me lesa-humanidade, é uma prática que contraria de pessoas. É um fenômeno cultural que como tal
a essência do que são os maiores valores milita- é composto por sua história. Nação é um concei-
res. Submeter um aprisionado a uma situação de to que inclui a história de um povo. Nação é um
impotência, de impossibilidade física de reação, e povo com história.

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Memória e ditadura militar:
“Precisamos passar a limpo o que aconteceu”

Entrevista com Christa Berger

“A cultura da memória, que também está sidad Nacional Autonoma de México, e doutora
globalizada, propicia que no Brasil os temas li- em Ciências da Comunicação, pela Universidade
gados à ditadura freqüentem nosso imaginário e de São Paulo, recebeu, em 2003, o título de pós-
tenham acolhida também na imprensa. Porém, a -doutora pela Universidade Autônoma de Barce-
repercussão da iniciativa do ministro da Justiça lona. É, atualmente, professora e coordenadora
de reabrir a questão da Lei da Anistia e a punição do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
aos torturadores remete a uma outra problemá- Comunicação da Unisinos.
tica da memória: a necessidade de passar a lim-
po o que aconteceu”, disse a professora Christa IHU On-Line – Os ministros Tarso Genro e
Berger à IHU On-Line, em entrevista realizada Paulo Vanucci trouxeram a questão da Lei
por e-mail e publicada no sítio do IHU em 13 de da Anistia e da punição para os tortura-
setembro de 2008. Christa relaciona a questão da dores durante a ditadura militar brasileira
cultura da memória, que faz parte hoje do tema novamente para ser debatida pelo governo
de sua pesquisa, com o fato do reavivamento da e pela sociedade. A senhora afirma que vi-
problemática de se punir ou não aqueles que co- vemos em um tempo de reavivamento da
meteram atrocidades em nome da ditadura mili- memória. Como esse retorno a um passado
tar brasileira. Ela diz que todos os tratados inter- “mal resolvido” pode ser analisado a partir
nacionais vêem a tortura como um crime contra da cultura da memória sobre esse passado
a humanidade e este fato não está presente na na política brasileira?
Lei da Anistia do Brasil. “A reação de descon- Christa Berger – A expressão “cultura da me-
forto com a reabertura do tema mostra, na ver- mória” reconhece que experiências traumáticas
dade, que ele está longe de ser resolvido e que do passado vêm sendo reapresentadas através
segue na pauta da agenda política nacional”, dos formatos da cultura midiática. Ou seja, fil-
afirmou. Christa traz aqui elementos importan- mes, programas de tevê, livros de testemunho e
tes para o debate acerca de questões da ditadura exposições de fotos formam uma rede de discur-
militar que continuam abertas e analisa ainda o sos que iluminam o passado com as formas de
discurso jornalístico em torno do tema. “A dita- registro emprestadas das manifestações culturais
dura freqüentou, outra vez, o espaço nobre da contemporâneas. Nestas, são exploradas o poten-
imprensa”, relatou. cial mercadológico e espetacular que contagia e
Christa Liselote Berger Ramos Kuschick é contamina todos os temas e formatos. O reaviva-
graduada em Comunicação, pela PUC-Rio, e mento do passado no contexto desta cultura su-
especialista em Projetos de Comunicação, pelo gere que se pergunte sobre a função da memória
Centro de Investigación Para América Latina assim enquadrada. Qual o impacto dessas ima-
(Ciespal). Mestre em Ciência Política, pela Univer- gens e palavras? Como afetam nossas ações no

57
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mundo? E se a memória estiver sendo reduzida a para apagar vestígios, destruir documentos, negar
abusos e cultivo de comemorações? E se o exces- suas ações. Mas as testemunhas – sobreviventes e
so de lembrança contribuir para a naturalização familiares de desaparecidos – foram tecendo rela-
do vivido? tos na contramão da versão oficial. São memórias
subterrâneas que não se importam de aguardar o
momento propício para se fazer ouvir.
A cultura da memória globalizada A ditadura militar é o acontecimento político
marcante da nossa história recente e se transfor-
A cultura da memória, que também está glo- mou no acontecimento histórico graças à memó-
balizada, propicia que, no Brasil, os temas ligados ria dos que testemunharam o que viram e sofre-
à ditadura freqüentem nosso imaginário e tenham ram. Os militares se encontram em uma posição
acolhida também na imprensa. Porém, a reper- indefensável. Todos os tratados internacionais
cussão da iniciativa do ministro da Justiça de re- reconhecem a tortura como crime contra a hu-
abrir a questão da Lei da Anistia e a punição aos manidade e estes não estão incluídos nas leis de
torturadores remete a uma outra problemática da anistia. A reação de desconforto com a reabertura
memória: a necessidade de passar a limpo o que do tema mostra, na verdade, que ele está longe
aconteceu. E ela independe da memória midiati- de ser resolvido e que segue na pauta da agenda
zada, ou melhor, ela se situa em outro patamar da política nacional.
questão do retorno do passado traumático. O tra-
balho da memória não cessa enquanto há teste- IHU On-Line – Em sua opinião, essa me-
munhas para lembrar com o compromisso de não mória do passado influencia de que forma
deixar esquecer e de alertar para a não repetição a história presente? Esquecer nosso passa-
das atrocidades. Como a história não funciona de do põe em risco a democracia e os direitos
modo linear, de tempos em tempos e sem aviso humanos?
prévio, retorna através de um fragmento de lem- Christa Berger – Essa memória do passado in-
brança. Formamos “comunidades de memória” fluencia de que forma a história presente? Põe
que disputam os sentidos do passado. Neste caso, em risco a democracia e os direitos humanos?
militares e militantes de esquerda formam duas Todorov52, em um magnífico livro chamado Me-
comunidades que vem a público, através da im- morias del mal, tentación del bien, afirma que
prensa, dar sua versão sobre o golpe militar, a di- a memória deve se manter fiel ao passado e ter
tadura, a tortura e a anistia. Aparentemente, na utilidade no presente. E, mais, deve contribuir
disputa com o ministro da Justiça, quem venceu para o esclarecimento do que aconteceu. Como
foram os militares. diz Walter Benjamin53, “nada do que aconteceu
pode ser perdido para a História”. Então, em pri-

O veto de Lula 52 Tzvetan Todorov é um filósofo e lingüista búlgaro ra-


dicado na França desde 1963. Foi aluno de Roland
Barthes nos cursos de Filosofia da Linguagem. Todorov
Eles mandaram encerrar o assunto e até o foi professor da École Pratique de Hautes Études e na
presidente Lula achou melhor não levar adiante Universidade de Yale e Diretor do Centro Nacional de
Pesquisa Científica de Paris (CNRS). Atualmente, é Dire-
o assunto e, o ministro Tarso Genro recolheu sua
tor do Centro de Pesquisa sobre as Artes e a Linguagem
intenção de rever a Lei da Anistia. Mas os milita- da mesma cidade. Seu pensamento direciona-se, após
res deviam saber que não se interrompe o traba- seus primeiros trabalhos de crítica literária sobre poesia
lho da memória com decretos, avisos e ameaças. eslava, para a filosofia da linguagem, numa visão estru-
turalista que a concebe como parte da semiótica (saus-
Se nem mesmo o desejo de esquecer interrompe suriana), fato que se deve aos seus estudos dirigidos por
o fluxo da memória, a interdição alheia, segura- Barthes. (Nota da IHU On-Line)
mente, não tem o poder de obrigar a não lembrar. 53 Walter Benedix Schönflies Benjamin foi um ensaís-
Os militares e os políticos que atuaram junto de- ta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu ale-
mão. Associado com a Escola de Frankfurt e a Teoria Crí-
les apostaram no esquecimento, tinham o poder tica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas

58
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

meiro lugar, é necessário se apropriar do passado mória e a entrevista em que ele fala sobre a in-
do país, conhecer as histórias dos sujeitos que o terpretação dos tratados internacionais acerca da
fizeram assim, para construir o presente e o futu- tortura e sua atuação no caso do ditador chileno
ro. Há um fio que percorre o tempo e os nós pre- Augusto Pinochet55. E alguma coisa sobre o julga-
cisam ser desfeitos para dar sentido a ele. Um dos mento do coronel Carlos Alberto Ustra56, coman-
nossos nós é a tortura de Estado, que foi aprova- dante do DOI Codi paulista entre 1970 e 1974,
da e aplicada pelos governos de então e segue quando 41 militantes perderam a vida e centenas
legitimada. Penso que é preciso esclarecer e punir foram torturadas. Ou seja, neste período houve
os responsáveis para, só então, ter alguma garan- informação sobre o tema.
tia de que, de fato, ingressamos em um tempo A ditadura frequentou, outra vez, o espaço
de respeito aos direitos humanos. Ainda nos falta nobre da imprensa. Sem ter feito uma observa-
passar a limpo este acontecimento e precisamos ção exaustiva e metódica, arrisco afirmar que ela
das testemunhas para identificar os torturadores, foi factual – disse do movimento dos sujeitos no
para que estes sejam julgados e punidos. Neste caso. Ouviu os ministros, os militares, o juiz, o
caso, corremos contra o tempo. presidente da República, identificou de que lado
estavam e enfatizou o conflito. As fontes oficiais
IHU On-Line – Qual o lugar que o jorna- tiveram voz nas matérias. O que não aconteceu
lismo ocupa nesse reavivamento da memó- com as fontes do outro lado – pouco se ouviu dos
ria política traumática? senhora acha que torturados, das suas histórias de família. Também
a mídia está agindo de maneira correta ao faltou o contexto dos acordos internacionais e a
retratar essa questão da punição aos tortu- experiência dos julgamentos dos nossos vizinhos.
radores hoje? Mas o que mais me chama atenção na cobertu-
Christa Berger – Li bons textos na imprensa co- ra do fato é que não houve um questionamento
brindo a manifestação dos ministros Tarso Genro sobre o tom de mando dos militares para o en-
e Paulo Vanucci e a repercussão junto aos milita- cerramento do assunto. Sobre o poder deles no
res. Também da visita do juiz espanhol Baltasar passado e no presente pouco se disse, outra vez.
Garzón54 à exposição Direito à Verdade e à Me-
IHU On-Line – 40 anos após a ditadura,
qual a relevância de rediscutir o assunto?
como Georg Lukács e Bertolt Brecht como pelo místico
judaico Gershom Scholem. (Nota da IHU On-Line)
Christa Berger – Não é o tempo que separa
54 Baltasar Garzón Real é um atuante Magistrado-Juiz o acontecimento passado do presente que lhe dá
Central de instrução do tribunal penal de máxima ins- ou retira relevância. Enquanto um aspecto estiver
tância na Espanha, a Audiência Nacional. Garzón é co- na sombra ele merece retornar. Enquanto há um
nhecido na Espanha como “super-juiz” ou “juiz-estrela”.
Ficou conhecido mundialmente ao emitir uma ordem de testemunho a ser ouvido ainda há o que escutar.
prisão em desfavor do ex-presidente do Chile Augusto
Pinochet pela morte e tortura de cidadãos espanhóis.
Utilizou como base o relatório da Comissão Chilena da 55 Augusto José Ramón Pinochet Ugarte foi um ge-
Verdade (1990-1991). Inúmeras vezes manifestou seu neral do exército chileno, presidente do Chile e poste-
desejo de investigar o ex-secretário de Estado norte- riormente senador vitalício de seu país. Cargo este que
-americano Henry Kissinger por sua relação com a de- foi criado exclusivamente para ele, por ter sido um ex-
nominada Operação Condor. Trabalha também em um -governante de seu país. Governou o Chile entre 1973 e
processo em que se acusa de genocídio diversos milita- 1990, com poderes de ditador, depois de liderar um gol-
res argentinos pelo desaparecimento de cidadão espa- pe militar que derrubou o governo do presidente socia-
nhóis durante a ditadura argentina (1976-1983). Em lista legalmente eleito, Salvador Allende. (Nota da IHU
2001, solicitou permissão ao Conselho da Europa para On-Line)
processar o Primeiro-Ministro italiano Silvio Berlusconi, 56 Carlos Alberto Brilhante Ustra é um coronel refor-
então membro da Assembléia parlamentar do Conselho. mado do Exército Brasileiro. Comandou de setembro de
Em janeiro de 2003, criticou enfaticamente o governo 1970 a janeiro de 1974, o DOI-Codi de São Paulo, órgão
dos EUA pela detenção ilegal, na base de Guantánamo de repressão aos grupos de tendência política marxista
(Cuba), de suspeitos de pertencerem ao grupo terrorista envolvidos na luta contra o regime militar brasileiro ini-
Al Qaeda. Nesse mesmo ano, participou de campanhas ciado no ano de 1964, após um golpe de estado. (Nota
contra a guerra no Iraque. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

59
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

No Brasil, ainda há muitas ausências. Sequer to- Se esperaria que as instituições brasileiras
dos os desaparecidos foram localizados. E a pas- estivessem de acordo sobre a importância de
sagem da descoberta do que aconteceu a um per- passar a limpo este passado para efetivamen-
seguido para o julgamento das responsabilidades te ingressar em outro tempo. Passagem, aliás,
está muito aquém do esperado. Falta transformar que não se faz sem traumas, dor e sofrimen-
o acontecimento histórico em acontecimento jurí- to. Mas o que vemos é uma reação descabi-
dico. O que já aconteceu em outros países como da dos militares na defesa do esquecimento.
a Argentina e o Chile, em que, inclusive, coman- Penso que há jovens militares, sem vínculo
dantes foram julgados e presos. História e justiça com este passado, que poderiam estar aptos
têm regimes de legitimação distintos. A História e a enfrentar a História, mas a atitude deles, ao
a memória afirmam que houve tortura no Brasil, negar a responsabilidade dos seus hierarcas
mas ela ainda é negada ou “explicada”: se hou- ou de chamar o debate de inoportuno, mos-
ve tortura foi por indisciplina e deformação dos tra a dificuldade deste setor da sociedade bra-
subalternos. O fato de ir a julgamento deslocaria sileira em querer esclarecer o passado. Eles
a suspeita, pois, para ser julgado, há indícios de defendem uma “comunidade de memória”
que aconteceu. para reivindicar o esquecimento.

60
A ditadura e a cultura do medo

Entrevista com Paulo Abrão

“A ditadura como um todo nos relegou uma te, leciona na Faculdade de Direito da Pontifí-
cultura do medo instalada no sentido de que de- cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
terminados assuntos não podem ser debatidos”, – PUCRS. É organizador de várias obras, entre
afirma o presidente da Comissão Nacional de elas Anais do II Congresso Internacional Trans-
Anistia e secretário nacional do Ministério da Jus- disciplinar Ambiente e Direito (Porto Alegre: Edi-
tiça, Paulo Abrão, na entrevista que concedeu por pucrs, 2005).
e-mail à repórter Márcia Junges da IHU On-Line,
edição 358 de 18 de abril de 2011. Outro legado IHU On-Line – Quando e por que surgiram
negativo daqueles anos de chumbo é parcela da as Caravanas da Anistia, o projeto Marcas
atual corrupção brasileira, que conseguiu se ins- da Memória e o Memorial da Anistia do
talar naquele tempo em função da censura, uma Brasil? O que cada um deles objetiva?
vez que ninguém poderia “questionar as autori- Paulo Abrão – Todos estes projetos têm uma raiz
dades públicas”. Segundo Paulo, “a dignidade comum no ano de 2007, na gestão do ministro
do perseguido político necessita ser resgatada e Tarso Genro, quando uma nova equipe assume a
restaurada no local onde ela foi ferida no seio da- Comissão de Anistia com a missão de aproximar
queles que os estigmatizaram no passado causan- a temática da juventude e evitar que o processo
do sofrimento”. Analisando o motivo pelo qual o de reparação, que é por excelência um processo
espólio das ditaduras do Brasil e seus vizinhos fo- de reconciliação moral e de educação, se transfor-
ram conduzidos de forma tão diversa, explica: “É masse em uma pauta eminentemente econômica.
evidente que Argentina e Chile fizeram muito na Em 2008 lançamos as Caravanas e começamos
área de memória, mas o Brasil hoje possui, sem a trabalhar no Memorial da Anistia, que deve ser
nenhuma dúvida, o maior programa de repara- entregue à sociedade no final de 2012. O Marcas
ções já empreendido desde o final da II Grande da Memória surgiu de uma demanda prática: a
Guerra, além de estar avançando na consolida- Comissão passou a receber e atender muitos pe-
ção de políticas de segurança cidadã. Realmente didos da sociedade civil, até perceber que orga-
existem déficits, mas é importante procurarmos nizar um edital e fomentar tais projetos de forma
olhar para nosso processo como diferente, e não orgânica seria o modo mais eficiente de garantir
como inferior a de nossos vizinhos”. uma difusão democrática das diversas memórias
Paulo Abrão é graduado em Direito, pela do período, em especial a memória das vítimas.
Universidade Federal de Uberlância – UFU, além
de mestre e doutor em Direito pela Unisinos e IHU On-Line – Em que aspectos esses pro-
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de jetos ajudam-nos a recuperar e manter a
Janeiro – PUC-Rio, respectivamente. Sua disser- memória de um dos períodos mais violen-
tação intitulou-se O poder judiciário em busca do tos de nosso país?
Estado Democrático de Direito: crise (diagnóstico Paulo Abrão – Cada um dos três projetos en-
e versões) e transição paradigmática. Atualmen- foca a memória desde um ângulo. As Caravanas

61
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

levam as histórias reais de diversos indivíduos de conservadorismo do judiciário e a proliferação


volta à cena local pública, para que sejam conhe- de centenas de causas para a sociedade civil lutar
cidas e reconhecidas pela sociedade em seu en- após a democratização, configurou-se um qua-
torno. A dignidade do perseguido político neces- dro em que as pautas transicionais levaram mui-
sita ser resgatada e restaurada no local onde ela to tempo para emergir. Os direitos da transição
foi ferida no seio daqueles que os estigmatizaram tornaram-se secundários diante da explosão de
no passado causando sofrimento. O Memorial é direitos da Carta Cidadã. De todo modo, o tempo
um local de reparação coletiva, que religa as uto- é uma variável que pode se tornar em um grande
pias interrompidas pelo Golpe com a vida política aliado em matéria de justiça de transição.
do presente, restabelecendo elos democráticos
em nossa história. O Marcas da Memória permite IHU On-Line – Como podemos com-
aos próprios perseguidos contarem sua história, preender nossa democracia se esse acerto
com meios técnicos e financiamento apropriado. de contas ainda não foi realizado?
A vozes caladas no passado autoritário agora têm Paulo Abrão – A democracia é um processo em
vez na democracia. O objetivo, sobremaneira, é permanente construção. Por isso é que, ao iden-
democratizar a própria memória e permitir que tificarmos déficits, devemos procurar atacá-los.
ela seja construída para além dos relatos oficiais Um dos déficits postos é o de que ainda não con-
constantes nos parcos arquivos da repressão dis- seguimos sinalizar nitidamente a não repetição
ponibilizados. Esta memória pertence ao país, e da mesma violência do passado e o repúdio aos
não a um ou outro cidadão ou grupo político. crimes de lesa-humanidade em qualquer tempo,
em qualquer circunstância. Estamos em busca do
IHU On-Line – Qual é a pior herança deixa- melhor legado ético civilizacional pós-Nuremberg.
da pelos torturadores?
Paulo Abrão – Principalmente a percepção de IHU On-Line – Por que praticamente todos
que em alguns contextos a tortura é admissível. nossos países vizinhos já abriram seus ar-
A ditadura como um todo nos relegou uma cul- quivos e dialogaram com sua história de
tura do medo instalada no sentido de que de- totalitarismos e nós ainda não o fizemos?
terminados assuntos não podem ser debatidos. A Paulo Abrão – Temos que saber relativizar esta
estigmatização, até os dias de hoje, das formas de afirmação. Cada um de nossos vizinhos abor-
participação dos cidadãos no espaço público, na dou seu passado por um ângulo. É evidente
vida política e nos movimentos sociais é outro le- que Argentina e Chile fizeram muito na área de
gado nocivo. Parcela da corrupção e suas práticas memória, mas o Brasil hoje possui, sem nenhu-
atualmente existentes foram instaladas naquela ma dúvida, o maior programa de reparações já
época onde vigia a censura e que ninguém podia empreendido desde o final da II Grande Guer-
questionar as autoridades públicas. Ainda temos ra, além de estar avançando na consolidação de
espaços governamentais nas esferas federativas políticas de segurança cidadã. Realmente existem
pouco transparentes. déficits, mas é importante procurarmos olhar para
nosso processo como diferente, e não como infe-
IHU On-Line – Por que o Brasil tem dificul- rior a de nossos vizinhos, de maneira que possa-
dade em fazer as contas com seu passado mos enfrentá-los (os déficits), considerando não
autoritário? apenas a experiência que eles desenvolveram,
Paulo Abrão – Cada país tem uma conjuntura e mas também aquilo que temos de melhor.
um modo de enfrentar o passado. A cultura políti-
ca brasileira, da grande conciliação entre as elites, IHU On-Line – Em que sentido é preciso
acaba em certa medida induzindo e consolidando reinterpretar a Lei de Anistia?
uma ideia geral de que alguns temas – por mais Paulo Abrão – No sentido de a tornar compatível
relevantes que sejam – saiam de pauta e não se- com nossos compromissos constitucionais e com
jam discutidos. Somando-se a isso o quadro de os tratados internacionais de direitos humanos. O

62
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cenário agora é o seguinte: o STF é, de fato, a que diferencia o Estado de Direito das ditaduras.
mais alta corte do nosso Judiciário e declarou a Deixar de apurá-los é que é algo autoritário e ex-
lei válida para todos os crimes do terrorismo de cludente para parcela da sociedade. A proposta
Estado. Porém, a competência para o julgamento “vingativa” seria a de submeter os algozes a atos
dos crimes de tortura sistemática e generalizada análogos aos que perpetraram. O que realmente
– que consistem em crimes internacionais – é da os perseguidos políticos buscam é, simplesmen-
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Pre- te, que o Estado processe os crimes na forma da
sente na Declaração Universal dos Direitos do Lei (até na hipótese de que uma anistia impeça
Homem de 1948, a dignidade da pessoa humana o cumprimento da pena). Ainda, a condenação
constitui bem jurídico de proteção transnacional moral é algo valioso para as vítimas, pois demons-
e não mais direito de amparo tão somente inter- tra que a morte, o desaparecimento e a tortura a
no. A Corte Interamericana de Direitos Humanos qual foram submetidos seus familiares ou a si pró-
declarou a lei de autoanistia brasileira inválida. prios não é um ato que passa despercebido para
A exemplo de outras condenações, esta sentença o restante da humanidade. A percepção de que a
deve ser cumprida e o Brasil deve investigar e le- democracia é distinta da ditadura e reconhece o
var a julgamento as violações aos direitos huma- direito à proteção judicial das pessoas lesionadas,
nos cometidas durante a ditadura. Eis o desafio além de sinalizar que a justiça é a mesma para
posto para o poder Judiciário resolver. todos, é uma questão de princípio.

IHU On-Line – Quais são os principais de- IHU On-Line – A lista dos desaparecidos
safios que essa nova interpretação traz? O políticos no Brasil é extensa, mas não con-
que mudará em relação àqueles que tortu- templa os desaparecidos indígenas que
ram e os que foram torturados? opuseram resistência aos militares.57 Como
Paulo Abrão – Nada muda a tortura. O que uma podemos compreender isso?
eventual reinterpretação promove é uma sinaliza- Paulo Abrão – Muitas formas de perseguição
ção dupla, para o passado e para o futuro: para o política são pouco registradas. O fato central é
passado, é um gesto de reconhecimento em rela- que demandas transicionais, assim como de-
ção às vítimas e seu direito à verdade, à memória mandas por reconhecimento, dependem fun-
e à justiça; para o futuro, um sinal de que a tortu- damentalmente da mobilização da sociedade
ra, em nenhuma hipótese, será tolerada. civil. É a sociedade civil quem, no jogo democrá-
tico, mais influencia a tomada de decisões tran-
IHU On-Line – Não se trata de vingança, sicionais, e isso é verdadeiro para qualquer con-
mas de justiça o fato de se punir os cri- junto de pessoas violadas. Sobre a perseguição
mes cometidos contra a humanidade no política aos povos indígenas tivemos uma reunião
período da ditadura brasileira. Poderia com o presidente da Funai para tratar do assun-
comentar essa diferença de interpretação to e teremos novidades sobre isso no futuro. Há
quanto ao que realmente significa punir os muitas outras histórias ainda veladas.
torturadores?
Paulo Abrão – Responsabilizar crimes na forma
da lei nunca será uma forma de vingança. É isso

57 A pergunta se baseia na notícia Índios Waimiri-Atroari desa-


parecidos na Ditadura, disponível em http://grem.io/8ed.
(Nota da IHU On-Line)

63
Os 30 anos da anistia no Brasil

Entrevista com Jair Krischke

Qual o maior legado dos crimes políticos da tal ligada aos Direitos Humanos da Região Sul) e
época da ditadura no Brasil? A impunidade, se- o Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno.
gundo o historiador Jair Krischke, coordenador
do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. IHU On-Line – Qual a importância de
Ele concedeu a entrevista que segue, por telefo- lembrar os 30 anos da anistia política no
ne, à IHU On-Line e publicada no sítio do IHU Brasil?
em 31 de agosto de 2009, onde fez uma análise Jair Krischke – A importância é de examinar-
da lei de anistia no Brasil em função de seus 30 mos com toda a tranquilidade, passados 30 anos,
anos. Para Krischke, uma das dívidas que o país e vermos o quanto ainda estamos devendo à so-
tem com a sua cidadania e com a sua história é ciedade brasileira.
a abertura dos arquivos, “que deveria fazer par-
te do conjunto de anistia, para saber quem fez IHU On-Line – Qual a herança que perma-
o que, quem foram os torturados, quem foram nece ainda hoje dos crimes políticos da
os desaparecedores, para termos memória. Que época da ditadura?
democracia é essa que não é capaz de resistir à Jair Krischke – Lamentavelmente, o maior le-
abertura dos arquivos? Temos que enfrentar isso”. gado é a impunidade. E isso é muito importante
Jair é enfático quando defende que “não precisa- porque, quando se fala no Brasil de impunida-
mos revisar a Lei da Anistia. O que nós precisa- de – e é verdade, somos o país da impunidade
mos é lê-la com atenção. Só isso”, para interpretá- – muitas vezes se esquece de examinar que essa
-la corretamente e entender que a anistia não foi impunidade nasce quando se quer cobrir, colo-
dada para todos, como muitos querem entender. car um manto de esquecimento, sobre aqueles
E sobre o exílio ele dispara: “a volta do exílio é que violaram os direitos humanos, e o fizeram
terrível, porque a pessoa nunca volta para o mes- enquanto agentes do Estado. Isso é muito grave.
mo país. O desexílio, em muitos e muitos casos, é Esta impunidade, em geral, que hoje vivemos,
um novo exílio”. Ele ainda fala sobre a derrubada tem sua origem seguramente por aí. Quando se
de Salvador Allende do governo do Chile, em se- deixam impunes os agentes do Estado, que prati-
tembro de 1973, e declara: “a ditadura brasileira caram crimes de lesa-humanidade, estamos dian-
tinha um papel muitíssimo mais além do que o te de um mal contagioso, que vai se alastrando
governo americano no golpe chileno”. e se propagando pela sociedade brasileira. Se
Jair Krischke é graduado em História pela é permitido impunemente cometer verdadeiras
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua barbaridades, então é claro que outros crimes que
como ativista dos direitos humanos no Brasil, Ar- são menores não tem porque serem punidos. E
gentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, ele a anistia, lamentavelmente, foi incompleta. Nós
fundou o Movimento de Justiça e Direitos Huma- lutamos sempre por uma anistia ampla, geral e
nos (a principal Organização Não-Governamen- irrestrita. E isso não aconteceu. Temos que fazer

64
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

leis no país para alcançar aquele segmento que missão de reparação. Há um mal produzido pelo
ficou desamparado. Estado. E essa reparação está sendo feita, mes-
mo que muito lentamente. Eu gostaria que fosse
IHU On-Line – Quais os principais limites bem mais rápida. As pessoas estão ficando velhas
da Lei da Anistia? 30 anos depois, é preci- e morrendo. Elas precisam desta reparação para
so de uma revisão? continuar sobrevivendo e ter um fim de vida com
Jair Krischke – Nós não precisamos revisar a um pouco de qualidade. E está demorando.
Lei da Anistia. O que nós precisamos é lê-la com
atenção. Só isso. Porque há um discurso tendo IHU On-Line – Como o senhor vê a questão
especialmente como vertente as forças armadas, do exílio comparando a situação de gran-
inclusive os militares “de pijama”, de que ambos des líderes políticos com o povo simples,
os lados foram anistiados. Mas não é isso o que que precisou se exilar muitas vezes dentro
está escrito na Lei da Anistia. Porque aqueles que do próprio país?
se rebelaram contra a ditadura e que lutaram con- Jair Krischke – Há exílios e exílios. Ah, isso é
tra a violação à Constituição e que tomaram em incrível. Há exílios em que as criaturas, por terem
armas, estes não foram anistiados. A lei dizia que melhores condições, viveram fora do país, o que
os crimes de sangue não foram anistiados. Vários já é um sofrimento, mas puderam ter boas condi-
e vários companheiros meus ficaram nas prisões. ções de vida. Alguns, por terem uma capacidade
Mesmo depois de 28 de agosto. Em fevereiro de econômica para sobreviver no exterior; outros,
1980, houve uma greve de fome porque ainda tí- por sua qualificação profissional, foram ser pro-
nhamos presos políticos. No entanto, não foi tudo fessores, foram trabalhar na UNESCO, na ONU,
igual para todos. Quero saber qual o militar, qual o que lhes facilitou o exílio. Mas há um número
o agente do Dops, qual o membro da repressão grande, especialmente de gente jovem, que teve
política que passou cinco segundos numa prisão que sair do país ainda estudante, que ainda não
neste país. Nenhum. Na Declaração dos Direitos tinha uma formação profissional completa. E es-
do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, tes tiveram que comer o “pão que o diabo amas-
há um artigo que fala sobre o direito à rebelião. sou” no exterior. Sofreram muito. E há aqueles
O cidadão tem o direito, frente a uma situação que ficaram aqui no país. Alguns clandestinos,
de opressão, a se rebelar. E o rebelar-se significa, que até trocaram de nome. Eu conheço casos
inclusive, tomar em armas. Então, é preciso ler a de companheiros nossos aqui do Rio Grande do
Lei da Anistia com atenção. Sul que viveram em vários locais do Brasil, que
Por outro lado, temos ainda um setor que trocaram de nomes, tiveram filhos nesse período,
não foi anistiado: os familiares dos desaparecidos. foram registrados com nomes falsos, e de repente,
Porque até agora eles não sabem onde estão os acossados pela repressão, tiveram novamente que
restos mortais dos seus entes queridos. E este di- mudar de estado, trocar os nomes, bem como o
reito mais do que milenar, histórico da humanida- nome dos filhos. E depois, para regularizar a situ-
de, de prantear os seus mortos, a eles ainda não ação, não é fácil.
foi permitido. Portanto, os familiares dos desapa-
recidos até o dia de hoje não foram anistiados. IHU On-Line – Qual o destino dessas pes-
Isso é algo que clama por justiça. Ainda dentro soas? O que aconteceu com elas depois do
deste processo de anistia, aqueles que tiveram exílio?
suas vidas profissionais destruídas pelo exílio – o Jair Krischke – A volta do exílio é terrível, por-
mais longo da história do Brasil -, em alguns seg- que a pessoa nunca volta para o mesmo país. O
mentos, ainda hoje, não resolveram seus proble- desexílio, em muitos e muitos casos, é um novo
mas. E isso vai se arrastando. Há hoje, sim, uma exílio. Quando a pessoa saiu do seu país a situ-
lei de reparação. E quem examina as reparações é ação era uma, e quando volta todas as coisas se
uma comissão que se diz de anistia. Mas anistia já modificaram, pois a dinâmica do tempo se encar-
é o que existe hoje. Estamos falando de uma co- rega de fazer isso. Geralmente os pais faleceram,

65
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

bem como os irmãos, os amigos. A pessoa chega universo de mais de 600 a serem julgados. No
para viver no local que não é mais o mesmo que Uruguai hoje temos presos o último presidente da
ela deixou. O círculo de convivência também não ditadura (general Gregório Álvarez), e vários co-
é mais o mesmo. Então, é um novo exílio. Vou ronéis e generais. No Chile temos generais presos.
contar um caso, mas não vou citar o nome da E, no Brasil, nem o cabo da guarda é molestado.
pessoa, porque é um jornalista muito reconheci- Então, a memória é importante porque ela não
do no Brasil. Quando ele chegou do exílio, me significa olhar para trás, mas para frente.
disse que iria comprar uma das casas grandes do
bairro Teresópolis para viver ali. E juro que não IHU On-Line – E qual sua opinião sobre a
tive coragem de dizer para ele que aquelas casas abertura dos arquivos da ditadura?
não existiam mais, porque tudo tinha ido abaixo Jair Krischke – A outra dívida que o país tem
e havia ali edifícios. Esta mesma pessoa voltou do com a sua cidadania e com a sua história é a
exílio, ficou aqui uns dois anos e não aguentou. abertura dos arquivos, que deveria fazer parte do
Foi refazer o exílio. Viveu um tempo em Buenos conjunto de anistia, para saber quem fez o que,
Aires, depois foi para o México, Portugal, lugares quem foram os torturados, quem foram os desa-
onde ele tinha andado no exílio. A pessoa não se parecedores, para termos memória. Que demo-
encontra mais. A volta é muito problemática do cracia é essa que não é capaz de resistir à abertura
ponto de vista afetivo e cultural. É um segundo dos arquivos? Temos que enfrentar isso.
exílio, mesmo estando no país e na cidade natal.
É muito doloroso. É a segunda dor. IHU On-Line – Como o senhor vê a questão
de que o presidente Médici teria se aliado
IHU On-Line – Como o senhor analisa a aos EUA para derrubar o governo de Salva-
questão da memória em relação à ditadura dor Allende, a pedido de Nixon?
e à tortura? O senhor entende esse período Jair Krischke – Essa informação saiu na im-
como obscuro na história brasileira? prensa, mas está incompleta. O informe completo
Jair Krischke – É de uma escuridão atroz. A é bem mais amplo. Foi o seguinte: o presidente
memória é fundamental para se consolidar o pro- Médici foi falar com Nixon e com Kissinger e ge-
cesso de redemocratização. Se não tivermos uma ralmente estava presente o general Vernon Wal-
memória clara, bastante sólida do que aconteceu ters – figura muito importante no golpe aqui no
nesse período, afinal foram 21 anos de ditadura, Brasil, pois era muito vinculado aos militares bra-
nossa democracia será sempre capenga e frágil. sileiros, especialmente aqueles que foram comba-
Tenho uma inveja da Argentina, do Uruguai, do ter na segunda grande guerra, na Itália. O general
Chile, que vão abrindo esse espaço da memória, Walters falava português. Em 1964, quando do
que vão tratando do assunto de forma muito am- golpe do Brasil, ele era nada mais, nada menos,
pla, não só no âmbito governamental. Por exem- do que o adido militar norte-americano aqui. Um
plo, há uma produção literária e acadêmica fan- dos assuntos que foram tratados nesse encontro
tástica nesses países sobre o período da ditadura. foi a eleição no Uruguai. Eu tenho documentos
O que tem de filmografia é outra coisa impressio- sobre isso. Médici foi tratar disso. Porque havia
nante. O pequenino Uruguai, com três milhões de sido constituída a Frente Ampla e, assim, pode-
habitantes, o que produz em livros e documentá- ria se chegar a um governo de esquerda, o que
rios sobre o tema ultrapassa em muito o Brasil. não era permitido. E o Brasil atuou fortemente
Isso tudo é memória. Ao mesmo tempo, no âmbi- aí, intervindo na eleição uruguaia. A outra ques-
to do Estado, os grandes repressores da Argentina tão tratada entre eles foi a situação do Chile, que
estão presos. As menores penas são de 25 anos já era um fato concreto: Salvador Allende, um
de prisão e alguns generais receberam como pena socialista, estava no governo. Isso causava um
a prisão perpétua. Nesse momento, a Argentina desconforto imenso para o Brasil, especialmente
tem mais de 420 condenações de repressores. porque, naquele momento, nós tínhamos mais de
E há processos em andamento que atingem um cinco mil brasileiros exilados no Chile. E muito

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

bem tratados. Por isso, o Brasil agia fortemente Jair Krischke – Isso foi fruto de um projeto, com
para derrubar o governo de Salvador Allende. E uma matriz ideológica e econômica. Os países da
direi agora coisas que a imprensa não publicou região tinham que ficar vinculados economica-
sobre esse assunto. O embaixador brasileiro, em mente, gravitando em torno dos interesses eco-
Santiago do Chile, Câmara Canto, trabalhou per- nômicos norte-americanos. Havia o seguinte viés
manentemente tramando o golpe. Quando do econômico: nós temos que fornecer matérias-pri-
golpe no Chile, dia 11 de setembro de 1973, a mas baratas para os EUA e temos que comprar
embaixada brasileira, que é um prédio lindíssimo produtos manufaturados somente dos EUA. A
do patrimônio histórico do Chile, estava com as questão ideológica envolvia o comunismo e a es-
luzes todas acesas e o nosso embaixador fazia querda, para o que se dizia “não”. Esse era o pen-
um brinde e dizia solenemente “ganamos!”. Ele samento dos EUA e começaram a imprimi-lo na
foi uma figura tão importante no golpe do Chile, região. O primeiro país a adotar esse pensamento
que era considerado o quinto homem da junta foi o Brasil, em 1964. O golpe militar ocorrido
militar que tomou o poder. O Brasil foi o primei- naquele ano trouxe como a grande novidade a
ro país a reconhecer os golpistas. Nós temos hoje doutrina da segurança nacional. Daqui, se con-
informações muito boas de como o Brasil agia. O taminou toda a região. O Brasil influiu no golpe
Médici não só tramou com Nixon, mas também do Uruguai, que foi em junho de 1973; no golpe
executou. Isso é tão interessante. Existem relatos do Chile, em setembro do mesmo ano; no golpe
no Senado dos EUA em que um ex-embaixador da Bolívia, em que forneceu armas e munição e
conta que o embaixador brasileiro Câmara Canto deu o apoio logístico para os militares golpistas
o convidava para reuniões com outros embaixa- bolivianos. Claro que o Brasil, como introdutor
dores tratando do golpe. E há um livro publicado da doutrina da segurança nacional teve um papel
por um outro embaixador americano no Chile muitíssimo importante para concorrer na derru-
sobre o mesmo assunto. Médici tinha um papel bada da democracia dos países vizinhos e intro-
protagônico. A ditadura brasileira tinha um papel duzir a nova doutrina. Depois, nos processos de
muitíssimo mais além do que o governo america- transição, de novo o Brasil jogou um papel impor-
no no golpe chileno. tante, fazendo a transição controlada. Conversan-
do com algumas pessoas que conheceram bem
IHU On-Line – Por que o Brasil tinha tanto a realidade do período, acabei descobrindo por-
interesse na derrubada de Allende? que João Figueiredo não entregou a faixa para o
Jair Krischke – Porque no Brasil havia a vigên- Sarney: porque Sarney era um traidor. Ele tinha
cia da doutrina da segurança nacional, que trata sido da Arena e depois traiu. Figueiredo teria dito
do que se chama de “espaço vital”. O Brasil queria que se fosse para Tancredo Neves ele entregaria
ser hegemônico na América Latina e entendia que a faixa, mas para o traidor do Sarney, não. Inte-
as fronteiras não eram só geográficas. Eram tam- ressante, não?
bém ideológicas. Não podia ter muito próximo de
si um país cujo governo fosse socialista. Não podia IHU On-Line – Muito, ainda mais neste
ter lá uma sociedade que servisse de modelo de momento...
contestação ao que vinha sendo feito no Brasil. Jair Krischke – Exatamente.

