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IV - Exercícios de

reflexão teórica
e crítica literária
As mortes
imaginárias
de Pessoa Eneida Maria de Souza*

E
Resumo

ste ensaio tem como objetivo refletir sobre o


tema das mortes imaginárias na literatura,
tomando como corpus de análise o livro de
Antonio Tabucchi, Os três últimos dias de
Fernando Pessoa e o de José Saramago, O ano
da morte de Ricardo Reis.
Pa l a v r a s - c h a v e: L it er at ur a p or tu gu es a;
Mortes imaginárias; Comparativismo.

Blanchot dit que l’é crivain “meurt” dès que


son écriture existe. On entre dans l’espace
littéraire, et tout est blanc, tout est possible. Si
vous voulez, j’ai écrit, comme dans tous mes
livres, des autobiographies d’autrui.
António Tabucchi

No campo fértil da crítica biográfica,


na qual se incluem as escritas autoficcionais,
biográficas e literárias, Fernando Pessoa ocupa,
* Professora da Universidade Federal de Minas Gerais.
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sem dúvida, um dos lugares mais destacados. Sua autobiografia literária, composta da
invenção de inúmeros heterônimos, atualiza os princípios da poética moderna ocidental,
calcada na disseminação do sujeito, na descoberta da alteridade e no elo indissociável
entre escrita e morte. O deslocamento intencional da figura única do poeta em múltiplos
avatares e espectros instaura a sombra e o reflexo como imagens distorcidas do modelo,
operação capaz de nomear tanto a literatura quanto a vida como domínios da
representação e do artifício. Uma vez firmado o pacto ficcional, a vida do escritor se
reverte necessariamente em grafia, e a biografia se traduz em literatura.
Quais seriam, portanto, as mortes imaginárias de Pessoa? O escritor francês
Marcel Schwob, autor de Vidas imaginárias, texto publicado em 1896, é um dos
singulares biógrafos da literatura, festejado por muitos e atualmente esquecido, mas
que se vê revitalizado pela crítica, em virtude da reedição dessa obra pela Editora 34
Letras, com tradução de Duda Machado e prefácio original de J. L. Borges. A
peculiaridade de seu texto reside na criação de biografias de pessoas desconhecidas
e no exercício livre da escrita, ao narrar ações fabulosas atribuídas a personagens
reais. Borges, ao apresentar o livro na Colección “Jorge Luis Borges, Biblioteca Personal,
em 1985”, considera o autor uma de suas fontes literárias, pelo interesse por
personagens julgadas “infames”, e pelo método utilizado na escrita, ao misturar realidade
e ficção: “o sabor peculiar deste volume está neste vaivém”(SCHWOB, 1997, p. 10).
Acrescenta ainda que, à semelhança de suas personagens, Schwob “não buscou a
fama; escreveu deliberadamente para os happy few, para poucos”. A história universal
da infâmia, primeiro livro de contos de Borges, de 1935, ao se apropriar do tema da
fama através de atos praticados por personagens infames e sem importância, é uma
das evidências quanto ao mérito de Schwob para a compreensão da poética borgiana.
Uma constatação relevante para o tema desta minha reflexão é a analogia
entre a obra e a vida de Schwob, por ambas se pautarem pelo signo do imaginário.
Nos últimos dias em que viveu, a imagem do escritor Robert Louis Stevenson lhe
serviu de modelo, estimulando-o a partir para a ilha Samoa, aventura que reduplicava
a vida e pastichava a literatura do escritor escocês. Schwob viaja com o objetivo de
encontrar o túmulo de Stevenson, mas não o acha, desilusão igualmente sentida pela
filósofa Hannah Arendt, ao chegar a Port-Bou à procura do túmulo do amigo Walter
Benjamin, seis meses após seu suicídio. O desejo de comprovar a morte pela visita ao
túmulo do escritor traduz o gesto de homenagem e a consolidação de um lugar de
pouso e assinatura. No entanto, diante da ausência do túmulo, a morte deixa de ser
verossimilhante e se converte em morte imaginária, lida em consonância com a vida
nômade e inquieta de seus protagonistas. Torna-se ainda componente básico para a
estreita ligação entre obra e vida.
Túmulos imaginários se revertem em manuscritos enigmáticos, em obra póstuma
a ser decifrada pelos futuros leitores da vida e da produção literária dos escritores.
Marcel Schwob, ao morrer, em Paris, de pneumonia, se une finalmente ao seu duplo,
após ter vivido à sombra de Robert Stevenson morto. A morte imaginária de Schwob é
marcada pela projeção do outro na cena final, em que é reiterado o desejo de conjunção
entre modelo e cópia. Projetar-se na imagem fantasmática do outro consiste na escolha
da literatura como destino e da vida como ficção. O texto autobiográfico corresponde
à escrita da vida como autoficção. Os mundos paralelos se explicam pela conversão
da letra em experiência copiada da letra de outrem.

