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“Corpos Desviantes - contra a imposição de um corpo padrão”: o viés do racismo1

Christian Fernando dos Santos Moura2

Como sempre uso em minhas apresentações, desejo uma boa noite a “todas” as
pessoas, como me ensinou a Symmy Larrat, ex-coordenadora do Centro de Cidadania
LGBT do Arouche, todas nós somos pessoas, o que dispensa o uso do gênero gramatical
todos.
Agradeço especialmente a Dione Leal, uma pessoa que ama o teatro e o que faz
e quem carinhosamente fez os acertos do meu convite, agradeço ao Prof. Ferdinando
Martins e a todas vocês que reservaram vosso tempo para nos ouvirem em épocas de
pouca escuta e como diz o rapper Mano Brown num momento do discurso pronto, onde
todo mundo fala a mesma coisa da opressão e quer ter razão.
É sempre uma grande alegria pode estar presente nos debates promovidos pela
SP Escola de Teatro, uma casa que faz a gente pensar o teatro como arte vivida no aqui
e agora, assim como nos ensinou Augusto Boal, o “Teatro não é a reprodução da
realidade, é a sua representação. E, como tal, de algum ponto de vista é feito. Ponto este
situado na sociedade, não no cosmos”. E é então a partir de um recorte dentro desse
cosmos que habitamos que preparei minha fala.
Na sociedade brasileira, não é possível traçar um recorte sobre as variações de
concepção de corpo no decorrer da história sem inevitavelmente incidir sobre os temas
da raça e do racismo. Talvez essa impossibilidade resida em nosso passado colonial
através do seu legado inestimável do modo de produção escravista patriarcal, cujo
deixou marcas profundas na maneira da construção aos espaços e lugares que ocupamos
com o nosso corpo físico.
Um exemplo objetivo dos sinais desse passado nos dias atuais está na maneira
como nomeamos as coisas em que nossos corpos habitam, como por exemplo, os nomes
de restaurantes, lugares aonde o “corpo-biológico”, o “corpo-orgânico” vai se nutrir para
dar sustentação a vida. Em São Paulo, por exemplo, encontra-se o nome com que eram
conhecidos os lugares em que os escravizados habitavam – a senzala, como o nome de

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Este texto foi escrito à partir das notas que me orientaram no encontro e debate “Corpos Desviantes -
contra a imposição de um corpo padrão”.” realizado no dia 23 de fevereiro de 2018 das 17h às 18h30, no
Teatro Sérgio Cardoso, Sala Pascoal Carlos Magno. Disponível em: < www.spescoladeteatro.org.br>
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Christian Moura, historiador, professor doutor do Instituto Federal de São Paulo e pesquisador do
Centro de Estudos Africanos (UFMG). christianfsmoura@gmail.com

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um restaurante – o Senzala, estabelecimento no alto de Pinheiros. Sorte dos nipo-
brasileiros que não precisam vislumbrar no bairro da Liberdade nenhum SushiBar com
o nome, Hiroshima e Nagasaki, melhor para a psique das pessoas torturadas pela
ditadura militar não acharem na rua Tutoia, no bairro do Paraíso, o Grill: "O melhor bife
batido da cidade está na Lanchonete DOI-CODI! Ou ainda feliz a comunidade judaica,
que na região do Bom Retiro não encontrará jamais nenhum restaurante chamado
Auschwitz-Birkenau, como sugeriu a poética da intervenção artística “Senzala nunca
mais” em 2015, que contestou o nome de restaurante em SP
Diana Taylor, professora no Departamento de Estudos da Performance e no
Departamento de Espanhol da New York University, diz em seu livro O arquivo e o
repertório: performance e memória cultural nas Américas, que durante a experiência
humana “nós aprendemos e transmitimos o conhecimento por meio da ação
incorporada, da agência cultural e das escolhas que se fazem” (2013, p.55). Isto é, “o
corpo diz o que a palavra não pode”, como nos fala Luis Fernando Orduz, psicanalista e
médico colombiano.
Seguindo a interpretação de Diana Taylor, se é possível desenvolver aqui a
produção de uma ontologia do “corpo desviante”. Acredito que as performances por seu
caráter de construtor de “trilhas das memórias” (TAYLOR, 2013, p.291) permitem que
encontremos a incorporação da história de políticas de violência, traduzindo essas
histórias por meio do repertório e dos discursos dos traumas passados e corporificados
nas almas e nos corações das comunidades em que a experiência colonial teve vez,
como o caso da sociedade brasileira.
Ou se isto não é verdade, digam-me vocês quando nos lembramos dos corpos
dos negros fujões, “vinham no encalço do “negro fujão”. “Se me pegarem vai doer,
querem minha cabeça na ponta da lança”, pensou, com as marcas da tortura recente
ainda abertas no corpo.”, é essa a frase da letra dedo rapper Rincón Sapiência,
lembrando os anúncios de jornais, cartazes de fuga de escravos do tempo do Império.
Ou ainda quando dizemos: "Ih, Nojento, tcham!"? O bordão de Tião Macalé, o negão
desdentado e risível interpretado pelo ator Augusto Temístocles da Silva Costa (1926-
1993) humorista brasileiro bastante conhecido na década de 1980 por sua participação
no programa também da TV Globo Os Trapalhões.
Tanto os negros fujões da época imperial, quanto o Tião Macalé dos dias atuais,
são vistos na forma animalesca do “corpo besta-fera”. Este é o discurso violento que o
colonizador encontrou para desviar o “corpo colonial” para do “corpo econômico”, para