IHU On-Line – Ou seja, existia uma preocu- IHU On-Line – A partir deste tema, como o
pação com o crescimento de uma política senhor se sente em relação a sua luta pelos
de esquerda na América Latina? direitos humanos?
Jair Krischke – Exatamente. É essa a questão. Jair Krischke – Você me pegou num bom mo-
mento. Eu já andava meio abatido na minha luta,
IHU On-Line – Que relação pode ser es- porque o tempo vai passando e ele é muito cruel
tabelecida entre a queda de Allende e de por isso. Não vejo muitos avanços no Brasil. Fico
João Goulart? olhando para os países vizinhos, em que as coi-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sas estão andando e não vejo aqui se abrirem mas o de sequestro com desaparecimento, não.
os arquivos, nem punir os que torturaram. Isso Isso é crime permanente. Ou o desaparecido apa-
vai acabrunhando a gente. Mas agora, dia 06 de rece, ou o seu cadáver. Enquanto não acontece
agosto, no Supremo Tribunal Federal, nós tivemos nem uma coisa nem outra, o crime continua. E
uma vitória fantástica, importantíssima e que vai Cordero respondia por onze desaparicimentos e
ter reflexos fortíssimos no Brasil. É que aqui no uma apropriação de menor de idade. Por estes
Rio Grande do Sul, em Santana do Livramento, crimes é que o Brasil concedeu a extradição para
está um coronel do Exército do Uruguai, chama- a Argentina. Isso significa que, ao conceder essa
do Manoel Cordero, que é um condor, que matou extradição, o nosso STF reconheceu que os cri-
ou desapareceu com mais de 100 pessoas. Esta- mes de desaparicimento estão em vigência. E que
va aqui escondido e nós o localizamos. Foi uma aqueles brasileiros que fizeram desaparecer pes-
luta minha de cinco anos. Ele foi preso aqui, em soas ainda hoje podem ser processados. Foi uma
2007, para ser extraditado. É claro que os crimes vitória fantástica. Lamentavelmente a imprensa
de homicídio estão prescritos, pois são de 1986, tem tratado mal este assunto.

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“É imoral igualar o terrorismo do Estado brasileiro
à luta que se empreendeu contra ele”

Entrevista com José Carlos Moreira da Silva Filho

“Não havia uma ameaça comunista nos ter- tância histórica é grande, porém insuficiente: “Ela
mos colocados hoje pelos militares. Eles se vêem ainda está acontecendo, é um processo em curso,
como salvadores da pátria, imaginando que se pois envolve diversos outros elementos que estão
não fosse sua interferência, cairíamos numa dita- inseridos dentro do conceito de justiça de tran-
dura comunista. Isso é totalmente falso”, explica o sição”. Uma coisa, entretanto, deve ficar clara,
advogado José Carlos Moreira da Silva Filho, na admitida com todas as letras: torturar é errado,
entrevista exclusiva que concedeu por e-mail à jor- e a sociedade precisa acompanhar os julgamentos
nalista Márcia Junges da equipe da IHU On-Line daqueles que praticaram esses crimes contra a hu-
e publicada no sítio do IHU em 12 de janeiro de manidade. “Se não houver um julgamento e uma
2010. Discutindo uma ideia do também advoga- reprovação pública desses atos, qual é a mensa-
do Jacques Alfonsin, o professor da Unisinos diz gem que estamos passando? De que não é errado
que beira a imoralidade a tentativa de igualar o torturar, de que não importam os meios com os
terrorismo empreendido pela ditadura militar bra- quais se obtenha a verdade, mas sim os fins”.
sileira, com a reação dos grupos de esquerda para José Carlos Moreira da Silva Filho é mestre
combatê-lo. “Não havia nenhum grupo armado, em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade
pronto, preparado para tomar o poder e construir Federal de Santa Catarina – UFSC, doutor em Di-
uma ditadura comunista aqui. O único grupo ar- reito das Relações Sociais pela Universidade Fe-
mado pronto a tomar o poder de forma ditato- deral do Paraná – UFPR. Atualmente é professor
rial eram os militares, e eles não hesitaram em da Faculdade de Direito da Pontifícia Universida-
fazê-lo”. Ele continua, explicando que os militares de Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Con-
implantaram um estado ilegítimo, acabando com selheiro da Comissão de Anistia do Ministério da
o estado de direito, e para isso contaram com o Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos
apoio de vários setores da sociedade. “Aqueles sobre Internacionalização do Direito e Justiça de
que atuaram na resistência armada lutavam para Transição – IDEJUST.
restabelecer o estado de direito e acabar com a
ditadura”, frisou. A respeito do III Plano Nacio- IHU On-Line – Em que medida o Programa
nal de Direitos Humanos (PNDH), Moreira Filho Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)
enfatiza o direito dos cidadãos à memória e à promove o direito dos cidadãos à memória
verdade, pontuando que é direito da sociedade e à verdade?
brasileira saber o que houve. “Isso é fundamental José Carlos Moreira da Silva Filho – Essa é
para se ter uma narrativa verdadeira, adequada uma grande inovação dos Planos Nacionais de
e que esteja focada nas nossas perdas, lutos. Só Direitos Humanos, sobretudo no que se refere a
rememorando esses fatos poderemos colocá-los políticas públicas no Brasil, que estejam voltadas
no lugar social que ele merece e poderemos evi- aos direitos humanos. Tem sido um grande pro-
tar a repetição da violência, que se coloca quase blema do país não prestar atenção à memória e
de uma forma espontânea, automática”. Com à verdade e perceber o quanto isso está ligado e
relação à Lei de Anistia, pondera que sua impor- conectado a todas as outras questões vinculadas

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

aos direitos humanos, especialmente à violência, e surpreendi-me ao me deparar com um giná-


que continua muito intensa. Então, entendo que sio chamado Presidente Médici. Curiosamente,
o PNDH já tem um mérito, de saída, por ter pre- sem saber dessa polêmica que havia sido de-
visto um foco específico sobre essa questão. Den- flagrada, comentei o fato com minha esposa,
tro desse foco específico, há inúmeros temas que espantado como é que ninguém se dava conta
foram ali propostos, das quais eu destacaria dois, disso, ninguém se manifestava. Quando che-
exatamente aqueles que estão causando maior guei em Porto Alegre, vi a notícia estampada
rebuliço em alguns setores do Estado: nas páginas dos jornais.
1) A criação da Comissão Nacional de
Verdade; IHU On-Line – Por que motivos a Lei de
2) A proibição de colocar em logradouros, Anistia precisa ser reinterpretada?
monumentos ou obras públicos nomes de pessoas José Carlos Moreira da Silva Filho – Falar
que estavam à frente da ditadura militar no Brasil, em revisão da Lei de Anistia causa muito mais
ou que colaboraram com ela de alguma forma. impacto na mídia do que aquilo que efetivamente
Além disso, se propõe que se mude o nome de está se propondo, que é interpretá-la de maneira
estradas, obras, rodovias e monumentos que já correta. A Lei não fala em anistia a torturadores,
possuem esses nomes. a agentes do governo que cometeram crimes co-
São propostas bem ousadas, tendo em vista muns ou contra a humanidade, como é o caso
o contexto do Brasil, que ainda está muito aquém da tortura nesse contexto. Na verdade, a Lei de
da adequada conscientização da importância Anistia não abriga esses casos. Não se trata, por-
dessas ações e questões. O outro passo em re- tanto, de revê-la. É preciso lembrar, também, que
lação a isso é dar concretização a tais iniciativas. aqueles que resistiram ao governo autoritário op-
No entanto, já fiquei, num primeiro momento, es- tando pela luta armada, nem estavam sob o abri-
perançoso, porque se decidiu fazer a Comissão go da Lei de Anistia de 1979. Muitos dizem que
Nacional de Verdade por iniciativa de lei, e não está se querendo revolver a Lei de Anistia, então
por decreto presidencial. Se isso acontecesse, a agora deverão ser julgados e apreciados os ca-
Comissão teria muito poucos poderes e possibili- sos dos militantes de esquerda mais radicais que
dade de efetiva ação. É claro que um projeto de pegaram em armas, ou que cometeram atos que
lei a ser discutido no Congresso irá sofrer vários esse grupo chama de atos de terrorismo, e não
riscos, inclusive de ser barrado e ter várias forças atos de resistência a um Estado ilegítimo. Ao dizer
contrárias que irão impedir que seja devidamente isso, esquecem que essas pessoas já foram perse-
discutido, debatido e aprovado. Particularmente, guidas, julgadas, presas, mortas, desaparecidas,
acho que a melhor opção seria uma Medida Pro- hostilizadas e que não foram anistiadas, porque a
visória (MP), que tem força de lei e que exige um Anistia excluía explicitamente aqueles que se en-
rito mais urgente na votação por parte do Con- volveram em crimes de sangue.
gresso Nacional. Por outro lado, é preciso um pe- No entanto, a sociedade mal sabe o nome da-
ríodo de debates e discussão sobre isso. queles que agiram sob o abrigo de instituições do
Como disse, só o fato de ter aparecido num Estado. Esses sujeitos não sofreram nenhum tipo
programa do Estado brasileiro não só essa ques- de investigação, e nada aconteceu com eles, refor-
tão, mas aquela que se refere aos nomes de dita- çando uma sensação de impunidade das forças de
dores e torturadores em monumentos, ruas, ave- segurança pública, que até hoje nos persegue.
nidas e pontes públicos é algo importante. Isso
sempre me incomodou, mesmo antes de estar IHU On-Line – Que aspectos sociais estão
na Comissão de Anistia. Indo para a praia, inco- em jogo com essa interpretação?
moda-me o fato de estar dirigindo pela Rodovia José Carlos Moreira da Silva Filho – O tema
Castello Branco. Eu nunca havia visto um jornal de interpretação da Lei de Anistia está, inclusive,
falar sobre isso. Agora essa situação mudou. Vol- na pauta do Supremo Tribunal Federal, que tem
tando do recesso de final de ano, passei por Bagé diante de si uma ação de descumprimento de pre-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ceito fundamental, proposta pelo Conselho Fede- não político, e sim um crime comum. Vejo que o
ral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). impacto de uma interpretação correta na socie-
Essa ação pede exatamente isso: que o Supremo dade brasileira da Lei de Anistia é extremamente
diga, de forma bem clara, explícita, que a Lei de importante e necessário.
Anistia não pode ser estendida para abrigar esses
casos, de pessoas que torturaram, atuando a fa-
vor do governo militar. Direito da sociedade
Antes de responder mais diretamente à sua
pergunta, faço ainda um esclarecimento impor- Já se disse que o Brasil é um país sem me-
tante. Quando se fala em crimes políticos e crimes mória, e que sem memória, não temos condições
conexos, a interpretação que até aqui prevaleceu de construir uma democracia forte, que respeite
da Lei de Anistia tem defendido a tese de que a os direitos humanos, instituições democráticas de
expressão crimes conexos estaria colocando im- fato. Fica tudo no segredo, no pacto de silêncio
plicitamente dentro dela o caso de pessoas que e as pessoas preferem não tocar para frente, não
eram do governo e que reprimiram opositores mexer nas feridas. Isso vai causar incômodos. Ou
políticos e cometeram crimes em relação a esses melhor: está causando. Mas precisamos enfrentar
opositores. No entanto, essa é uma interpretação essas coisas. Ficaria extremamente feliz se Lula,
que, se passar sob qualquer crivo mais criterioso ao voltar de suas férias na Bahia, simplesmente
sob o ponto de vista técnico, jurídico, sem evocar aceitasse a disposição do cargo que foi colocada
questões políticas, não prospera. É evidente que pelos três comandantes das forças armadas, colo-
essa interpretação que ora impera é fruto de uma cando outros em seu lugar. Há setores no Exérci-
imposição de forças que aconteceu na época da to, minoritários (é preciso que se diga), um pouco
Anistia, que ainda era no governo militar. É como mais abertos a uma mudança de olhar sobre essa
se os militares dissessem “vamos fazer a conces- história. É um direito da sociedade brasileira sa-
são de permitir que os exilados voltem, libertar ber o que houve, e isso é fundamental para se ter
os que estão presos, permitir o multipartidarismo, uma narrativa verdadeira, adequada e que esteja
mas vocês sabem... não se metam conosco. Não focada nas nossas perdas, lutos. Só rememorando
nos coloquem em julgamento. Somos intocáveis”. esses fatos poderemos colocá-los no lugar social
Isso foi tão forte, causou um medo tão grande na que ele merece e poderemos evitar a repetição
sociedade brasileira, que até os juízes começaram da violência, que se coloca quase de uma forma
a defender essa interpretação, que não tem con- espontânea, automática.
sistência técnica.
Pelos critérios do direito penal, um crime IHU On-Line – Acredita que o PNDH é um
conexo é aquele que precisou ser cometido em instrumento contra a impunidade no Bra-
função de um crime que estava conexo a ele, o sil? Por quê?
crime principal. O crime principal, nesse caso, é José Carlos Moreira da Silva Filho – Real-
o crime político, que é o que Anistia tem em vis- mente acho que sim. Muitas pessoas, inclusive,
ta. O crime conexo, por exemplo, é daquele mi- muitos militantes de esquerda, como Alfredo Sirkis,
litante de esquerda que precisou usar um nome do Partido Verde (PV), autor de livros como Os
falso para que não fosse preso e torturado em Carbonários, adotou um discurso de que não te-
função da sua opção política. Então há o crime mos que mexer nessas coisas do passado. Segun-
político por participar de uma organização polí- do ele, ao invés disso, temos que nos preocupar
tica, o que na época era considerado criminoso. com a impunidade de hoje, as torturas e execu-
Esse é o crime conexo. Quem torturou não era ções sumárias perpetradas em nossos dias, e não
perseguido político, não havia nenhuma legisla- com aquelas da época da ditadura. Não sei a que
ção política do Estado que o incluísse como cri- atribuir essa miopia de Sirkis ao dizer isso.
minoso. O que havia era legislação que dizia que No relatório da ONU do ano passado, o Brasil
a ação de torturar o preso era um crime, mas figura como campeão de execuções extra-judiciais e

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de torturas. Nesse quesito é o país mais violento da Então, para começar, não havia uma ame-
América Latina. É evidente que existe uma conexão aça comunista nos termos colocados hoje pelos
explicita entre impunidade sobre os crimes cometi- militares. Eles se vêem como salvadores da pátria,
das na ditadura militar e os crimes que hoje acon- imaginando que se não fosse sua interferência,
tecem. O espírito da corporação militar, das polícias cairíamos numa ditadura comunista. Isso é total-
militares é o mesmo. É um espírito de proteção in- mente falso. É claro que existiam setores militan-
terna, opaco ao olhar do resto da sociedade, com tes de esquerda que queriam isso, mas era uma
uma justiça própria, inclusive uma das imposições minoria. Viam a democracia como uma artima-
colocadas por setores ligados ao governo militar nha burguesa. Isso também não pode ser igno-
na Constituinte de 1987, assim como tantas outras rado, como não podemos ignorar que não havia
questões que estão na Constituição e que colocam nenhum grupo armado, pronto, preparado para
as Forças Armadas como uma espécie de tutor do tomar o poder e construir uma ditadura comunis-
Estado, do governo, que ficará monitorando possí- ta aqui.
veis desequilíbrios e coisas do gênero. Temos, ainda, O único grupo armado pronto a tomar o po-
muitos resquícios e essa ação de memória e verdade der de forma ditatorial eram os militares, e eles
é o caminho imprescindível e certo para que pos- não hesitaram em fazê-lo. Tentaram fazer an-
samos acabar com a impunidade em nosso país, tes, mas não conseguiram, graças à Campanha
especialmente com relação àqueles que cometem da Legalidade capitaneada por Leonel Brizola.
crimes contra a sociedade no momento em que Depois, não houve jeito. Era um período muito
ocupam algum cargo público ou desempenham tenso, em que havia uma visão dicotomizada do
função pública. Esses são os piores crimes, que vem mundo. Tudo isso precisa ser levado em conta.
vitimando a sociedade brasileira desde o momento Agora, dizer que o Exército estava numa espécie
em que ela surgiu. de cruzada contra os comunistas é um erro grave.
Quem colocou um estado ilegítimo não foram os
IHU On-Line – Como compreende a ideia de movimentos de esquerda, mas o governo militar
que o terrorismo de Estado pode ser iguala- apoiado por outros setores da sociedade. Eles é
do à luta que se empreendeu contra ele? que fizeram o que não deveriam fazer: impuseram
José Carlos Moreira da Silva Filho – Essa uma ditadura, violaram direitos fundamentais,
é outra falácia na qual muitos defensores do re- depuseram um presidente legitimamente eleito,
gime militar incorrem. Outros, mais desavisados, como aconteceu com Zelaya, em Honduras, há
aceitam esse argumento sem maiores exames ou pouco tempo. Tudo isso foi feito e agora querem
reflexões. É quase que imoral igualar as duas coi- justificar sua atitude.
sas, especialmente no contexto brasileiro. Preci-
samos lembrar que, antes do governo militar, tí-
nhamos no Brasil um governo democrático, eleito Estigmatização
e constitucional, que estava muito longe de virar
uma ditadura comunista. O que o governo João Os movimentos de esquerda, a partir do mo-
Goulart fazia era promover uma série de políti- mento em que o país estava mergulhado em uma
cas públicas como essas que estão acontecendo ditadura, começaram a se articular com o objeti-
hoje com o governo Lula. As políticas de Jango, vo principal de fazer frente a essa realidade, antes
no contexto da Guerra Fria, eram vistas como co- de mais nada. Toda organização mais intensa de
munistas. Qualquer tipo de discurso em prol dos grupos armados da esquerda pode ser observada
direitos dos trabalhadores, da reforma agrária ou após a assinatura do AI-5, quando todos caminhos
de reformas de base para haver mais distribuição de manifestação política estavam vetados por
de renda, para limitar, de alguma forma, a ação aquele ato arbitrário e abominável que faz parte
dos empresários e mercado, era visto como uma da história de nosso país. É preciso que se conheça
“coisa do diabo”, que deveria ser combatida a e se saiba que a morte, desaparecimento e tortura
todo custo, nem discutida, nem refletida. não foram apenas promovidas contra os militantes

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que atuavam na resistência armada. Foi promo- Anistia, que teve um papel histórico muito impor-
vida também contra aqueles que nunca pegaram tante. É preciso dizer que ela não foi uma conces-
em armas. Atuando na Comissão de Anistia, já me são, apenas, como os militares quiseram fazer pare-
debrucei sobre vários processos de pessoas que cer. Só aconteceu a Lei da Anistia em 1979 porque
sequer pertenciam a organizações ou militâncias. houve muita luta, greve de fome dos presos políti-
Eram pessoas que, suspeitas de conhecer alguém cos, sobretudo daqueles que pegaram em armas.
que militava, ou que ajudaram alguém que tinha Movimentos de artistas, intelectuais e da sociedade
ideias consideradas subversivas, já apanhavam, foram fundamentais. As pessoas estavam cansadas
eram torturadas, presas, perdiam seus empregos e do medo, da censura, do arbítrio, da repressão, e
não conseguiam trabalhar nunca mais. Os militares queriam votar para presidente, além de libertar
tinham essa tática. Eles não investigavam a fundo. aqueles jovens presos. Essa foi uma das bandeiras
Pressupunham que as pessoas eram culpadas se nacionais mais intensas que tivemos. É uma histó-
houvesse alguma acusação. Até provar o contrário, ria muito bonita, e pouco conhecida, mesmo que
as pessoas ficavam estigmatizadas para sempre. já tenha completando 30 anos em 2009.
Suas vidas eram destruídas.

Justiça de transição
Desigualdade de poderio
A Anistia teve um papel histórico importan-
Há uma desigualdade, também, no que se te, mais ainda assim foi insuficiente. Ela ainda está
refere ao poderio das duas facções. Os grupos acontecendo, é um processo em curso, pois envol-
de resistência armada à ditadura eram compos- ve diversos outros elementos que estão inseridos
tos por poucos jovens idealistas, sem treinamen- dentro do conceito de justiça de transição. Inclusi-
to militar - alguns poucos conseguiam tê-lo, no ve, o tema de justiça de transição será enfrentado
mais, eram mal armados e mal aparelhados. Es- no XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo
ses grupos foram rapidamente desbaratados pela biopolítico da vida humana, em setembro. Na par-
atuação intensa, massiva, profissional e cruel do te que me coube, buscarei tratar esse tema como
Exército, ou como dizia o ex-ditador João Batis- marcante, porque entendo que boa parte da ex-
ta Figueiredo, era “para prender e arrebentar”. A ceção em que as sociedades democráticas vivem
ação visava não deixar nenhum rastro no cami- hoje se deve, também, à falta de atenção a esse
nho. Assim, é uma falácia dizer que dá para colo- ponto, que agora o PNDH no Brasil procura, fi-
car em pé de igualdade os dois grupos, em vários nalmente, trazer à luz. Todos os outros países da
sentidos. O governo militar acabou com o estado América Latina já fizeram isso, menos o nosso.
democrático de direito. Aqueles que atuaram na A justiça de transição é um tema que envol-
resistência armada lutavam para restabelecer o ve o direito à memória e à verdade, a importância
estado de direito e acabar com a ditadura. da memória para a construção de uma sociedade
democrática e justa, respeitadora dos direitos hu-
IHU On-Line – Recuperando uma ideia dis- manos. É claro que, quando se fala em verdade
cutida pelo advogado Jacques Alfonsin, o aqui, é que os fatos e as narrativas sejam apresen-
que é realmente irrevogável: a lei de Anis- tados, e não que alguém queira ter o monopólio
tia ou os direitos e garantias individuais re- da verdade. É preciso que os militares forneçam
feridos na Constituição Federal? suas narrativas, assim como que os perseguidos
José Carlos Moreira da Silva Filho – Os di- políticos forneçam as suas, porque todas elas
reitos fundamentais seriam válidos e deveriam ser compõe o quadro que forma a nossa auto-com-
respeitados mesmo que não estivessem previstos preensão como Brasil.
na Constituição explicitamente. Na Lei de Anistia Um segundo aspecto do conceito de justiça
isso nem se coloca nesses termos. Como disse no de transição é a reparação. A Anistia de 1979 ig-
início da conversa, não se trata de revogar a Lei de norou essa questão. A Lei de Anistia de 2002, que

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

regulamentou um artigo da Constituição Federal, pécie de tapete sobre a sujeira. E essa sujeira irá
prevê essa questão das reparações. aparecer um dia. Irá voltar.
O tema da justiça seria um terceiro foco da
justiça de transição, que é exatamente esse de- IHU On-Line – Como interpreta a reação
bate sobre o julgamento, a investigação e o indi- do setor do agronegócio ao PNDH? Em que
ciamento daqueles que cometeram crimes contra medida essa reação corrobora a estigma-
a humanidade. Esse é um ponto muito delicado tização dos movimentos sociais, como no
porque, para mim, ao menos, a possibilidade de caso do MST, por exemplo?
julgar esses criminosos não está no meu interes- José Carlos Moreira da Silva Filho – Não
se por sua punição. Penso que o mais importan- me surpreende esse tipo de opinião e reação.
te é que haja um processo de julgamento dessas Mas vejamos o quanto isso está conectado com
pessoas, penalmente, no qual se diga com todas o período da ditadura. O MST de hoje são as li-
as letras que cometeram crimes contra a humani- gas camponesas de ontem. Os latifundiários e os
dade. Tais crimes têm uma característica bastan- defensores do agronegócio de hoje são aqueles
te específica, que veio sendo construída desde o proprietários de terra que apoiaram o regime
final da II Guerra Mundial. A importância desses militar porque queriam barrar, a todo custo, os
julgamentos se dá no fato de que eles podem pro- projetos de reforma agrária que estavam prestes
jetar no plano simbólico do espaço público o re- a ser conduzidos pelo governo João Goulart. É
conhecimento daquilo que aconteceu. É preciso preciso entender que a opção pela monocultura,
que haja a conscientização da sociedade de que pela agricultura mecanizada e o uso de uma sé-
torturar é errado. Se não houver um julgamento rie de herbicidas e produtos químicos, bem como
e uma reprovação pública desses atos, qual é a as relações de trabalho extremamente insatisfató-
mensagem que estamos passando? De que não é rias e que não se preocupam com as pessoas que
errado torturar, que não importam os meios com estão fixadas no campo é a mesma receita que
os quais se obtenha a verdade, mas sim os fins. se usava no contexto militar. Trata-se da mesma
Por fim, o quarto e último aspecto da justi- receita econômica: precisamos exportar, produzir
ça de transição é o fortalecimento das instituições cada vez mais, custe o que custar.
democráticas. Sem um investimento na educa- Tudo isso é passado para a população como
ção, na segurança pública com cidadania (como se fosse a oitava maravilha do mundo, solução
o Tarso Genro está fazendo com o PRONASCI), para que o Brasil avance no cenário internacio-
na democratização do Poder Judiciário, na fis- nal. Não há uma preocupação com os seres hu-
calização dos órgãos públicos e no exercício da manos que participam desse processo produtivo.
participação política, por exemplo, os riscos de in- Ignora-se, também, que a produção de alimentos
corrermos nos mesmos erros ficam bem maiores. no país se deve, em sua grande maioria, à ação
da agricultura familiar. O que vejo de errado não
é a proposta do agronegócio de hoje em si, mas
Tapete sobre a sujeira que esses setores impeçam que outras propostas
e reivindicações sobre como aproveitar o campo
De todo modo, a justiça é fundamental, e no Brasil e como investir nele. Acredito que seja
aqui volto a invocar o artigo de Alfonsin, que extremamente equivocada a atitude do grupo dos
critica um outro artigo, este de opinião bastante produtores do agronegócio nesse sentido. Não
equivocada, escrito pelo ex-ministro do Supremo, querem nem que se discuta esse tema, outras al-
Paulo Brossard, publicado na Zero Hora de 4 de ternativas para o país. E o PNDH está defenden-
janeiro de 2010. Nesse texto, ele dizia que não se do amplamente os setores minoritários que, até
pode procurar a justiça porque a paz era um bem agora, não tinham, sob o ponto de vista do poder
maior. Por isso, concordo com Alfonsin quando público, uma defesa clara da proteção de sua in-
ele diz que a paz que se busca sem a justiça é um tegridade em suas escolhas.
engodo, uma falsa paz. É como se fosse uma es-

74
De ditadores a imperadores com pés de barro

Entrevista com Roberto Romano

“Ainda não somos uma república democráti- A monstruosidade no século XVIII (São Paulo:
ca. Somos herdeiros melancólicos do absolutismo SENAC, 2002).
clássico”, afirma o filósofo Roberto Romano. Para
ele, o Brasil continua sendo um país que realiza IHU On-Line – Quais são as implicações de
“pactos políticos feitos pelas oligarquias, sob o abrir os arquivos da ditadura? Sob o ponto
patrocínio do Poder Executivo Federal”. Em en- de vista democrático e político é melhor re-
trevista concedida por e-mail às jornalista Márcia cordar ou esquecer esse assunto?
Junges e Patricia Fachin e publicada na edição Roberto Romano – Abrir os arquivos do Estado
269 de IHU On-Line em 18 de agosto de 2008, brasileiro sob o regime ditatorial é exigência de-
o pesquisador comenta os equívocos da Lei da mocrática. Não existe democracia sem o direito
Anistia e afirma que “o mito em torno de uma de a sociedade civil conhecer a si mesma e aos
ditadura com base apenas militar” é conveniente que a dirigem ou dirigiram. O golpe de Estado
para as oligarquias brasileiras, as quais negligen- de 1964 ocorreu ainda sob a Guerra Fria, a qual
ciaram pontos essenciais na elaboração da Lei. favoreceu as formas autoritárias que exacerbaram
Agora, garante, “resta às vítimas da tortura re- o segredo. Se os países socialistas, supostamente
correr à Justiça, salvaguarda dos direitos lesados, repúblicas populares, quebraram a base da ac-
para que os crimes sejam punidos”. countability58 e da fé pública em proveito dos go-
Relembrando os ensinamentos do filósofo vernos, algo similar ocorreu na Europa, nos EUA
italiano Noberto Bobbio, Romano destaca a ne- e nos regimes de força que dominaram a América
cessidade de construir uma sociedade democrá- do Sul. Hannah Arendt afirma que a vida tota-
tica, na qual o governo deve desenvolver suas litária deve ser entendida como reunião de “so-
atividades em público, “sob os olhos de todos”. E ciedades secretas estabelecidas publicamente”.59
adverte: “O poder oculto não transforma a demo- O paradoxo é só aparente. Hitler60 examinou os
cracia, a perverte”. Se existem documentos sobre
a tortura no regime ditatorial, continua, “eles não 58 Accountability: termo inglês que remete à obrigação
pertencem a grupos, indivíduos ou instituições su- de membros de um órgão administrativo ou representa-
bordinadas ao Estado. Eles são propriedade do tivo de “prestar contas” a instâncias controladoras. (Nota
da IHU On-Line)
povo soberano, que tem o direito e o dever de 59 Le système totalitaire (Ed. Davreu et Lévy, Paris, p. 103).
adequar sua existência à sua história”. (Nota do entrevistado)
Romano cursou doutorado na École des 60 Adolf Hitler (1889-1945): ditador austríaco. O termo
Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Führer foi o título adotado por Hitler para designar o
chefe máximo do Reich e do Partido Nazista. O nome
França e é professor de filosofia na Universida- significa o chefe máximo de todas as organizações mili-
de Estadual de Campinas (Unicamp). Escreveu, tares e políticas alemãs, e quer dizer “condutor”, “guia”
entre outros, os livros Igreja contra Estado. Crí- ou “líder”. Suas teses racistas e anti-semitas, bem como
seus objetivos para a Alemanha ficaram patentes no seu
tica ao populismo católico (São Paulo: Kairós,
livro de 1924, Mein Kampf (Minha Luta). Atualmente se
1979), Conservadorismo romântico (2. ed. São discute se essa obra deve ser liberada para uma edição
Paulo: Ed. UNESP, 1997) e Moral e Ciência. crítica do texto. Para conferir detalhes, acesse a notícia,

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

princípios das sociedades secretas como corretos ou menor gravidade em um de seus órgãos essen-
modelos para a sua própria. Ele promulgou em ciais, mas a assassina”.62
1939 as regras do seu partido. Primeira regra: nin- A democracia efetiva surge com a exigência
guém que não tenha necessidade de ser informa- de accountability a ser cobrada dos governos. Os
do deve receber informação. Segunda: ninguém postulados democráticos sustentam a Declaração
deve saber mais do que o necessário. Terceira: Universal dos Direitos Humanos e devem atenu-
ninguém deve saber algo antes do necessário. Li- ar o segredo de Estado. Se existem documentos
ção de Norberto Bobbio:61 sobre tortura no regime ditatorial, eles não per-
“O governo democrático desenvolve sua ati- tencem a grupos, indivíduos ou instituições su-
vidade em público, sob os olhos de todos. E deve bordinadas ao Estado. Eles são propriedade do
desenvolver a sua própria atividade sob os olhos povo soberano, que tem o direito e o dever de
de todos, porque todos os cidadãos devem for- adequar sua existência à sua história. No caso,
mar uma opinião livre sobre as decisões tomadas só pode ser olvidado o conhecido. Cabe ao po-
em seu nome. De outro modo, qual a razão os der estatal a tarefa democrática de sanar tal lap-
levaria periodicamente a urnas e em quais bases so da vida brasileira.
poderiam expressar o seu voto de consentimento
ou recusa? (…) O poder oculto não transforma a IHU On-Line – Quais são os impactos éti-
democracia, a perverte. Não a golpeia com maior cos que a Lei da Anistia trouxe consigo?
Roberto Romano – O Brasil é a terra dos pac-
tos políticos feitos pelas oligarquias, sob o patro-
de 23-06-2008, “Acadêmicos alemães pedem liberação cínio do Poder Executivo Federal. Assim foi com
do livro de Hitler”, no sítio do IHU. No período da di- a Anistia e, mais tarde, com a transformação do
tadura de Hitler, os judeus e outros grupos minoritários
considerados “indesejados”, como ciganos e negros, Congresso em Constituinte, sem uma Assembléia
foram perseguidos e exterminados no que se conven- orientada especificamente para redigir a Carta
cionou chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio no Magna. Desejosas de retomar o poder Executivo
seu Quartel-General (o Führerbunker) em Berlim, com
das mãos militares, as oligarquias (retrógradas
o Exército Soviético a poucos quarteirões de distância. A
edição 145 da IHU On-Line, de 13 de junho de 2005, ou liberais, pouco importa) negligenciaram pon-
comentou na editoria Filme da Semana, o filme dirigido tos que, longe de serem detalhes, são essenciais.
por Oliver Hirschbiegel, A queda – As últimas horas de Além disso, parcelas consideráveis da esquerda
Hitler. A edição 265, intitulada Nazisimo: a legitimação
da irracionalidade e da barbárie, de 21-07-2008, trata
no exílio aceitaram os termos da anistia, oferecida
dos 75 anos de ascensão de Hitler ao poder. (Nota da com mediação oligárquica. O primeiro presidente
IHU On-Line) civil após a ditadura, José Sarney, não por aca-
61 Norberto Bobbio (1910-2004): filósofo e senador vi- so era e continua sendo um líder oligárquico que
talício italiano. Doutor em Filosofia e Direito pela Uni-
versidade de Turim, Bobbio fez parte do grupo antifas- serviu ao regime de exceção, e na última hora o
cista Giustizia e Liberta (Justiça e Liberdade). Adepto abandonou. As negociações para a Anistia não
do socialismo liberal, ele foi preso durante uma semana, tiveram a forma de um amplo pacto nacional,
em 1935, pelo regime fascista de Benito Mussolini. Em
mas o estilo costumeiro das tratativas entre elites.
1994, assumiu publicamente uma posição contra as po-
líticas defendidas por Silvio Berlusconi, que represen- Aceitos a forma e o conteúdo da Anistia, tanto
tava o centro-direita nas eleições gerais. Nesta altura, pelas lideranças políticas oligárquicas quanto pe-
escreveu um dos seus ensaios mais conhecido Direita las oposições (incluindo a esquerda), os proble-
e Esquerda, no qual se pronunciou contra a “nova di-
reita”. Além desta obra, Bobbio assinou e realizou mais
mas subjacentes surgiram anos depois. Regras de
de 1300 livros, ensaios, artigos, conferências e entrevis- prestação de contas não foram definidas de modo
tas. Norberto Bobbio recebeu o doutoramento Hono- claro (como em outros países) e as decisões so-
ris Causa pelas universidades de Paris, Buenos Aires, bre assuntos relacionados a prisões, torturas etc.,
Madrid, Bolonha e Chambéry (France). Na 89ª edição
da Revista IHU On-Line, de 12-01-2004, na editoria não tratadas em tempo certo na Justiça, foram
Memória, além de um artigo de Ricupero, um de Jani-
ne Ribeiro, foi publicada a biografia de Norberto Bob-
bio, em virtude de seu falecimento aos 94 anos, no dia 62 Il potere in maschera. In L´Utopia capovolta (Torino: La
9-01-2004. (Nota da IHU On-Line) Stampa, 1990). (Nota do entrevistado)

