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reflexão teórica
e crítica literária
As mortes
imaginárias
de Pessoa Eneida Maria de Souza*
E
Resumo
sem dúvida, um dos lugares mais destacados. Sua autobiografia literária, composta da
invenção de inúmeros heterônimos, atualiza os princípios da poética moderna ocidental,
calcada na disseminação do sujeito, na descoberta da alteridade e no elo indissociável
entre escrita e morte. O deslocamento intencional da figura única do poeta em múltiplos
avatares e espectros instaura a sombra e o reflexo como imagens distorcidas do modelo,
operação capaz de nomear tanto a literatura quanto a vida como domínios da
representação e do artifício. Uma vez firmado o pacto ficcional, a vida do escritor se
reverte necessariamente em grafia, e a biografia se traduz em literatura.
Quais seriam, portanto, as mortes imaginárias de Pessoa? O escritor francês
Marcel Schwob, autor de Vidas imaginárias, texto publicado em 1896, é um dos
singulares biógrafos da literatura, festejado por muitos e atualmente esquecido, mas
que se vê revitalizado pela crítica, em virtude da reedição dessa obra pela Editora 34
Letras, com tradução de Duda Machado e prefácio original de J. L. Borges. A
peculiaridade de seu texto reside na criação de biografias de pessoas desconhecidas
e no exercício livre da escrita, ao narrar ações fabulosas atribuídas a personagens
reais. Borges, ao apresentar o livro na Colección “Jorge Luis Borges, Biblioteca Personal,
em 1985”, considera o autor uma de suas fontes literárias, pelo interesse por
personagens julgadas “infames”, e pelo método utilizado na escrita, ao misturar realidade
e ficção: “o sabor peculiar deste volume está neste vaivém”(SCHWOB, 1997, p. 10).
Acrescenta ainda que, à semelhança de suas personagens, Schwob “não buscou a
fama; escreveu deliberadamente para os happy few, para poucos”. A história universal
da infâmia, primeiro livro de contos de Borges, de 1935, ao se apropriar do tema da
fama através de atos praticados por personagens infames e sem importância, é uma
das evidências quanto ao mérito de Schwob para a compreensão da poética borgiana.
Uma constatação relevante para o tema desta minha reflexão é a analogia
entre a obra e a vida de Schwob, por ambas se pautarem pelo signo do imaginário.
Nos últimos dias em que viveu, a imagem do escritor Robert Louis Stevenson lhe
serviu de modelo, estimulando-o a partir para a ilha Samoa, aventura que reduplicava
a vida e pastichava a literatura do escritor escocês. Schwob viaja com o objetivo de
encontrar o túmulo de Stevenson, mas não o acha, desilusão igualmente sentida pela
filósofa Hannah Arendt, ao chegar a Port-Bou à procura do túmulo do amigo Walter
Benjamin, seis meses após seu suicídio. O desejo de comprovar a morte pela visita ao
túmulo do escritor traduz o gesto de homenagem e a consolidação de um lugar de
pouso e assinatura. No entanto, diante da ausência do túmulo, a morte deixa de ser
verossimilhante e se converte em morte imaginária, lida em consonância com a vida
nômade e inquieta de seus protagonistas. Torna-se ainda componente básico para a
estreita ligação entre obra e vida.
Túmulos imaginários se revertem em manuscritos enigmáticos, em obra póstuma
a ser decifrada pelos futuros leitores da vida e da produção literária dos escritores.
Marcel Schwob, ao morrer, em Paris, de pneumonia, se une finalmente ao seu duplo,
após ter vivido à sombra de Robert Stevenson morto. A morte imaginária de Schwob é
marcada pela projeção do outro na cena final, em que é reiterado o desejo de conjunção
entre modelo e cópia. Projetar-se na imagem fantasmática do outro consiste na escolha
da literatura como destino e da vida como ficção. O texto autobiográfico corresponde
à escrita da vida como autoficção. Os mundos paralelos se explicam pela conversão
da letra em experiência copiada da letra de outrem.