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Essas reflexões foram motivadas pelo livro de Michel Schneider, Morts


imaginaires, no qual são reescritos os últimos momentos e as possíveis frases
pronunciadas por alguns escritores, assim como a situação e o lugar de sua morte.
São ainda relevantes os documentos e objetos pessoais pertencentes ao cotidiano da
vida do sujeito, dotados de valor significativo para a melhor compreensão da obra
dos autores, como os manuscritos, os livros ou pastas cheias de papéis, deixados
como obras inacabadas, à espera de uma publicação póstuma. A mitificação do lugar
onde se escolhe para morrer, seja a morada familiar, o quarto de hotel, o hospital ou
o local mais propício à cena do suicídio, se associa também à visita de amigos e
admiradores ao túmulo, com vistas a render culto e a ver ali representada a morte
como o livro fechado de uma vida. Freud, Stefan Zweig, Kant, Truman Capote, Marcel
Schwob, Walter Benjamin, entre outros, compõem a galeria dos mortos imaginários
analisados por Schneider, e são interpretados conforme a feição e o ritual assumidos
na hora da morte: ora como morte plagiária, ora como morte paralela, “mort d’occasion”,
ou “morte usada”. Esta se explica pela analogia mantida com a expressão livros usados,
antigos, vendidos no sebo, os quais, após terem sido lidos, relidos e manuseados
pelos leitores, serão novamente compartilhados por aqueles que lhes sucedem.
A expressão “morte usada” refere-se também aos escritores que, nos últimos
momentos, se comportam de forma semelhante a outras situações, por meio de frases
pedidas de empréstimo e de clichês, metaforizando a imagem da morte como edição
repetida e de segunda mão e convertendo a experiência própria em cópia da experiência
alheia. A projeção e a realização imaginária por meio do exemplo literário constroem
o enredo dessas narrativas de vida. Stefan Zweig, ao decidir se suicidar com a mulher
em Petrópolis, em 1942, e após ter escrito, obsessivamente, um número considerável
de biografias, repete e plagia, segundo Schneider, o escritor Heirich von Kleist: “Même
mort volontaire, pleine de la joie de cesser; même partage avec la femme aimée entraînée
dans une fin amoureuse; même fièvre d’écriture jusqu’aux derniers instants.” E mais
abaixo: “Stefan Zweig voulut ranger sa mort sur l’étagère des morts héroïques d’écrivains”.
(SCHNEIDER, 2003, p. 278-279)
Em 1986, doente e na iminência da morte, Borges decide voltar à Genebra de
sua juventude, optando pela eleição de um espaço que talvez mantivesse algum laço
com o sentimento de pátria, lugar este que será emblematicamente seu eterno exílio.
Enquanto procuravam um imóvel para se instalar na cidade velha, que lhe concederia
maior proximidade com o passado, hospeda-se com María Kodama em um hotel
nessa região, chamado L’Arbalète. Em entrevista à Folha de S. Paulo, em 19 de maio
de 1996, Kodama relata a associação feita pelo escritor entre o hotel em Genebra e
o L’Hôtel de Paris, onde morreu Oscar Wilde, em 1900, no início de um século que irá
desconsiderar a personalidade artística, relegada a segundo plano pela obra. A
referência a esse lugar simbólico permitiu a Borges convencer o proprietário da casa
de que sua morte poderia proporcionar-lhe benefícios materiais, por se tratar de um
escritor que se transformara, ao longo do tempo, em “uma velha superstição”. Ao
escolher um quarto de hotel para reencenar o gesto de seu precursor Oscar Wilde,
estaria cumprindo, ao pé da letra, esse destino literário. De forma irônica, interpreta a
morte como ato literário que se repete, assim como o caráter ficcional da própria vida:
“Sabe, eu, para os argentinos, sou como uma velha superstição. E o senhor sabe que