76
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

jogadas para a luta política e ideológica. É o que litavam em partidos de esquerda ou em sindica-
assistimos hoje. tos quando ocorreu a Anistia. Creio que o mais
estratégico, no raciocínio dos referidos dirigentes,
IHU On-Line – Tortura pode ser considera- é esquecer seu passado militante, tendo em vista
da crime político ou contra a humanidade? manter no presente e no futuro suas prerrogativas
Roberto Romano – Tortura é crime contra a de mando político e social. Antes de olvidar os fa-
humanidade. Sua prática é indesculpável. Nada tos coletivos, eles buscam apagar a sua própria
– política, religião, ideologia – justifica semelhante memória. Argumentos não lhes faltam. Exis-
atrocidade. te apenas uma ausência terrível de coerência
com o seu pretérito.
IHU On-Line – Como a Justiça e o Estado
deveriam lidar com as memórias de dor e IHU On-Line – A Lei da Anistia gerou uma
sofrimento das vítimas da ditadura militar? pacificação nacional?
Roberto Romano – Tais procedimentos deve- Roberto Romano – As ameaças entre grupos,
riam ter sido determinados na própria lei de Anis- os ódios mais do que evidentes em todos os seto-
tia e imediatamente após a sua promulgação. Pa- res mostram que a resposta só pode ser negativa.
íses democráticos adoecidos por regimes de força Maquiavel,63 no Capítulo 7 de Discursos sobre a
definiram normas e ritos no sentido de sanar os Primeira Década de Tito Lívio, mostra o quanto
ódios, os ressentimentos e prevenir vinganças, o é importante encontrar meios idôneos para acu-
que não ocorreu no Brasil. Resta às vítimas da sar os que desobedecem as leis e agem contra os
tortura recorrer à Justiça, salvaguarda dos direitos direitos da cidadania. Se os crimes não forem
lesados, para que os crimes sejam punidos. punidos com formas jurídicas apropriadas, a
vingança assume plenitude infernal, nascem “as
IHU On-Line – Essa parte “mal resolvida” ofensas de cidadãos privados contra cidadãos
da nossa história tem influenciado na con- privados, e a ofensa gera o medo; o medo busca
juntura atual, no sentido de que nos acos- defesa; para a defesa, se reúnem os companhei-
tumamos com a violência, com a corrup- ros; dos companheiros nascem as facções que
ção, com as injustiças? arruínam o Estado”. A Anistia não criou laços de
Roberto Romano – O Brasil, além da república solidariedade entre os brasileiros, gerou facções
federativa das oligarquias, é o país da não igual- que se digladiam. Os frutos das atuais batalhas
dade plena entre os cidadãos. Nele, num sentido verbais (por enquanto) serão conhecidos mais
não contrário ao da maior parcela dos Estados tarde. Mas com tanto ódio é possível prever que
atuais, existe a norma odiosa da prerrogativa de eles não serão sadios.
foro para “autoridades”. Aqui não vigora, nas di-
versas instâncias do poder público, a necessária IHU On-Line – A Lei da Anistia prejudicou
prestação de contas ao povo. Se nenhuma autori- os direitos humanos no país?
dade tem obrigação de prestar contas, como exi- Roberto Romano – A Lei da Anistia é fruto de
gir que os crimes de tortura sejam punidos? uma política social e de Estado. É nossa forma
iníqua de praticar a vida em sociedade civil e po-
IHU On-Line – Conforme o pensamento ju- lítica que gera a corrosão de todos os direitos.
daico-cristão, esquecer dos mortos é ma-
tá-los duas vezes. Como entender, então,
a insistência de alguns setores do governo 63 Nicolau Maquiavel (1469-1527): historiador, filóso-
brasileiro em “enterrar” esse assunto? Que fo, dramaturgo, diplomata e cientista político italiano do
Renascimento. É reconhecido como fundador da ciência
interesses movem essa atitude? política moderna por escrever sobre o Estado e o go-
Roberto Romano – Quais setores do governo verno como realmente são, e não como deveriam ser.
brasileiro? Os dirigentes do poder Executivo, na Separou a ética da política. Sua obra mais famosa, O
Príncipe, foi dedicada a Lourenço de Médici II. (Nota da
sua maioria, pertencem à esquerda nacional, mi-
IHU On-Line)

77
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Todos os presidentes brasi- dirigidas pelas oligarquias. Qualquer presidente
leiros negaram-se a abrir os arquivos da di- nosso precisa vender ou comprar apoio do Con-
tadura. Como esse fato influencia e interfe- gresso, sempre na bacia das almas do orçamento
re na construção da democracia brasileira? federal. Como os arquivos trarão os atos dos oli-
Roberto Romano – O fato confirma que ainda garcas civis, e não apenas os desvios dos milita-
não somos uma república democrática. Somos res, não interessa às oligarquias e a seus dirigentes
herdeiros melancólicos do absolutismo clássico, que seja destruído o mito de uma ditadura com
no qual os arcanos seriam privilégio do rei. Em base apenas militar. Os militares teriam efetivado
nosso caso, em vez de presidentes, temos impera- uma ditadura menos virulenta, se não tivessem
dores com pés de barro. Todos eles são eleitos de o apoio dos coronéis políticos que parasitam o
maneira plebiscitária, daí sua arrogância sem li- Estado nacional.
mites. Mas todos dependem do apoio das regiões,

78
Reféns da lei. Que Justiça é essa?

Entrevista com Lenio Streck

“Nenhuma lei pode proteger de forma de- nald Dworkin,64 jurista norte-americano, cujas po-
ficiente ou insuficiente os direitos humanos fun- sições se aproximam das de Gadamer65 – com as
damentais”, assegura Lenio Streck, professor do quais concordo –, para quem os argumentos no
PPG em Direito da Unisinos. Como tortura não direito devem ser de princípio, e não de política
é crime político, explica, não pode ser alcança- (ou de moral). Não importa a concepção moral
da por qualquer lei ou constituição. Em entrevista que o juiz tem sobre determinada matéria; pode
concedida por e-mail à jornalista Patricia Fachin importar para ele (e, com certeza, importa), mas
e publicada na edição 269 da IHU On-Line em isso não significa que ele possa colocá-las acima
18 de agosto de 2008, ele reitera que o problema da Constituição. De todo modo, ultrapassada essa
acerca da Lei da Anistia está na sua interpretação, discussão, as diferenças se localizam no alcance
que “deu azo a que se considerassem, indevida- da lei que concedeu a Anistia. Para a maioria dos
mente, anistiadas todas as pessoas que participa- juristas, não é possível rediscutir os efeitos da lei,
ram das ações contra e favor do regime”. E con- porque isso violaria o princípio da reserva legal.
tinua: “Se o Brasil se comprometeu a punir com Ou seja, para os defensores de um direito penal
rigor a tortura, seria incoerente que aprovasse clássico (de feição iluminista ou até mesmo pós-
uma lei ‘inocentando’ aqueles que praticam esse -iluminista), o direito deve ser utilizado apenas
tipo de crime”. para proteger o “débil” contra um Estado “mau”.
Lenio Streck é mestre e doutor em Direi- Além disso, os tratados internacionais, para a cor-
to, pela Universidade Federal de Santa Catarina rente contrária à punição da tortura (nos termos
(UFSC), e pós-doutor, pela Universidade de Lis- da discussão posta), não se aplicariam ao caso
boa. Docente do curso de Direito da Unisinos, ele brasileiro. É possível até que alguns juristas, no
é membro da Comissão Permanente de Direito íntimo, sejam a favor da punição. Entretanto, um
Constitucional do Instituto dos Advogados Brasi- eventual apoio à tese da reavaliação da lei de
leiros e presidente de honra do Instituto de Her- anistia para punir torturadores poderia colocá-los
menêutica Jurídica. em contradição, exatamente em face da predo-
minância, no Brasil, das teses que fundamentam
IHU On-Line – A comunidade jurídica apre- – ainda – um classicismo penal. Adianto, aqui, mi-
senta divergências no que se refere à revisão nha posição, no sentido de que tais concepções
da Lei da Anistia. Em que consistem tantas
oposições, e como o senhor as percebe?
Lenio Streck – Antes de tudo, parece que as 64 Ronald Dworkin (1931): filósofo do Direito norte-
-americano, atualmente é professor na University College
divergências se dão principalmente em razão da London e na New York University School of Law. (Nota
visão de mundo de cada um. Misturam-se, inclu- da IHU On-Line)
sive, as concepções pessoais com a análise jurídi- 65 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, autor do im-
portante livro Verdade e método (Petrópolis: Vozes, 1997),
ca (algo como “esquerda” e “direta” do direito).
faleceu no dia 13-03-2002, aos 102 anos. Por essa razão,
Mas não deve ser assim. Por isso tem razão Ro- dedicamos a ele a matéria de capa da IHU On-Line nú-
mero 9, de 18-03- 2002. (Nota da IHU On-Line)

79
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

estão equivocadas e desfocadas do Estado De- alargamento de seus efeitos, é dizer que a eficácia
mocrático de Direito, em que até mesmo o direito da Lei foi para além de seu conteúdo semântico
penal deve ser utilizado para a transformação da aceito pela tradição (no sentido gadameriano da
sociedade. palavra). Fizeram com a Lei da Anistia e as leis
subseqüentes o que estas não previam. Mesmo
IHU On-Line – A Lei da Anistia, no concer- que a Constituição atual seja posterior à Lei de
ne à absolvição de torturadores, pode ser Anistia, isso não significa que o Parlamento bra-
considerada legítima? sileiro poderia ter aprovado qualquer tipo de lei
Lenio Streck – Penso que nenhuma lei poderia que protegesse deficientemente ou insuficiente-
considerar a tortura como crime político, implícita mente os direitos humanos das vítimas do regime
ou explicitamente. A Lei 6.683/79 concedeu anis- militar. Os limites já estavam lá, conforme se pode
tia apenas aos crimes políticos; a tortura ficou efe- ver nos Tratados Internacionais dos quais o Brasil
tivamente fora do seu alcance; o art. 8 do ADCT era firmatário, naquela época. Logo, se o Brasil se
(Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) comprometeu a punir com rigor a tortura, seria
não concede anistia a qualquer atitude violadora incoerente que aprovasse uma lei “inocentando”
dos direitos humanos; as leis 9.140 e 10.559 não aqueles que praticaram esse tipo de crime (que,
dizem respeito ao “apagamento” de crimes que insista-se, não é crime político). Tão importante é
não os de índole política. Ou seja: como a tortura essa questão relativa à força dos tratados interna-
não é crime político, não poderia ser alcançada cionais na ordem interna, que o Supremo Tribunal
por qualquer lei ou Constituição. Mas, mais do Federal há poucos dias utilizou-se das regras da
que isso, nenhuma lei pode proteger de forma Organização das Nações Unidas de tratamento
deficiente ou insuficiente os direitos humanos de prisioneiros para a regulamentação do uso
fundamentais. O Estado Democrático de Direito de algemas, inclusive com a edição de Súmula
tem o dever de proteger os direitos dos cidadãos, Vinculante. Assim, a interpretação – que aca-
tanto contra os ataques do Estado como dos bou vencedora durante todos esses anos – de
ataques dos demais cidadãos. No direito cons- que a Anistia abrangeu também a tortura, fere
titucional do segundo pós-guerra denominamos o princípio da proibição de proteção deficien-
isso de Schutzpflicht. No caso, a Lei da Anistia, te (Untermassverbot), na sua combinação com
se interpretada no sentido de que poderia englo- o dever de proteção (Schutzpflicht). Para se en-
bar a tortura, violaria o princípio da proibição tender melhor, é fácil dar um exemplo: pensemos
de proteção deficiente, que os alemães chamam em uma lei que descriminalize o homicídio ou o
de Untermassverbot. Sendo mais claro: o Esta- estupro. Essa lei pode ser aprovada por ampla
do deve proteger os direitos humanos de forma maioria, sancionada pelo presidente, enfim, es-
adequada. Assim, mesmo um acordo ou um pac- tar totalmente de acordo com as formalidades
to não podem acarretar/ratificar essa deficiência constitucionais. Mas, fatalmente, será inconstitu-
na proteção. Em termos hermenêuticos, uma lei cional, por proteger insuficientemente bens ju-
pode ser nula, ilegal ou inconstitucional, por vá- rídicos fundamentais, como a vida, no caso do
rias razões. Se ela for excessivamente rigorosa, homicídio, ou a dignidade da mulher, no caso do
ela pode estar violando o princípio da proteção estupro. Assim, a lei, por si só, já seria inconsti-
de excesso (Übermassverbot). Por exemplo, se o tucional; mas uma eventual aplicação dessa lei
Brasil aprovasse uma lei prevendo uma pena mí- (por exemplo, se ela fosse considerada “legíti-
nima de 10 anos para quem furta. Essa lei seria ma” por alguns tribunais) seria inconstitucional
inconstitucional. Já se a lei for deficiente, ela pode do mesmo modo. A lei pode ser inconstitucio-
ser, neste aspecto, nulificada. Mas veja-se o caso nal, e a sua interpretação também o pode. No
sob discussão: a Lei da Anistia sequer necessita caso da Lei da Anistia, será ilegal, nula, qualquer
ser declarada nula, porque, afinal, ela jamais en- interpretação que estenda os seus efeitos para
globou os torturadores. O que é nulo, defeituo- além daquilo do que nela está previsto: a anistia
so em termos jurídicos, é a sua interpretação e o aos crimes políticos. Portanto – insisto –, nem é

80
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

necessário “bulir” com a lei; o problema está na os direitos humanos, beneficiando quem não po-
sua “generosa” interpretação, que deu azo a que dia ser beneficiado).
se considerassem, indevidamente, anistiadas to-
das as pessoas que participaram das ações contra IHU On-Line – O senhor disse que a Lei
e favor do regime. da Anistia comprometeu os direitos huma-
nos quando permitiu a aplicação da tábula
IHU On-Line – O que significa e qual a im- rasa, não separando o joio do trigo. Se a
portância de reabrir a discussão em torno lei fosse revista, como seria possível essa
da Lei da Anistia, 30 anos depois? separação? Torturadores e guerrilheiros se-
Lenio Streck – Não se trata de reabrir a dis- riam julgados de maneiras diferentes?
cussão. Ela sempre esteve aí. Não devemos temer Lenio Streck – A Lei da Anistia e as subseqüen-
esse debate, porque ele, a todo tempo, deve signi- tes não falaram em anistiar qualquer ato de tor-
ficar uma espécie de “blindagem” contra regimes tura; apenas abrangiam crimes políticos. O que
autoritários. Ao falar do velho, conservamos vivas falei, em outra entrevista,67 é que o problema se
as possibilidades do novo. deu na aplicação “tábula rasa”, aí sim misturando
o joio e o trigo. Conseqüentemente, em muitos
IHU On-Line – A interpretação da Lei da casos, beneficiamos o joio. Veja-se que a ques-
Anistia é competência do Judiciário ou do tão das reparações veio apenas anos depois da
Executivo? Lei de 1979 (ressalvo aqui minhas críticas a al-
Lenio Streck – Dos dois e também do Legislati- guns exageros ocorridos nos valores de algumas
vo. Mas, fundamentalmente, a questão – se é que indenizações). Com relação à segunda parte da
será reavaliada – passará pelo Poder Judiciário, pergunta (punição aos guerrilheiros), a Lei 9.140
como ocorreu na Argentina, onde foi declarada deixa claro que o Regime Militar não era um Esta-
a nulidade da Lei da Obediência Devida, exata- do de Direito. Este é o ponto fulcral da discussão.
mente porque esta havia anistiado aqueles que Conseqüentemente, era lícito lutar contra o esta-
praticaram a tortura. A Suprema Corte contrapôs blishment. E a própria Lei estabelece que serão
à Lei da Obediência Devida os tratados interna- indenizadas todas as pessoas que, de um modo
cionais firmados pela República argentina. E ve- ou de outro, lutaram contra o regime e por ele
ja-se que um dos componentes do Tribunal é um foram perseguidos, presos ou mortos. Se não ha-
dos mais importantes penalistas do mundo, Eugê- via Estado de Direito, todos os que lutaram contra
nio Raúl Zaffaroni.66 Portanto, para aqueles que esse “Estado de coisas” estavam em legítima de-
acham que uma eventual punição aos que prati- fesa, para usar uma figura do direito penal.
caram tortura no Brasil fere o princípio da anterio-
ridade da lei penal ou outro princípio constitucio- IHU On-Line – O esquecimento da barbárie
nal, basta examinar os argumentos desse prócer pode promover sua reprodução no futuro?
do penalismo mundial. Ninguém melhor do que Vivemos hoje, no Brasil, os reflexos da im-
Zaffaroni, pelas suas posições históricas a favor punidade desse período?
de um direito penal de garantias, para medir a Lenio Streck – Talvez inconscientemente este-
intensidade da necessidade de o Estado intervir, jamos sendo reféns desse “olhar generoso” que
mesmo que anos depois, para anular leis aprova- fizemos com a Lei da Anistia, permitindo isso que
das indevidamente (no fundo, é a tese adotada chamo de interpretação tábula rasa. Por que re-
pela Suprema Corte Argentina: a de que a Lei da féns? Porque não estamos conseguindo punir os
Obediência Devida protegeu de forma deficiente crimes que colocam em xeque os objetivos da
República. É visível que não estamos “queren-
66 Eugênio Raúl Zaffaroni: ministro da Suprema Corte do” usar o direito penal para “jogar duro” com
Argentina, Zafforoni é diretor do Departamento de Direi-
to Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires 67 Leia um depoimento do professor Lenio Streck concedi-
e vice-presidente da Associação Internacional de Direito do à revista IHU On-Line número 268, de 11-08-2008.
Penal. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

81
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

a delinqüência “asséptica” (colarinho branco rentável “aposta sem riscos penais” –, bastando
etc.). Vejam as leis aprovadas nos últimos anos: o pagamento do valor desviado para que o cri-
“alçamos” o crime de fraude à licitação a crime me se esfumace (lembremos como Marcos Valé-
de “menor potencial ofensivo” (paga-se cesta bá- rio se safou recentemente). No Brasil – e repito
sica); na mesma linha, consideramos mais grave isso há 20 anos –, “la ley es como la serpiente;
o ato de subtrair galinhas (quando praticado por solo pica a los descalzos” (frase de um camponês
duas pessoas) do que as condutas consubstancia- salvadorenho). Pudera: predominantemente, o
doras de crimes como a lavagem de dinheiro e de ensino jurídico continua manualesco. A indústria
delitos contra as relações de consumo e o siste- que mais cresce é a dos “manuais jurídicos”. Já
ma financeiro; também construímos uma benesse se vende Constituição em quadros sinópticos. E
para os sonegadores de tributos – que, de cer- nos aeroportos.
ta forma, transforma a sonegação fiscal em uma

82
O regime do medo continua

Deisy Ventura

O silêncio sobre os fatos ocorridos no perí- IHU On-Line – Quais são as implicações de
odo militar representa “uma das maiores lacunas abrir os arquivos da ditadura? Sob o ponto
da democracia brasileira”, afirma a Profa. Dra. de vista democrático e político, é melhor
Deisy Ventura, do curso de Direito da Unisinos. recordar ou esquecer esse assunto?
Esquecidos e desconhecidos por boa parte da na- Deisy Ventura – As principais consequências
ção, os atos de tortura instituíram hábitos que per- da abertura dos arquivos da ditadura seriam o
petuam até hoje. Segundo a pesquisadora, a exis- conhecimento público de documentos suprimi-
tência de políticas de extermínio, ainda presentes dos da “história oficial” – e com isto a chance de
na realidade nacional, “deve-se entre outros fato- construir uma história mais fidedigna daquele pe-
res, à impunidade dos torturadores e assassinos ríodo –, e a melhor instrução dos processos judi-
que forjaram uma nefasta cultura de segurança ciais, que buscam o julgamento dos crimes contra
pública em nosso país”. a humanidade cometidos durante o regime mili-
Na entrevista que segue, concedida por e-mail tar. O silêncio sobre este assunto é uma das maio-
à jornalista Patricia Fachin e publicada na edição res lacunas da democracia brasileira, a tal ponto
269 da IHU On-Line em 18 de agosto de 2008, que, atualmente, a maioria da população consi-
Deisy Ventura explica que aos crimes contra a dera natural o emprego da violência e o abuso
humanidade correspondem “o princípio da juris- de poder dos agentes do Estado, desde que seus
dição universal”, ou seja, “todos os Estados são alvos sejam cidadãos pobres, particularmente os
obrigados a julgar os responsáveis por genocídio jovens e os negros. A existência de políticas de
em suas próprias cortes, ou extraditá-los para um extermínio – que, malgrado sua ilegalidade, são
Estado capaz e disposto a fazê-lo mediante um implementadas pelo próprio Poder Público ou
julgamento justo. Logo, se não julgarmos os vio- beneficiadas por sua indulgência – deve-se, entre
ladores, outros Estados o farão”. outros fatores, à impunidade dos torturadores e
Deisy Ventura é graduada em Direito e mes- assassinos que forjaram uma nefasta cultura de
tre em Integração Latino-americana, pela Uni- segurança pública em nosso país.
versidade Federal de Santa Maria (UFSM). Dou-
torou-se em Direito, pela Universidade de Paris IHU On-Line – O que significa para o país,
I. Docente da Unisinos, atualmente a professora atualmente, “rever” e ampliar a Lei da Anis-
também é membro da Diretoria da Associação tia? Juridicamente, isso é possível?
Brasileira do Ensino do Direito (ABEDI), da co- Deisy Ventura – Do ponto de vista jurídico, toda
missão editorial da Revista Estudos Jurídicos, da e qualquer lei pode ser modificada pelo Congres-
Unisinos. Deisy também integra a lista de advo- so Nacional, total ou parcialmente, exceto as cha-
gados que assinaram o Manifesto público dos ju- madas “cláusulas pétreas” da Constituição Fede-
ristas em prol do debate público nacional sobre o ral. No entanto, o julgamento dos torturadores e
alcance da Lei da Anistia. assassinos não requer a revisão da Lei de Anistia,

83
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que concerne os crimes políticos praticados du- reduzido à condição de elemento de um grupo
rante o regime militar. Um crime político é aquele e rejeitado como tal, sendo destituído, a um só
que visa a subverter uma ordem instituída. Na dé- tempo, de sua singularidade e de seu estatuto no
cada de 60, um grupo de militares promoveu um seio da humanidade. A relevância deste assunto
golpe de Estado, obviamente ilegal e antijurídico, deve-se a muitas razões, sobretudo a de que é
autodenominado revolução. Este golpe de Estado preciso informar a população sobre a gravidade e
é um crime político. Entretanto, a tortura, o es- a ilicitude destas práticas, para evitar que elas se
tupro, o desaparecimento forçado e a execução repitam e possibilitar a reparação dos seus danos.
sumária, praticados por alguns agentes do Esta-
do partidários da ruptura da ordem democrática, IHU On-Line – Considerados crimes que
não o são. Tais crimes configuram um abuso das não prescrevem, como deveria ocorrer o
prerrogativas adquiridas quando da tomada do julgamento dos torturadores da ditadura
poder do Estado, e almejavam a eliminação ou a militar?
segregação de um grupo humano: o que resistia Deisy Ventura – Alguns processos já tramitam
ao seu poder. Já os movimentos de resistência à no Brasil e também no exterior, eis que aos crimes
nova ordem autoritária praticaram atos que con- contra a humanidade corresponde o princípio
figuram, evidentemente, crimes políticos: aqueles da jurisdição universal. Em virtude deste postu-
cujo intuito é contestar a ordem política vigente, e lado, todos os Estados são obrigados a julgar os
entre os quais jamais estiveram a tortura sistemá- responsáveis por genocídio, crimes contra a hu-
tica e o desaparecimento forçado. manidade e crimes de guerra em suas próprias
cortes, ou extraditá-los para um Estado capaz e
IHU On-Line – A interpretação da Lei da disposto a fazê-lo mediante um julgamento jus-
Anistia é de competência do Judiciário ou to. Logo, se não julgarmos os violadores, outros
do Executivo? Estados o farão. Não é caso de jurisdição interna-
Deisy Ventura – A interpretação da Lei da Anis- cional – porque o Tribunal Penal Internacional só
tia é da competência de todos os cidadãos brasi- pode processar crimes anteriores à sua criação –,
leiros. Quando provocado para tanto, o Judiciário mas é caso de jurisdição penal nacional universal,
é obrigado a manifestar-se. Quanto ao Executivo cujo exemplo mais notório foi o Caso Pinochet,69
e ao Legislativo, chegam a este debate com mais processado na Espanha, extradição solicitada à
de 20 anos de atraso. Inglaterra em 1999 e deferida, não cumprida por
razões médicas. Além disso, a Resolução 3074,
IHU On-Line – Tortura é um crime político de dezembro de 1973, da Assembleia Geral da
ou contra a humanidade? 40 anos após a ONU, estabelece os Princípios de cooperação in-
ditadura, qual a relevância de rediscutir o ternacional na identificação, detenção, extradição
assunto? e punição de pessoas responsáveis por crimes de
Deisy Ventura – A tortura jamais poderá ser guerra e crimes contra a humanidade, declarando
considerada um crime político. Não existe e ja- que todos os Estados devem cooperar reciproca-
mais existiu ordenamento jurídico que a corrobo- mente no plano bilateral ou multilateral para le-
re ou anistie. Caracteriza crime contra a humani- var a julgamento os responsáveis por tais crimes.
dade, entre outros, a perseguição sistemática de Registre-se que o direito internacional proíbe a
um grupo ou coletividade que possa ser identi- concessão de asilo a acusados de cometimento
ficado, por motivos políticos, raciais, nacionais, de crimes contra a humanidade, bem como a ca-
étnicos, culturais, religiosos ou de sexo. Mireille racterização destes crimes como crimes políticos
Delmas-Marty68 ensina a especificidade dos cri-
mes contra a humanidade: o ser humano vê-se 69 Augusto Pinochet (1915-2006): general do exército
chileno, foi presidente do Chile entre 1973 e 1990, de-
pois de liderar um golpe militar que derrubou o governo
68 Mireille Delmas-Marty: professora no Collège de do presidente socialista, Salvador Allende. (Nota da IHU
France. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

84
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

para fins de extradição (entre outros, art. VII da Deisy Ventura – Sim. Se algum guerrilheiro
Convenção sobre Genocídio, vigente no Brasil praticou o crime de tortura ou desaparecimento
desde 1952). forçado, então ele passa a ser torturador, e não
guerrilheiro. Os critérios jurídicos de julgamento
IHU On-Line – Torturadores e guerrilheiros são abundantes no direito interno e internacional.
devem ser punidos de modos diferentes? Quanto aos critérios éticos, parece-me que o res-
Quais os critérios éticos e jurídicos que de- peito à dignidade humana já fala por si, tanto em
vem permear o julgamento desses casos? relação às vítimas como a suas famílias.

85
Brasil: uma democracia pela metade

Entrevista com Dalmo Dallari

A ansiedade de retornar ao sistema demo- turas aventuras ditatoriais. No caso brasileiro, vá-
crático levou o Brasil a aceitar a Lei da Anistia, rias razões contribuíram para que não se optasse
mesmo com equívocos, disse Dalmo Dallari, ju- por esse tipo de justiça. Uma delas foi a ansieda-
rista, à Márcia Junges e Patricia Fachin, em entre- de de retornar a normalidade constitucional. Na
vista concedida por telefone e publica em 18 de época, havíamos conseguido uma série de avan-
agosto de 2008 na edição 269 de IHU On-Line. ços: a ditadura estava perdendo espaço, exilados
“Na época, havíamos conseguido uma série de políticos estavam voltando para o país, mas ainda
avanços: a ditadura estava perdendo espaço, exi- existia muita marginalização e a legislação dita-
lados políticos estavam voltando para o país, mas torial continuava presente. Tudo contribuiu para
ainda existia muita marginalização e a legislação que se aceitasse – pela impossibilidade de recusar
ditatorial continuava presente”, lembra. – a anistia da maneira como ela foi feita. A reivin-
Avaliando a efetividade da Lei, 30 anos de- dicação era de que se estabelecesse uma anistia
pois de sua promulgação, ele afirma que ela “foi que não excluísse a punição dos responsáveis pe-
benéfica para uma parte dos brasileiros, mas sem las violências, especialmente torturas. Em face da
dúvida alguma não sepultou todos os desconten- grande dificuldade, de obstáculos imensos e pelo
tamentos ou sentimentos de injustiça e a neces- desejo do retorno rápido à Constituição, houve
sidade de punição daqueles que abusaram de uma acomodação quando foi imposta ao Brasil a
suas funções públicas, que deturparam completa- anistia pretensamente ampla.
mente suas atribuições e agiram como verdadei-
ros criminosos”. Dallari, que presidiu a Comissão IHU On-Line – A Lei da Anistia, nos moldes
Justiça e Paz nos anos da ditadura militar, disse em que foi estabelecida na década de 1970,
ainda que auto-anistia não tem valor jurídico e era inevitável? Essa lei traz conseqüências
que “anistiar a si mesmo é uma farsa, um faz-de- negativas para o país de hoje?
-conta, uma ofensa ética”. Dalmo Dallari – Não houve e não havia espaço
Dallari é formado em Direito pela Universi- para uma ampla discussão que envolvesse a po-
dade de São Paulo (USP). Entre suas obras, ci- pulação e os juristas em torno da Lei da Anistia.
tamos O futuro do Estado (São Paulo: Saraiva, Mas, quando a Lei surgiu, foi saudada como um
2001) e Elementos de Teoria Geral do Estado (26. passo a mais no sentido da normalização demo-
Ed. São Paulo: Saraiva, 2007). crática. Em termos práticos, ela foi benéfica para
uma parte dos brasileiros, mas sem dúvida algu-
IHU On-Line – O senhor concorda com a ma não sepultou todos os descontentamentos ou
ideia de que todo país que atravessou uma sentimentos de injustiça e a necessidade de puni-
ditadura deve passar pelo processo Justiça ção daqueles que abusaram de suas funções pú-
de Transição? Por que no Brasil não se op- blicas, que deturparam completamente suas atri-
tou por esse caminho? buições e agiram como verdadeiros criminosos.
Dalmo Dallari – É necessária a Justiça de Tran- Isso tudo ainda está em aberto. É preciso que se
sição, entre outros motivos, para desencorajar fu- discuta e se leve adiante a apuração da verdade.

86
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – A Lei da Anistia deve ser IHU On-Line – Mesmo que os torturadores
“revista”, 30 anos depois, possibilitando a sejam condenados, práticas como as co-
punição dos torturadores? metidas no período ditatorial podem ser
Dalmo Dallari – O ministro Tarso Genro está perdoadas?
suscitando uma discussão sobre o alcance da Lei Dalmo Dallari – O perdão jurídico não existe.
da Anistia. Isso é absolutamente necessário. Não O perdão cristão só cabe quando existe o verda-
vejo necessidade de alteração da Lei, porque o deiro arrependimento. Mas o que estamos ven-
Brasil é signatário de uma série de tratados que do é que os torturadores, no lugar disso, estão
consideram a tortura um crime comum e impres- arrependidos de não terem sido mais violentos.
critível, não um crime político. Além disso, exis- Jair Bolsonaro70 disse que foi uma pena terem só
te uma jurisprudência da Corte Interamericana torturado, e não matado. Evidentemente, ele não
dizendo que a auto-anistia não tem qualquer é um homem arrependido pelas coisas de baixo
valor jurídico. Anistiar a si mesmo é uma farsa, nível que realizou. Infelizmente, outras pessoas
um faz-de-conta, uma ofensa ética. Aqueles que também concordam com esse tipo de pensamen-
estavam ocupando cargos de chefia, que tinham to, como um ministro do Superior Tribunal Militar,
postos de governo, que impuseram ao Brasil essa que nessa mesma linha, realizou ameaças com
anistia, não poderiam ter anistiado a si próprios. uso das Forças Armadas no Palácio do Planalto,
caso insistíssemos em punir os militares.
IHU On-Line – Como compreender o fato
de o Brasil optar por não abrir os arquivos IHU On-Line – O senhor percebe uma apa-
da ditadura, diferente de seus visinhos lati- tia política por parte da população em re-
no-americanos? Quais as implicações éti- lação à abertura dos arquivos da ditadura?
cas desse processo? Dalmo Dallari – Não acredito em apatia e na
Dalmo Dallari – Realmente é um absurdo que convicção de que se deva esquecer o assunto.
se mantenha segredo sobre o que aconteceu Mas pouquíssimos acreditam na possibilidade
durante o período ditatorial. Tenho sido cobra- de superar as resistências. O problema está todo
do por colegas de outros países, principalmente nessa questão, entre outras coisas, porque gran-
pelos da América Latina. Frequentemente me de parte dos arquivos estão em estabelecimentos
questionam: “Quando o Brasil vai abrir seus militares. Ainda persiste no Brasil a ideia de que
arquivos? Quando vai conhecer a verdade? tudo que é militar deve ser secreto, porque inte-
Quando as famílias vão saber o que aconteceu ressa à segurança nacional. Naturalmente é muito
com os desaparecidos? Quando e como será difícil quebrar essa barreira.
realizada a justiça?”. O Brasil é visto de manei-
ra negativa, pois é um país democrático pela IHU On-Line – Como o senhor avalia a
metade e, que além de tudo, protege torturado- afirmação do presidente Lula: “É hora de
res e implantadores de ditaduras. cultuar heróis e parar de xingar quem os
matou”? Vindo de um representante da es-
IHU On-Line – O senhor concorda que es- querda, o que isso significa?
quecer o assunto ditadura é o mesmo que Dalmo Dallari – O presidente Lula está preo-
esquecer suas vítimas, portanto matá-las cupado em manter um ambiente de tranquilida-
duas vezes? de e serenidade, o que torna mais fácil a ação
Dalmo Dallari – Sem dúvida alguma, o esque- de governo. Talvez seja apenas isso, um gesto no
cimento é uma ofensa à memória das vítimas e as sentido de evitar uma radicalização que só vai
famílias. Entretanto, é absolutamente falso dizer
que o silêncio vai lançar o esquecimento. As vio-
lências foram tantas e as agressões tamanhas, que 70 Jair Bolsonaro (1955): militar e político brasileiro. É
é impossível esquecer. conhecido por suas idéias ultra-nacionalistas e conserva-
doras, criticando fortemente as esquerdas. (Nota da IHU
On-Line)

87
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

trazer perturbação, desordem, sem nenhum efei- Dalmo Dallari – Não. A compensação é pelo
to prático. prejuízo sofrido, não é nenhuma agressão aos di-
reitos humanos. A Anistia foi prejudicial, porque
IHU On-Line – Em que medida a Lei da deixou pairando no ar essa ameaça constante de
Anistia prejudicou os direitos humanos no novos golpes, novas ditaduras; porque os que
país? As indenizações pagas às vítimas da têm vocação ditatorial acreditam numa futura im-
ditadura militar, embora sejam uma com- punidade. Esse é o aspecto mais negativo dessa
pensação, feriram os direitos humanos? exagerada Anistia.