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em Paris há um hotel, que se chama “L’Hôtel”, onde morreu Oscar Wilde. Hoje todo
mundo quer dormir no quarto em que Wilde morreu. Então isso vai acontecer comigo,
de modo que o sr. pode passar a cobrar mais”. (KODAMA, 1996, p. 1)1
Outra cena relativa à citação literária, como forma de tornar mais nobre a
existência pela historicização da doença, encontra-se registrada no discurso de
entronização de Roland Barthes no Collège de France, publicado com o título de
Aula. No final do texto, o encontro do escritor com a literatura se processa pela
mediação da doença sofrida no passado, a tuberculose, o que lhe permite ser
contemporâneo e parceiro do corpo doente de Hans Castorp, o herói de A montanha
mágica de Thomas Mann. Reconhecendo ser o seu corpo histórico, por ter a dimensão
que ultrapassa o presente e reconstrói o passado, Barthes pretende, no momento da
aula inaugural, “esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que
sou contemporâneo dos jovens presentes, e não do meu próprio corpo, passado”
(BARTHES, s/d, p. 46). O renascer para a vida nova implica a concepção do tempo
simultâneo dos encontros e não a cronologia marcada pelo calendário. A entronização
de Barthes no Collège de France elege a desconstrução como método, ao se nutrir da
literatura como mediação para seu discurso de posse. Além de Thomas Mann,
responsável pela sua inserção na história literária, cita Dante, da Vita Nuova, ao optar
pela revitalização do corpo institucional, reduplicando e se colocando como vida
paralela à dos seus modelos.
Nesse espaço ocupado pelo tema literário da morte, Fernando Pessoa inaugurou
uma poética original, elegendo a morte do autor como princípio básico, multiplicando-
se em heterônimos, e reiterando a perda do sujeito no meio de outras vozes, por
meio da criação de diversas instâncias discursivas. Esse artifício articula paradoxalmente
o exilar-se e o habitar a linguagem pelo sujeito, ao se tornar tanto seu hóspede como
seu anfitrião, deslocar o sentido de propriedade para o de expropriação, pela mobilidade
significativa atingida pelo trânsito intersubjetivo entre morte e vida. Na invenção genial
dos heterônimos, com biografias e horóscopos próprios, Pessoa adquire liberdade
para “matar” Alberto Caeiro, o mestre de todos, que, em 1915, é vitimado pela
tuberculose, moléstia fatal para a época e também dotada de conotação literária.
Antonio Tabucchi, em Os três últimos dias de Fernando Pessoa, utilizando-se
de licença poética, registra a morte de Álvaro de Campos no mesmo dia e ano da
morte do poeta, conforme a lista de personagens anexada no final do livro. O escritor
italiano, ao narrar os três últimos dias de Pessoa, reencena, livremente, o encontro
dos pseudo-autores com seu criador, escrita que evoca outra morte imaginária, em
que se dramatiza o diálogo entre eles: segredos são revelados, confissões apresentadas,
registro de últimos pedidos, em resumo, uma prestação de contas que marca os momentos
de desnudamento e fingida exposição de verdades.
O subtítulo do livro recebe a denominação de “um delírio” e funciona sob a
forma de um procedimento ficcional, por eleger a fantasia e o sonho como
procedimentos literários a serviço da narração dos últimos dias de um poeta, pelo
menos reconhecido e atestado pelos documentos de identidade. Os fatos narrados,
as personagens que aí se instalam, participam, contudo, da autobiografia literária de
autoria pessoana, o que permite diminuir o valor do delírio e considerá-lo
verossimilhante à poética dos heterônimos, logo, dispensável como recurso ficcional.
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está na hora de partir, é hora de deixar este teatro de imagens que chamamos de
nossa vida. Se soubesse as coisas que vi com os óculos da alma, vi os contrafortes
de Órion, lá no alto no espaço infinito, andei com esses pés terrenos pelo
Cruzeiro do Sul, atravessei noites infinitas como um cometa reluzente, os espaços
interestelares da imaginação, a volúpia e o medo, e fui homem, mulher, velho,
menina, fui a multidão dos grandes bulevares das capitais do Ocidente, fui o
plácido Buda do Oriente, do qual invejamos a calma e a sabedoria, fui eu mesmo
e os outros, todos os outros que podia ser, (...) e tudo porque a vida não basta.
(...) Mas agora basta, meu caro António Mora, viver a minha vida foi viver mil
vidas, estou cansado, minha vela consumiu-se, peço-lhe, me dê os meus óculos.