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em Paris há um hotel, que se chama “L’Hôtel”, onde morreu Oscar Wilde. Hoje todo
mundo quer dormir no quarto em que Wilde morreu. Então isso vai acontecer comigo,
de modo que o sr. pode passar a cobrar mais”. (KODAMA, 1996, p. 1)1
Outra cena relativa à citação literária, como forma de tornar mais nobre a
existência pela historicização da doença, encontra-se registrada no discurso de
entronização de Roland Barthes no Collège de France, publicado com o título de
Aula. No final do texto, o encontro do escritor com a literatura se processa pela
mediação da doença sofrida no passado, a tuberculose, o que lhe permite ser
contemporâneo e parceiro do corpo doente de Hans Castorp, o herói de A montanha
mágica de Thomas Mann. Reconhecendo ser o seu corpo histórico, por ter a dimensão
que ultrapassa o presente e reconstrói o passado, Barthes pretende, no momento da
aula inaugural, “esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que
sou contemporâneo dos jovens presentes, e não do meu próprio corpo, passado”
(BARTHES, s/d, p. 46). O renascer para a vida nova implica a concepção do tempo
simultâneo dos encontros e não a cronologia marcada pelo calendário. A entronização
de Barthes no Collège de France elege a desconstrução como método, ao se nutrir da
literatura como mediação para seu discurso de posse. Além de Thomas Mann,
responsável pela sua inserção na história literária, cita Dante, da Vita Nuova, ao optar
pela revitalização do corpo institucional, reduplicando e se colocando como vida
paralela à dos seus modelos.
Nesse espaço ocupado pelo tema literário da morte, Fernando Pessoa inaugurou
uma poética original, elegendo a morte do autor como princípio básico, multiplicando-
se em heterônimos, e reiterando a perda do sujeito no meio de outras vozes, por
meio da criação de diversas instâncias discursivas. Esse artifício articula paradoxalmente
o exilar-se e o habitar a linguagem pelo sujeito, ao se tornar tanto seu hóspede como
seu anfitrião, deslocar o sentido de propriedade para o de expropriação, pela mobilidade
significativa atingida pelo trânsito intersubjetivo entre morte e vida. Na invenção genial
dos heterônimos, com biografias e horóscopos próprios, Pessoa adquire liberdade
para “matar” Alberto Caeiro, o mestre de todos, que, em 1915, é vitimado pela
tuberculose, moléstia fatal para a época e também dotada de conotação literária.
Antonio Tabucchi, em Os três últimos dias de Fernando Pessoa, utilizando-se
de licença poética, registra a morte de Álvaro de Campos no mesmo dia e ano da
morte do poeta, conforme a lista de personagens anexada no final do livro. O escritor
italiano, ao narrar os três últimos dias de Pessoa, reencena, livremente, o encontro
dos pseudo-autores com seu criador, escrita que evoca outra morte imaginária, em
que se dramatiza o diálogo entre eles: segredos são revelados, confissões apresentadas,
registro de últimos pedidos, em resumo, uma prestação de contas que marca os momentos
de desnudamento e fingida exposição de verdades.
O subtítulo do livro recebe a denominação de “um delírio” e funciona sob a
forma de um procedimento ficcional, por eleger a fantasia e o sonho como
procedimentos literários a serviço da narração dos últimos dias de um poeta, pelo
menos reconhecido e atestado pelos documentos de identidade. Os fatos narrados,
as personagens que aí se instalam, participam, contudo, da autobiografia literária de
autoria pessoana, o que permite diminuir o valor do delírio e considerá-lo
verossimilhante à poética dos heterônimos, logo, dispensável como recurso ficcional.