88
Ninguém está acima da lei

Entrevista com Kathryn Sikkink

A cientista política do departamento de Ci- IHU On-Line – No Brasil, os arquivos da


ências Políticas da Universidade de Minnesota Ka- ditadura ainda não foram abertos. Que di-
thryn Sikkink afirmou, em entrevista exclusiva por reito têm as Forças Armadas de manterem
e-mail à jornalista Márcia Junges e publicada na inacessíveis à sociedade brasileira docu-
edição 269 de IHU On-Line em 18 de agosto de mentos que contribuem para elucidar a sua
2008, por e-mail, que “os julgamentos e a punição própria história?
de torturadores ajudam a construir o Estado de di- Kathryn Sikkink – Como disse Peter Kornbluh,71
reito, deixando claro que ninguém está acima da diretor dos Arquivos de Segurança Nacional, du-
lei. Além disso, a punição deixa claro que haverá rante sua recente visita ao Brasil, as pessoas têm
‘custos’ para os agentes individuais do Estado que direito à informação e direito à transparência, o
se envolverem em abusos dos direitos humanos, que inclui o direito de consultar documentos cru-
e isto pode ajudar a prevenir futuras violações de ciais sobre sua história. Os governos poderão atri-
direitos humanos”. E completa: “Os julgamentos buir caráter secreto a documentos por um perío-
também são acontecimentos altamente simbólicos do razoável de tempo, mas, neste caso, pelo que
que comunicam os valores de uma sociedade de- sei, o Judiciário determinou que as Forças Arma-
mocrática em favor dos direitos humanos e do Es- das abram seus arquivos, e, neste caso, parece
tado de direito”. Em sua opinião, “a tortura, como inquestionável que elas precisam acatar a decisão
crime contra a humanidade, não deveria estar su- do Poder Judiciário.
jeita a leis de anistia ou à prescrição”.
Graduada em Relações Internacionais pela IHU On-Line – Como é possível superar um
Universidade de Minnesota, é mestre na mesma problema que sequer foi enfrentado, como
área, pela Universidade de Columbia. Estudou no a discussão da tortura no Brasil?
Instituto para Estudos Latino-Americanos e Ibé- Kathryn Sikkink – Houve, naturalmente, uma
ricos e é Ph.D em Ciências Políticas e Relações discussão muito importante sobre a tortura no
Internacionais, pela Universidade de Columbia. Brasil, especialmente com a publicação de Bra-
Sikkink é especialista em políticas de direitos hu- sil: nunca mais,72 que foi um livro de ponta no
manos, direitos femininos e justiça social. Outros mundo na época em que foi publicado. O proble-
temas que pesquisa são ativismo político, políti- ma é que a discussão foi encerrada depois e só
ca latino-americana, e tribunais sobre crimes de agora está surgindo de novo. Houve também um
guerra. Além disso, estuda as leis internacionais seminário internacional muito interessante sobre
de direitos humanos. De suas obras, destacamos, tortura na USP em fevereiro de 2008, organizado
Ideas and institutions: developmentalism in Brazil
and Argentina (New York: Cornell University Press,
1991), Activists beyond borders (New York: Cor-
71 Peter Kornbluh: diretor dos Arquivos de Segurança do
nell University Press, 1999) e Mixed messages:
Chile. (Nota da IHU On-Line)
U.S. human rights policy and Latin America (New 72 ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais (8. ed. Petrópo-
York; Cornell University Press, 2004). lis: Vozes, 1985). (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pelo Núcleo de Estudos da Violência, que reabriu nal). Em junho de 2005, a Suprema Corte argen-
essa discussão de novo. tina declarou, por sete votos a um, que as leis de
anistia são inconstitucionais. A Corte citou a juris-
IHU On-Line – Como é possível superar um prudência do Tribunal Interamericano de Direitos
problema que sequer foi enfrentado, como Humanos nos casos de Barrios Altos, que limitou
a discussão da tortura no Brasil? a capacidade da legislação dos estados-membros
Kathryn Sikkink – Minha pesquisa sugere que de promulgar leis de anistia para crimes contra
a impunidade incentiva mais violações de direitos a humanidade. A Suprema Corte também de-
humanos (de muitos tipos diferentes). Portanto, é cidiu que o crime de desaparecimento era um
provável que o fato de o Brasil não responsabili- crime contra a humanidade para o qual não há
zar agentes do Estado por violações dos direitos prescrição. A decisão da Suprema Corte teve o
humanos durante o regime militar possa contri- efeito de permitir que se reabrissem centenas de
buir para criar uma sensação de impunidade no processos envolvendo os direitos humanos que
setor da segurança que leve a mais violações dos tinham ficado encerrados durante os 15 anos an-
direitos humanos atualmente, incluindo violência teriores. No Uruguai, a lei de anistia, chamada de
policial e assassinatos. Ley de Caducidad del Poder Punitivo del Estado,
recebeu inicialmente um apoio adicional quando
IHU On-Line – Recalcar a história através uma tentativa de revertê-la mediante um plebis-
do esquecimento dá margens para que a cito não conseguiu a maioria dos votos. Recen-
população seja condescendente com a re- temente, entretanto, em 2006 e 2007, líderes po-
pressão policial e ache-a legítima quando líticos, juristas e juízes do Uruguai decidiram que
“erradica” sujeitos indesejáveis como os a formulação da lei de anistia não cobre os civis
pobres e negros das periferias? responsáveis por violações de direitos humanos
Kathryn Sikkink – Se se examina a linguagem durante o regime militar nem o alto-comando das
usada efetivamente na lei da anistia no Brasil, vê- Forças Armadas, mas apenas quem “agiu cum-
-se que ela não justifica a tortura. Ela foi simples- prindo ordens de seus superiores no comando”.
mente interpretada por algumas pessoas como se Esta mudança permitiu a realização de julgamen-
implicasse a anistia da tortura. Mas a formulação tos contra o ex-presidente Juan María Bordaber-
da própria lei não diz isso. O que se faz necessário ry73 e o ex-ministro de Relações Exteriores Juan
é uma interpretação técnica da lei para verificar o Carlos Blanco, que estão em prisão preventiva à
que ela diz efetivamente. No mundo inteiro ocor- espera do processo penal. Em dezembro de 2007,
reram tais interpretações de leis de anistia e elas Gregorio Alvarez,74 ex-comandante em chefe do
não concluíram que a tortura seja justificada. Exército e ex-presidente do Uruguai, também foi
indiciado por supostos abusos dos direitos huma-
IHU On-Line – Como é possível se falar em nos durante o período do governo civil-militar. O
direitos humanos e justiça social quando a Chile também tem uma lei de anistia, mas a Cor-
Lei da Anistia brasileira entende a tortura te Suprema chilena decidiu, em 1999, que essa
como “superada” e iguala-a a outros cri- lei não incluía os desaparecimentos, que foram
mes políticos? considerados crimes permanentes e contínuos até
Kathryn Sikkink – Muitos outros países usaram que os corpos fossem localizados, não sendo, por-
leis de anistia, mas, com muita frequência, essas tanto, cobertos pela lei de anistia. Essa decisão
leis acabaram sendo interpretadas no sentido de da Suprema Corte permitiu que centenas de pro-
não concederem anistia a agentes do Estado acu-
sados de crimes graves. Cada uma dessas leis é
ligeiramente diferente. Por exemplo, em agosto 73 Juan María Bordaberry Arocena (1928): militar
de 2003, o Congresso argentino aprovou, com o e presidente uruguaio de 1972 a 1976. (Nota da IHU
apoio do governo Kirchner, uma lei que anulou On-Line)
74 Gregorio Conrado Álvarez Armelino (1925): militar
as leis de anistia (Obediência Debida y Punto Fi-
e presidente uruguaio. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cessos envolvendo os direitos humanos fossem bros do regime anterior negociaram as condições
reabertos e prosseguissem em tribunais chilenos. de sua saída do poder. Os países que tiveram
uma “transição com ruptura”, como a Argentina,
a Bolívia, o Peru, a Grécia e Portugal, inicialmen-
A Lei da Anistia em outros países te tiveram menos dificuldade de adotar múltiplos
mecanismos de justiça de transição, incluindo jul-
Na Grécia, depois do regime militar que fi- gamentos. Mas atualmente até outras “transições
cou no poder de 1967 a 1974, um dos primeiros pactuadas”, como as do Chile e do Uruguai, co-
atos do novo governo Karamanlis foi anunciar meçaram a usar a justiça de transição, e o Brasil
um decreto presidencial que concedia anistia a não acompanhou esta tendência.
todos os opositores do regime que estavam en-
carcerados. Inicialmente, não estava claro se essa IHU On-Line – A ONG Centro pela Justi-
lei também cobria violações de direitos humanos ça e Direito Internacional levou à Comis-
cometidas por membros do regime militar. Mas, são Interamericana de Direitos Humanos o
em outubro de 1974, o governo Karamanlis emi- Caso Araguaia, contra o Estado brasileiro,
tiu um novo ato constitucional que excluía expli- cobrando a omissão e inoperância do go-
citamente os principais líderes do regime militar verno por não ter investigado e punido os
do Decreto de Anistia de julho de 1974 e dava responsáveis pelos desaparecidos da guer-
ao Judiciário a responsabilidade de investigar e rilha do Araguaia. A acusação diz, no pro-
processar altos agentes do Estado por traição, tor- cesso, que a Lei da Anistia institucionaliza
tura e assassinato. Depois da revolução de 1974 a impunidade no Brasil. Você concorda?
em Portugal, houve exigências imediatas de que a Kathryn Sikkink – Sim, concordo pelas razões
polícia política (PIDE) e outros órgãos repressivos expostas acima. Mas eu deveria esclarecer que
fossem levados à justiça, e muitos membros do esta tem sido a posição consiste da Comissão
regime autoritário acabaram sendo afastados e se Interamericana de Direitos Humanos em outros
exilaram. Além disso, muitos integrantes da PIDE processos envolvendo o Peru, a Argentina e o
foram julgados e condenados a cumprir penas Uruguai, e não somente o Brasil. A Comissão e o
breves de reclusão. Uma lei de anistia foi redigi- Tribunal têm determinado coerentemente que as
da na Guatemala para excluir explicitamente da leis de anistia são contrárias às obrigações do Es-
anistia qualquer pessoa que cometesse genocídio tado sob a Convenção Interamericana de Direitos
ou crimes contra a humanidade. A Espanha é um Humanos.
dos poucos países onde nunca houve processos
penais por violações dos direitos humanos come- IHU On-Line – De que maneira a punição
tidas durante a guerra civil e o regime autoritário de torturadores pode consolidar o regime
de Franco. Na Espanha, há atualmente um novo democrático, e os direitos humanos?
movimento pela recuperação da memória históri- Kathryn Sikkink – Os julgamentos e a punição
ca que levou à exumação de muitas valas comuns de torturadores ajudam a construir o Estado de
do período da guerra civil, mas virtualmente to- direito, deixando claro que ninguém está acima
dos os perpetradores de violações dos direitos hu- da lei. Além disso, a punição deixa claro que ha-
manos estão mortos e não há julgamentos que verá “custos” para os agentes individuais do Es-
estejam avançando. tado que se envolverem em abusos dos direitos
humanos, e isto pode ajudar a prevenir futuras
IHU On-Line – Como compreender que no violações de direitos humanos. Os julgamentos
Brasil não existiu a chamada justiça de também são acontecimentos altamente simbóli-
transição, como no Chile, Peru, Argentina cos que comunicam os valores de uma sociedade
e Uruguai? democrática em favor dos direitos humanos e do
Kathryn Sikkink – O Brasil teve uma “transição Estado de direito.
pactuada” para a democracia em que os mem-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Sendo a tortura um crime Além disso, como o primeiro dos golpes militares,
contra a humanidade, ele não prescreve. como um país grande e importante e como um
Como deve ele deve ser julgado? estreito aliado dos EUA, o regime autoritário bra-
Kathryn Sikkink – Os torturadores, seja nos Es- sileiro teve grande influência sobre outros regimes
tados Unidos, seja no Brasil, deveriam ser julga- autoritários da região.
dos com um cuidadoso processo justo e atenção
às provas. A tortura, como crime contra a huma- IHU On-Line – Como a Justiça e o Estado
nidade, não deveria estar sujeita a leis de anistia deveriam lidar com as memórias de dor, so-
ou à prescrição. frimento e lembrança das vitimas da dita-
dura militar?
IHU On-Line – Como você percebe a dita- Kathryn Sikkink – Há múltiplos mecanismos
dura brasileira no contexto latino-america- de justiça de transição que podem ajudar a de-
no, tomando em consideração a Operação mocracia e ajudar as vítimas. O secretário Pau-
Condor? lo Vannucchi já deu um passo muito importante
Kathryn Sikkink – A ditadura militar brasileira rumo à busca da verdade com a publicação do
teve menos assassinatos e desaparecimento do extenso volume Direito à memória e à verdade,
que outros países, como a Argentina, o Chile, a que é o primeiro relatório oficial do Brasil sobre
Guatemala ou El Salvador. Teve, entretanto, mui- essas violações. O Ministério Público está tocan-
tos, muitos milhares de vítimas de tortura e pri- do em frente alguns processos importantes envol-
são ilegal. Como Peter Kornbluh explicou sema- vendo os direitos humanos. Projetos de história
na passada no Brasil, temos agora documentos oral sobre esse período estão em andamento (por
oficiais que mostram que o Brasil foi um mem- exemplo, um na Unicamp). Portanto, alguns pas-
bro pleno da Operação Condor, fornecendo, por sos importantes já foram dados, e, ainda assim,
exemplo, a infra-estrutura de telecomunicações. muito mais pode ser feito ainda.

92
A apuração da verdade: grande medo das instituições militares

Entrevista com Edson Teles

Considerada a mais violenta da América La- Janaína, na época da ditadura militar. Em 2007,
tina pelos pesquisadores Edson Teles e Vladimir junto com os pais, a irmã e sua tia, processou o
Safatle, a ditadura brasileira precisa ser mensura- coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para que
da não pelos desaparecidos que produziu, “mas ele fosse declarado torturador, tendo obtido ga-
pelo impacto que gerou no país, o que se perce- nho de causa na primeira instância.
be pela herança autoritária vivida em democra- Graduado, mestre e doutor em Filosofia pela
cia”, acentua Teles na entrevista que concedeu Universidade de São Paulo – USP, escreveu a tese
por e-mail à jornalista Márcia Junges e publicada Brasil e África do Sul: Memória política em de-
na edição 358 de IHU On-Line em 18 de abril mocracias com herança autoritária. Leciona na
de 2011. Entre os inúmeros “restos” deixados por Universidade Federal de São Paulo e é um dos
esse regime autoritário em nosso país, o maior organizadores das seguintes obras: O que resta
deles é a cultura da impunidade “que privilegia da ditadura: A exceção brasileira (São Paulo: Boi-
a violência e os que detêm o poder político em tempo, 2010), Desarquivando a Ditadura: memó-
detrimento da ideia de uma cidadania plena”. ria e justiça no Brasil (São Paulo: Hucitec, 2009) e
Tal impunidade vale, inclusive, para aqueles que Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos
pensam que podem torturar “bandidos” e pessoas no Brasil (1964-1985) (São Paulo: Impressa Ofi-
“perigosas”. Já que torturadores da ditadura não cial, 2009).
receberam a devida punição, por que alguém que
tortura presos e menores infratores a receberia? IHU On-Line – O que resta da ditadura em
Teles analisa, também, o motivo pelo qual as For- nosso país? Qual é a pior herança deixada
ças Armadas de hoje não querem que se apurem pelos torturadores?
crimes de ontem. Para ele, trata-se de uma ques- Edson Teles – Há uma série de “restos” da di-
tão de poder político: “as instituições militares tadura militar. Poderíamos dizer que a maior de-
detêm um poder abusivo em nossa democracia, las encontra-se na imposição de uma cultura de
garantido pela Constituição Federal, e a apura- impunidade, que privilegia a violência e os que
ção da verdade do período ditatorial apontaria detêm o poder político em detrimento da ideia de
com clareza algo que já está comprovado pelas uma cidadania plena. Apesar de sairmos da di-
pesquisas históricas: a ditadura não foi ‘branda’ tadura com uma Assembleia Constituinte (1986-
e sua ação repressiva não foi fruto de um setor 1988) e a nossa Constituição ser considerada
radicalizado dos militares”. E ressalta: “A reforma liberal e democrática, uma série de aspectos, es-
institucional, fruto da apuração da verdade, é o pecialmente aqueles que se referem às estruturas
grande medo das instituições militares”. jurídicas e institucionais do sistema de segurança
Teles foi o mais jovem preso político brasi- pública e das Forças Armadas em quase nada fo-
leiro, com apenas dois anos de idade, quando foi ram alterados em relação à Constituição outorga-
detido com seus pais, César Augusto Teles e Ma- da pelos militares em 1967. A ingerência das For-
ria Amélia de Almeida Teles, bem como a irmã ças Armadas na política brasileira e os privilégios

93
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que os militares têm indicam que a nossa Lei em Edson Teles – Este consenso favorece não só os
democracia ainda fez a opção pela consolidação setores diretamente envolvidos com a repressão
de cidadãos que são “melhores” e mais podero- política (militares e sistema policial), mas uma boa
sos do que a maioria de nós. parte dos partidos e instituições políticas que ob-
tém vantagens com a democracia nos dias atuais.
IHU On-Line – Por que você e Vladimir Sa- Vejamos um exemplo: se os torturadores da dita-
fatle75 afirmam que a ditadura brasileira foi a dura não são punidos, qual o receio em praticar a
mais violenta da América Latina? tortura por parte de certos funcionários das anti-
Edson Teles – Há um forte aspecto de violência gas Febens (instituições para adolescentes infrato-
da ditadura brasileira que é justamente sua he- res) ou das delegacias de polícia? Muito pequeno.
rança. Além dos limites apontados anteriormente, Cria-se e dissemina-se uma ideia na sociedade
há uma ação política no país cuja marca é o au- de que a tortura é algo permitido, desde que seja
toritarismo. Hoje se governa mais com decretos para os “bandidos”, pessoas “perigosas”, como
e medidas provisórias do que em qualquer outra foram os “subversivos” de então.
época da história de nossa República, mais inclu- Contudo, a memória não se configura como
sive do que no período militar. Um bom exemplo um instrumento de bloqueio da política autori-
é o desejo do Executivo atual de decidir por de- tária. Ela é um significante modo de articulação
creto o valor do salário mínimo. O grave proble- das relações sociais e políticas e seu benefício está
ma que este tipo de instrumento jurídico implica é em permitir a nossa sociedade refletir sobre o que
o descumprimento dos procedimentos democráti- ocorreu e o que ocorre e, a partir dos debates
cos de decisão sobre o futuro do país, alijando da produzidos, propiciar a criação de mecanismos
política a grande maioria da sociedade civil. democráticos de garantia de direitos e de justiça.
A ideia forte que eu e Vladimir procuramos O que quero dizer é que a memória deve ser livre,
mostrar é a de uma ditadura não se mede pelo não deve ser nem um dever, nem um direito, mas
número de mortos e desaparecidos que produziu ser exercida e praticada livremente em uma esfera
(cerca de 500 no Brasil, 20 mil na Argentina e pública democrática.
5 mil no Chile), mas pelo impacto que gerou no
país, o que se percebe pela herança autoritária IHU On-Line – Por que as Forças Armadas
vivida em democracia. de hoje temem a punição dos torturadores
de ontem?
IHU On-Line – Há uma espécie de consen- Edson Teles – Certamente boa parte dos mem-
so em calar, abrandar ou negar o que houve bros das Forças Armadas de hoje não foram tor-
nos anos de chumbo. Qual é o papel da me- turadores na ditadura. Entretanto, ainda assim,
mória e da resistência nesse sentido? a instituição não aceita a apuração dos crimes
praticados pelos generais daquela época. Isto se
75 Vladimir Safatle: filósofo brasileiro, graduado pela deve, ao que parece, principalmente a uma ques-
Universidade de São Paulo – USP e em Comunicação
tão de poder político. Como já disse, as institui-
Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing –
ESPM. Também é mestre em Filosofia pela USP e doutor ções militares detêm um poder abusivo em nossa
pela Université de Paris VIII. Atualmente, é professor da democracia, garantido pela Constituição Federal,
USP. É um dos coordenadores da International Society of e a apuração da verdade do período ditatorial
Psychoanalysis and Philosophy. É autor de A paixão do
negativo: Lacan e a dialética (São Paulo: Unesp, 2006) e
apontaria com clareza algo que já está comprova-
Lacan (São Paulo: Publifolha, 2007) e um dos organiza- do pelas pesquisas históricas: a ditadura não foi
dores de A filosofia após Freud (São Paulo: Humanitas, “branda” e sua ação repressiva não foi fruto de
2008). Confira as seguintes entrevistas concedidas por um setor radicalizado dos militares (a chamada
Safatle à IHU On-Line: A verdadeira face do Supremo
Tribunal Federal, disponível em <http://bit.ly/gNzDRv>; “linha dura). Ela foi muito bem organizada e so-
Racionalidade cínica, raiz da anomia social, disponível em fisticada; a tortura e o desaparecimento serviram
<http://bit.ly/fEVumn>; Totalitarismos: uma reflexão políti- a uma política decidida no mais alto escalão mi-
co-social e libidinal, disponível em <http://bit.ly/gkK1qn>.
litar. De posse desta verdade, a sociedade brasi-
(Nota da IHU On-Line)

94
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

leira necessariamente terá que rever a função dos Edson Teles – Não. O passado de alguém é mui-
militares, ou ao menos refletir se são estas Forças to importante na compreensão de seu presente,
Armadas que queremos para o futuro do país. A mas não garante que ele vá agir de algum modo
reforma institucional, fruto da apuração da ver- determinado. Os dois primeiros presidentes elei-
dade, é o grande medo das instituições militares. tos de nossa democracia que terminaram o man-
dato foram vítimas da ditadura. Contudo, nem
IHU On-Line – Quais são as semelhanças e FHC e nem Lula tiveram a coragem (aquela que
diferenças entre as democracias com heran- teve Mandela) de abrirem os arquivos militares e
ças autoritárias do Brasil e da África do Sul? localizarem os desaparecidos políticos. Ao contrá-
Edson Teles – A África do Sul fez a opção pela rio, como dissemos, preferiram compor com os
narrativa e publicidade dos crimes do Apartheid. setores herdeiros da ditadura.
O Brasil escolheu o silêncio. A anistia sul-africana
foi individual, caso a caso, crime a crime, e só foi IHU On-Line – Nessa lógica, Dilma Rous-
concedida depois da confissão pública do ato cri- seff, por ter sido presa política, irá dar um
minoso e do esclarecimento do que foi feito com o tratamento diferenciado às questões rela-
corpo das vítimas. No Brasil, como vocês sabem, cionadas à ditadura?
a anistia foi genérica e, simbolicamente, acabou Edson Teles – Novamente não. É claro que co-
por tornar inimputáveis os autores de crimes bár- nhecer tão bem quanto ela o que se passou no
baros praticados enquanto eram funcionários do período abre uma chance de ouro para a nossa
Estado, com salários pagos pelo contribuinte e democracia. Mas ela sofre e sofrerá as maiores
sem qualquer motivação política. pressões para que nada se modifique. O que
poderá garantir um tratamento diferenciado é a
IHU On-Line – A África do Sul parece ter li- pressão política e social para que aprofundemos
dado melhor com as questões do período di- nossa democracia. Cito um exemplo: faz mais de
tatorial do que o Brasil. A que se deve isso? 10 anos que os movimentos de direitos humanos
Edson Teles – Há uma série de fatores. Porém, ligados ao tema exigem uma Comissão da Verda-
o principal deles é a coragem e determinação dos de e da Justiça no país. Somente agora, do ano
que assumiram a construção da nova democracia passado para cá, é que nossa democracia come-
multirracial. Eles sabiam que a maioria negra não çou a tocar no assunto. Por que será? Certamen-
iria aderir ao novo regime se não houvesse atos te se deve ao fato de a Corte Interamericana de
de justiça consistentes. No Brasil, a maior parte Direitos Humanos, da Organização dos Estados
dos democratas, dos que vivenciaram a transi- Americanos – OEA, ter condenado o Estado bra-
ção política, escolheram a composição com os sileiro a responsabilizar penalmente os crimino-
antigos criminosos. Como podemos ter uma de- sos, apurar as circunstâncias dos crimes, localizar
mocracia plena se o presidente de um dos três os restos mortais dos desaparecidos, entre outras
poderes da República encontra-se nas mãos de medidas.
um dos maiores líderes civis da ditadura, José
Sarney (lembre-se que ele liderava a Arena, par- IHU On-Line – O que uma possível aber-
tido do governo militar, quando da aprovação da tura dos arquivos da ditadura por Dilma
Lei de Anistia em 1979). Rousseff pode mudar em relação à memó-
ria que temos do período militar, e em rela-
IHU On-Line – O recurso da anistia tam- ção às gerações futuras?
bém foi usado na África do Sul? Por que Edson Teles – A mudança será extrema. Vere-
essa foi a medida tomada no caso de nosso mos que o país ainda vive sob instituições au-
país? No caso da África do Sul a questão da toritárias que devem ser reformadas para que a
ditadura foi resolvida em função de Nelson democracia e a justiça ganhem um valor maior.
Mandela ter sido preso político e primeiro Poderemos, inclusive, começar a transformar a
presidente eleito democraticamente? cultura de violência e impunidade, não só em re-

95
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lação aos crimes do passado, mas em relação à democracias apurem os crimes. Hoje, temos no
violência dos dias atuais. Há um estudo da soció- banco dos réus naquele país dois ex-presidentes
loga Kathryn Sikkink76, da Universidade de Min- generais, um dos quais já condenado em outro
nesota (EUA), demonstrando que os países da processo à prisão perpétua, e nenhum golpe ou
América Latina que puniram os torturadores do instabilidade foi provocado por isto.
passado e apuraram a verdade de suas ditaduras O Chile, ao começar seus processos pela pu-
sofreram uma considerável redução da violência nição dos crimes de desaparecimento, levou em
atual se comparados com os países que quase consideração que este é um crime de sequestro
nada ou nada fizeram como o Brasil. continuado, já que o corpo não foi localizado. Isto
permite ao ordenamento jurídico não levar em
IHU On-Line – Como as experiências do consideração anistias como a brasileira de 1979,
Uruguai, Argentina, Chile e El Salvador na medida em que estes crimes continuaram após
com suas ditaduras ajudam a redesenhar o a aprovação destas leis. No Brasil, podemos jul-
mapa dos direitos humanos e da memória gar e condenar os responsáveis pelos desapare-
na América Latina? cimentos mesmo sem reinterpretação da lei de
Edson Teles – A Argentina nos mostra que é anistia, como fez o Chile.
possível e, mais do que isto, desejável, que nossas

76 Kathryn Sikkink: cientista política norte-americana,


graduada em Relações Internacionais pela Universidade
de Minnesota (onde leciona), e mestre na mesma área,
pela Universidade de Columbia. Estudou no Instituto para
Estudos Latino-Americanos e Ibéricos e é Ph.D em Ciên-
cias Políticas e Relações Internacionais, pela Universidade
de Columbia. Sikkink é especialista em políticas de direitos
humanos, direitos femininos e justiça social. É autora de,
entre outros, Ideas and institu tions: developmentalism in
Brazil and Argentina (New York: Cornell University Press,
1991). (Nota da IHU On-Line)

96
A lei da anistia e o esquecimento da barbárie da ditadura

Entrevista com Jair Krischke

Com a Lei de Anistia os militares brasileiros Jair Krischke – A memória, diz Pilar Calvei-
queriam “promover o esquecimento do barbaris- ro, encarrega-se de desfazer e de refazer, sem
mo que promoveram durante os largos anos de tréguas, aquilo que evoca. Porque é um ato de
ditadura. Equivocaram-se redondamente! A toda recriação do passado desde a realidade do pre-
hora, saltam dos mais variados ‘armários’ esquele- sente, projetando-se para o futuro. É desde as
tos que os interrogam com toda a veemência. Não premências atuais que se interroga o passado,
haverá trégua até que se conheça toda a verdade rememorando-o. Entretanto, ao mesmo tempo,
sobre o terrorismo de Estado que foi promovido no é das particularidades desse passado, respeitan-
Brasil”. A constatação é do advogado Jair Krischke do suas coordenadas específicas, que podemos
na entrevista que concedeu por e-mail à jornalista construir uma memória fiel. Certamente, os mili-
Márcia Junges e publicada na edição 358 de IHU tares brasileiros pretendiam com esta Lei de Anis-
On-Line em 18 de abril de 2011. Para ele, um dos tia promover o esquecimento do barbarismo que
problemas mais graves que enfrentamos em nos- promoveram durante os largos anos de ditadu-
so país é a impunidade, que vai se consolidando ra. Equivocaram-se redondamente! A toda hora
como paradigma. “Muito se fala em reconciliação saltam dos mais variados “armários” esqueletos
da sociedade brasileira, mas esquecem-se de que, que os interrogam com toda a veemência. Não
para haver uma verdadeira reconciliação, faz-se haverá trégua até que se conheça toda a verdade
necessário, fundamental mesmo, o autor da ofensa sobre o terrorismo de Estado que foi promovido
reconhecê-la como de sua autoria, arrepender-se no Brasil.
e pedir perdão à vitima. Com o ânimo ainda exis-
tente nas forças armadas brasileiras, seria possível IHU On-Line – Como compreender que a
esperar este gesto?” E completa: “Historicamente, Lei de Anistia tenha abrangido crimes con-
os militares sempre se dão bem no Brasil, mesmo tra a humanidade, como aqueles perpetra-
quando praticam crimes os mais horrendos”. dos pelos militares torturadores?
Formado em História pela Universidade Fe- Jair Krischke – Qualquer pessoa, razoavelmen-
deral do Rio Grande do Sul – UFRGS, Krischke te alfabetizada, lendo o texto da Lei de Anistia,
é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argenti- poderá entender que não é bem assim. Senão,
na, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou vejamos:
o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Art. 1º – É concedida anistia a todos quan-
Rio Grande do Sul, a principal organização não tos, no período compreendido entre 2 de setem-
governamental ligada aos Direitos Humanos da bro de 1961 e 15 de agosto de 1979, comete-
Região Sul do Brasil. Também é o fundador do ram crimes políticos ou conexo com estes, crimes
Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno. eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos
suspensos e aos servidores da Administração Di-
IHU On-Line – Hoje a Lei de Anistia bra- reta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder
sileira representa esquecimento? Por que e público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e
em que sentido? Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e repre-

97
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sentantes sindicais, punidos com fundamento em Não ser igual para ambos os lados, creio ha-
Atos Institucionais e Complementares. ver respondido anteriormente. Mas sempre é bom
§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito chamar a atenção para o seguinte:
deste artigo, os crimes de qualquer natureza rela-
Lei de Anistia
cionados com crimes políticos ou praticados por
§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anis-
motivação política.
tia os que foram condenados pela prática de cri-
Os agentes do Estado, quer sejam civis ou
mes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado
militares, não podem cometer “crimes políticos
pessoal.
ou conexos”, pois representam o “Estado”, que,
Este parágrafo 2º diz claramente o que não
no exercício de seu múnus, não praticam atos
foi anistiado pela Lei, os chamados “crimes de
“políticos”, e sim atos de Estado. É por essa ra-
sangue”. Depois da promulgação da lei, muitos
zão que nós, os militantes de direitos humanos,
militantes continuaram presos, tanto que até gre-
chamamos estes acontecimentos de “terrorismo
ve de fome fizeram.
de Estado”.
IHU On-Line – O que uma nova interpreta-
IHU On-Line – Por que foi escolhido o re-
ção da lei da anistia pode representar para
curso da anistia na esteira pós-ditadura
a memória e os direitos humanos no Bra-
com o recorte específico que teve? Quais
sil? E como isso pode repercutir na conso-
são suas principais limitações e por que ela
lidação da nossa democracia ainda jovem e
não pode valer para ambos os lados (os que
imperfeita?
lutavam pela liberdade do Brasil, e aqueles
Jair Krischke – Não se trata de uma nova in-
que se valiam do aparato estatal para co-
terpretação, trata-se tão só e simplesmente de
meter crime de lesa-humanidade)?
interpretá-la corretamente. Além do mais, com a
Jair Krischke – O recurso da Lei de Anistia tem
decisão da Corte Interamericana de Direitos Hu-
um histórico muito expressivo na América Latina,
manos, que condenou o Brasil por descumprir
seguidamente sacudida por ditaduras cruéis. É a
sua obrigações internacionais, determinou que a
forma de reconciliar aqueles que, frente à tirania,
Lei de Anistia é totalmente inválida, no que se
decidiram rebelar-se, lutando para reconquistar
refere a impunidade dos repressores, não sendo
um patamar democrático aceitável. Estes, sim,
reconhecida em nível internacional.
são passiveis dos benefícios da anistia e ninguém
Quanto à memória, ou seja, o conhecimento
mais. Na Declaração dos Direitos do Homem e
da verdade dos acontecimentos, ao que parece
do Cidadão (Revolução Francesa), já se encon-
vamos lentamente avançando. Isto porque en-
trava consagrado o direito à rebelião:
contra-se no Congresso Nacional um projeto de
Art. 2.º A finalidade de toda associação po-
lei quer trata da criação de uma “Comissão da
lítica é a conservação dos direitos naturais e im-
Verdade” que, segundo a impressa, é prioritário
prescritíveis do homem. Esses direitos são a liber-
para a presidenta Dilma. São atos e fatos que vão
dade, a propriedade, a segurança e a resistência
consolidando uma jovem democracia, de um país
à opressão.
que não é muito afeito a ela.
Também na novel constituição portuguesa
encontramos:
IHU On-Line – A Justiça brasileira está lon-
Artigo 21. ge de seguir os exemplos dos tribunais da
Direito de resistência Argentina, Chile e Uruguai, que já abriram
Todos têm o direito de resistir a qualquer or- seus arquivos da época da ditadura? Como
dem que ofenda os seus direitos, liberdades e ga- esses países lidaram com o pós-ditadura?
rantias e de repelir pela força qualquer agressão, Jair Krischke – A Justiça, quer seja no Brasil ou
quando não seja possível recorrer à autoridade em qualquer outra parte, é sempre o último po-
pública. der a redemocratizar-se. A Constituição diz sole-

98
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nemente que todo o poder emana do povo e em em 12 de setembro de 1978. Na ocasião, intervi-
seu nome será exercido. Não conheço qualquer mos com o Alto Comissariado das Nações Unidas
pessoa que, em um pleito eleitoral, tenha sido para Refugiados e conseguimos levá-los para a
chamada a votar em juízes e desembargadores. Suécia, na condição de asilado. Nunca mais tive
Para cúmulo, nosso Supremo Tribunal Federal, notícias deles. Agora, ele reaparece, bem docu-
provocado pela OAB Nacional, pronunciou-se mentado, provando o que lhe aconteceu
pela constitucionalidade da Lei de Anistia, tal naqueles dias.
qual a interpretam os que violaram os direitos hu-
manos dos brasileiros. Mesmo os ministros que IHU On-Line – Não se trata de vingança,
votaram favoravelmente, o fizeram usando uma mas de justiça o fato de se punir os cri-
argumentação simplesmente lamentável. mes cometidos contra a humanidade no
Em relação à Argentina, o Supremo Tribu- período da ditadura brasileira. Poderia
nal julgou absolutamente inconstitucional as leis comentar essa diferença de interpretação
de Obediencia Debida e a de Punto Final. Daí quanto ao que realmente significa punir os
em diante, toda a Justiça da Argentina retomou torturadores?
os julgamentos de muitíssimas causas, com um Jair Krischke – Punir aos torturadores signifi-
número apreciável de condenações. No Uruguai ca fazer justiça tão somente. Um dos mais gra-
passou-se o mesmo: sua Suprema Corte enten- ves problemas de nosso país é justamente a im-
deu inconstitucional a Lei de Caducidad, para punidade, que certamente se origina neste fato,
alguns casos, que foram demandados. Por outro ou seja, se pode matar, torturar, desaparecer que
lado, o plebiscito que pretendia anular a referida não acontece nada. Esta cultura pouco a pouco
Lei de Caducidad foi derrotado nas ultimas elei- vai impregnando o tecido social, tornando-se pa-
ções, impedindo assim, uma total abrangência. radigma. Muito se fala em reconciliação da socie-
Mas, mesmo com dificuldades, o último presiden- dade brasileira, mas esquecem-se de que, para
te eleito antes do golpe, Bordaberry77 (um golpis- haver uma verdadeira reconciliação, faz-se ne-
ta por excelência), e o presidente da ditadura, ge- cessário, fundamental mesmo, o autor da ofensa
neral Gregório Alves, cumprem pena de 25 anos reconhecê-la como de sua autoria, arrepender-se
de prisão, bem como um ex-ministro de Relações e pedir perdão à vitima. Com o ânimo ainda exis-
Exteriores, e vários oficiais de alta patente. tente nas forças armadas brasileiras, seria possível
No Chile, mesmo vigente uma Lei de Anis- esperar este gesto?2
tia, vários generais e coronéis cumprem largas
penas de prisão. Na verdade, poucos arquivos IHU On-Line – Na Europa há toda uma
foram abertos; porém, já se tem acesso a mui- conscientização sobre o que significou o
to material da repressão nestes países. Como se Holocausto. Já no Brasil, os anos de chum-
pode ver, nada de maior aconteceu no processo bo da ditadura são maquiados, para dizer
de redemocratização dos países referidos, prova o mínimo. O que explica essa diferença de
de que é possível avançar, consolidando a demo- conduta e compreensão?
cracia em nossos países. Jair Krischke – Vejamos alguns dados.
Mesmo sem a abertura de arquivos, vamos Tribunal de Nuremberg
progredindo a cada dia. São aquelas vítimas 285 dias de julgamentos
que, amedrontadas, ainda não haviam contado Ouviu 240 mil testemunhas – anotou 300 mil de-
suas histórias, o que está acontecendo agora. Por clarações – gerando 4 bilhões de palavras
exemplo, agora mesmo, um cidadão argentino Acusação final: 25 mil páginas
que vivia com sua família e trabalhava em Pas- Condenados: 9 à morte – 12 à perpétua – 6 a
so Fundo, foi vítima de uma Operação Condor, penas de 10 a 20 anos – 3 absolvidos.
É a diferença de cultura. Aqui, os poderosos
77 Juan María Bordaberry Arocena (1928): militar e pre-
podem tudo! Historicamente, os militares sempre
sidente uruguaio de 1972 a 1976. (Nota da IHU On-Line)

99
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

se dão bem no Brasil, mesmo quando praticam É bom ter em conta que nossas polícias
crimes os mais horrendos. sempre foram violentas e adeptas da tortura. O
que mudou com a ditadura foi a sofisticação da
IHU On-Line – A violência das Forças Ar- tortura. Também faz parte do entulho autoritário
madas do período ditatorial migrou para a criação das polícias militares por Decreto Lei,
que outras instituições brasileiras? A se- vinculadas ainda hoje ao Exército brasileiro. Em
mente da violência atual do aparato poli- Brasília, no famoso Forte Apaches, existe uma
cial foi plantada na ditadura? porta com a placa “Inspetor Geral das Polícias
Jair Krischke – Vamos examinar alguns dados Militares”, exercido por um general. Sempre é
sobre o aparelho repressivo no Brasil: bom lembrar, quando nos dizem, por exemplo:
Número de agentes: 24 mil a Brigada Militar tem 170 anos. Sim, é verdade,
Prendeu por razões políticas: 50 mil pessoas mas como exército particular do governador do
Torturou: 20 mil pessoas estado, é o mesmo caso das Forças Públicas de
São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco.