(TABUCCHI, 1996, p.61)
Pessoa se declara entediado com a experiência de ter vivido mil vidas e de ter
se fragmentado nas múltiplas imagens da alteridade. Morre por ter-se cansado da
plenitude que se reveste de contradição, esvaziando-se pelo excesso de luz que cega
o conhecimento, dimensão paradoxal referente ao sentimento de totalidade e de
vazio. Integrando-se à plenitude cósmica, perde o sentido alegre da vida, o que resulta
no próprio tédio, no spleen, na melancolia e na morte por crise hepática. Morre em
conseqüência de sua autobiografia, do alimento e do vício melancólicos da
modernidade. No texto citado, Pessoa pede a António Mora, na forma do último
desejo, que lhe passe os óculos, gesto que mimetiza e desconstrói a frase de Goethe,
pronunciada no leito de morte, “Mais luz”. Na interpretação de Leyla Perrone-Moisés,
no ensaio sobre Pessoa “Pensar é estar doente dos olhos”, “nesse confronto, o pedido
de Pessoa toma ares de paródia involuntária. No século XX, o poeta já não ocupa
aquele lugar reconhecido de vidente que lhe coube no Romantismo; perdeu a auréola
(Baudelaire), a supervisão, e só tem acesso à visão parcial dos fenômenos”. (PERRONE-
MOISÉS, 1988, p. 344)
A morte datada de Pessoa, em 30 de novembro de 1935, no Hospital São Luis
dos Franceses, causada por crise hepática, permite não só a associação do alcoolismo
e da boêmia com a figura do poeta maldito, mas ainda com o sentimento de melancolia
explicada, etimologicamente, pelo vocábulo grego melancolia, o qual remete para o
sentido de “humor negro” e de “bile negra”. Atormentado pelo “mal- du- siècle”,
Pessoa se refugia na criação de personagens, na transformação da escrita em espaço
ficcional dos encontros e na metáfora da própria vida. Morre daquilo que construiu
como verdade estética e programa existencial, quais sejam, o deslocamento constante
do sujeito, a perda da aura e a experiência do sonho e do delírio como formas de
prazer e realização poética e existencial. A sensibilidade exacerbada do artista, a
multiplicação e ruína da subjetividade em tempos sombrios motivam Tabucchi a recriar
os últimos três dias de Pessoa, captando o momento da morte como simulacro de uma
vida levada às últimas conseqüências. Morre-se com o mesmo estilo com que se viveu,
não havendo contradição entre a grafia, a vida e o fim. A literatura antecipa e constrói
o destino do escritor, inscrevendo-o no cânone dos artistas representativos da alta
modernidade.
Se a melancolia é considerada a doença do pensamento, é ela que ainda
assinala a necessidade de reconhecer a presença do corpo como alteridade e registro,
determinando o comportamento do sujeito e não se opondo à razão. Instauram-se,
portanto, novas modalidades subjetivas. A teoria filosófica de Nietzsche desenvolvida
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na Gaia ciência, elege o “saber alegre” como saída para se transformar a dor em
conceito, pela ação afirmativa em dizer sim ao sofrimento e por considerar o ato de
pensar com uma das possibilidades de cura. A prática da escrita desempenha igualmente
a transfiguração da doença, gesto paradoxal que reúne dor e alegria, humor e tragédia,
além de comprovar que a criação poética atua como letra que sobrevive à efemeridade
da vida e do tempo. Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa e personagem de
Tabucchi, num misto de ironia e desdém, despede-se de Pessoa conforme o estilo que
o singularizou:
E depois dei de querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável,
e veio o desânimo. E com o desânimo, o niilismo. Depois, nunca acreditei em
nada, nem sequer em mim mesmo. E hoje estou aqui, à sua cabeceira, como um
trapo sem qualquer serventia, fiz as malas para lugar nenhum, e o meu coração é
um balde esvaziado. (...) Campos colocou a capa sobre os ombros, pôs o monóculo
no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta,
deteve-se por um instante e repetiu: Adeus, Fernando. E depois sussurrou: Talvez
nem todas as cartas de amor sejam ridículas. E fechou a porta. (TABUCCHI,
1996, p. 23)
Sem o chapéu, que não mais terá a sua serventia, Ricardo Reis é mais uma
fantasia literária de Saramago, o que nos permite concluir que, decorridos 70 anos da
morte de Pessoa, o que permanece são a imortalidade de uma obra e a transfiguração
imaginária do poeta, que se multiplica em personagem na pele de outros autores e de
textos distintos. Com óculos e sem chapéu para enfrentar a morte, essas personagens
continuarão a povoar o universo espectral da literatura enquanto houver leitores que
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lhes proporcionem uma sobrevida literária transtemporal, sobrevida que sempre irá se
nutrir da imaginação e do vir-a ser.
Abstract
Based on the analysis of Antonio Tabucchi’s Os três últimos dias de Fernando Pessoa, and on
José Saramago’s O ano da morte de Ricardo Reis, this essay intends a reflection on the theme
of imaginary deaths in Portuguese literature.
Keywords: Portuguese literature; Imaginary deaths; Comparativism.
Notas explicativas
1
Nas palavras de Luis Bilbao, Borges, “como o Tenente Henry de Adeus às armas, foi viver com sua
amada num hotel da Suiça”. A ficção e seus modelos sempre acompanhando os atos do escritor.
In Leia Livros, São Paulo, n. 92, junho de 1986.
2
O encontro entre Pessoa e Borges já fora imaginado pelo crítico uruguaio, Emir Rodriguez Monegal,
no ensaio “Borges, auteur de Fernando Pessoa”. Magazine Littéraire. Jorge Luis Borges. Paris, n. 259,
1988.
Referências bibliográficas
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