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Os nomes se transformam em personagens, saem das páginas dos livros e dramatizam


o encontro com Pessoa, ao ser hospitalizado. Atuam como parceiros e fantasmas da
escrita de Tabucchi, recebem sobrevida ficcional ao serem convocados para se despedirem
do autor-moribundo.
A morte imaginária de Pessoa encenada por Tabucchi representa a conciliação
ilusória do poeta com os heterônimos, o reconhecimento da morte como reencarnação
do sujeito na natureza, uma saída para a entrega do poeta no cosmos. Morte e vida
são interpretadas como peças da mesma moeda, desde que o sonho é a mola da vida,
a luz, parceira das trevas e a ficção, o espelho da existência. O sentimento da
precariedade da vida e a fuga pela ficção, a mentira e o sonho compõem o universo
poético de Pessoa e são reproduzidos por Tabucchi na criação de sua personagem. O
tema da morte - e sua misteriosa presença – constitui o traço peculiar do poeta
melancólico, dominado pelo medo e a insatisfação. No poema o “Primeiro Fausto”, de
Pessoa, esse pensamento se expressa de modo forte e esclarecedor: “–Me toma a
gorja, com horror de negro/O pensamento da hora inevitável,/ E a verdade da morte
me confrange./ Pudesse eu, sim, pudesse eternamente/ Alheio ao verdadeiro ser do
mundo,/ Viver sempre esse sonho que é a vida!/ Expulso embora da divina essência,/
Ficção fingindo, vã mentira eterna,/ Alma-sonho, que eu nunca despertasse!/Suave me
é o sonho, e a vida (...) é sonho”. (PESSOA, 1965, p. 454-455)
Na conversa do poeta com o heterônimo e filósofo António Mora, Tabucchi
coloca Pessoa se despedindo da vida e recitando fragmentos de versos de “Passagem
das horas”, de Álvaro de Campos, texto que retoma a crença numa existência fabulosa,
na qual o sujeito se sente capaz de alcançar a visão total do universo e de se
corporificar em vários seres e objetos, mas que resulta inevitavelmente na fragmentação
e no desvio desse sujeito: “Multipliquei-me, para me sentir,/ Para me sentir, precisei
sentir tudo,/ Transbordei, não fiz senão extravasar-me,/ Despi-me, entreguei-me,/ E há
em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente” (PESSOA, 1965, p. 345).
No texto de Tabucchi, o discurso de Pessoa se cruza com esses versos e também
remete para a apropriação do procedimento criativo de Borges, a visão do aleph.
Descreve, com minúcia, a capacidade visionária do poeta, alcançada pela concepção
enciclopédica e alucinante do universo, imagem proporcionada pela experiência da
visão do aleph, presente no conto homônimo de Borges. Reproduz, de forma imaginária
e sob o signo do pastiche, a plenitude, o excesso e a ilusão da totalidade experimentados
pelo poeta-moribundo. Na repetição, por Tabucchi, da cena borgiana, os últimos
momentos de Pessoa atualizam a figuração do aleph, esfera luminosa cujo centro está
em todas as partes e a circunferência em nenhuma, por se tratar de uma visão que
simboliza o encontro imaginário, eterno e fugaz do infinito. Através desse processo
redutor e minimalista, esse momento representa a cifra da vida de Pessoa. A aproximação
entre Pessoa e Borges por Tabucchi – e agora por mim - entra em consonância com o
delírio borgiano, por apresentarem ambos poéticas semelhantes e traduzirem o que se
entende pelo “cogito melancólico da modernidade”.2
O trecho final de Os três últimos dias de Fernando Pessoa encena a exaustão
como experiência vital e como contraparte da imaginação poética, delírio que condensa
os versos do poeta português com a imagem borgiana do aleph:

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está na hora de partir, é hora de deixar este teatro de imagens que chamamos de
nossa vida. Se soubesse as coisas que vi com os óculos da alma, vi os contrafortes
de Órion, lá no alto no espaço infinito, andei com esses pés terrenos pelo
Cruzeiro do Sul, atravessei noites infinitas como um cometa reluzente, os espaços
interestelares da imaginação, a volúpia e o medo, e fui homem, mulher, velho,
menina, fui a multidão dos grandes bulevares das capitais do Ocidente, fui o
plácido Buda do Oriente, do qual invejamos a calma e a sabedoria, fui eu mesmo
e os outros, todos os outros que podia ser, (...) e tudo porque a vida não basta.
(...) Mas agora basta, meu caro António Mora, viver a minha vida foi viver mil
vidas, estou cansado, minha vela consumiu-se, peço-lhe, me dê os meus óculos.
(TABUCCHI, 1996, p.61)