100
A anistia não é esquecimento ou amnésia

Entrevista com José Carlos Moreira Filho

“Os crimes cometidos pelo Estado devem taduras para democracias, o Brasil tem muito a
ser o principal foco de uma sociedade preo- aprender com a Argentina, o Uruguai, a África
cupada em diminuir a violência que a aflige e em do Sul e ainda outros países, como o Chile, por
respeitar os direitos humanos”. A afirmação é do exemplo. Em relação aos países que mencionei, o
advogado José Carlos Moreira Filho, na entrevista Brasil é o que menos avançou no campo da justi-
que concedeu por e-mail à jornalista Márcia Jun- ça de transição, que engloba o direito à memória
ges e publicada na edição 358 de IHU On-Line e à verdade, a justiça, a reparação e a reforma
em 18 de abril de 2011. E continua: “A ditadura das instituições. Creio que o maior aprendizado
anteviu o seu próprio fim e garantiu que ele fosse oferecido por estas experiências a qualquer país
o mais vantajoso possível para os seus agentes e que queira aprender, e ao Brasil em particular, é
torturadores, concedendo a eles, de modo propo- perceber que a verdade não deve ser temida, que
sitadamente vago, uma anistia isenta de qualquer expor publicamente as atrocidades cometidas por
investigação ou esclarecimento em relação aos agentes do Estado não significará um retrocesso
seus crimes, enquanto que para os perseguidos democrático ou uma instabilidade política. Muito
políticos a anistia não foi geral, visto que os con- pelo contrário.
denados pela participação na luta armada não
foram anistiados por esta lei”.
José Carlos Moreira da Silva Filho é mestre Violência legítima
em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC, doutor em Di- Os piores crimes que podem ser cometidos
reito das Relações Sociais pela Universidade Fe- são exatamente os crimes praticados pelo Estado.
deral do Paraná – UFPR. Atualmente é professor É célebre a afirmação de Max Weber78 de que o
da Faculdade de Direito da Pontifícia Universida- Estado detém o monopólio da violência legítima
de Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Con-
selheiro da Comissão de Anistia do Ministério da 78 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considera-
Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos do um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante
sobre Internacionalização do Direito e Justiça de e o espírito do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia
das Letras, 2004) é uma das suas mais conhecidas e
Transição – IDEJUST. importantes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line
dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004, intitu-
IHU On-Line – O que o Brasil tem a aprender lada Max Weber. A ética protestante e o espírito do ca-
pitalismo 100 anos depois, disponível para download
com a experiência de países vizinhos como
em <http://migre.me/30rKx>. De Max Weber o IHU
a Argentina e Uruguai, e de outros mais dis- publicou o Cadernos IHU em Formação nº 3, 2005,
tantes como a Espanha e a África do Sul na chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. Em 10-
condução dos seus processos pós-ditadura? 11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou
a conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos
José Carlos Moreira Filho – Sem dúvida que, Repensando os Clássicos da Economia, promovido
com relação aos processos transicionais de di- pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética pro-
testante para o capitalismo. (Nota da IHU On-Line)

101
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

dentro de uma sociedade, e também é conhecida Neste sentido, a diferença entre ela é o Supremo
a incrível margem de autonomia e discricionarie- Tribunal Federal brasileiro é abissal.
dade dos agentes públicos na definição do que Quanto à Espanha, mencionada na pergun-
é violência legítima. O Estado detém um vasto ta, creio que não se deve incluí-la no rol de países
aparelho repressivo, composto de polícias e forças mais avançados nos processos de transição. A di-
armadas, organizado, burocrático e for temente tadura franquista foi tão ou mais sanguinária que
armado. Nenhuma organização criminosa pode a ditadura argentina. No entanto, há uma grande
igualar tal poderio, a não ser que seja uma es- diferença sobre como ambos os países lidam com
pécie de protoestado. Isto significa que os crimes seu passado ditatorial. O processo transicional es-
cometidos por ele devem ser o principal foco de panhol é parecido com o brasileiro, no sentido de
uma sociedade preocupada em diminuir a violên- que ainda se cerca do silêncio como característi-
cia que a aflige e em respeitar os direitos huma- ca central. Basta ver a reação das elites judiciais
nos. Uma sociedade que expõe os crimes cometi- espanholas e outras em relação à iniciativa do juiz
dos pelos seus agentes públicos e deles exige uma Baltazar Garzon de investigar os crimes da dita-
conduta compatível com o respeito aos direitos dura franquista.
mais básicos de todos os cidadãos é, sem dúvida,
uma sociedade que inibe a violência e que produz IHU On-Line – Por que o Brasil não con-
um espaço público mais digno e democrático. segue dialogar com seu passado ditatorial?
Os índices de violência policial e judicial José Carlos Moreira Filho – Em seu livro Di-
estão aí para quem quiser observar. O Brasil se tadura e Repressão, no qual promove um estudo
apresenta como uma espécie de campeão desses comparado sobre a judicialização da repressão na
índices e o silêncio e a negação são o ambien- Argentina, no Chile e no Brasil, o cientista polí-
te ideal para a propagação e a continuidade da tico Anthony Pereira79 identifica um curioso pa-
violência. Por isto não devemos temer a verdade. radoxo no caso brasileiro.80 De todos os três pa-
Temos o dever de investigá-la e de expô-la. íses, o Brasil foi aquele que melhor judicializou
a repressão ditatorial e construiu uma legalidade
autoritária mais ampla, arraigada e vinculada à
Anistia não é amnésia ordem jurídica anterior. Tal se deve, entre outros
fatores, ao alto grau de coesão entre as elites ju-
Na África do Sul a anistia concedida aos diciais e as forças armadas, o que levou os con-
agentes perpetradores vinculados à política cri- dutores do golpe e da sua manutenção à opinião
minosa do Apartheid não foi uma anistia bran- de que o judiciário era “confiável”, e que, por-
ca e geral, como foi por aqui. O princípio posto tanto, os tribunais poderiam se prestar ao papel
em prática, ainda que concretizado com falhas e de intermediário entre a ação repressiva direta
lacunas, era o de que a condição para a anistia dos agentes de segurança pública e aqueles que
era a revelação da verdade, o reconhecimento eram perseguidos políticos, tidos no contexto da
das atrocidades praticadas. Fica claro, a partir do ditadura como criminosos e terroristas. Se por um
exemplo sul-africano, que anistia não pode ser lado os milhares de julgamentos ocorridos na di-
confundida com esquecimento ou amnésia. Esta tadura brasileira faziam vistas grossas em relação
também é outra grande lição que o Brasil deve- às denúncias de tortura e compactuavam com leis
ria aprender. Quanto à Argentina, sem dúvida o draconianas, como eram os Atos Institucionais e
país mais avançado em suas políticas e processos
transicionais, dentre as inumeráveis lições que 79 Anthony Pereira: cientista político, professor do De-
poderiam ser aprendidas, eu destaco a existência partamento de Ciência Política da Tulane University, em
de uma Suprema Corte que respeita os tratados Nova Orleans, Louisiana, Estados Unidos. (Nota da IHU
internacionais de direitos humanos e os coloca On-Line)
80 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autori-
em hierarquia superior no ordenamento jurídico.
tarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na
Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

102
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

seus derivados, contando com juízes que defen- totalmente arbitrária da personalidade do crimi-
diam e incorporavam a ideologia do regime, por noso ou suspeito como sendo um “indivíduo de
outro, tais julgamentos contavam com um arse- alta periculosidade”.
nal razoável de garantias e procedimentos e per- É compreensível, portanto, embora não jus-
mitiam em grande parte dos casos evitar que os tificável, que, diante deste quadro, o Brasil tenha
opositores políticos fossem simplesmente elimi- grande dificuldade em lidar com o seu passado
nados. Em sua pesquisa, Anthony Pereira notou ditatorial. Como não houve uma depuração das
também que, no Brasil, os advogados de defesa nossas instituições – especialmente das forças
de presos políticos possuíam uma relativa liberda- armadas, do judiciário e das forças policiais -, a
de e autonomia para atuar nas cortes políticas e manutenção do discurso apologético da ditadu-
conseguiram, por vezes, induzir os juízes a inter- ra e a negação dos crimes contra a humanida-
pretarem a legislação autoritária de uma maneira de cometidos continuam a ser a moeda corrente,
mais benigna para os seus clientes. endossada igualmente pelos meios de comuni-
cação de massa, que em grande parte também
apoiaram a ditadura e foram cúmplices dos cri-
Herança ditatorial mes praticados, não tendo assim muito interesse
na busca dessa verdade. Continuamos a ter uma
Na Argentina, a ausência de uma coesão justiça militar com jurisdição inclusive sobre civis,
entre os militares e a elite judicial levou os mi- e uma espinha organizacional, tanto das forças
litares a considerarem o judiciário pouco ou de armadas quanto das policiais, que impõe uma
modo algum “confiável”. Não havia, portanto, forte e violenta estrutura hierárquica, que possui
mediadores institucionais entre a violência direta predominância em relação ao respeito pelos direi-
dos agentes da repressão e os seus alvos. A es- tos humanos, não só dos seus alvos mas também
tratégia adotada foi claramente a da eliminação dos seus próprios agentes.
e do desaparecimento em massa dos opositores
políticos. Contudo, se a forte coesão institucio-
nal ocorrida na ditadura militar brasileira e a sua Negação do golpe
máscara de legalidade foram responsáveis por
uma cifra menor de mortos e desaparecidos do É igualmente espantosa a forte visão institu-
que em relação à Argentina, elas mantiveram no cional que permeia as forças armadas quanto ao
Brasil a continuidade da herança autoritária no passado ditatorial. É quase como se a confissão
período pós-ditatorial. Herança que continua for- dos seus erros e abusos fosse significar a disso-
te até hoje, ao contrário do que ocorre na Argen- lução da sua própria identidade, ainda enfatica-
tina. Após a ditadura brasileira, nenhum juiz, por mente sustentada na ideologia da segurança na-
mais conivente que fosse com o regime, nenhum cional. Isto vale tanto para militares mais jovens
policial, por mais que tenha torturado e assas- como veteranos. Há uma barreira que parece
sinado opositores, nenhum político ou dirigente, quase intransponível e que impede que os nossos
por mais que tenha aprovado, ordenado ou te- militares possam fazer o que fizeram os militares
nha sido conivente com a tortura, foi demitido, argentinos (nem todos, é claro), reconhecendo
exonerado ou responsabilizado pelos seus atos. as atrocidades cometidas e pedindo desculpas à
Muitos deles simplesmente continuam a atuar no nação. Enquanto isto, no Brasil, os militares co-
Poder Público, transferindo agora o foco da sua memoram o golpe com festas e negam que tenha
impunidade para os criminosos comuns e os sus- havido a tortura sistemática como política de go-
peitos de o serem, que continuam a ser barbara- verno. De todo modo, a esperança continua viva.
mente torturados nas delegacias e nos presídios, Em uma palestra que dei ano passado na
sempre com o aval de juízes que os mandam ou Universidade Federal do Paraná, fui interpelado
os mantêm por lá, e que justificam, em muitos por um jovem militar, aluno de Direito, que me
casos, a sua decisão a partir de uma avaliação indagou sobre o que se podia fazer para que os

103
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

militares reconhecessem o seu erro, evitassem re- ta Dilma o repreendeu de modo claro e direto,
peti-lo e conseguissem democratizar a instituição sem se demorar em esforços conciliatórios. O fato
militar. Eu disse a ele que isto só iria acontecer de da presidenta Dilma ter sido uma ex-perseguida
fato a partir de pessoas como ele, que estão den- política, militante vinculada a uma das organi-
tro da instituição e querem que ela mude. Isto ain- zações clandestinas mais combativas do período
da é muito difícil, como pode ser comprovado a ditatorial, a VAR-Palmares, tendo sofrido prisões
partir das consequências atualmente sofridas por e torturas bárbaras, é algo por demais simbólico
qualquer militar que ouse questionar a deficiência e importante para o amadurecimento da nossa
democrática e a violência da sua instituição, como democracia. Antes de ela assumir, tive o receio
é o caso do capitão paraquedista Luiz Fernando de que justamente em função da sua forte vincu-
Ribeiro de Sousa, mais conhecido como Capitão lação ao tema, ela procuraria se manter distante
Fernando. Ele lidera no Rio Grande do Sul um dos inevitáveis embates que surgiriam a partir da
movimento que se intitula de “capitanismo”, e implementação de políticas públicas de memória.
cuja reivindicação central é adequar as normas Mas esta impressão sofreu um certo abalo após o
da caserna à Constituição Federal. Resultado: o seu discurso e a cerimônia de posse, na qual esta-
Capitão Fernando está preso e sofre a ameaça vam presentes em lugar de honra suas ex-compa-
de ser expulso da força. O mesmo acontece com nheiras de cela e no qual ela não se furtou a fazer
o autor do livro Exército na Segurança Pública: generosas referências à geração que combateu a
uma Guerra Contra o Povo Brasileiro,81 o capitão ditadura. O firme empenho da ministra Maria do
Mário Soares, mais conhecido por Capitão Mari- Rosário83 em prol da Comissão da Verdade tam-
nho e também gaúcho. bém é um sinal positivo.

IHU On-Line – Essa realidade tende a mu-


dar com o governo Dilma? Quais são suas Condenação da Corte Interamericana
expectativas? de Direitos Humanos
José Carlos Moreira Filho – Acredito que no
governo Dilma teremos menos hesitação com Recentemente a presidenta esteve em Porto
este tema. Recentemente, o chefe do Gabine- Alegre para homenagear a memória das vítimas
te de Segurança Institucional da Presidência da do Holocausto, e na mesma ocasião ela cance-
República, o general José Elito Siqueira82 deu lou a visita já programada à Usina de Candiota.
uma declaração infeliz, para dizer o mínimo, so- Na época, os jornais gaúchos noticiaram o fato
bre os desaparecidos políticos da ditadura militar, lamentando o cancelamento da visita e fazendo
afirmando que as forças armadas não tinham especulações sobre o seu motivo. O que me es-
nada do que se vangloriar ou se envergonhar a pantou, mas não me surpreendeu, é que nenhum
respeito do assunto. Imediatamente, a presiden- deles notou a contradição que seria a presidenta
homenagear as vítimas do Holocausto e, no dia
81 MARINHO, Capitão. Exército na Segurança Pública:
seguinte, inaugurar as novas instalações da Usina
uma Guerra Contra o Povo Brasileiro. Curitiba: Juruá, chamada Presidente Médici, exatamente o nome
2010. do governante ditatorial responsável pelo período
82 José Elito Siqueira: general, chefe do Gabinete de mais sangrento da ditadura.
Segurança Institucional (GSI) do governo de Dilma
Rousseff. Em janeiro de 2011, afirmou que “Nós temos Por outro lado, ainda não foi possível per-
que ver o 31 de março de 1964 como dado histórico de ceber nenhuma ação concreta de maior enver-
nação, seja com prós e contras, mas como dado históri-
co. Da mesma forma, os desaparecidos são história da
nação, que não temos que nos envergonhar ou nos van- 83 Maria do Rosário Nunes (1966): professora e políti-
gloriar”. Em função dessa declaração foi chamado pela ca brasileira, formada em pedagogia pela UFRGS, com
presidenta Dilma para prestar explicações. Confira mais especialização pela USP, e atualmente exerce o cargo de
sobre esse tema na entrevista concedida por Jair Kris- Ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidên-
chke em 07-01-2011 às Notícias do Dia, disponíveis cia da República e ocupa também uma cadeira na Câ-
em <http://bit.ly/hoiRPf>. (Nota da IHU On-Line) mara Federal. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

gadura do governo Dilma em prol do direito à tituído os senadores biônicos e mudado as regras
memória e à verdade e da reparação. A Comis- de composição da casa, de tal maneira que não
são de Anistia, por exemplo, vem sofrendo desde fosse possível a aprovação de qualquer projeto de
a saída de Tarso Genro do Ministério da Justiça lei que contrariasse os interesses ditatoriais. No es-
uma drástica redução de pessoal e de condições pectro destes interesses estava a anistia, vista pe-
estruturais para o seu trabalho, o que motivou a los seus arquitetos muito mais como uma maneira
suspensão do trabalho ordinário da Comissão e de escapar de uma eventual prestação de contas
uma reconfiguração na qual certamente se dimi- dos agentes públicos que facilitaram, ordenaram
nuirá em quase 90 % a quantidade de processos e praticaram crimes contra a humanidade do que
julgados e de ações educativas em prol da me- um meio de libertar os presos políticos e permitir
mória política, como o são as Caravanas da Anis- o retorno dos exilados. A ditadura anteviu o seu
tia. Também não se tem uma clara sinalização de próprio fim e garantiu que ele fosse o mais vanta-
se ou como o atual governo cumprirá a sentença joso possível para os seus agentes e torturadores,
da Corte Interamericana de Direitos Humanos concedendo a eles, de modo propositadamente
que condenou o Brasil no caso Araguaia.84 É cer- vago – afinal, não reconheciam, como continua
to que o governo está apenas começando, mas sendo até hoje, as atrocidades cometidas –, uma
devemos não só esperar para ver como também anistia isenta de qualquer investigação ou escla-
nos mobilizarmos e cobrarmos das autoridades recimento em relação aos seus crimes, enquanto
constituídas um investimento realmente sério e que para os perseguidos políticos a anistia não foi
palpável no tema dos direitos humanos. geral, visto que os condenados pela participação
na luta armada não foram anistiados por esta lei.
IHU On-Line – O que foi e é exatamente a Por outro lado, não se pode deixar de reco-
Lei de Anistia aplicada no Brasil? nhecer que a luta pela anistia, com fôlego espe-
José Carlos Moreira Filho – Primeiramente, cialmente renovado a partir de 1975 pelos inú-
é preciso entender que existem duas leis de anis- meros comitês brasileiros pela anistia, deu um
tia no Brasil: a Lei 6.683/79 e a Lei 10.559/02. belíssimo exemplo de movimentação popular,
Há uma diferença profunda entre ambas. A lei de ainda que o governo de Figueiredo o ignorasse
1979 foi editada e promulgada em plena ditadura completamente. Também não se pode deixar de
militar, por um Congresso submisso e desconfigu- observar que o Brasil teve um ganho inestimável
rado pelo pacote de abril de 1977. Geisel, invo- para o seu processo político e democrático com
cando o AI-5, havia dissolvido o Congresso, ins- o retorno dos exilados e a libertação dos presos
políticos.
84 Guerrilha do Araguaia: movimento guerrilheiro exis-
tente na região amazônica brasileira, ao longo do rio Ara-
guaia, entre fins da década de 1960 e a primeira metade Revisão da lei de anistia
da década de 1970. Criada pelo Partido Comunista do
Brasil (PCdoB), uma dissidência armada do Partido Co-
munista Brasileiro (PCB), tinha como o objetivo fomen-
Já a Lei 10.559/02 veio regulamentar o Art.
tar uma revolução socialista, a ser iniciada no campo, 8º do Ato das Disposições Constitucionais Tran-
baseada nas experiências vitoriosas da Revolução Cuba- sitórias, que trata da reparação aos que foram
na e da Revolução Chinesa. Combatida pelo exército a perseguidos políticos pela ditadura. Note-se bem
partir de 1972, quando vários de seus integrantes já ha-
viam se estabelecido na região há pelo menos seis anos, que no texto da nossa Constituição de 1988 nada
o palco das operações de combate entre a guerrilha e o se diz com relação a uma anistia para agentes do
Exército se deu onde os estados de Goiás, Pará e Mara- regime e torturadores, nada se diz sobre crimes
nhão faziam fronteira. Desconhecida do restante do país
conexos ou de qualquer natureza. O foco des-
à época em que ocorreu, protegida por uma cortina de
silêncio e censura a que o movimento e as operações ta anistia, cuja missão é de responsabilidade da
militares contra ela foram submetidos, os detalhes sobre Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, é a
a guerrilha só começaram a aparecer cerca de vinte anos reparação dos que foram perseguidos políticos e
após sua extinção pelas Forças Armadas, já no período
de redemocratização. (Nota da IHU On-Line)
pagaram um elevadíssimo preço por isto. O Esta-

105
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

do não faz nada menos do que o seu dever em lados, que cometeram crimes e que depois fize-
dar vida ao princípio jurídico universal de que se ram um acordo. O que se teve, na verdade, foi
devem indenizar aqueles que foram prejudicados um grupo de cidadãos brasileiros perseguido pelo
de forma ilícita, ainda mais quando quem os pre- governo do seu próprio país, que não teve os seus
judicou foi exatamente o próprio Estado. direitos mais básicos respeitados por quem mais
Por fim, a recente decisão do Supremo Tri- tinha o dever de respeitá-los: o Estado. O que se
bunal Federal sobre a interpretação da lei de anis- teve foi um governo golpista que depôs um presi-
tia de 1979 é um dos sinais mais veementes da dente eleito pelo povo, que rasgou os fundamen-
forte presença entre nós da herança autoritária da tos da Constituição de 1946, e, de outro lado, um
ditadura militar, bem naquela linha do que eu di- grupo de brasileiros que exerceu o legítimo direito
zia em minha resposta à segunda pergunta desta de resistência à tirania.
entrevista. Sobre esta decisão e os absurdos jurí-
dicos e históricos apresentados pela maioria dos IHU On-Line – Em que medida a Comissão
ministros remeto o leitor a um artigo que escrevi da Verdade irá resolver os casos obscuros
intitulado “O julgamento da ADPF 153 pelo Su- da ditadura?
premo Tribunal Federal e a inacabada transição José Carlos Moreira Filho – Será de funda-
democrática brasileira”.85 mental importância o trabalho do Congresso Na-
cional para que a Comissão da Verdade no Brasil
IHU On-Line – Por que motivos foi adotado seja uma realidade efetiva. Acredito que a mera
esse recurso? Era o melhor que se podia ter aprovação do projeto de lei enviado pelo Execu-
feito? Por quê? tivo não será o suficiente. É preciso fazer modifi-
José Carlos Moreira Filho – Além do que eu cações no texto do projeto. Para começar, o tem-
já disse sobre o tema, acrescentaria que, no con- po de dois anos é muito pouco a fim de que se
texto de 1979, não havia condição de se manter consiga realizar minimamente o que se pretende.
em aberto um processo de responsabilização dos Este problema poderia ser resolvido com a men-
agentes ditatoriais. Como eu já disse antes, ain- ção de que o prazo fixado poderá ser prorrogado
da vivíamos uma ditadura. É claro que seria pior caso necessário. Outro ponto não muito claro do
se não tivesse ocorrido a anistia dos perseguidos texto do projeto é o que se refere aos documen-
políticos naquele ano, mas isto não significa que, tos sigilosos. Ali se diz que a Comissão deverá ser
agora, no ano de 2011, com uma democracia sigilosa na manipulação de tais documentos, mas
estável e sob a égide de uma Constituição cida- não se afirma que este sigilo deverá ser eliminado
dã e democrática, não tenhamos condições de no momento da divulgação do relatório final.
finalmente confrontar o nosso passado e pro- Com relação à possibilidade real de se des-
mover as necessárias responsabilizações, bem cobrir novas informações sobre o que aconteceu
na linha do respaldo jurídico já fornecido pela na repressão promovida pela ditadura, entendo
sentença da OEA. que o afastamento de qualquer possibilidade de
responsabilização aos seus agentes é prejudicial.
IHU On-Line – O que essa lei significou Afinal, o que poderia levar um agente que tortu-
para torturadores e torturados? rou, assassinou e promoveu o desaparecimento
José Carlos Moreira Filho – Sobre isto apenas forçado de pessoas, bem como quem ordenou,
acrescento que um dos significados mais perver- apoiou ou sustentou tais ações, a revelar a verda-
sos que a lei de anistia de 1979 acabou trazendo de, já que não haveria nenhum risco de uma res-
foi o de alimentar o discurso de que havia dois ponsabilização a partir da qual se pudesse nego-
ciar uma anistia, como foi feito na África do Sul?
85 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da Silva Filho. O jul- Uma eventual responsabilização, hoje, depende
gamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e de como o governo pretenderá ou não cumprir a
a inacabada transição democrática brasileira. In: PIOVE- sentença da Corte da OEA.
SAN, Flávia; SOARES, Inês Prado. Direito ao desenvol-
vimento. São Paulo: Fórum, 2010, p. 515-545.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

De todo modo, entendo que, mesmo sem a de polícia. Em abril de 2010, tive a oportunidade
possibilidade de responsabilização, a existência de realizar uma oficina especificamente sobre este
de uma Comissão da Verdade no Brasil seria mui- tema no Encontro da Associação Brasileira de
to importante. Além de ela sempre poder trazer a Ensino do Direito (ABEDi) ocorrido na FGV do
possibilidade de que alguns agentes se sintam ar- Rio de Janeiro. Nesta oficina percebemos que em
rependidos e falem, ou de encorajar pessoas que todas as disciplinas do curso de Direito é possível
não participaram diretamente a contarem o que trabalhar o conteúdo da memória política brasilei-
sabem, é possível que muitos documentos secre- ra. Por exemplo, em Direito Administrativo seria
tos em poder das Forças Armadas possam vir à importante que, antes de se fazer uso da obra di-
luz, e que a publicização das atrocidades venha dática de Hely Lopes Meirelles86 – uma das mais
a causar uma mobilização social em prol da res- utilizadas nos cursos de Direito –, se soubesse que
ponsabilização. Na Argentina, foi somente após a ele, quando foi secretário de Segurança Pública
conclusão dos trabalhos da Comissão da Verda- do Estado de São Paulo, apoiou entusiasticamen-
de que se iniciaram os julgamentos por violações te a formação do Esquadrão da Morte, liderado
de Direitos Humanos, tendo sido de inestimável pelo sanguinário Sergio Paranhos Fleury.
importância o relatório produzido pela Comissão.
IHU On-Line – As ditaduras que caem em
IHU On-Line – Esquecer é matar duas ve- dominó na Tunísia e Egito e a que treme na
zes. Como conscientizar e informar os jo- Líbia, onde Khadafi está prestes a ruir, são
vens do que houve em nosso país há tão sinais de esperança para um mundo mais
pouco tempo? justo e democrático? Por quê?
José Carlos Moreira Filho – Para isto, é funda- José Carlos Moreira Filho – Acredito que se-
mental a publicização dos crimes cometidos pela jam sim, pois mostram que, quando a sociedade
ditadura, pois somente assim poderemos sair do se organiza e se mobiliza, ela pode conquistar
signo do silêncio e da negação e, inclusive, ter- direitos, de modo muito mais legítimo, pacífico e
mos mais condições de inserirmos este tema na eficiente do que qualquer intervenção estrangei-
nossa formação educacional, seja nos livros didá- ra. E esta é a forma mais elevada de democracia,
ticos ou nas aulas ministradas por nossos profes- aquela que vem de baixo para cima, das ruas
sores em todos os níveis de ensino. Indispensável, para as instituições. Penso também que o ocor-
igualmente, que a conscientização e a informação rido é importante para que o mundo ocidental
ocorram também no âmbito formativo das nossas reveja o seu preconceito etnocêntrico em relação
instituições de segurança, como o Judiciário, as ao mundo árabe, percebendo que parte expres-
polícias e as Forças Armadas. Penso, por fim, que siva do seu povo possui vocação e desejo para
é extremamente estratégica uma mudança nos a construção de sociedades democráticas, e que,
cursos de Direito do país no sentido de abarcarem mesmo no âmbito de teocracias como a irania-
a temática e de promoverem o resgate da memó- na, existem pessoas e grupos que não compac-
ria política em sala de aula, afinal é das faculda- tuam com o extremismo religioso e a violência
des de Direito que saem nossos juízes e delegados que dele emana.

86 Hely Lopes Meirelles (1917-1990): jurista brasileiro,


reconhecido como um dos principais doutrinadores do
Direito Administrativo e do Direito Municipal brasileiro.
(Nota da IHU On-Line)

107
Pinochet e a herança grotesca da ditadura

Entrevista com José De La Fuente

Uma herança grotesca de perseguição, desa- ção do poder social e político. Talvez o caso do
parecimento de pessoas, “encarceramentos ma- Chile seja o mais patético”. A respeito do governo
ciços e assassinatos de militantes de esquerda”. de Michelle Bachelet, dispara: “O fim da ditadura
Eis alguns dos principais legados da ditadura de não significou um reencontro dos chilenos com os
Augusto Pinochet, no Chile, avalia o professor ideais democráticos socialistas que a presidente
chileno José De La Fuente. “No período da di- declarava. Bachelet não pôde mudar os enclaves
tadura, o poder Judiciário praticamente não fun- ditatoriais como o Sistema Eleitoral Binominal,
cionou, atuou em conluio com o regime, negou substituir a Constituição deixada pelo ditador e
sistematicamente o direito à defesa e o habeas o modelo econômico neoliberal e reivindicar os
corpus”, pontua. Além disso, a hegemonia desse direitos ancestrais da nacionalidade mapuche”.
regime foi baseada na “organização de um apa- José De La Fuente é professor de espanhol,
rato de Estado policial permanente, convencida mestre em Literatura Hispânica e doutor em Es-
de seu messianismo salvífico para evitar que o tudos Americanos pela Universidade de Santiago
Chile e a América Latina ‘caíssem nas mãos do do Chile. Atualmente, leciona na Universidade de
comunismo soviético’”. Há de se ressaltar que Santiago do Chile e na Universidade Cardenal
“o principal responsável e condutor da crimina- Raúl Silva Henríquez. É membro do Comitê Aca-
lidade política, o ditador Augusto Pinochet, mor- dêmico Internacional da rede Corredor das Ideias
reu tendo sido julgado como ladrão, porém não do Conesul, do Grupo de Estudos Eidéticos da
condenado como organizador do crime político Universidade de Talca. De suas publicações cita-
e do estado policial”. A colaboração entre os mos Narrativa de Vanguardia, identidad y conflic-
países latino-americanos na Operação Condor, to social en la novela latinoamericana (2007) e De
iniciada na década de 1960, é outro aspecto la escritura a la vida (1996), de poesias.
debatido na entrevista concedida por e-mail à
jornalista Márcia Junges e publicada na edição IHU On-Line – Qual é a pior herança da di-
358 de IHU On-Line em 18 de abril de 2011: tadura chilena de Pinochet, que durou 17
“Os generais Garrastazu Médici, Geisel e Batista anos?
Figueiredo sem dúvida orientaram Pinochet e o José De La Fuente – Num mesmo plano de im-
ajudaram com a Operação Condor e no prepa- portância no tempo, a pior herança ficou marca-
ro de torturadores”. Essa organização, acredita, da na idiossincrasia e no caráter dos chilenos, as-
“não morreu com o desaparecimento de Pinochet pectos centrais de sua identidade. O século XX foi
ou de Stroessner”. Em seu ponto de vista, “o in- uma época de paulatina ascensão e integração do
teresse dos Estados Unidos em apoiar este tipo povo e das faixas médias em todas as atividades
de ditaduras e de facínoras, não era outro que e aspirações sociais, especialmente em educação,
impedir o desabrochar da participação popular, em participação política, em partidos, sindica-
da organização e do protagonismo da inteligência tos e cooperativas, na imprensa autenticamente
política dos povos em sua ascenção à recupera- democrática. A prolongada ditadura baseou sua

108
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

hegemonia na organização de um aparato de com fins de lucro, que não se interessa pela reedu-
Estado policial permanente, convencida de seu cação cívica e, menos ainda, por democratizar os
messianismo salvífico para evitar que o Chile e claustros universitários e onde tanto faz um gover-
a América Latina “caíssem nas mãos do comu- no de “direita”, de “esquerda” ou “democrata cris-
nismo soviético”. A permanente ação policial do tão”, inclusive de se viver ou não em democracia.
regime fratura a identidade cultual e política, im- Todos são ideologicamente uma mesma amálga-
põe pela violência o neoliberalismo, excluindo-se ma regulada pela colusão de Reagan e Thatcher,
o pensamento alternativo e democrático com um que condicionaram as ditaduras e os intermináveis
recorrente desprestígio da política e dos políticos. governos de transição, incluídos os socialistas, se-
Do medo às ideias e à autocensura, a sociedade gundo o famoso “Consenso de Washington”.
chilena ainda não conseguiu sanar-se. Pelo con- A população chilena não tem um duelo
trário, os governos pós-ditadura, que administra- pendente; segue vivendo no inferno do cinismo
ram o país de 1990 até 2010, através do conglo- e da banalidade dos “operadores políticos”: os
merado político chamado “Concentração para a parlamentares, salvo exceções, parece carecerem
democracia”, pelas leis de amarração do pino- de ideias próprias. Todos querem se assemelhar
chetismo e do império norte-americano, termi- uns aos outros; há temor à dissidência; evitam a
naram vergonhosamente aumentando os efeitos distinção e as diferenças ideológicas. A uniformi-
de iniquidade político-econômica do neolibera- dade militar – obediência devida? – parece que
lismo. Foram incapazes de derrogar e modificar ficou para sempre incrustada em seus cérebros.
a Constituição de 1980, promulgada por Pino-
chet e, até o dia de hoje, rege o Sistema Eleitoral
Binominal, que impede o governo das maiorias, Etapas mentais
favorecendo o empate político e a ideologia eco-
nômica de um capitalismo desregulado e perver- Desde a perspectiva psicanalítica, a socieda-
so para os mais pobres. de passou por diferentes etapas mentais; e, entre
O Chile é um dos países do mundo onde elas, a partir de 1973 entra num estado mental
existe a pior distribuição da riqueza que provém paranoico, no qual “o outro” é o inimigo que quer
do trabalho de seu povo e da venda de maté- destruir-nos e, por isso, é preciso eliminá-lo. Com
rias primas, especialmente do subsolo e do patri- a dissolução da Direção de Inteligência Nacional
mônio mineiro. – DINA, passa-se a um estado mental narcisista
ou maníaco, que expressa a sensação de triunfo e
desprezo pelo adversário. De 1989 em diante en-
Herança grotesca tra-se num estado neurótico, em que os diversos
grupos se ameaçam mutuamente. E, desde 1990,
Finalmente, a ditadura deixa a grotesca he- a banalidade transforma os políticos numa classe
rança da perseguição, do desaparecimento de decadente na qual muito poucos, especialmente
pessoas, dos encarceramentos maciços e assassi- os jovens, confiam. É preciso não esquecer que o
natos de militantes de esquerda. Aí estão os in- modelo neoliberal, como o assinala o historiador
formes testemunhais: o Informe Rettig de Verdad Sergio Grez, “no Chile é um modelo que tende à
y Reconciliación (1991), que dá conta de 3.195 fragmentação do corpo social, que não estimula
detidos e desaparecidos e o Informe Valech de la a que a gente se reúna, discuta, participe, senão
Comisión Nacional sobre Persecución Política y que propicia o individualismo, as soluções pura-
Tortura (2005), que consigna mais de 28 mil vio- mente pessoais e não coletivas”.
lentados, incluindo crianças, anciãos e mulheres
grávidas. IHU On-Line – Como funcionou a anistia no
Com efeito, todos estes fatos deram origem Chile? Foi realizada de maneira adequada?
ao “apagão cultural” que, desde então até o dia José De La Fuente – As agrupações denomi-
de hoje, se traduz num sistema educativo privado nadas Detidos-Desaparecidos, Presos e Tortura-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

dos Políticos; a Comissão Ética contra a Tortu- ciados a violações de direitos humanos. Porém,
ra – CECT, que funcionou durante dez anos; a quase a metade desses agentes, 145, recebeu al-
Associação de Executados Políticos – AFEP, que gum tipo de benefício, como redução de pena ou
declara mais de 1.176 execuções; algumas igre- liberdade vigiada em sentenças ratificadas pela
jas, organismos como a Anistia Internacional e Corte Suprema de Justiça. Não obstante as va-
ONGs têm mantido uma mobilização e um alerta cilações e contradições com que opera o sistema
permanente para impedir as intenções de grupos judicial, o braço direito de Pinochet e principal
corporativos, da direita fascista e de nostálgicos ideólogo da política de extermínio do regime, o
pinochetistas, de perdoar sem mais os carrascos, General Manuel Contreras Sepúlveda, chefe da
torturadores e assassinos a soldo de Pinochet. As DINA e da CNI – ambos organismos de inteligên-
mulheres dos Detidos-Desaparecidos fizeram uma cia –, está em prisão perpétua com condenações
luta exemplar, da mesma firmeza e perseverança reais e simbólicas que somam mais de 200 anos
que o movimento de mulheres Mães da Praça de de cárcere. Mas, o principal responsável e condu-
Maio da Argentina e de outros países do Cone Sul. tor da criminalidade política, o ditador Augusto
Em 1978, a ditadura, por meio do decreto Pinochet, morreu tendo sido julgado como la-
de Lei Nº 2.191, conhecido como Lei de Anis- drão, porém não condenado como organizador
tia, pretendeu beneficiar os autores, encobridores do crime político e do estado policial. E agora, ao
e cúmplices dos delitos cometidos em tempos de cumprir-se um ano de exercício do governo de
estado de sítio. Fundamentalmente, este decreto Sebastián Piñera, o qual governa com os mesmos
favoreceu os esbirros da ditadura, expulsando-os símbolos da ditadura e com o apoio político dos
do país. Posteriormente, a ditadura já se viu im- partidos e burocratas que colaboraram com Pino-
pedida dessas ações de encobrimento legal. Para chet, formula a possibilidade de indulto para os
os opositores ao regime, serão outros organismos violadores dos direitos humanos, cuja maioria se
que atenderão às petições de indultos. Porém, a constitui hoje em dia de anciãos e enfermos. Volta
maioria dos perseguidos chilenos não obteve o ao Chile a impunidade?
benefício de anistia. Pelo contrário, a injustiça e
a arbitrariedade, permanentes por várias déca- IHU On-Line – Como a sociedade chilena
das, consolidou no povo chileno uma resistência conseguiu “acertas as contas” com o pas-
ativa para opor-se ao esquecimento e consolidar sado ditatorial de seu país?
em sua memória um verdadeiro tribunal de cons- José De La Fuente – A resposta é bastante
ciência social. No período da ditadura, o poder complexa e tem muitas arestas. O ajuste de con-
Judiciário praticamente não funcionou, atuou em tas tem sido lento e protelado no tempo. A cifra
conluio com o regime, negou sistematicamente o de condenados, que dei na resposta anterior,
direito a defesa e o habeas corpus. Uma vez recu- vista fora de contexto e da dor acumulada por
perada uma fração da democracia em começos feridas que ainda não cicatrizam na geração dos
de 1990, alguns juízes começam a atender às acu- sobreviventes nascidos entre 1930 a 1960, pode-
sações contra os torturadores e assassinos. ria ser eloquente e decisória da ação de tribunais
e juízes que, muitos deles a contrapelo, assumem
seu ofício tardiamente segundo o mandato e ju-
Retorno à impunidade? ramente jurídico-social. Este ajuste de contas se
tem traduzido em não ceder nenhum espaço de
Em fins de maio de 2010, 782 ex-agentes impunidade aos carrascos da ditadura e a cons-
de serviços de segurança foram processados e truir museus e memoriais onde fosse possível. A
condenados por crimes associados a violações juventude, dos anos 1990 em diante, assume a
de direitos humanos. Entre os anos 2000 e 2010, FUNA, que consiste numa ação pública de justi-
aproximadamente 290 ex-agentes das forças de ça popular, espontânea e de rápida conformação,
segurança de Pinochet receberam um total de contra aqueles que não têm sido julgados nem
505 sentenças condenatórias por crimes asso- condenados. A FUNA é uma forma de sentenciar

110
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

publicamente os esbirros. Depois de um paciente grande negócio de empresários privados na-


e sigiloso seguimento, os “funeiros” surpreendem cionais e transnacionais; a atomização da organi-
o delator, cúmplice ou criminoso num lugar pú- zação obreira e a perda do potencial negociador
blico (restaurante, praça, rua, estádio, bairro re- dos sindicatos; a desnacionalização das riquezas
sidencial, interior de uma igreja, etc.), rodeiam o minerais; a desnacionalização das orlas marinhas
“funado”, julgam-no e o sentenciam a viva voz. e lacustres; a venda da água (este bem natural
já não é do Estado nem do povo, pois está todo
vendido a empresas privadas).
Memoriais Incute-me vergonha cívica recordar que
Pinochet, depois de ter sido ditador, foi Coman-
Outra maneira de “acertar as contas” com dante em Chefe do Exército, aceito por Aylwin,
o passado ditatorial tem sido a criação e funda- e logo ingressou no Parlamento como senador
ção de memoriais pelos Detidos-Desaparecidos vitalício. Com efeito, o ajuste de contas tem sido
na maioria das cidades do Chile e mais de 14 muito deficitário, com a balança sempre inclinada
instituições, sob um verso do poeta Mario Be- para o lado dos nostálgicos do pinochetismo, um
nedetti87, que se converteu em lema: “O olvido perigo ideológico latente para as futuras gerações.
está cheio de memória”. Entre as instituições mais
importantes figuram: o Parque pela Paz Villa Gri- IHU On-Line – Qual é o fio condutor que
maldi (ex-Quartel Terranova, campo de concen- une as ditaduras na América Latina? A
tração e tortura, hoje transformado num museu Operação Condor esteve por trás delas?
aberto da memória); a Fundação Víctor Jara, a José De La Fuente – O fio condutor que une
Fundação e Arquivo de la Vicaria (www.archivo- as ditaduras responde à reação dos grupos oli-
vicaria.cl); o Museu de la Memoria (www.museo- gárquicos internos de cada país e aos cálculos de
delamemoria.cl), etc. dominação ou de neocolonialismo do império
Em termos estritamente políticos, a conta norte-americano no contexto da Guerra Fria. Na-
não está saldada. Nenhum dos governos, a par- quela época, o processo de democratização con-
tir dos anos 1990, tem sido capaz de convocar o tinental era evidente, envolvente e convincente.
povo a um referendo nacional por meio de uma Para eles era inaceitável que a América Latina,
Assembleia Constituinte para redigir, discutir e imbuída da filosofia para a integração econô-
aprovar uma nova Constituição. A entrega da mica ideada pela CEPAL, do Pacto Andino, da
simbólica faixa presidencial que o ditador pôs no Teologia da Libertação88, da teoria da dependên-
peito ao primeiro presidente do Acordo, Patrício cia, da ascensão crescente da revolução cubana,
Aylwin, se fez transacionando com o imperialis- da nova liderança juvenil com a recuperação de
mo, com a oligarquia interna, com outros poderes sua inteligência universitária e solidária, etc., se
factuais e com a ditadura certas questões funda- constituísse em modelo alternativo socialista ante
mentais, como: um remedo de Parlamento inte- a decadência do capitalismo regional e que se
grado por “notáveis”, senadores e juízes vitalícios, superariam as iniquidades em outras partes do
mantendo o modelo econômico de capitalismo mundo subdesenvolvido.
desregulado; o sistema eleitoral binominal; a fi- Outro fio desta corda é a educação dos ofi-
losofia e administração do sistema educacional; ciais dos exércitos latino-americanos em escolas
a segurança social e a saúde transformada num de formação norte-americanas; é a matriz ideoló-

88 Teologia da libertação: corrente teológica que englo-


87 Mario Benedetti: poeta, escritor e ensaísta uruguaio.
ba diversas teologias cristãs desenvolvidas no Terceiro
Integrante da Geração de 45, a qual pertencem também
Idea Vilariño e Juan Carlos Onetti, entre outros. Con- Mundo ou nas periferias pobres do Primeiro Mundo a
siderado um dos principais autores uruguaios, iniciou a partir dos anos 70.São baseadas na opção preferencial
carreira literária em 1949 e ficou famoso em 1956, ao pelos pobres contra a pobreza e pela sua libertação. De-
publicar “Poemas de Oficina”, uma de suas obras mais senvolveu-se inicialmente na América Latina. (Nota da
conhecidas. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

111
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

gica e pedagógica que assegurou historicamente Hugo Bánzer91, Stroessner92, Videla93, etc. Para
o poder dos endinheirados sobre a maioria de estes malfeitores, os que não lhes rendem prei-
pobres e marginalizados. E, sem dúvida alguma, to ou não aderem aos seus interesses são consi-
a Operação Condor, que se inicia na década de derados “lixo social”. Atualmente, o Plano Con-
1960, é o braço clandestino da grande cruzada dor está em mãos da Conferência de Exércitos
que organiza o fascismo latino-americano, mani- Americanos – CEA (composta por 20 países e 5
pulando os exércitos e as polícias nacionais, para membros observadores) e o dirige das sombras o
propagar a perseguição e os tratamentos cruéis e comandante em chefe do exército peruano Otto
degradantes contra os democratas que acredita- Grivovich. Pode-se inferir que esta organização
vam que “esse outro mundo era possível”, com a não morreu com o desaparecimento de Pinochet
reativação da utopia social por uma vida melhor. ou de Stroessner. Pelo contrário, continua gozan-
A Operação Condor, denunciada pelo Prêmio Al- do da impunidade que lhe outorgam nossas “de-
ternativo da Paz (2002), o doutor em Educação mocracias representativas”, invocando o amor à
e advogado paraguaio Martín Almada, em seu li- pátria e o cuidado do povo.
vro Paraguay, la cárcel olvidada, el país del exílio,
com mais de 10 edições, mais outras denúncias IHU On-Line – Qual foi o interesse dos Esta-
como o Descubrimiento de los Archivos del terror dos Unidos em apoiar este tipo de regimes?
e ingreso a la Técnica, Los secretos del General, José De La Fuente – Por sua parte, o interesse
os Vestígios de um sueño y Museos de las Me- dos Estados Unidos em apoiar este tipo de dita-
mórias, entrega todas as evidências de um plano duras e de facínoras, não era outro que impedir o
secreto para o extermínio seletivo e maciço com desabrochar da participação popular, da organi-
a vênia da CIA. zação e do protagonismo da inteligência política
dos povos em sua ascenção à recuperação do po-
der social e político. Talvez o caso do Chile seja o
Operação Condor mais patético: o império aborta a via democrática
do socialismo “a la chilena” porque, ao avaliar
Em 1966 cria-se a Operação Condor unila- o impacto de ter sido eleito um presidente como
teral; e logo, a partir de 1975, surge a Operação Salvador Allende no contexto de uma tradição
Condor multilateral integrada pelos governos republicana e dentro do imaginário de uma or-
do Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile. dem burguesa, sem disparar um tiro e utilizando o
Os ideólogos são Henry Kissinger89, Pinochet90, mesmo aparato jurídico imposto pela burguesia,
este fato qualificam-no como “um mau exemplo”
89 Henry Alfred Kissinger (1923): diplomata estado-
para o processo de maturação da socialdemocra-
-unidense que teve um papel importante na política es- cia latino-americana, a superação do populismo
trangeira dos EUA entre 1968 e 1976. Em 1938, devi- e a recuperação dos territórios nacionais como
do às perseguições anti-semitas na Alemanha, emigrou autêntica soberania econômica e autonomia
com seus pais para os EUA. Serviu na Segunda Guerra política.
Mundial, e recebeu o Ph.D. de Harvard em 1954, tor-
nando-se instrutor na mesma universidade. Kissinger foi
91 Hugo Banzer: foi um general e político boliviano,
conselheiro para a política estrangeira de todos os pre-
presidente da República por duas vezes. (Nota da
sidentes dos EUA de Eisenhower a Gerald Ford, sendo
IHU On-Line)
o secretário de Estado, conselheiro político e confidente 92 Alfredo Stroessner Matiauda (1912-2006): políti-
de Richard Nixon. Em 1973 ganhou, com Le Duc Tho, co, general de exército e presidente ditador do Paraguai
o Prêmio Nobel da Paz, pelo seu papel na obtenção do entre 1954 e 1989. (Nota da IHU On-Line)
acordo de cessar-fogo na Guerra do Vietnam. (Nota da 93 Jorge Rafael Videla: ex-militar argentino que ocupou
IHU On-Line) a presidência do país entre 1976 e 1981. Chegou ao po-
90 Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006): der em um golpe de estado que depôs a presidente María
general do exército chileno, foi presidente do Chile entre Estela Martínez de Perón, exercendo uma cruel ditadura.
1973 e 1990, depois de liderar um golpe militar que der- Seu período esteve marcado por violações aos direitos
rubou o governo do presidente socialista, Salvador Allen- humanos e por um conflito fronteiriço com Chile. (Nota
de. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

112
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Esta foi a projeção e o cálculo do império IHU On-Line – Quais eram as relações en-
a partir da década de 1970. Seus interesses im- tre o Chile e o Brasil na época da ditadura
periais começavam a ser questionados e iniciava- de Pinochet?
-se a recuperação da soberania dos distintos pa- José De La Fuente – Finalmente, as relações
íses da região. Alguns países europeus, inclusive, entre o Chile e o Brasil durante o período de
viam com bons olhos a experiência chilena. Em Pinochet foram bastante naturais e fluidas pela
outros termos, faz tempo que cheguei à convic- afinidade ideológica e formação comum que exis-
ção de que os Estados Unidos jamais aceitariam tia entre os oficiais e marechais de ambos os exér-
que países do terceiro mundo alcançassem e con- citos, a oligarquia e a ingerência do imperialismo
cretizassem estágios de desenvolvimento cívico e norte-americano em ambos os países, com a di-
político humanizadores, inclusive a caminho da ferença e vantagem de o Brasil haver iniciado seu
plenitude democrática e da distribuição dos bens, exercício ditatorial a partir de 1964, prolongando-
com autêntica justiça e ética social. Jamais pode- -se até 1985. Com o golpe que depôs Goulart,
ria render-se à evidência de que a curto prazo ter- oficiais chilenos como Pinochet aprenderam cedo
minariam superando-o e invalidando seu deca- a lição de como manipular a ideologia populista,
dente e obsoleto modelo civilizador, depredador aplicando prolongados estados de exceção, cen-
da natureza e das identidades culturais. surando a imprensa e reprimindo os jornalistas e
A atual crise interna dos Estados Unidos, seu os partidos políticos. Penso que a repartição do
alto endividamento, o desmoronamento de sua poder em frações temporais entre cinco mare-
imagem como país de “imprensa livre” por den- chais e generais brasileiros, desde Castelo Branco
tro e de gendarme do mundo para fora, o mais até João Batista Figueiredo, não serviu à ditadura
contaminador do planeta, o país que desclassifi- chilena devido às diferenças entre os processos
ca documentos secretos a cada 40 anos sobre históricos e à resistência revolucionária que obri-
as malfeitorias cometidas por seus governantes gou o braço armado da oligarquia chilena a rea-
submetidos à inteligência militar em distintas justar o discurso jurídico e as “leis de amarração”
partes do mundo, o qual pretende instalar a ideolo- para preparar, contra sua vontade, uma saída
gia de “a guerra de civilizações” e outros fatores menos desonrosa para a transição pós-ditatorial.
que seria longo enumerar, demonstrou que em Pinochet se adiantou em impor uma nova Consti-
suas entranhas se iniciou um lento e irreversí- tuição em 1980, enquanto o Brasil vai experi-
vel processo de decadência moral e de susten- mentando uma lenta maturação política e espera
to emancipador. Que porcentagem de cidadãos até “a nova república”, que começa em 1988,
norte-americanos crê, hoje em dia, na vigência para aprovar democraticamente a Constituição
interna da frase de Abraham Lincoln94 que lutou, Federal. Os Generais Garrastazu Médici, Geisel e
entre 1861 e 1865, pela “democracia do povo, Batista Figueiredo sem dúvida orientaram Pino-
para o povo e com o povo”? chet e o ajudaram com a Operação Condor e no
preparo de torturadores.
Por outra parte, recordo que o Golpe de Es-
tado no Chile se iniciou com uma “Junta Militar de
Governo”. Durante o segundo semestre de 1973
e até abril de 1974, Pinochet só presidia essa Jun-
94 Abraham Lincoln: político americano, foi o 16° pre-
sidente dos Estados Unidos de março de 1861 até seu ta, eram os três comandantes em chefe (Marinha,
assassinato em abril de 1865. Liderou o país de forma Aeronáutica e Exército), mais o diretor geral da
bem-sucedida durante sua maior crise interna, a Guerra Polícia de Carabineiros, os que começam gover-
de Secessão, preservando a União e abolindo a escra-
nando e decidindo em uníssono. Logo se soube
vidão. Antes de sua eleição em 1860 como o primeiro
presidente Republicano, Lincoln atuou como advogado que, entre eles, se teria chegado a um acordo para
de condado, legislador pelo estado de Illinois, membro nomear um presidente que iria se alternando no
da Câmara dos Representantes e duas vezes candidato tempo, porém Pinochet deu, após poucos anos,
derrotado ao Senado dos Estados Unidos. Oponente de-
clarado à expansão da escravidão nos Estados Unidos.
um golpe interno, eliminou do cargo o general da

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Aeronáutica, destituiu todos os generais da Força e consciência social madura, homem culto e com
Aérea, a qual foi sitiada pelo Exército, enquanto sentido de justiça. Foi um colaborador de Salvador
Pinochet se autoproclama presidente da Repúbli- Allende nos momentos mais críticos de seu gover-
ca e capitão geral de todos os níveis e soldados no, quando a direita sabotava a produção e impor-
do Exército. tação de alimentos; o general organizou a distribui-
A Força Aérea é o único ramo do Exército ção dos escassos produtos que permaneciam no
chileno que tem uma tradição curiosa: em 1931, mercado para colocá-los ao alcance da população.
a mando do General Marmaduque Grove, deu Em termos de redemocratização do país, o
um golpe populista de esquerda e estabeleceu por governo de Michele Bachelet não agregou nada
cem dias a chamada “República socialista”. E é substancial ao que vinham fazendo os governos
curioso e quase mágico recordar que várias leis se precedentes de Patrício Aylwin, Eduardo Frei e
ditaram naqueles dias e que nunca se derrogaram Ricardo Lagos. Com a presença de Bachelet se
nem aplicaram, e as utilizou Salvador Allende chegou à Festa do Bicentenário da República,
para expropriar e reordenar a favor do povo as- com um discurso democrático bastante contra-
pectos da economia e do comércio. Esta tradição ditório. A direita nunca abandonou sua nostalgia
civilista é a que permanecia de algum modo na pela “democracia protegida, autoritária, integra-
consciência social de aviadores como o General dora, tecnicizada” etc. A continuidade das políti-
Alberto Bachelet, pai da ex-presidente Michelle cas de Bachelet esteve baseada na ideia de gover-
Bachelet, que morreu no cárcere e foi torturado nar “na medida do possível”, frase cunhada por
por seus próprios companheiros de armas. Aylwin em 1990 e que justificaria qualquer freio
Recordo também que até 1975, aos pre- ou negociação com a direita, para dar passos que
sos políticos chilenos se começou a torturar com aprofundassem e ampliassem os espaços de po-
o suplício do “pau-de-arara”, nome de fantasia der popular. “Na medida do possível” justificou
que nesse momento se dava ao produto de ex- todo tipo de transações com a direita, com os
portação não tradicional do militarismo brasileiro militares, os comerciantes, a Igreja Católica e gru-
para atormentar os presos, pendurando-os numa pos corporativos transnacionais. Sob este lema,
árvore com um pau atravessado entre suas per- a política se reduz à falácia de uma prática inter-
nas e com a cabeça pendendo para o solo. Todas mediária entre o Estado e a sociedade civil, e a
as ditaduras são do mesmo jaez; sua identidade consistência da democracia se reduz a uma “boa
reside em seus delírios de grandeza, na exclusão, comunicação” entre esse Estado e as massas.
na fobia à diversidade, em crerem-se possuidoras
da verdade absoluta. Sua maquinaria de poder
se alimenta do medo e da banalidade dos súditos Democracia restringida
que as representam e as justificam.
O governo de Bachelet foi o exercício de
IHU On-Line – Em termos de redemo- uma democracia restringida e obediente às deci-
cratização, o que significou a presidência sões do Banco Mundial, o qual sempre assegura o
de Michele Bachelet, filha de um ativista retorno dos capitais que promove ou os emprés-
torturado e morto pelo regime de Pinochet? timos aos governos, vigiando a situação interna
José De La Fuente – Em primeiro lugar, devo es- de cada país, para assegurar-se a devolução. O
clarecer que o pai de Bachelet não foi um ativista investigador Grinor Rojo sustenta quatro teses
político na acepção que esta palavra tem na gíria sobre a falta de correspondência entre os ideais
política chilena (militante de um partido político do modelo da democracia moderna e a realidade
dedicado ao proselitismo e às atividades cotidia- chilena que culmina com os governos do acor-
nas de propaganda, com capacidade de organizar do e com o de Bachelet. O fim da ditadura não
ações de rua e células de reflexão para integrar significou um reencontro dos chilenos com os
novos aderentes à causa). O general Bachelet foi ideais democráticos socialistas que a presidente
um militar republicano com especial sensibilidade declarava. Bachelet não pôde mudar os enclaves

114
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ditatoriais como o Sistema Eleitoral Binominal, único setor em que isto quase não ocorre é no
substituir a Constituição deixada pelo ditador e magistério nacional.
o modelo econômico neoliberal e reivindicar os A presidente soube controlar a brutalidade
direitos ancestrais da nacionalidade mapuche. das forças da ordem pública, permitiu manifes-
Depois de Pinochet, nenhum dos governos tar-se com inteira liberdade pelas ruas, embora o
do Acordo, incluindo o de Bachelet, conseguiu movimento estudantil começasse a ser reprimido
levantar uma Assembleia Constituinte na qual se a partir de 2006, quando se inicia o protesto dos
expressasse em plenitude a vontade popular. Os estudantes de educação básica e média (movi-
desmandos do capitalismo não foram minorados, mento “pinguino”), o qual mobilizou todo o país
porque em termos de coesão social o princípio e que nos anos seguintes mobilizaria o mundo
ético da igualdade não teve lugar. E o princípio de universitário por uma reforma educacional inte-
fraternidade, que influi na reconstrução da iden- gral. Se Bachelet, o Acordo (a Concertación) e
tidade nacional sobre a base de nosso “ser com o seu partido socialista tivessem realmente apoiado
outro”, nunca foi real e com Bachelet tampouco o movimento estudantil, teria passado à história
se pôde restituir em sua dimensão mítica ou real. restituindo a almejada consigna que acunhou, em
Bachelet também nada fez para subtrair o 1938, o governo de Pedro Aguirre Cerda: “Gover-
poder econômico às Forças Armadas, as quais nar é educar”. Pelo contrário, em nível de gover-
seguem acumulando 10% das entradas brutas do no, o movimento “pinguino” terminou envolvido
cobre que produz o Estado chileno. São somas si- em acordos com a direita e hoje, praticamente, do
derais dentro de um sistema econômico que é o ponto de vista financeiro e custos transferidos às
menos equitativo e com a pior distribuição de in- famílias e aos jovens, não existe educação pública
gresso per capita do mundo. Se estes 10 milhões nacional. A escassa porcentagem que permanece
ou mais de dólares estivessem somente em par- de escolas públicas está em franca agonia e com
te destinados à precária (e em vias de extinção) um claro desprezo por um punhado de mestres
educação pública nacional, o Chile disporia de um que nelas se desempenham heroicamente. Nos li-
pressuposto milionário e em menos de dez anos ceus, as disciplinas mais minoradas ou quase ine-
poder-se-ia recuperar o direito de educação gratui- xistentes são a filosofia, a educação cívica e, no
ta e de qualidade para todas as crianças do Chile. segundo semestre de 2009, o governo de Piñera
tentou reduzir em uns 25% os períodos curricula-
res do ensino da história.
Discriminação feminina

Uma das fortalezas da administração de Ba- Manejo midiático


chelet foi o capital simbólico que se acumulou no
imaginário nacional a favor da reivindicação dos Com efeito, ao manejo midiático e comuni-
direitos da mulher, de seu protagonismo e inteli- cacional, Michelle Bachelet soube conjugar muito
gência em termos de paridade de gênero e res- bem sua simpatia pessoal, sua formação ideológi-
ponsabilidade política. Outra fortaleza foi deixar ca e militância socialista, suas qualidades intelec-
instalada a proteção à infância e à velhice, com tuais, o fato de ter estado aprisionada por Pinochet
políticas sociais de apoio à saúde e numerosos num dos campos de concentração e tortura da
subsídios às famílias mais pobres. Sem embargo, época (Villa Grimaldi ou quartel Terranova) e ser
apesar do grande esforço por reivindicar os di- filha de um general democrático que teve presença
reitos da mulher numa sociedade tão machista, ativa no governo de Salvador Allende. Por estas
retalhadora e feminicida como a chilena, a mu- características, a ex-presidente deixou o governo,
lher profissional continua discriminada porque o segundo pesquisas, com aproximadamente 80%
sistema de emprego, em igual nível profissional e de reconhecimento e gratidão dos chilenos, o que
em exigências laborais, a considera e lhe paga na não pode ser confundido com os reais aportes à
média uns 30% menos do que aos homens. No redemocratização estrutural da sociedade chilena.

115
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Sem dúvida, o apreço popular à sua pessoa é um la oportunidade, Kennedy disse: “Reunimo-nos
tema digno de ser estudado em perspectiva histó- aqui como firmes e velhos amigos, unidos pela
rica, existencial e até religiosa. Sua presença, per- história e pela experiência e por nossa determi-
severança e capacidade de entrega em favor dos nação de fazer avançar os valores da civilização
mais desprotegidos continuará despertando sim- americana, porque este nosso novo mundo não
patias em todos os setores, qualidades, por certo, é um mero acidente da geografia”. Quatro me-
da maioria das mulheres chilenas. ses depois, na cidade uruguaia de Punta del Este,
Se por redemocratizar entendemos uma recu- este novo tratado foi firmado no seio do Conse-
peração paulatina de participação e gestão direta lho Interamericano Econômico e Social da OEA.
do povo nas decisões políticas, com mudanças re- E o que sucedeu 10 anos depois do anúncio desta
ais na estrutura da sociedade classista chilena, no aliança? Tentou-se a destruição de Cuba, assumi-
poder Judiciário, na mudança curricular para a ram o poder as ditaduras no Cone Sul e se pôs
formação dos quadros das Forças Armadas, com em marcha a Operação Condor com a interven-
imprensa alternativa e pluralista que retomasse os ção direta da CIA.
caudais do pensamento e a reflexão encaminhada O discurso que Obama pronunciou no dia
para a trilha da utopia pós-capitalista, o governo 22 de março de 2011, para todas as Américas, no
de Bachelet interveio somente com ações cosmé- Centro Cultural do Palácio de Governo do Chile,
ticas, sempre ajustadas à prédica dos bispos do fundamentou-se no conceito de “aliança igualitá-
neoliberalismo, entre eles Milton Friedman, Ronald ria”, anunciando planos de cooperação energé-
Reagan, Margaret Thatcher, etc. tica, segurança cidadã, crescimento econômico
O carisma pessoal de Michelle Bachelet não e desenvolvimento, democracia e direitos huma-
teve nenhuma incidência no interior do partido nos. Obama elogia o modelo econômico chileno,
socialista e tampouco influiu ideologicamen- sua exitosa transição da ditadura à democracia e
te para corrigir o rumo equivocado do conglo- o que promete são vagas intenções de memórias,
merado político que a apoiou. cartas e ideias gerais para a cooperação cientí-
fica e o desenvolvimento cultural. Omitiu uma
agenda de trabalho e tratou de distanciar-se do
Obama reedita J. Kennedy? discurso de Kennedy, evitando declarar montan-
tes de ajuda em dinheiro e anos de duração para
Quando já concluíamos esta entrevista, che- esta “nova era de cooperação”. Quando um jor-
ga ao território nacional a visita anunciada do nalista lhe pergunta se devia mostrar colabora-
presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. ção em casos emblemáticos ocorridos no Chile,
Sua entrada triunfal me fez imaginar como teriam como a morte de Salvador Allende e de Eduardo
sido, naquelas épocas, as viagens dos antigos reis Frei Montalva e se se mostraria disposto a pedir
e imperadores aos lugares onde tinham repartidos perdão pela participação da CIA e do governo
os súditos e lacaios ao seu serviço. Com a mesma de seu país durante a ditadura militar de Pino-
parafernália de defesa, rodeados de um exército chet, respondeu: “Qualquer solicitude que se faça
privado, substituindo hoje em dia os cavalos por a partir do Chile para obter mais informação do
limusines blindadas, os helicópteros voando em passado é algo que certamente consideraremos e
bando e rodeados por aviões de combate? A que gostaríamos de cooperar (...). Devemos aprender
veio a El Salvador, ao Brasil e ao Chile? Reedita-se, de nossa história e entender nossa história, porém
com os matizes próprios dos novos tempos, a vi- não nos sentir atropelados pela história, porque
são de John Kennedy, quando, aos 13 de março temos hoje muitos desafios para o futuro, nos
de 1961, em discurso pronunciado na Casa Bran- quais devemos concentrar atenção”. O presidente
ca, ante os embaixadores da América Latina, lan- Sebastian Piñera, anfitrião de Barack Obama, ao
ça seu Programa de Aliança para o Progresso, no termo da cerimônia alçou a taça e brindou como
qual marca as linhas do que seria a relação entre sócio dos Estados Unidos, os quais disse apreciar
os Estados Unidos e a América Latina. Naque- com carinho e admiração.

116
As marcas indeléveis da tortura

Entrevista com Cecília Coimbra

“Nós, que passamos pela tortura, podemos que une a psicologia à ditadura, afirma que não
afirmar que ela é algo indizível. Ela desumaniza, vê se trata de acaso o fato desta ciência e da psicaná-
o outro como objeto, como seu inimigo”. Contun- lise terem se desenvolvido tanto em nosso país no
dentes, verdadeiras, essas palavras foram ditas por período autoritário. Ex-integrante do Conselho
Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nun- Regional de Psicologia, foi presidente da Comis-
ca Mais <www.torturanuncamais-rj.org.br>, do são Nacional de Direitos Humanos do Conselho
Rio de Janeiro, na entrevista que concedeu por Federal de Psicologia. À frente do Tortura Nunca
telefone à Márcia Junges e publicada na edição Mais, trava batalha incessante em nome da ver-
358 de IHU On-Line em 18 de abril de 2011. dade e da memória de um período sombrio de
Presa política de agosto a novembro de 1970, fi- nossa história.
cou dois dias no DOPS e o restante do tempo no
DOI-CODI. Foi torturada, e garante que as mar- IHU On-Line – Qual é a importância de se
cas são inapagáveis, pois permanecem na alma resgatar a memória histórica do período da
de quem passou por esse horror. Contudo, é pre- ditadura brasileira?
ciso saber o que fazer com essas marcas: “Elas de- Cecília Coimbra – No Brasil há uma ten-
vem ser instrumentos de luta. Elas mostram como dência em se desqualificar a memória, de não
é você ser olhada pelo outro como se fosse um ligar para fatos históricos e documentos, de um
simples objeto perigoso”. modo geral, que não são levados a sério ou em
A exportação de know-how de tortura made consideração pelos diferentes governos. Isso se
in Brazil para outros para outros países latino- dá, sobretudo, em relação ao período da ditadu-
-americanos e a violência de Estado que continua ra civil militar que se abateu em nosso país, em
a aterrorizar a população também foram aborda- especial a partir de 1968, com o AI-5, quando
dos na conversa com a IHU On-Line. Ela enfati- se instala o terrorismo de Estado e a tortura pas-
za que a sociedade brasileira deveria indignar-se sa a ser instrumento oficial. As memórias desse
quando acontece tortura e violência não apenas período são fundamentais de serem trazidas e
junto à classe média ou alta, mas também junto resgatadas para a sociedade, de serem afirmadas
às classes mais pobres: “Em nome da história, te- pelas diferentes pessoas que foram atores e tes-
mos que pensar o presente criticamente”. temunhas desse período. Essa é a luta do Grupo
Militante do Partido Comunista, Cecília Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, que existe
Coimbra era estudante do curso de História. A há 26 anos, surgido logo após o período da dita-
seguir, já professora, aproximou-se do Movimen- dura civil militar, porque as questões referentes a
to Revolucionário 8 de Outubro – MR8 e iniciou a esse período estavam sendo jogadas para baixo
graduação em Psicologia. É professora aposenta- do tapete. Assim, o Grupo surge num momento
da, porém mantendo vínculo com o Programa de em que havia um clamor na sociedade brasilei-
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade ra para que pudéssemos conhecer nossa história,
Federal Fluminense – UFF. Interessada no nexo algo que foi e continua sendo negado.

117
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Aqui existe toda uma lógica de produção de Isso porque começamos pelo final do processo de
esquecimento e silenciamento, bem diferente do reparação. É como se fosse um “cala a boca”.
que aconteceu e que vem ocorrendo nos países
latino-americanos que passaram por situações
políticas semelhantes. A questão da memória é Vontade política
fundamental principalmente para as novas ge-
rações. Sou professora universitária e sei como Desde 1995, com Fernando Henrique Car-
as novas gerações ignoram esses fatos. É como doso, foi instalada uma Comissão Especial de
se houvesse uma lacuna nesse período histórico Mortos e Desaparecidos Políticos e, muito timi-
da ditadura. damente, vai-se tentando esclarecer algumas
Há alguns dias recebi um e-mail de uma questões relativas a esse assunto. Por que isso?
ex-aluna, psicóloga, que está trabalhando no Por muitos fatores. Temos uma história muito di-
Centro de Direitos Humanos de Petrópolis, onde ferente dos demais países da América Latina, de
estão fazendo um levantamento e uma campanha colonização espanhola. Vemos a participação da
muito bonita para que a chamada Casa da Morte população da Argentina de forma ativa na ques-
(aparelho clandestino da repressão que funcionou tão dos mortos e desaparecidos políticos. O Brasil
em Petrópolis numa casa alugada pelo Centro de caminha timidamente nessa direção. A sociedade
Informações do Exército) seja transformada em brasileira não sabe, em absoluto, dos arbítrios e
museu da memória. Isso emocionou-me muito, das perversidades que foram cometidos durante
pois as novas gerações já estão se apropriando aquele período. Isso é desconhecido pela maioria
da história. Por isso, repito que a questão da me- da população. É uma série de forças que entram
mória é fundamental, para que conheçamos mais em jogo nessa questão.
sobre nosso passado. Na Argentina, com o governo de Alfonsín95,
houve uma ruptura com o conservadorismo an-
IHU On-Line – Por que inúmeros outros terior. No Brasil não houve essa ruptura. O que
países da América Latina já resolveram houve, aqui, foi uma política de continuidade,
suas contas com o passado autoritário e tanto que a anistia vem em pleno período de di-
nós ainda engatinhamos nesse processo? tadura. A anistia foi imposta. Nós perdemos no
Por que há tanta dificuldade do Brasil lidar Congresso Nacional por cinco votos. Em 1978-79,
com seu passado ditatorial? exigíamos, junto dos movimentos sociais, uma
Cecília Coimbra – Realmente, o Brasil ainda anistia ampla, geral e irrestrita. Ela não veio as-
está engatinhando nessa questão. Somos o último sim. A anisitia que foi vencedora no Congresso
país na América Latina a efetivar um processo de nacional foi a anistia que vinha do governo mili-
reparação. Nos anos 1970 fomos campeões na tar, extremamente reduzida, fruto de alianças que
exportação do know-how de tortura para as di- continuam hoje. Os governos civis de 1985 para
taduras latino-americanas. Exportamos manuais cá fizeram parcerias e alianças com as forças con-
de tortura e torturadores. Temos informações de servadoras e até reacionárias que respaldaram o
que no Chile, Argentina e Uruguai havia tortura- período de terrorismo de estado. Por isso, até hoje
dores brasileiros participando de interrogatórios. não há vontade política efetiva dos governos para
O Brasil, que foi o campeão de exportação de tor- que essa história possa ser contada efetivamente.
tura nos anos 1970, hoje é uma das nações mais Boa parte de nossos arquivos foi queimada, mas
atrasadas do continente. Isso porque o processo ainda resta outra parte. Isso é dito pela imprensa.
de reparação, como a própria ONU diz, é um Alguns militares, como Sebastião Curió, um dos
processo no qual primeiramente se investigam e
esclarecem as circunstâncias das mortes, desapa- 95 Raúl Ricardo Alfonsín: foi um advogado e político
recimentos e das prisões arbitrárias cometidas na- argentino, presidiu o país de 1983 a 1989. Foi uma
quele período. O Brasil é o último, nesse sentido. das figuras mais importantes da história de seu parti-
do, a União Cívica Radical. Faleceu em 2009. (Nota
da IHU On-Line)

118
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

repressores da guerrilha do Araguaia, e o faleci- que tem muito a ver com a doutrina de segurança
do general Bandeira, têm arquivos ditos pessoais. nacional, instaurada em toda a América Latina
Quero dizer claramente que esses arquivos não naquele período.
são pessoais coisíssima alguma. Esses arquivos Atualmente, vemos os mesmos dispositivos
são roubados da nação. Isso é crime e o governo que foram aplicados pela ditadura sendo aplica-
federal sabe disso em suas diferentes gestões. dos à pobreza. Temos que chamar a atenção para
isso. Os pobres são criminalizados como se todos
IHU On-Line – Qual é a expectativa sobre fossem traficantes e bandidos. Como se toda fa-
esse tema a partir do governo Dilma? vela fosse reduto de assassinos. Essas políticas
Cecília Coimbra – Como ex-presa política que são planetárias, fascistas e mais do que conserva-
fui, e com todo respeito pela história da Dilma doras, discriminatórias. O pior é que a população
e de outros companheiros, digo que a tortura, a aplaude. Produz-se algo muito parecido com o
prisão e o testemunho de sofrimento de vários que se produziu naquele período em termos de
companheiros e da morte de outros são marcas propaganda oficial. Em nome da minha seguran-
que estão nos nossos corpos, invisibilizadas, mui- ça, devo vigiar o outro e, se possível, prendê-lo
tas vezes. Aqueles que conseguiram sobreviver, e eliminá-lo, pois ele é um perigo para a minha
como nós, sabem que essas marcas não se apa- segurança. Isso é doutrina de segurança nacional.
gam nunca. Espero que essas marcas que estão
no corpo e na mente da presidenta possam ter
um eco mais forte do que as alianças políticas que Operação Condor96
estão sendo feitas.
A Operação Condor não se forma de uma
IHU On-Line – Quais são as semelhanças hora para a outra. Em 1969, tinha um amigo pre-
entre as ditaduras do Brasil e do restante so no Uruguai, trazido cladestinamente ao Bra-
da América? Nessa lógica, como a Ope- sil e trocado por tupamaros que estavam presos,
ração Condor serviu de padronização aos também clandestinos, em Porto Alegre. Essa liga-
atos desses totalitarismos? ção dos serviços de informação começa a ser feita
Cecília Coimbra – As diferenças entre as di- bem antes de alguns golpes militares serem dados,
taduras latino-americanas são várias. No Brasil como é o caso do Chile. Havia essa cooperação,
sempre houve uma propaganda intensa com rela- efetivamente. Mais tarde, registra-se o sequestro
ção aos direitos humanos. Nos anos 1940 e 1950 de Universindo Dias e Lilian Celiberti97. Vai se
tratava-se de um anticomunismo ferrenho. Hoje, formando, aos poucos, uma colaboração entre os
vemos os meios de comunicação de massa faze- serviços de informação, sobretudo no Cone Sul,
rem uma espécie de continuidade a essa posição. para a troca não apenas de prisioneiros, mas de
Precisamos pensar em não naturalizar o que está informações. Isso veio dar na chamada Operação
acontecendo hoje com relação à violência urba- Condor. Após o golpe do Chile, esse tipo de “ir-
na e rural. Rotula-se para que se criminalizem e mandade” se intensifica, torna-se mais técnica,
desqualifiquem os diferentes movimentos sociais. científica. O Brasil participou disso. Diz-se que
Antes éramos chamados de terroristas, de inimi- pouco participamos da Operação Condor. Em
gos da pátria, aqueles que colocavam em risco a absoluto! Temos vários brasileiros desaparecidos
segurança nacional. Hoje, o alvo é a pobreza, que “graças” à Operação Condor.
cada vez mais, sobretudo em função desse perío-
do autoritário, é apontada como perigosa. O Bra-
sil promove uma forte desqualificação e crimina-
96 Leia mais na entrevista especial com Neusa Maria Ro-
lização da pobreza e dos movimentos sociais. Isso manzini Pires, publicada no dia 28-05-2007 em Notícias
ocorre também no restante da América Latina. É do Dia. Disponível em <http://bit.ly/fGZVIa>. (Nota da
a chamada formação das “classes perigosas”, da- IHU On-Line)
97 Universindo Dias e Lilian Celiberti: casal de militan-
queles que põem em risco nossa segurança, algo
tes da oposição uruguaia. (Nota da IHU On-Line)