Pessoa se declara entediado com a experiência de ter vivido mil vidas e de ter
se fragmentado nas múltiplas imagens da alteridade. Morre por ter-se cansado da
plenitude que se reveste de contradição, esvaziando-se pelo excesso de luz que cega
o conhecimento, dimensão paradoxal referente ao sentimento de totalidade e de
vazio. Integrando-se à plenitude cósmica, perde o sentido alegre da vida, o que resulta
no próprio tédio, no spleen, na melancolia e na morte por crise hepática. Morre em
conseqüência de sua autobiografia, do alimento e do vício melancólicos da
modernidade. No texto citado, Pessoa pede a António Mora, na forma do último
desejo, que lhe passe os óculos, gesto que mimetiza e desconstrói a frase de Goethe,
pronunciada no leito de morte, “Mais luz”. Na interpretação de Leyla Perrone-Moisés,
no ensaio sobre Pessoa “Pensar é estar doente dos olhos”, “nesse confronto, o pedido
de Pessoa toma ares de paródia involuntária. No século XX, o poeta já não ocupa
aquele lugar reconhecido de vidente que lhe coube no Romantismo; perdeu a auréola
(Baudelaire), a supervisão, e só tem acesso à visão parcial dos fenômenos”. (PERRONE-
MOISÉS, 1988, p. 344)
A morte datada de Pessoa, em 30 de novembro de 1935, no Hospital São Luis
dos Franceses, causada por crise hepática, permite não só a associação do alcoolismo
e da boêmia com a figura do poeta maldito, mas ainda com o sentimento de melancolia
explicada, etimologicamente, pelo vocábulo grego melancolia, o qual remete para o
sentido de “humor negro” e de “bile negra”. Atormentado pelo “mal- du- siècle”,
Pessoa se refugia na criação de personagens, na transformação da escrita em espaço
ficcional dos encontros e na metáfora da própria vida. Morre daquilo que construiu
como verdade estética e programa existencial, quais sejam, o deslocamento constante
do sujeito, a perda da aura e a experiência do sonho e do delírio como formas de
prazer e realização poética e existencial. A sensibilidade exacerbada do artista, a
multiplicação e ruína da subjetividade em tempos sombrios motivam Tabucchi a recriar
os últimos três dias de Pessoa, captando o momento da morte como simulacro de uma
vida levada às últimas conseqüências. Morre-se com o mesmo estilo com que se viveu,
não havendo contradição entre a grafia, a vida e o fim. A literatura antecipa e constrói
o destino do escritor, inscrevendo-o no cânone dos artistas representativos da alta
modernidade.
Se a melancolia é considerada a doença do pensamento, é ela que ainda
assinala a necessidade de reconhecer a presença do corpo como alteridade e registro,
determinando o comportamento do sujeito e não se opondo à razão. Instauram-se,
portanto, novas modalidades subjetivas. A teoria filosófica de Nietzsche desenvolvida

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na Gaia ciência, elege o “saber alegre” como saída para se transformar a dor em
conceito, pela ação afirmativa em dizer sim ao sofrimento e por considerar o ato de
pensar com uma das possibilidades de cura. A prática da escrita desempenha igualmente
a transfiguração da doença, gesto paradoxal que reúne dor e alegria, humor e tragédia,
além de comprovar que a criação poética atua como letra que sobrevive à efemeridade
da vida e do tempo. Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa e personagem de
Tabucchi, num misto de ironia e desdém, despede-se de Pessoa conforme o estilo que
o singularizou:
E depois dei de querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável,
e veio o desânimo. E com o desânimo, o niilismo. Depois, nunca acreditei em
nada, nem sequer em mim mesmo. E hoje estou aqui, à sua cabeceira, como um
trapo sem qualquer serventia, fiz as malas para lugar nenhum, e o meu coração é
um balde esvaziado. (...) Campos colocou a capa sobre os ombros, pôs o monóculo
no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta,
deteve-se por um instante e repetiu: Adeus, Fernando. E depois sussurrou: Talvez
nem todas as cartas de amor sejam ridículas. E fechou a porta. (TABUCCHI,
1996, p. 23)