119
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Sob quais aspectos a tortura ser exterminada. Em psicologia, falamos em pro-
é uma desumanização do humano por parte dução de subjetividade. Produzem-se sujeitos pe-
do algoz e da vítima? rigosos, descartáveis e não humanos. Toda pessoa
Cecília Coimbra – Nós, que passamos pela que já tenha sido presa e torturada em sua vida
tortura, podemos afirmar que ela é algo indizível. sabe disso. Essas marcas não se apagam nunca.
A luta contra a tortura está acima de qualquer Devemos saber o que fazer com essas marcas. Não
pendência política, de qualquer partido político. podemos encarnar o papel de vítimas, mas usar
A tortura desumaniza, vê o outro como objeto, essas marcas como instrumentos de luta. Elas mos-
como seu inimigo. A questão da doutrina de se- tram como é você ser olhada pelo outro como se
gurança nacional, que é a produção do inimigo fosse um simples objeto, perigoso. Então, é uma
interno, cria uma paranoia na sociedade, em que desumanidade de quem aplica e de quem sofre.
uma insegurança e um terror são implantados.
Aquele que está ao seu lado pode ser seu inimi- IHU On-Line – A tortura é um produto da
go. Isso hoje é produzidíssimo e muito aceito pela barbárie ou da hiper-racionalização do
sociedade em geral. As novelas apontam isso rei- humano?
teradamente através da figura do psicopata. Es- Cecília Coimbra – Não acredito na noção do
tamos vivendo num mundo em que não se pode instinto. Sou crítica a uma determinada leitura
confiar em ninguém, onde a paranoia grassa. Isso hegemônica da psicanálise. Trabalho com au-
tem muito a ver com os dispositivos produzidos tores da filosofia da diferença, como Deleuze100,
pela ditadura civil militar no Brasil, embora esse Guattari101 e Foucault102, que falam da produção
seja um fenômeno planetário hoje. Estou falando
na produção da insegurança, do medo, do terror.
100 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim
Lembro de uma frase da Marilena Chauí98 como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem
que me impactou sobremaneira. Ela disse que a em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interse-
tortura é como se fosse um teatro: você pensa que ções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincen-
nes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acon-
isso não está acontecendo com você, é um pe- tecimentos, singularidades, conceitos que nos impelem
sadelo. A violência é tamanha que não há como a transformar a nós mesmos, incitando-nos a produzir
explicar. Por mais que se leia o que ela é, como espaços de criação e de produção de acontecimentos-
eu havia feito antes da minha prisão, não se tem -outros. (Nota da IHU On-Line)
101 Pierre-Félix Guattari (1930-1992): filósofo e mili-
noção do que ela significa antes de vivenciar essa tante revolucionário francês. Colaborou durante muitos
experiência. Só quando nos sentimos objeto na anos com Gilles Deleuze, escrevendo com este, entre
mão do outro é que podemos nos acercar da di- outros, os livros Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizo-
frenia e O que é Filosofia?. Félix Guattari, dotado de
mensão terrível da tortura. E digo que isso a po-
um estilo literário incomparável, é, de longe, um dos
breza vem sentindo na carne constantemente. E maiores inventores conceituais do final do século XX.
fingimos que não vemos. Esquizoanálise, transversalidade, ecosofia, caosmose,
Torturar é um treinamento. E isso ainda vem entre outros, são alguns dos conceitos criados e desen-
volvidos pelo autor. (Nota da IHU On-Line)
acontecendo nas Forças Armadas, nas Polícias 102 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas
Militares, nos Bopes99 “da vida”, no Rio de Janei- obras, desde a História da Loucura até a História da se-
ro. Lembro desse comportamento dos torturado- xualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte)
res do DOI-CODI onde estive presa, na Polícia do situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Suas
teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as
Exército. Há todo um treinamento no qual você concepções modernas destes termos, motivo pelo qual é con-
é levado para ver o outro não como um ser hu- siderado por certos autores, contrariando a sua própria opi-
mano, mas como uma coisa perigosa que deve nião de si mesmo, um pós-moderno. Em duas edições a IHU
On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de
18-10-2004, disponível para download em <http://migre.me/
98 Marilena Chauí: filósofa brasileira reconhecida pela vMiS> e a edição 203, de 06-11-2006, disponível em <http://
sua ativa participação no contexto do pensamento e po- migre.me/vMj7>. Confira, também, a entrevista com o filó-
lítica brasileira. (Nota da IHU On-Line) sofo José Ternes, concedida à IHU On-Line 325, sob o título
99 Batalhão de Operações Especiais (Bope), do Rio de Ja- Foucault, a sociedade panóptica e o sujeito histórico, disponí-
neiro. (Nota da IHU On-Line) vel em <http://migre.me/zASO>. De 13 a 16 de setembro de

120
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de sujeitos, de como eles são criados, seus modos polícia e em instituições ilegais, como os
de pensar, sentir e agir no mundo de forma extre- grupos de extermínio?
mamente conservadora. É o que vemos cada vez Cecília Coimbra – Quando fazemos análise do
mais na grande mídia hegemônica. que é o Brasil hoje, com suas “políticas de insegu-
A pessoa que participa da tortura é treinada rança pública”, não podemos ignorar o período
a tal ponto que, efetivamente, acredite que está de ditadura civil militar. Enquanto essa história
agindo para o bem estar do país. Os treinamentos não for conhecida e essas memórias não forem
são para isso. As pessoas são coisas, as mulheres narradas para toda sociedade em termos de sua
são todas prostitutas, vagabundas. É o mesmo publicização, continuaremos a naturalizar a vio-
conceito que se aplica às mulheres de homens lência que atualmente existe. É comum dizer que
que estão aprisionados. O pobre é considerado violência vem do tráfico, mas a origem é bem an-
bandido e perigoso, e sua família é considera- terior e estrutural. Ela está presente na sociedade
da desestruturada. Nós, presos políticos, éramos capitalista através dos agentes do Estado. É o Es-
vistos assim. A primeira coisa que faziam com as tado aquele que mais viola direitos humanos. São
mulheres quando presas era despi-las, a fim de seus agentes os que mais violam as constituições.
produzir cada vez mais a sua fragilização. Duran- Essa herança nefasta do período da ditadura mili-
te algum tempo, enquanto estive presa, acreditei tar e do Estado Novo foi pouco falada e avaliada.
que meu filho havia sido entregue ao juizado de Falar sobre esses períodos é poder pensar criti-
menores. Era o que me diziam. A tortura vai sen- camente a respeito do que aconteceu. Esses pas-
do produzida no sentido não só de deixá-lo nas sados estão muito presentes. Quais políticas são
mãos dos outros, mas de acreditar em fatos in- essas que são implementadas e as quais aplaudi-
ventados. Frei Titto103, frade dominicano, que se mos? O filósofo italiano Giorgio Agamben104 fala
suicidou por não suportar a tortura, enlouqueceu. que vivemos um estado de exceção. Os campos
É muito difícil dizer por que alguém se desestrutu-
rou e outro superou a tortura. Até hoje há pessoas
na esquerda que recriminam quem falou na tortu- 104 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É pro-
ra, quem revelou coisas durante as sessões. Esses fessor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza),
companheiros foram rotulados como traidores, onde ensina Estética, e do College International de Phi-
que colaboraram com a repressão. Dizer isso é losophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da
Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New
de uma perversidade absurda. Isso é absolver os York University, cargo ao qual renunicou em protesto
torturadores. à política do governo norte-americano. Sua produção
centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia
IHU On-Line – Que resquícios de violência e fundamentalmente, política. Entre suas principais
obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida
ditatorial (incluindo a tortura) permane- nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e
cem em instituições reconhecidas como a a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e
história: destruição da experiência e origem da história
(Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção
(São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estâncias – A
2010 aconteceu o XI Simpósio Internacional IHU: O (des) palavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Hori-
governo biopolítico da vida humana. Para maiores infor- zonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo:
mações, acesse <http://migre.me/JyaH>. Confira a edição Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007 o site do
343 da IHU On-Line, intitulada O (des)governo biopolítico Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a entre-
da vida humana, publicada em 13-09-2010, disponível em vista “Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio
<http://bit.ly/bi5U9l>, e a edição 344, intitulada Biopoli- Agamben”, com o filósofo Jasson da Silva Martins. A
tica, estado de excecao e vida nua. Um debate, disponível edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou
em <http://bit.ly/9SQCgl>. (Nota da IHU On-Line) a entrevista “Agamben e Heidegger: o âmbito originário
103 Frei Titto: frade católico brasileiro, nasceu em Fortale- de uma nova experiência, ética, política e direito”, com
za. Assumiu a direção da Juventude Estudantil Católica em o filósofo Fabrício Carlos Zanin. A edição 81 da IHU
1963 e foi preso por participar de um congresso clan- On-Line, de 27-10-2003, teve como tema de capa O
destino da União Nacional dos Estudantes em Ibiúna. Foi Estado de exceção e a vida nua: a lei política moderna.
fichado pela polícia e tornou-se alvo de perseguição da Para conferir o material, acesse <www.unisinos.br/ihu>.
repressão militar. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

121
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de concentração estão aí. As polícias ditas comu- Máquina mortífera


nitárias não têm nada de comunitárias.
Pensar o período da ditadura militar, quando Abrimos processo no Rio e São Paulo contra
muitos filhos da classe média, como foi meu caso médicos legistas. Solicitamos aos Conselhos de
e o da Dilma, foram atingidos, é importante. Mas Medicina desses estados que investigassem mé-
não podemos ficar indignados apenas quando a dicos que, segundo nossa denúncia, teriam dado
tortura e o extermínio atingem determinados seg- laudos falsos sobre os opositores mortos sob tor-
mentos sociais. Quando atinge segmentos médios tura. À época militar era comum dar três versões
e altos, a sociedade fica indignada, grita, sai às oficiais para as mortes: tiroteio, atropelamento e
ruas. Mas quando a violência atinge segmentos suicídio. Conseguimos fotos de perícia que mos-
pauperizados e marginalizados, achamos isso na- travam marcas de tortura e o teatrinho do “morto
tural. Em nome da história, temos que pensar o em tiroteio” ou atropelamento. Alguns desses mé-
presente criticamente. dicos foram cassados.
A tortura é uma grande máquina que, azei-
IHU On-Line – Poderia citar algumas das tada por diferentes práticas profissionais, vai se
conquistas do Grupo em relação aos tortu- consolidando. Não são só a Polícia, o Exército,
radores da ditadura? a Marinha ou a Aeronáutica os responsáveis por
Cecília Coimbra – O Grupo Tortura Nunca tais práticas. Até o Corpo de Bombeiros teve en-
Mais surgiu pontualmente a partir da questão de volvimento na repressão. Psicólogos, psiquiatras,
torturadores ocupando cargos de confiança num advogados faziam parte da máquina mortífera.
governo popular e dito democrático, que era o Esse era o fim de linha, aqueles que legalizavam
governodor Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. a tortura. Alguns médicos que solicitamos investi-
Quando se descobriu que havia torturadores gar foram cassados pelo próprio Conselho Fede-
ocupando postos de confiança naquele governo, ral de Medicina.
espontaneamente alguns ex-presos políticos e fa-
miliares de mortos e desaparecidos começaram a
se reunir. É quando surge o Tortura Nunca Mais. Escola de tortura
Conseguimos ser ouvidos pelo governo, coleta-
mos depoimentos através de uma Comissão de Não se trata apenas de uma questão de pu-
Defesa de Direitos Humanos, Segurança Públi- nição, mas da escola que essas pessoas fazem na
ca e Cidadania. Iniciamos o afastamento desses sociedade. Esses profissionais formaram outros
colaboradores com a tortura dos cargos públicos que hoje estão em atuação. Atualmente, quan-
que ocupavam. Essa foi nossa primeira grande vi- do um detento é torturado, alguns profissionais
tória, inclusive antes da criação oficial do Grupo, chegam a dizer que não se trata de tortura, mas
que se deu em novembro de 1985. O nome do de sarna. Isso é legitimar a tortura. Não é preciso
Grupo foi inspirado na Comissão Sábado da Ar- colocar as mãos diretamente para estar envolvido
gentina, do governo Alfonsín, e que investigava na tortura. A responsabilidade vem desde a pre-
os crimes cometidos na ditadura daquele país. sidência da República, passando pelos diferentes
Fizemos inúmeras campanhas no sentido agentes do Estado e esses profissionais, que com
de impedir que homenagens fossem feitas a ex- suas práticas estão respaldando essa máquina
-torturadores. Conseguimos que ruas, creches e mortífera.
escolas aqui no Rio de Janeiro recebessem nomes
dos opositores mortos e desaparecidos durante
a ditadura. Isso é algo inédito a nível mundial e
criou jurisprudência.

122
Esquecer a violência: uma segunda injustiça às vítimas

Entrevista com Castor Ruiz

Um país que ainda não fez a memória de Deusto, 2006); Os Labirintos do Poder. O poder
sua violência, “não julgou a nenhum responsável (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto
por tortura, morte nem desaparecimento político Alegre: Escritos, 2004) e Os Paradoxos do ima-
durante a ditadura militar. A mensagem que com ginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Leia,
isso se transmite é a de impunidade”. A análise ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Inter-
refere-se ao Brasil e parte do filósofo espanhol, nacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida
radicado no Brasil, Castor Ruiz, na entrevista que humana, no qual Castor contribui com o artigo A
concedeu por e-mail à jornalista Márcia Junges e exceção jurídica na biopolítica moderna, disponí-
publicada em 18 de abril de 2001 na edição 358 vel em <http://bit.ly/a88wnF>.
de IHU On-Line. A respeito da anistia que aqui
se fez, menciona que o expediente foi celebrado IHU On-Line – No Brasil estamos vivendo
tanto por exilados políticos, por permitir sua vol- uma transição inacabada em muitos aspec-
ta e iniciar a transição democrática, quanto pelos tos entre a pós-ditadura militar e a socie-
agentes da ditadura como verdadeiro trunfo, uma dade democrática. Como podemos pensar
vez que, com uma só cartada, permitia a “impu- a transição de um regime de exceção para
nidade do passado e a transição ‘regrada’ para um estado de direito?
um regime que não lhes pediria contas de seus Castor Ruiz – Todas as experiências de estados
atos passados”. Nesse sentido evidencia-se a im- de exceção deixam um lastro de destruição hu-
portância da memória: “A justiça não se faz pelo mana. O desafio das sociedades na pós-ditadura
esquecimento, mas pela memória”, e esquecer a é superar as marcas da violência. Definitivamen-
violência é cometer uma segunda injustiça com te, a violência é inerente ao autoritarismo. Contu-
as vítimas “condenando-as ao desaparecimento do é mais fácil superar o autoritarismo (enquanto
definitivo da história”. sistema político) que as sequelas da sua violên-
Professor dos cursos de graduação e pós- cia. Ainda que se confundam habitualmente estas
-graduação em Filosofia da Unisinos, Castor Ruiz duas realidades, regime autoritário e violência, é
é graduado em Filosofia pela Universidade de conveniente distingui-las porque a superação de
Comillas, na Espanha, mestre em História pela cada uma tem dinâmicas diferentes. É muito mais
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – fácil fazer a transição de um regime autoritário
UFRGS, e doutor em Filosofia pela Universidade para outro democrático, do que a recuperação
de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho dos efeitos humanos e sociais da sua violência.
Superior de Investigações Científicas. Escreveu A violência produz inexoravelmente vítimas, cujas
inúmeras obras, das quais destacamos: As encru- vidas se encontram irremediavelmente truncadas
zilhadas do humanismo. A subjetividade e alteri- pela barbárie. Mas também produz vitimários,
dade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: responsáveis por essa barbárie e que continuam
Vozes, 2006); Propiedad o alteridad, un dilema agindo nas instituições sociais. Como recuperar a
de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de dignidade das vítimas? Como fazer justiça às víti-

123
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mas (restaurando o mal sofrido) e aos vitimários mediavelmente marcada pela violência ao ponto
(responsabilizando-os pelo mal feito)? É nesta dos modelos políticos contratualistas de acordos
intersecção que, desde a segunda metade do sé- formais tornarem-se insuficientes para apagar as
culo XX, vem-se elaborando a chamada “justiça suas marcas.
de transição”. A violência, por ser a negação da vida hu-
A transição de um regime de exceção para mana, é o ato de injustiça por excelência. As mar-
um estado de direito se realizou no Brasil e no cas da violência, da sua injustiça, permanecem
caso na Espanha com acordos políticos. Con- nos corpos dos torturados, das vidas exiladas cujo
tudo, o problema dos acordos políticos é que, passado é irrecuperável, dos mortos encontrados,
em nome da estabilidade do Estado, sacrifica-se, dos desaparecidos, dos filhos que cresceram sem
muitas vezes, a dignidade das vítimas e se ig- os pais (desaparecidos), dos pais que até hoje
nora a responsabilidade dos vitimários. Embora amargam a ausência dos filhos (desaparecidos).
a transição do estado de exceção para estado Como fazer justiça aos que sofreram a violência
de direito possa se fazer mediante um acordo de do estado de exceção?
esquecimento. As sequelas da violência não po-
dem se apagar pelos acordos.
Esquecimento e justiça

Violência como normalidade política Definitivamente não é o esquecimento que


faz justiça às vítimas da violência histórica. Não
Na transição pactuada a violência cometida é o esquecimento da injustiça que legitima a
persiste como continuidade viva e dolorosa na justiça de transição. A transição histórica não
vida das vítimas, ou na sua ausência. As marcas se conclui com a mudança do regime de gover-
da violência não se anulam pelos meros acordos no. Para que essa transição seja completa há
políticos. A violência provoca um corte profundo que se levar em conta as vítimas da violência.
no seio da vida humana por ela atingida e, como A injustiça por elas sofrida é, em muitos casos,
consequência, na sociedade que a sofre. A vítima irreparável, mas em todos os casos há respon-
sofre os efeitos mais perversos da violência, mas sabilidade (e possibilidade) histórica de suturar
o vitimário também fica contaminado pela vio- as feridas abertas pela violência. Esta sutura,
lência; sua condição humana fica degradada pela que tornará viável a transição social e não só
insensibilidade; torna-se uma permanente amea- política, só é possível através de atos de justiça
ça de violência para o conjunto da sociedade. O reparadora. Não existem a priori formais nem
vitimário, ainda que seja um agente público (ou contratuais que possam se aplicar numa justiça
talvez ainda pior por essa condição), é contami- de reparação. Cada conjuntura histórica haverá
nado pela violência ao ponto de fazer dela um de encontrar o meio mais justo de fazer justiça
ato e normalidade política. Ninguém está a salvo às vítimas da violência estrutural. Em qualquer
do embrutecimento ao qual a violência reduz a caso, e em todos os casos, a condição necessá-
condição humana do vitimário. Ele, quando não ria para que a justiça de transição seja justa é
se faz a devida responsabilização social dos seus fazer memória das vítimas. A justiça não se faz
atos, torna-se uma ameaça potencial. pelo esquecimento, mas pela memória.
A violência contamina tudo o que toca: pes-
soas, valores, instituições, hábitos, leis, etc. Ela IHU On-Line – Que paralelismos e diferen-
tem uma potência contaminante das pessoas, ças haveria entre a transição política da
da cultura e das instituições. O estado de exce- Espanha, após a ditadura de Franco, e a ex-
ção é uma forma política de extrema violência periência de transição no Brasil?
que contamina a sociedade, as instituições, os Castor Ruiz – Os contextos de transição polí-
valores e as pessoas que com ele compactuam. tica de Espanha e Brasil têm alguns pontos co-
A sociedade sob o estado de exceção fica irre- muns e diferentes. Na Espanha, ainda quando

124
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

da morte de Franco os militares mantinham o Silva106, Médici107, Geisel108, Figueiredo109. Muitos


poder férreo, todas as forças políticas fizeram dos políticos atuais são os mesmos que estavam
uns acordos (chamados acordos da Moncloa) durante a ditadura: Sarney é o símbolo vivo des-
que incluíam uma anistia geral, como meio para sa continuidade não revista. Muitos torturadores
evitar que os militares perpetuassem o modelo continuaram exercendo cargos públicos na transi-
de ditadura franquista. Depois, os acordos da ção, hoje aposentados ou falecidos por idade têm
Moncloa serviram de inspiração para o modelo em seus filhos dignos representantes políticos e
de anistia no Brasil. públicos. Inclusive sua memória é exaltada como
Contudo, algumas diferenças são eviden- benfeitores da pátria. O pior é que o dia 1º de
tes. Na Espanha, houve uma rejeição geral ao abril ainda é oficialmente celebrado na maioria
passado de ditadura franquista e seus símbolos. (talvez na totalidade) dos quartéis militares de for-
Na medida em que a sociedade espanhola foi-se ma oficial como dia da revolução. Há um setor
desvencilhando do temor a um novo regime au- das forças armadas e da classe política no Brasil
toritário, a rejeição à ditadura foi alastrando por que se identifica com o regime de exceção e jus-
todas as esferas sociais. Todos os símbolos da tifica a ditadura como um mal necessário. Neste
ditadura foram sumaria e publicamente aboli- caso, esses setores se autocompreendem sempre
dos. Todas as ruas com nomes de generais ou de prontidão para voltar atuar quando as circuns-
símbolos da ditadura foram mudadas; quase to- tâncias assim o requerer, segundo a sua opinião.
dos os monumentos que lembravam a vitória do O melhor antídoto da violência é a memó-
ditador e seu regime foram retirados. Em poucas ria. Por isso é conveniente lembrar que setores
décadas todas as instituições do Estado, incluí- das forças armadas, chamados de legalistas, se
do o Exército, democratizaram-se ao ponto de opuseram ao estado de exceção; alguns até fo-
rejeitar quaisquer proximidades com o passado ram mortos por isso. É o caso do tenente-coronel
franquista. Nenhum político ou pessoa pública Alfeu de Alcântara Monteiro110, aos efeitos o co-
relevante quer ser associado com quaisquer sím-
bolos do franquismo. 106 Artur da Costa e Silva (1899-1969): ditador militar e
político brasileiro, o segundo presidente do regime mili-
tar instaurado pelo Golpe Militar de 1964. Seu governo
O Brasil e os símbolos da ditadura iniciou a fase mais dura e brutal do regime de terrorismo
de Estado brasileiro, à qual o general Emílio Garrastazu
Médici, seu sucessor, deu continuidade. Sob seu governo
Entendo que esta, entre outras, é uma matéria foi promulgado o AI-5, que lhe deu poderes para fechar
pendente da transição política no Brasil. A maioria, o Congresso Nacional, caçar políticos e institucionalizar
a repressão e a tortura. (Nota da IHU On-Line)
por não dizer, a totalidade dos símbolos da ditadura
107 Emílio Garrastazu Médici (1905-1985): ditador mi-
permanecem onde estavam. Muitas das principais litar e político brasileiro, presidente do Brasil entre 30
ruas, praças, colégios e outros símbolos públicos con- de outubro de 1969 e 15 de março de 1974. Obteve
tinuam se denominando Castelo Branco105, Costa e a patente de general. Seu governo foi considerado o
mais obscuro e repressivo de toda a história do Brasil
independente. (Nota da IHU On-Line)
108 Ernesto Geisel (1908-1996): ditador militar e político
105 Humberto de Alencar Castello Branco (1900- brasileiro. Eleito presidente da República por um Co-
1967): ditador militar e político brasileiro, presidente légio Eleitoral (1973), indicado pelos militares, tomou
da República designado após o Golpe Militar de 1964. posse em 15 de março de 1974, como penúltimo di-
Nomeado chefe do Estado-Maior do Exército por tador militar depois do golpe de 1964. Buscou em seu
João Goulart em 1963, Castello Branco foi um dos governo uma gradual saída do regime militar. Deixou
líderes do Golpe de Estado de 31 de março de 1964, a presidência em 1979, quando assumiu o último dita-
que depôs Goulart. Eleito presidente pelo Congresso, dor do regime autoritário instaurado em 1964.(Nota da
assumiu a presidência em 15 de abril de 1964, e fi- IHU On-Line)
cou no posto até 15 de março de 1967. Durante seu 109 João Batista de Oliveira Figueiredo (1918-1999):
mandato, Castello Branco desmantelou a esquerda do político e ditador militar brasileiro, o 30º presidente do
Congresso e aboliu todos os partidos. Foi sucedido Brasil, de 1979 a 1985. (Nota da IHU On-Line)
pelo seu ministro de Guerra, Marechal Costa e Silva. 110 Alfeu de Alcântara Monteiro (1922-1964): militar
(Nota da IHU On-Line) brasileiro, aviador, coronel da Força Aérea Brasileira,

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mandante da base aérea de Canoas, na época. Comissão Nacional da Memória Histórica, foram
Foi morto o dia 04-04-64 por se negar a bom- levantando fossas de desaparecidos, estudando
bardear o Palácio Piratini, Porto Alegre, sede da arquivos, revendo os casos de torturas, etc. A ver-
resistência legalista. dade dos fatos ocultados pela ditadura histórica
serviu de base jurídica para os atos de reparação
IHU On-Line – Quais foram as principais política e moral às vítimas.
dificuldades encontradas na transição es- Na medida em que os fatos estão ainda
panhola e qual o paralelismo que poderia vindo à luz, a impressão geral que fica é que se
ser feito com as encontradas no Brasil? cometeu uma enorme injustiça contra as vítimas,
Castor Ruiz – A anistia dos acordos da Mon- pelo esquecimento do acontecido. Um dado,
cloa, a semelhança da que também se reivindicou que serve de exemplo do que estamos falando,
no seu momento no Brasil, significou a reintegra- chamou muito atenção. Como o regime de ex-
ção política de todos os exilados e banidos pelo ceção durou 40 anos, há várias fases e fatos de
estado de exceção. Foi um avanço político possí- violência extrema nesse período. Além dos milha-
vel naquele momento. Porém, com o passar do res de fuzilados e desaparecidos durante as exe-
tempo, o medo inicial do retorno do autoritarismo cuções sumárias de civis no período de guerra,
deu lugar à necessidade da verdade sobre a bar- constatou-se que após a guerra civil, 1939, havia
bárie da ditadura. A grande pergunta que ficou na uma população carcerária de mais de 1 milhão
transição espanhola, assim como está ocorrendo de presos, a maioria políticos. Quando a Segunda
no Brasil, é o direito à verdade sobre as vítimas Guerra Mundial termina, em 1945, os arquivos
da violência. mostram que há pouco mais de 400 mil presos.
Se a transparência é o que define a democra- Quando as comissões foram pesquisar com mais
cia, os regimes de exceção fazem do esquecimento detalhe nomes e processos de execução dos pre-
e do ocultamento os cúmplices de seus atos polí- sos, constatou-se um procedimento de fuzilamen-
ticos. A transição, para que seja justa, há de levar to massivo e indiscriminado em todas as cadeias
em conta a injustiça cometida contra as vítimas. franquistas, caracterizando um autêntico genocí-
Qualquer transição justa demanda, como primeiro dio silencioso, que até datas muito recentes havia
passo, conhecimento da verdade do que aconte- ficado despercebido porque não se tinha noção
ceu com as vítimas. O segundo passo será julga- da dimensão da barbárie cometida.
mento dos responsáveis pelo acontecido. Terceiro Definitivamente, o esquecimento da vio-
passo, atos de reparação possível para as vítimas, lência comete uma segunda injustiça contra as
num sentido amplo do termo. Em quarto lugar, e vítimas, condenando-as ao desaparecimento de-
quando concluídos todos os anteriores, poderá se finitivo da história. Neste ponto cabe lembrar um
falar em perdão político aos responsáveis ainda vi- outro fato, o de milhares de crianças que tiveram
vos. Mas o perdão tem algumas condições. que exilar-se do país sem seus pais. Foram vários
barcos só com crianças enviados com destino ao
México e à Rússia. Crianças cujos pais tinham
Genocídio silencioso morrido ou estavam lutando; crianças que, ar-
rancadas pela violência, cresceram longe de sua
Na Espanha criara-se uma Comissão Na- família original; crianças que nunca mais volta-
cional da Memória Histórica, como instrumento ram e cujos destinos ficaram, na sua maioria,
para aferir a verdade das vítimas. Em torno dela desconhecidos. Igualmente triste foi o destino
surgiu uma grande rede de Associações de Víti- de milhares de refugiados que fugiram da guerra
mas. Estas, por iniciativa própria e com apoio da para França.

IHU On-Line – Os arquivos da ditadura es-


um dos primeiros oficiais legalistas a tombar em defesa panhola foram abertos? O que isso signifi-
da democracia no Brasil, vítima do golpe de estado de
cou à consolidação da democracia no país?
1964. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Castor Ruiz – O estado de exceção sempre ocul- também o meio mais eficiente para neutralizá-la.
ta ao máximo sua barbárie. Uma parte importan- A violência que se oculta tende a reproduzir-se
te da violência não fica registrada, é simplesmente mimeticamente. A violência tem um potencial mi-
impetrada. Há que se aplicar uma hermenêutica mético que tende a sua reprodução, de uma ou
da violência para poder ler o não dito no dito. de outra forma, quando não é convenientemente
Ou melhor, invertendo a lógica hermenêutica, o neutralizada. O efeito mimético se dá em toda for-
que deveria ser dito naquilo que não foi dito. Em ma de violência. Aparece na violência familiar e
qualquer caso, a verdade aparece sempre como a social, mas também na violência política.
grande inimiga da violência. Daí que os regimes A memória (anamnese é o antídoto mais
de exceção e seus cúmplices na transição tentem eficiente para neutralizar a violência, qualquer
evitar ao máximo as comissões de verdade. O violência, enquanto o esquecimento (amnésia) é
Brasil vive este momento crucial. A encruzilhada seu principal aliado. Daí que a justiça das vítimas
em que ainda é possível trazer à luz muita da vio- seja sempre uma justiça anamnética, enquanto
lência ocultada pela ditadura militar. a impunidade da violência é sempre amnési-
A abertura para o reconhecimento da ver- ca. O silêncio e o esquecimento são os meios
dade histórica da barbárie atua como um autên- pelos quais a violência se reproduz e perpetua
tico termômetro do estado de direito. Quando os nas pessoas, na sociedade e nas estruturas. O
regimes e governos colocam sucessivos obstácu- Estado que decide ocultar ou esquecer a vio-
los para que a verdade da violência seja conhe- lência cometida por parte de seus funcionários,
cida, é um sintoma claro de que há um déficit, instituições ou estruturas está propiciando que
grave, de democracia nas instituições públicas. esses mesmos funcionários (ou seus colegas su-
Se as penumbras do encobrimento são utiliza- cessores), instituições e estruturas reproduzam a
das como estratégia política pelo estado de ex- violência no seu seio como um ato de normali-
ceção, a transparência é o rosto da democracia. dade política. A amnésia torna a violência algo
Quando se oculta a violência significa que ainda normal. A normalização da violência, propiciada
há cumplicidade, explícita ou tácita, com os seus pela amnésia, tende a legitimá-la como meio útil
responsáveis. para o governo social.
No caso da transição espanhola os princípios
anteriormente esboçados também se cumpriram.
Entanto, as diversas instâncias do Estado manti- Sensação de impunidade
nham simpatizantes do regime franquista. Foram
inúmeros os obstáculos para abertura dos arqui- É neste contexto político conflitante de justi-
vos das delegacias, da central de inteligência e das ça anamnética (das vítimas) contra a impunidade
prisões. Na medida em que os simpatizantes do amnésica (dos vitimários) que devemos situar no
regime franquista eram expurgados das institui- Brasil a polêmica sobre a abertura dos arquivos,
ções públicas, incluído o Exército, a transparência a comissão da verdade, o julgamento dos respon-
se tornou mais efetiva. A correlação entre trans- sáveis, etc.
parência pública e conhecimento da violência é A violência cometida pelo estado de exce-
um dos mensuradores da solidez democrática do ção do último regime militar no Brasil permanece
estado de direito ou de seu déficit. silenciada, ocultada oficialmente. Isso quer dizer
que muitos de seus personagens continuaram (e
IHU On-Line – Por que o Brasil não con- continuam) atuando como agentes públicos, ins-
segue fazer as contas com o seu passado truindo a colegas e subordinados no uso desses
ditatorial? mesmos métodos. Instituições que não fizeram
Castor Ruiz – Talvez tenhamos aqui um dos memória de sua violência histórica continuam
pontos nevrálgicos dos efeitos perversos da vio- acobertando-a como meio legítimo (normal) para
lência. A memória da violência não é só um ato determinadas situações em que eles a considerem
de justiça para com as vítimas que a sofreram: é necessária.

127
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

O Brasil não fez memória de sua violência. governo violento que declarou sua autoanistia, o
Não julgou a nenhum responsável por tortura, que torna seu ato uma ilegalidade jurídica.
morte nem desaparecimento político durante a A ambiguidade da anistia autodeclarada pe-
ditadura militar. A mensagem que com isso se los militares a torna um ato jurídico dúbio (susce-
transmite é a de impunidade. O Estado brasilei- tível de anulação) e um ato político de imuniza-
ro com o silêncio e a política de esquecimento ção da justiça futura. Ninguém pode anistiar-se a
está conferindo impunidade para atos de violên- si mesmo das barbáries cometidas, que é o que
cia histórica. Isso tem uma consequência grave representa a autoanistia da maioria das ditaduras
para o presente: o Estado conserva em seu seio do mundo. Por isso os acordos internacionais as-
setores violentos em linha de continuidade com a sinados pelo Brasil reconhecem a tortura um cri-
violência institucional do passado que fazem do me contra a humanidade que é imprescritível no
silêncio e o esquecimento sua estratégia de perpe- tempo e no espaço, e não é suscetível de anistia.
tuação. Não é uma casualidade que o percentual Cabe ao governo ter vontade política para manter
de torturas e maus tratos cometidos pela polícia estes princípios.
na Argentina (uma realidade social próxima) seja
muito inferior àquele que se comete no Brasil. A IHU On-Line – A partir do governo Dilma,
Argentina, desde há décadas, está julgando de quais são as expectativas em relação à
forma sistemática muitos torturadores e assassi- abertura dos arquivos dos anos de chumbo?
nos da sua ditadura militar tornando a violência Castor Ruiz – É difícil fazer prognósticos neste
do Estado um tema de debate público em que se campo. Porém, podemos dizer que os rumos das
espelham agentes e instituições. decisões do governo Dilma neste sentido depen-
derão muito da intensidade com que a sociedade
IHU On-Line – E por que a anistia foi a op- pressione a respeito. Já no governo Lula era no-
ção adotada em nosso país? tória e pública a divergência de posições dentro
Castor Ruiz – A anistia foi inicialmente uma rei- do próprio governo sobre este ponto. Lembremos
vindicação dos exilados. Era o passo necessário do conflito público entre o então ministro da Jus-
para a transição democrática. Os militares do go- tiça, Tarso Genro, e o ainda ministro do Exército,
verno sabiam disso e fizeram da anistia um instru- Nelson Jobim. Dentro do governo há pessoas e
mento para negociar, também, a impunidade a fatias que têm uma clara posição política a res-
respeito da violência cometida durante o regime peito da necessidade de abertura dos arquivos da
de exceção. Daí que a própria anistia tivesse his- ditadura, do julgamento dos casos de tortura e
toricamente esse duplo sentido. Celebrada pelos desaparecimento, para talvez depois poder falar
exilados políticos como um ato de vitória que per- em anistia geral.
mitiu sua volta e abriu as portas para a transição Contudo, as pressões pela manutenção dos
democrática, foi também celebrada pelos agentes arquivos fechados e a negação de qualquer julga-
da ditadura como seu trunfo por ter conseguido, mento é muito firme. Haja vista que continua se
numa só cartada, a impunidade do passado e a reelegendo como presidente do Senado, median-
transição “regrada” para um regime que não lhes te acordos com o governo, um dos expoentes po-
pediria contas de seus atos passados. líticos mais nítidos do regime de exceção: Sarney.
Por isso o termo anistia ecoa de forma am- Sua eleição implica acordos políticos do governo,
bígua. Com base nessa ambiguidade semântica o que deve conceder muito às forças que o apoiam.
Supremo Tribunal Federal ditou sentença no ano Ele, sendo um símbolo da ditadura, mantém uma
passado dizendo que a lei de anistia tinha anis- rede política e econômica de influências median-
tiado também quaisquer possibilidades de julga- te a qual controlam pontos estratégicos do poder
mento pelos atos cometidos durante a ditadura. no Brasil. Isso quer dizer que o Brasil mudou de
Mas o STF poderia ter utilizado essa mesma ambi- regime, mas nem tanto. Muitas pessoas do antigo
guidade semântica da anistia para interpretar que regime (as que morreram foram fielmente suce-
a lei foi também uma imposição autoritária de um didas por seus filhos e netos, como Magalhães

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Neto) continuam muito bem posicionadas políti- ameaçadora da ordem que ele mesmo institui, di-
ca, econômica e militarmente. ficilmente poderá fazer do direito uma forma de
justiça se oculta a violência como meio normal
IHU On-Line – É possível fazer democracia de governar a vida humana, seja ou por agentes
sem acertar as contas com o passado? Como? públicos, ou por atos institucionais ou por institui-
Castor Ruiz – A democracia é um regime de ções do Estado.
governo que tem como princípio a autonomia O meio mais eficiente de neutralizar a vio-
dos sujeitos e seu autogoverno coletivo. Há muito lência do presente é fazer memória da violência
que se questionar a respeito de se as atuais demo- passada. A memória faz presente as vítimas e as
cracias formais são efetivamente democráticas ou consequências perversas da violência e sua bar-
nelas impera um regime biopolítico de governo bárie. Ela permite depurar dos aparatos do Es-
da vontade dos outros. Nossas democracias são tado os resquícios de violência que ainda perdu-
marcos jurídicos de princípios formais que reco- ram grudados em práticas, instituições, agentes,
nhecem os quesitos necessários para se exercer a como atos de normalidade política. Lembrando
autonomia. Porém nelas operam dispositivos de que violência e autoritarismo existem como práti-
poder que investem em técnicas de produção de cas políticas coimplicadas. Quanto mais insistente
subjetividades e fabricação de condutas. O sujeito seja a rememoração da violência, mas eficiente
jurídico do direito formal é invertido por objeto a será seu expurgo das práticas autoritárias do es-
ser governado. Vivemos uma tensão permanen- tado de direito.
te entre os dois aspectos que encurralam a vida
humana como objeto a ser governado através de IHU On-Line – Em que aspectos o perdão
formas de normalização. Esta é uma das crises não deve ser confundido com esquecimento?
das nossas democracias em escala global. Castor Ruiz – Esta questão nos conduz ao pon-
Esclarecido o marco agônico da democra- to culminante do que podemos denominar uma
cia formal em que estamos tensionados, cabe justiça de transição. O perdão, a princípio, é uma
conferir ao presente um valor relativo. Sua rela- categoria ética que pode ter fortes implicações
tividade é, entre outros aspectos, em referência políticas. Em primeiro lugar, cabe assinalar que só
ao passado que o constitui. O presente de uma se pode perdoar o que se lembra; ninguém pode
sociedade, contrariando o contratualismo, não perdoar aquilo do que não tem conhecimento ou
existe como um momento zero da história: ele memória. O perdão demanda a memória, anam-
é o resultado dessa história. Toda sociedade se nese. Em segundo lugar, o perdão não pode ser
constrói sobre os cimentos ou escombros do seu confundido com impunidade. Em tal caso, pro-
passado. A violência é o entulho que toda so- cede-se ao desvirtuamento do perdão, a seu uso
ciedade quer esconder de si mesma, como se o instrumental por parte dos violentos como meio
mero ato formal de esquecimento possibilitasse de impunidade política. Algo que não correspon-
a desaparição das suas consequências históricas. de ao perdão.
A violência ocultada pelo esquecimento (mas O perdão só pode ser concedido pelas víti-
não neutralizada) persiste nas instituições sociais mas. Há uma dimensão pessoal do perdão em
e se reproduz na conduta dos indivíduos como que as vítimas, feito o devido reconhecimento da
um ato de normalidade. O esquecimento tende verdade, o devido julgamento e até a condenação
à normalização da violência. dos culpados, têm o poder de perdoar para trazer
a reconciliação pessoal e social. Esta dimensão
ética do perdão tem profundas raízes religiosas
Memória da barbárie (principalmente cristãs e budistas), mas também
amplas implicações políticas.
A violência esquecida coloca em xeque o Embora há muito debate a este respeito,
próprio estado de direito. O estado de direito, que entendemos que há uma dimensão política do
já oculta a exceção jurídica como uma sombra perdão. As sociedades que viveram rasgadas pela

129
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

violência: o caso da ditadura no Brasil, mas ou- os torturados, mortos e desaparecidos da última
tros casos até mais graves como África do Sul, ditadura militar que ainda se celebre no Brasil o
Guatemala, El Salvador, Colômbia, e também so- dia 1º de abril como um gesto memorável, e não
ciedades com o terrorismo endêmico como Irlan- humilhante.
da ou País Basco (Espanha), tem que encontrar A relação do perdão é tão complexa que tor-
um ponto de reconciliação social com a violência na sua dimensão política algo difícil; em muitos
sofrida. Essa reconciliação nunca será tal através casos torna inviável. Mas quando as condições
das leis de ponto final, que são leis de impunida- humanas e políticas do perdão se dão, ele pode
de. Não são leis de perdão, mas de autoperdão. O ser um eficiente instrumento de reconciliação so-
autoperdão, que pode ser um dispositivo psíquico cial. Há algumas experiências muito positivas de
de autorreconciliação, só é viável quando há um ex-terroristas do IRA (irlandês) que fizeram o ges-
reconhecimento público do mal feito e um pedido to político de reconciliação pública com os filhos
público de perdão paras as vítimas. Desde a pers- e esposas das vítimas que eles mataram. Tal gesto
pectiva política, o perdão só pode ser outorgado reintegra a dignidade das vítimas, a quem se re-
pelas vítimas após o devido processo de justiça. conhece a injustiça sofrida. E aos próprios terro-
A reconciliação do perdão não tem por objetivo ristas que, depois do devido julgamento e prisão,
principal a impunidade dos violentos, mas a in- puderam se reintegrar à atividade política sem as
tegração social digna das vítimas. O perdão é o marcas da violência.
gesto político por excelência em que as vítimas A anistia costuma ser um sucedâneo do per-
conseguem reconciliar-se, dentro do possível, dão. Ela, como indicamos antes, é um conceito
com a violência sofrida. polissêmico e um ato político ambíguo. Como
conceito foi utilizado pela maioria dos ditadores
como instrumento jurídico para autoimunizar-se
1º de abril, uma humilhação da violência cometida. Este é o tipo de anistia que
está sendo questionada no Brasil. Contudo, cabe
O perdão ainda requer o autorreconheci- pensar em um outro momento da anistia. A justi-
mento da culpa dos violentos. Sem reconheci- ça de transição devida às vítimas exige a verdade
mento por parte dos violentos da responsabilida- dos atos violentos, o julgamento dos envolvidos e
de política do mal feito, o perdão se torna inviável. que os tribunais ditem sentença com a pena cor-
Nesse caso, a violência continua ainda viva como respondente. Após o julgamento dos responsáveis
uma potência ameaçadora que se autoproclama e como forma de reconciliação política, caberia
um meio político legítimo quando necessário. pensar numa anistia da pena. Esta anistia não se-
Quando não há arrependimento, a violência ain- ria um esquecimento, senão uma forma política de
da se mantém como ameaça para as vítimas e perdão institucional. Ela não nega os fatos, não es-
para ela todos somos potenciais vítimas. O ato quece, senão que faz justiça às vítimas reconhecen-
violento do qual não há arrependimento persiste do a verdade e, como ato político de reconciliação,
como sombra ameaçadora da própria dignida- dependendo das circunstâncias, pode outorgar o
de das vítimas. Por isso resulta humilhante para perdão institucional (anistia) da pena.

130
Parque da Memória, um monumento para não
esquecer o terrorismo de Estado

Entrevista com Nora Hochbaum

Em 24 de março de 1976 começavam os Professora nacional de belas artes, especia-


anos de chumbo na Argentina, mediante um gol- lista em gestão cultural em instituições públicas,
pe de estado militar, o sexto na história democráti- Nora Hochbaum trabalha de o início dos anos
ca daquele país. “Este golpe de Estado se caracte- 1980 como curadora e produtora independente
rizou por uma nova metodologia: o terrorismo de em exibições, bienais e eventos relacionados com
Estado e o desaparecimento forçado e sistemático artes visuais e gestão cultural. Atuou em diversas
de pessoas”, denuncia a diretora do Parque da instituições nacionais e internacionais dos Esta-
Memória – Monumento às Vítimas do Terrorismo dos Unidos, Cuba, Santo Domingo, Espanha e
de Estado, Nora Hochbaum em entrevista conce- França. Foi diretora do Centro Cultural Recoleta
dida à jornalista Márcia Junges e publicada em 18 da Cidade de Buenos Aires, e da Casa Argentina
de abril de 2011 na edição 358 de IHU On-Line. em Paris. Atualmente é a diretora do Parque da
Indiscriminadamente, “os militares inter- Memória – Monumento às vítimas do terrorismo
vieram em todos os âmbitos da vida social do de Estado. Para maiores informações sobre o Par-
país”, proibiram e queimaram inúmeros livros, que da Memória, visite <http://migre.me/5g6Fl>.
perseguiram intelectuais, artistas, escritores e
forçaram-nos ao exílio no exterior. Cerca de 10 IHU On-Line – O que é o Parque da Memó-
mil presos políticos e mais de dois milhões de ria e qual é sua importância para os argen-
exilados, além de centenas de pessoas que eram tinos e para as outras nações?
jogadas de aviões sobre o Rio da Prata, são o Nora Hochbaum – O Parque da Memória sur-
saldo que “as botas” dos militares legaram à na- ge como uma iniciativa de organismos de direitos
ção. Além do alijamento de uma geração inteira humanos que decidiram impulsionar um projeto
de intelectuais, a Argentina amargou um perío- para criar um lugar de recordação e homenagem
do de decadência econômica, com o aumento frente ao Rio da Prata: um Parque da Memória
da dívida externa. Para que o país e o mundo que incluísse um monumento com os nomes dos
não esqueçam dessa vergonha, organismos de desaparecidos e assassinados na Argentina du-
direitos humanos se uniram para criar o Parque rante a última ditadura militar, rodeado por um
da Memória, localizado exatamente em frente ao conjunto de esculturas comemorativas. A inicia-
Rio da Prata. “Nosso objetivo é conseguir que a tiva foi apresentada na Legislatura da Cidade
sociedade participe, em sua totalidade, da com- de Buenos Aires em dezembro de 1997. A partir
plexa tarefa de reconstrução do tecido social e dessa data o trabalho foi incessante. A Lei 46, de
cultural desarticulado pela ditadura militar. Este 1998, dispôs a construção do Parque da Memó-
é o grande desafio do Parque da Memória”. E ria e do Monumento às Vítimas do Terrorismo
completa: “[Este] é um lugar de recordação e de Estado. Com tal objetivo criou-se a Comissão
testemunho, porque ali estão os nomes desses Pró-Monumento que se encarregou de levar em
seres que se quis apagar”. frente sua construção e de convocar ao concurso

131
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

internacional de esculturas que seriam colocadas o terrorismo de Estado e o desaparecimento for-


no espaço. çado e sistemático de pessoas.
A partir do ano de 2009, com a aprovação As Forças Armadas (Exército, Marinha e
da lei 3078, criou-se o Conselho de Gestão do Aeronáutica) tomaram o gover no, aprisionaram
Parque da Memória – Monumento às Vítimas do a então presidente Isabel Perón e seus minis-
Terrorismo de Estado. Este conselho está integra- tros, romperam a ordem constitucional, deixa-
do pelo governo da cidade de Buenos Aires, pela ram de funcionar, no Congresso da Nação, as
Universidade de Buenos Aires – UBA e por or- duas câmaras (de deputados e de senadores).
ganismos de direitos humanos. As características Toda decisão passou, desde então, pelo poder
deste conselho constituem um precedente na par- Executivo (no princípio a Junta Militar e, em
ticipação da sociedade civil na administração de seguida, o presidente) que governava mediante
um espaço público. decretos – não leis. Afastam-se os juízes da de-
mocracia e nomeiam-se juízes afins às ideias e
práticas dos militares.
Jogados no rio Os militares intervieram em todos os âmbitos
da vida social do país. Na educação se impuse-
O Parque da Memória – Monumento às Víti- ram planos e programas de estudo de diferentes
mas do Terrorismo de Estado – é hoje um espaço temas, como a teoria de conjuntos em matemáti-
público de 14 hectares, localizado na franja costei- ca, ou o cubismo na arte. Foram proibidos certos
ra do Rio da Prata adjacente à cidade universitária métodos e técnicas de ensino, como os trabalhos
e alberga o Monumento às Vítimas do Terrorismo grupais de reflexão, e também não se podiam
de Estado, um conjunto de obras escultóricas e a mencionar alguns autores e cientistas argentinos
sala Presentes Ahora y Siempre – PAYS. O Parque ou estrangeiros, como Elsa Bornemann111, Gar-
se levanta frente ao Rio da Prata, porque às suas cía Márquez112, Mario Benedetti113, Marx114, bem
águas foram jogadas muitas vítimas.
Nosso objetivo é conseguir que a sociedade 111 Elsa Isabel Bornemann (1952): escritora argentina
participe, em sua totalidade, da complexa tarefa de contos, canções, novelas e peças teatrais para crian-
de reconstrução do tecido social e cultural desarti- ças e jovens. (Nota da IHU On-Line)
culado pela ditadura militar. Este é o grande desa- 112 Gabriel García Márquez (1928): escritor colom-
biano, autor de Crônica de uma morte anunciada.
fio do Parque da Memória. 26. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. Sobre a obra
Além disso, este monumento é o único que do autor, confira a IHU On-Line n° 221 Cem anos de
congrega, a nível nacional, os nomes de todas solidão. Realidade, fantasia e atualidade, disponível
para donwload em <http://bit.ly/dGmr4Z>. (Nota da
as vítimas do terrorismo e inclui estrangeiros
IHU On-Line)
desaparecidos ou assinados no país. Incluímos a 113 Mario Benedetti (1920-2009): poeta, escritor e en-
lista de desaparecidos e assassinados de nacio- saísta uruguaio. Integrante da Geração de 45, a qual
nalidade brasileira. Por esta razão, cobra impor- pertencem também Idea Vilariño e Juan Carlos Onetti,
entre outros. Escreveu “Poemas de Oficina”. (Nota da
tância a nível nacional e também regional, sendo IHU On-Line)
este Memorial um espaço de características únicas 114 Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo, cientista
na região. social, economista, historiador e revolucionário alemão,
um dos pensadores que exerceram maior influência
sobre o pensamento social e sobre os destinos da hu-
IHU On-Line – Quais foram, em linhas ge- manidade no século XX. Marx foi estudado no Ciclo
rais, as características do terrorismo de Es- de Estudos Repensando os Clássicos da Econo-
tado argentino? mia. A edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias,
de autoria de Leda Maria Paulani tem como título A (anti)
Nora Hochbaum – Em nosso país, em 24 de
filosofia de Karl Marx, disponível em <http://migre.me/
março de 1976, começou a ditadura mediante s7lq>. Também sobre o autor, confira a edição número
um golpe de Estado militar. Foi o sexto golpe que 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada A finan-
sofria a democracia na história da Argentina. Este ceirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de
Marx, disponível para download em http://migre.me/s7lF.
golpe se caracterizou por uma nova metodologia: Leia, igualmente, a entrevista Marx: os homens não são

132
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

como suas teorias e documentos. Houve supres- autores e artistas de todas as disciplinas precisa-
são de centros de estudantes e agrupações estu- ram exilar-se e publicar suas obras no exterior.
dantis de todo tipo: os estudantes eram revisados A ditadura também significou uma política
permanentemente quanto à sua forma de vestir e econômica prejudicial, com o incremento da dí-
ao seu modo de apresentação (uniformes, cabelo vida externa em que a dívida privada passou a
curto, maquiagem, minissaia, jeans, etc.). Quan- ser do Estado, os salários ficaram congelados e
to ao trabalho, foram eliminadas as leis e as con- ante o desaparecimento dos grêmios e sindicatos
quistas dos trabalhadores. Foi proibido o direito à resultava ser impossível reclamar pelos mesmos.
greve e os sindicatos foram eliminados. Toda reunião em lugar público estava proibi-
da e, inclusive, gerava suspeitas transitar pela rua
em horas noturnas. Também era obrigatório levar
Livros queimados consigo o Documento Nacional de Identidade,
pois caso contrário era motivo de detenção.
Todas as atividades políticas foram proibi- Quase tudo isso se impunha através de prá-
das, razão pela qual militantes e dirigentes dos ticas violentas, chamadas operativas e destinadas
partidos foram, em grande número, condenados a bloquear qualquer atividade ou opinião contrá-
como presos políticos e hoje estão desaparecidos. ria ao regime. Por isso se perseguiu, encarcerou,
O âmbito da cultura também se viu afeta- torturou e fez desaparecer grande quantidade de
do com a queima de livros de conteúdo político- pessoas que já tinham uma participação política,
-social valioso, como O Capital de Karl Marx, A associativa ou cultural prévia. Outros puderam
pedagogia do oprimido de Paulo Freire115, a cen- escapar e se exilaram, não podendo regressar ao
sura de certos autores e obras literárias como O país até a volta da democracia.
Pequeno Príncipe de Saint Exupéry116, canções
de Nacha Guevara, películas como A Patagônia
Rebelde. Devido a essa perseguição, intelectuais, Sequestro

As operações estatais consistiam em inva-


sões (irrupções violentas em domicílios, fábricas
o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedi- ou instituições, com o fim de buscar elementos
da por Pedro de Alcântara Figueira à edição 327 da
revista IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível para que justificassem as detenções), em que não só se
download em <http://migre.me/Dt7Q>. (Nota da IHU levavam as pessoas, senão que ademais se toma-
On-Line) va parte de seus bens como despojos de guerra
115 Paulo Freire (1921-1997): educador brasileiro. Como
e roubo de todos os seus pertences. Também há
diretor do Serviço de Extensão Cultural da Universida-
de de Recife, obteve sucesso em programas de alfabe- aproximadamente 500 casos de filhos de detidos
tização, depois adotados pelo governo federal (1963). aos quais se tirou sua verdadeira identidade, me-
Esteve exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Institu- diante o sequestro e posterior entrega a outras fa-
to de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi também
professor da Unicamp (1979) e secretário de Educação
mílias, majoritariamente de militares.
da prefeitura de São Paulo (1989-1993). No II Ciclo Os detidos eram encarcerados em prisões
de Estudos sobre o Brasil, do dia 30-09-2004, o do Estado ou levados ao que se conhece como
professor Dr. Danilo Streck, do PPG em Educação da Centros Clandestinos de Detenção. Estes estão
Unisinos, apresentou o livro A Pedagogia do Oprimido,
de Paulo Freire. Sobre a obra, publicamos um artigo ocultos à vista da população e funcionam em lu-
de autoria do professor Danilo na 117ª edição, de 27- gares bastante diversos (galpões, sótãos, edifícios
09-2004. Confira, ainda, a edição 223 da revista IHU da polícia, casas abandonadas, ou nos próprios
On-Line, de 11-06-2007, intitulada Paulo Freire. Pe-
edifícios das FF.AA., etc.), como no Clube Atlético
dagogo da esperança, disponível para download em
<http://migre.me/2peDT>. (Nota da IHU On-Line) ou no Olímpo de Floresta. Durante a última dita-
116 Antoine Foscolombe de Saint-Exupéry (1900- dura houve 10 mil presos políticos e cerca de dois
1944): escritor, ilustrador e piloto da Segunda Guerra milhões de exilados.
Mundial, terceiro filho do conde Jean Saint-Exupéry e da
condessa Marie Foscolombe. (Nota da IHU On-Line)

133
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Muitos políticos argentinos No ano de 1983, com o fim do processo di-
foram lançados no Rio da Prata. O que sig- tatorial, chega ao poder o primeiro governo de-
nifica o desaparecimento de uma pessoa mocrático na Argentina, em mãos do Dr. Raúl
sem que sua família nunca mais saiba onde Ricardo Alfonsín. Uma das primeiras medidas do
está (nem como morreu)? novo governo foi impulsionar a criação de uma
Nora Hochbaum – O Parque da Memória não comissão para levar em frente uma meticulosa
pretende curar feridas nem suplantar a verdade e investigação que permitisse à justiça conhecer os
a justiça. Nada devolverá a paz real aos familia- casos de desaparecimento ou morte produzidos
res que não puderam conhecer o destino final de durante o terrorismo de Estado. Dita comissão, a
seus entes queridos, torturados e assassinados de Conadep, teve a tarefa de redigir um documen-
maneira cruel e selvagem, nem nada preencherá to extensíssimo, de vários tomos, que se intitulou
o vazio social que deixou sua ausência. O Parque Nunca Mais. Essa comissão levou adiante a ta-
da Memória é um lugar de recordação e teste- refa, contando com o esforço de investigadores,
munho, porque ali estão os nomes desses seres médicos forenses e organismos de direitos hu-
que se quis apagar. Eles estarão presentes na evo- manos, entre outros.
cação que se faça de suas vidas truncadas e na Com base nesta investigação levou-se em
permanente homenagem aos ideais de liberdade, frente, no ano de 1985, o primeiro julgamento das
solidariedade e justiça, pelos quais viveram e lu- juntas militares. Ali se expuseram testemunhos de
taram. As gerações atuais e futuras que visitarem sobreviventes e provas científicas que permitiram
o Parque defrontar-se-ão ali com a memória do acercar-se à verdade do acontecido.
horror cometido e tomarão consciência da neces-
sidade de velar para que nunca mais se repitam IHU On-Line – Os arquivos da ditadu-
esses fatos. ra argentina estão disponíveis para serem
consultados?
IHU On-Line – Como foi discutido pela so- Nora Hochbaum – Salvo os documentos refle-
ciedade argentina o período da ditadura e tidos no Nunca Mais e os obtidos posteriormente
seus mortos, seus desaparecidos? pela Equipe Argentina de Antropologia Forense
Nora Hochbaum – Durante a ditadura, antes – EAAF, os arquivos da ditadura não estão dis-
de conhecer o saldo total de suas vítimas, a so- poníveis na Argentina. A metodologia repressiva
ciedade civil se organizou em grupos de familia- utilizada, em seu intento de não deixar rastros,
res e amigos. Surgem na Argentina, em meados propôs-se a apagar os nomes, a história e a vida
dos anos 1970, organismos de direitos huma- daqueles que foram sequestrados e assassinados.
nos, que perduram até hoje. O papel dos orga- Futuramente o Parque da Memória albergará
nismos foi fundamental para a conscientização um centro de interpretação que terá uma base
sobre o ocorrido, tanto em nível nacional, como de dados com a informação sobre cada uma
internacional. das pessoas incluídas no Monumento às Vítimas
Os vínculos destes organismos com a co- do Terrorismo de Estado, que o público poderá
munidade internacional, incluindo a brasileira, consultar. Deste modo, será possível acessar da-
foram muito importantes para a difusão de infor- dos pessoais, testemunhos sobre as circunstân-
mação, a proteção de documentos e a instalação cias de desaparecimento ou assassinato, fotos,
do debate na sociedade, já desde muito cedo, na recordações, anedotas, cartas, poesias, tirando-
ditadura. -as assim do anonimato, para que deixem de
Devido ao fato de, até o dia de hoje, as for- formar parte de um número incerto que nada
ças militares não terem revelado os documentos diz sobre quem foi cada um deles. Os colabo-
sobre a detenção e o desaparecimento das víti- radores da área de Nomina do Monumento se
mas da ditadura, o trabalho de investigação e dedica diariamente à tarefa de atualização do
difusão veio, em primeira instância, da parte da Monumento e recepção de documentação rela-
sociedade civil. tiva às pessoas que nele figuram.

134
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Qual é a principal “herança” também de promover a defesa destes direitos em
da ditadura argentina? todo o mundo.
Nora Hochbaum – Em primeiro lugar, Durante o ano de 2010, o Parque da Me-
o horror da ditadura deixou como saldo a mória foi convidado a participar da 29ª Bienal
perda de grande parte de uma geração de de São Paulo. Na delegação que participou de
jovens militantes, intelectuais, cientistas e dito evento, contou-se com a presença de orga-
trabalhadores. Esta amputação de grande nismos de direitos humanos que durante sua via-
parte do setor pensante da sociedade tem gem deram conferências, visitaram memoriais ou
sequelas na sociedade ainda hoje. A política museus e participaram em debates organizados
sofreu no país as graves consequências do por associações brasileiras, transmitindo suas ex-
desaparecimento de grande parte de suas periências. Durante toda a viagem a delegação
figuras mais destacadas e promissoras. foi muito bem recebida e a vontade de parte da
Em matéria econômica, o Estado argentino sociedade brasileira de instalar o debate no país
sofreu, durante a ditadura e posteriormente a ela, se fez notar permanentemente.
as consequências sociais do enorme endivida-
mento público que gerou a estatização de dívi- IHU On-Line – Memória é sinônimo de jus-
da contraída por setores privados. Isto significou tiça? Por quê?
o princípio de esvaziamento do Estado, que se Nora Hochbaum – Não. A justiça é a causa que
aprofundou durante os anos 1990. ainda hoje defendem os organismos. Durante
Em matéria de legado histórico, a sociedade muitos anos, na Argentina, as leis de “ponto final”
em geral entendeu a impor tância da defesa e pro- e “obediência devida”, bem como os decretos de
teção do regime democrático (excetuando a pre- exoneração dos militares que haviam sido julga-
sença de insignificantes grupos que reivindicam, dos, atrasaram a obtenção de justiça nas causas
hoje em dia, a tortura). Além do papel que cada relativas à tortura e ao desaparecimento. A partir
cidadão teve durante aqueles anos, a sociedade do ano de 2003, uma série de medidas, impul-
inteira compreendeu que a metodologia utilizada sionadas a partir do governo nacional, reativou o
pelos militares é inaceitável, bem como impres- acionamento da justiça, de modo que, no dia de
critível, por ser considerada de lesa humanidade. hoje, têm sido julgados e condenados (majorita-
riamente à prisão perpétua) os responsáveis pela
IHU On-Line – Por que considera que países perpetuação da tortura e do assassinato.
como o Brasil ainda não conseguiram lidar
com seu totalitarismo? Em que aspectos a IHU On-Line – Por que a memória, do ponto
experiência argentina pode inspirar o Bra- de vista das vítimas, pode ser “perigosa”?
sil para rever seus anos de morte e sangue? Nora Hochbaum – Não consideramos que a re-
Nora Hochbaum – O Parque da Memó- flexão, dentro dos limites que estabelece a demo-
ria – Monumento às Vítimas do Terrorismo de Es- cracia, seja em absoluto nociva para a sociedade.
tado – tem como objetivo difundir a experiência O Parque da Memória aposta no debate demo-
argentina em matéria de direitos humanos, como crático dos fatos acontecidos em nosso país.

135
Justiça, o dever da memória

Entrevista com Reyes Mate

Uma ditadura tão longeva que, ao seu final, Reyes Mate é professor do Instituto de Filo-
conseguiu fazer o povo esquecer-se de sua cruel- sofia do Conselho Superior de Pesquisas Científi-
dade dos primórdios. Assim foi a ditadura fran- cas – CSIC e autor do livro Justicia de las víctimas.
quista ocorrida na Espanha de 1939 a 1976. Nes- Terrorismo, memoria, reconciliación (Barcelona:
sa época, “os direitos humanos brilhavam por sua Anthropos, Editorial del Hombre, 2008), entre
ausência, o que não impedia que fosse um regime outros. Em português, citamos Memórias depois
abençoado pela Igreja Católica, tanto a nacional de Auschwitz (São Leopoldo: Nova Harmonia,
como a vaticana, e apoiado pelos Estados demo- 2005). Confira a entrevista.
cráticos do Ocidente, porque lhes vinha bem o fe-
roz anticomunismo do regime”, afirma o filósofo IHU On-Line – Você poderia fazer referên-
espanhol Reyes Mate na entrevista que concedeu cia ao contexto (sociopolítico) vivido du-
por e-mail à jornalista Márcia Junges e publicada rante a ditadura de Franco?
na edição 358 de IHU On-Line em 18 de abril Reyes Mate – Foi tão longeva esta ditadura que
de 2011. Na universidade ventos gélidos conde- no final conseguiu que se esquecesse a crueldade
naram uma geração de intelectuais ao silêncio ou do princípio. Porém, hoje os estudos que estão
ao exílio, um verdadeiro desastre: “Impôs-se, em sendo feitos mostram a vontade exterminadora de
lugar do pensamento crítico, o que chamávamos todos os valores relacionados com o republicanis-
de ‘tomismo-leninismo’, quer dizer, a escolástica mo. Não foi uma ditadura meramente “totalitária”,
senão inicialmente fascista e criminosa até o final.
tomista convertida em ideologia de um regime
fascista”. Quanto à transição política na Espa-
IHU On-Line – Como foram esses anos de
nha, Reyes Mate menciona que esta aconteceu
morte na Espanha?
em condições de “inferioridade para os democra-
Reyes Mate – Há muita literatura sobre isso. Os
tas. Foi preciso transigir muito. Se a oposição ao
direitos humanos brilhavam por sua ausência, o
franquismo reivindicava ‘a anistia para os presos’
que não impedia que fosse um regime abençoado
(antifranquistas), os primeiros governos da tran-
pela Igreja Católica, tanto a nacional como a va-
sição decretaram duas anistias que favoreciam,
ticana, e apoiado pelos Estados democráticos do
sobretudo, os criminosos franquistas. Por isso fa-
Ocidente, porque lhes vinha bem o feroz antico-
lamos hoje de olvido, de esquecimento”. Dentro e munismo do regime. A Espanha era um solar em
fora da Espanha, o dever da memória é um dever que a criação e a inteligência tinham que fazer-
de justiça, ressalta o pensador. “Se levarmos a sé- -se clandestinamente. A situação na universidade
rio a justiça, é preciso fazer memória da injustiça”. era desastrosa, pois nos privaram de uma gera-
E arremata: “a memória das vítimas é um dever. ção que foi assassinada ou condenada ao exílio.
Se não se faz, é porque os vitimadores continuam Impôs-se, em lugar do pensamento crítico, o que
sendo poderosos ou porque continua havendo chamávamos de “tomismo-leninismo”, quer dizer,
medo, ou porque falta uma cultura da memória a escolástica tomista convertida em ideologia de
nos formadores de opinião pública”. um regime fascista.

136
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Há desaparecidos políticos IHU On-Line – Com respeito à Espanha,


desse período? qual é o dever da memória histórica?
Reyes Mate – No pós-guerra houve muitos de- Reyes Mate – O dever de memória na Espanha
saparecidos do grupo dos vencidos. Muitos foram e fora da Espanha é de justiça. Se levarmos a sé-
aparecendo. Porém, ainda hoje se calculam em rio a justiça, é preciso fazer memória da injustiça.
mais de cem mil os que desapareceram. Se não o fazemos, se passamos páginas, estamos
criando as condições para que a injustiça se repi-
IHU On-Line – De que maneira a Espanha ta. Basta, sim, que passe o tempo para que se ol-
combateu esses ressaibos da ditadura? vide a injustiça: o que impede construir a política
Existiu alguma lei de Anistia ou foi utiliza- sobre novas vítimas, se, no final, basta que passe
do outro tipo de recurso? o tempo para que tudo seja esquecido?
Reyes Mate – A transição política espanhola se
fez em certas condições de inferioridade para os IHU On-Line – Como considera que os pa-
democratas. Foi preciso transigir muito. Se a opo- íses que sofreram ditaduras devam lidar
sição ao franquismo reivindicava “a anistia para com esse fato no presente?
os presos” (antifranquistas), os primeiros gover- Reyes Mate – Levando a sério o dever de me-
nos da transição decretaram duas anistias que mória. Um presente construído sobre o esqueci-
favoreciam, sobretudo, os criminosos franquistas. mento da injustiça, dificilmente poderá ser justo.
Por isso falamos hoje de olvido, de esquecimento. Não terá escrúpulos em recorrer à injustiça como
arma política.
IHU On-Line – Quais foram as causas (os
motivos) que levaram a Espanha a realizar IHU On-Line – De seu ponto de vista, o que
esse ajuste de contas com o passado? impede o Brasil de abrir os seus arquivos
Reyes Mate – A transição não fez nenhum ajuste da ditadura e dialogar com seu totalitaris-
de contas, senão um esquecimento forçado pe- mo, quando a maior parte dos países da
las circunstâncias. É hoje que se está propondo América Latina já o tem feito?
a revisão dessa forma de esquecimento. A Lei da Reyes Mate – Vocês são os que devem respon-
Memória Histórica foi um tímido passo em frente. der a essa questão. Do ponto de vista moral, a
memória das vítimas é um dever. Se não se faz,
IHU On-Line – Os arquivos da ditadura es- é porque os vitimadores continuam sendo po-
panhola estão disponíveis ao público para derosos ou porque continua havendo medo, ou
serem consultados? Como se levou a cabo porque falta uma cultura da memória nos forma-
esse processo? dores de opinião pública.
Reyes Mate – Alguns estão disponíveis. Mas, o
problema é que muitos documentos foram des- IHU On-Line – Países como Tunísia e Egito
truídos conscientemente durante o tempo da acabam de derrubar seus ditadores. Khadafi,
transição. na Líbia, treme encastelado no poder, sem
deixar de promover uma repressão sangren-
IHU On-Line – Como se mantém a memória ta. Qual é o futuro dos totalitarismos e que
histórica desse período? tipo de democracia se pode esperar depois
Reyes Mate – Com dificuldade, pois é preci- destas mudanças?
so vencer a resistência dos políticos da transição Reyes Mate – O que ocorreu nesses países é
(também os de esquerda), dos historiadores e da um sinal de esperança que obriga os ocidentais a
opinião de muita gente que não quer recordar esse um profundo exame de consciência. Não se pode
passado. Quando alguém tenta fazer um juízo so- construir o bem-estar de uns sobre o mal-estar de
bre o passado, como ocorreu ao Juiz Garzón, aca- outros. O aí ocorrido é uma lição para o Ocidente
ba ele mesmo sendo justiçado. rico.

137
Temas dos Cadernos IHU em formação

Nº 01 – Populismo e Trabalhismo: Getúlio Vargas e Leonel Brizola


Nº 02 – Emmanuel Kant: Razão, liberdade, lógica e ética
Nº 03 – Max Weber: A ética protestante e o “espírito” do capitalismo
Nº 04 – Ditadura – 1964: A Memória do Regime Militar
Nº 05 – A crise da sociedade do trabalho
Nº 06 – Física: Evolução, auto-organização, sistemas e caos
Nº 07 – Sociedade Sustentável
Nº 08 – Teologia Pública
Nº 09 – Política econômica. É possível mudá-la?
Nº 10 – Software livre, blogs e TV digital: E o que tudo isso tem a ver com sua vida
Nº 11 – Idade Média e Cinema
Nº 12 – Martin Heidegger: A desconstrução da metafísica
Nº 13 – Michel Foucault: Sua Contribuição para a Educação, a Política e a Ética
Nº 14 – Jesuítas: Sua Identidade e sua Contribuição para o Mundo Moderno
Nº 15 – O Pensamento de Friedrich Nietzsche
Nº 16 – Quer Entender a Modernidade? Freud explica
Nº 17 – Hannah Arendt & Simone Weil – Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política do século XX
Nº 18 – Movimento feminista: Desafios e impactos
Nº 19 – Biotecnologia: Será o ser humano a medida do mundo e de si mesmo?
Nº 20 – Indústria Calçadista: Quem fabricou esta crise?
Nº 21 – Rumos da Igreja hoje na América Latina: Tudo sobre a V Conferência dos bispos em Aparecida
Nº 22 – Economia Solidária: Uma proposta de organização econômica alternativa para o País
Nº 23 – A ética alimentar: Como cuidar da saúde e do Planeta
Nº 24 – Os desafios de viver a fé em uma sociedade pluralista e pós-cristã
Nº 25 – Aborto: Interfaces históricas, sociológicas, jurídicas, éticas e as conseqüências físicas e psicológi-
cas para a mulher
Nº 26 – Nanotecnologias: Possibilidades e limites
Nº 27 – A monocultura do eucalipto: Deserto disfarçado de verde?
Nº 28 – A transposição do Rio São Francisco em debate
Nº 29 – A sociedade pós-humana: A superação do humano ou a busca de um novo humano?
Nº 30 – O trabalho no capitalismo contemporâneo
Nº 31 – Mística: Força motora para a gratuidade, compaixão, cortesia e hospitalidade
Nº 32 – Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de realidade
Nº 33 – A família mudou. Uma reflexão sobre as novas formas de organização familiar
Nº 34 – A crise mundial do capitalismo em discussão
Nº 35 – Midiatização: Uma análise do processo de comunicação em rede
Nº 36 – O Universal e o Particular
Nº 37 – Mulheres em movimento na contemporaneidade
Nº 38 – As múltiplas expressões do sagrado
Nº 39 – Usinas hidrelétricas no Brasil: Matrizes de crises socioambientais
Nº 40 – Campanha da Legalidade: 50 anos de uma insurreição civil

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