Uma vez compactuado com a alteridade e a fantasia, o poeta Fernando Pessoa


passa a ter prerrogativas de personagem, recebendo, conforme o momento e a intenção
de outros fabulistas, tratamento literário e vida própria. José Saramago, em 1984,
escreve O ano da morte de Ricardo Reis, romance que estabelece o diálogo com as
tradições nacionais, literárias e históricas, tendo como protagonista um dos mais
conhecidos heterônimos de Pessoa. Ricardo Reis, agora personagem de Saramago,
volta do Brasil após a morte do poeta, ocorrida em 1935, permanece em Lisboa
durante o ano de 1936, visita o túmulo do poeta, conversa com o espectro e a
aparição de Pessoa durante todo o tempo, até ir ao seu encontro graças à sua morte
ficcional criada por Saramago. De feição distinta do livro de Tabucchi, O ano da morte
de Ricardo Reis reforça o aspecto histórico e político do país, ressaltando o alheamento
da personagem diante da presença assustadora da ditadura de Salazar, a ascensão de
Hitler e de Mussolini, além da iminência da guerra civil espanhola. Na defesa de um
Portugal mais esperançoso e mobilizado, Pessoa e Ricardo Reis, na cena final do romance
e no encontro na morte, acreditam na mudança e na libertação políticas do presente,
condensadas na imagem de Adamastor:
Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu,
Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam
as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse
Fernando Pessoa. Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para
ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui onde o mar
se acabou e a terra espera. (SARAMAGO, 1988, p. 427-428)

Sem o chapéu, que não mais terá a sua serventia, Ricardo Reis é mais uma
fantasia literária de Saramago, o que nos permite concluir que, decorridos 70 anos da
morte de Pessoa, o que permanece são a imortalidade de uma obra e a transfiguração
imaginária do poeta, que se multiplica em personagem na pele de outros autores e de
textos distintos. Com óculos e sem chapéu para enfrentar a morte, essas personagens
continuarão a povoar o universo espectral da literatura enquanto houver leitores que

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lhes proporcionem uma sobrevida literária transtemporal, sobrevida que sempre irá se
nutrir da imaginação e do vir-a ser.

Abstract
Based on the analysis of Antonio Tabucchi’s Os três últimos dias de Fernando Pessoa, and on
José Saramago’s O ano da morte de Ricardo Reis, this essay intends a reflection on the theme
of imaginary deaths in Portuguese literature.
Keywords: Portuguese literature; Imaginary deaths; Comparativism.

Notas explicativas
1
Nas palavras de Luis Bilbao, Borges, “como o Tenente Henry de Adeus às armas, foi viver com sua
amada num hotel da Suiça”. A ficção e seus modelos sempre acompanhando os atos do escritor.
In Leia Livros, São Paulo, n. 92, junho de 1986.
2
O encontro entre Pessoa e Borges já fora imaginado pelo crítico uruguaio, Emir Rodriguez Monegal,
no ensaio “Borges, auteur de Fernando Pessoa”. Magazine Littéraire. Jorge Luis Borges. Paris, n. 259,
1988.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, s/d, p. 46.


BILBAO, LUIS. Leia Livros, São Paulo, n. 92, junho de 1986.
KODAMA, María. Entrevista. Folha de S. Paulo, 19-05-1996, p. 1. Folha Ilustrada.
MONEGAL, Emir Rodriguez. “Borges, auteur de Fernando Pessoa”. Magazine
Littéraire. Jorge Luis Borges. Paris, n. 259, 1988.
PERRONE-MOISÉS-Leyla. “Pensar é estar doente dos olhos”. In: NOVAES, Adauto.
(Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
PESSOA, Fernando. “Primeiro Fausto”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia
Aguilar Editora, 1965.
SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
SCHNEIDER, Michel. Morts imaginaires. Paris: Grasset, 2003.
SCHWOB, Marcel. Vidas imaginárias. Tradução de Duda Machado. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1997.
TABUCCHI, António. Os três últimos dias de Fernando Pessoa. Um delírio. Trad.
Roberta Barni. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. p. 61.

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