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o “corpo grotesco”, o “corpo estranho” e o “corpo exótico”. Isso para não falarmos dos
discursos produzidos sobre o corpo da mulher negra, gorda e com seios tamanho 58,
que se fosse a tempos de discursos raciais pseudocientíficos já estaria contratada como
atração junto a “monstros” e “aberrações” do nauseante show de horrores Barnum &
Bailey’s. E depois reclamam! No nosso caso, como diz o verso da música “O
Espetáculo do Circo dos Horrores” do grupo Facção Central:
O espetáculo em cartaz desde abril de mil e quinhentos.
Sem pipoca, algodão doce, que rufem os tambores.
Abrem-se as cortinas do circo dos horrores.
É esse discurso da violência que produziu o corpo colonizado, na compreensão
de Frantz Fanon psiquiatra, filósofo e ensaísta marxista francês da Martinica, e, segundo
ele, pode ser descrito como “a realidade, a linguagem do colono, quando fala do
colonizado, é uma linguagem zoológica. O colono, quando quer descrever e encontrar a
palavra justa, refere-se constantemente ao bestial”. (FANON, 1979, p.31)
Esse fluido bestiário criado pelo colonizador europeu penetrou violentamente
por todos os poros e se instalou no corpo do colonizado, tensionando seus músculos e
enrijecendo sua alma, num processo que leva “o sujeito colonizado a descobrir o real e
transformá-lo em movimento da sua prática, no exercício da violência, no seu projeto de
libertação” (FANON, 1979, p.44). Pergunto a vocês se é preciso matar o senhor de
engenho a golpes de crueldade e malvadeza?
Se for o olhar colonizador que criou o corpo colonizado, como este corpo poderá
se libertar senão através da violência?
De que maneira podemos desenvolver processos criativos e de atuação que não
resvalem do discurso do corpo besta-fera? Um corpo que se desviou de seu itinerário
colonial e que procura agora encontrar um corpo descolonizado, no qual o conflito, o
confronto e as negociações produzam algo diferente e produtivo.
Como descolonizar/desmasculinizar/desoficializar esse corpo desviado em
cena? Qual a maneira de fazer esse corpo voltar a sua rota originária?
Essas são perguntas que só podem encontrar respostas por meio do próprio
corpo. Pois, é por meio do corpo que percebemos o mundo acontecendo, como diz
David Le Breton, antropólogo francês, O corpo é o “vetor semântico pelo qual a
evidência da relação com o mundo é construída.” (BRETON, 1953, p.7).
Eu penso que somente os corpos alvejados por mais de mais de cem tiros, que
foram disparados pelos policiais envolvidos nas mortes dos cinco jovens fuzilados em

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Costa Barros, no subúrbio do Rio de Janeiro, em 2015 possam tornar evidentes o
caminho do desvio e como ele é evidenciado por aquele que não é “Homem” burguês,
branco, individual e ocidental.
É a presença hegemônica da visão masculina senhorial na produção do discurso
histórico sobre o corpo colonial que impôs ao “outro” uma condição de desvio em
relação ao mundo vivido. Foi assim com Cláudia Silva Ferreira, que ficou conhecida
nas matérias jornalísticas como “a arrastada”, em 2014, no Morro da Congonha, em
Madureira, também no subúrbio do Rio. A mulher que após ser baleada foi colocada por
policiais no porta-malas de uma viatura para ser levada para o hospital. Mas no meio do
caminho, no entanto, a mala abriu, ela ficou presa por um pedaço de roupa ao carro, e
teve parte do corpo dilacerada ao ser arrastada pelo asfalto por 350 metros.
Entre tantos tipos de corpos, o “corpo besta-fera”, o “corpo perfurado”, o “corpo
arrastado”, o conceito de o “corpo desviante” e suas relações com o racismo brasileiro,
implica em refletirmos sobre a qualidade do desvio desse corpo.
A palavra desvio, substantivo masculino do prefixo negativo DES, do Latim
mais VIA, é “caminho, estrada”. Temos aqui ao dizer “corpos desviantes” a ideia de que
esse corpo está fora da rota normal. Usado como adjetivo como a etimologia da palavra
sugere, o desvio dá sentido que havia então um itinerário para que esse corpo colonial
seguisse. Mas qual caminho era esse?
O corpo colonial ora despertando a repulsa, ora o desejo surgiu na visão do
europeu com a qualidade de mercadoria e de mão de obra, pois não podemos nos
esquecer disso. “O corpo ritual”, o “corpo matéria-prima”, o “corpo simbólico”, pelo
qual se produzem ideias, valores éticos, estéticos e sociais das populações colonizadas
foi violentado pelo colonizador desde sua invasão. No século XVI o racismo era
pautado pela escravidão nas Américas e justificado através da religião e da moral, no
século XIX este terá uma conotação distinta, será necessário provar racional e
cientificamente a inferioridade dos corpos não europeus. A partir desse momento a
atribuição do significado de “raça” enquanto caracterização física dos indivíduos
influencia a corporeidade e a estética das populações colonizadas.
É a partir daí que aquele que sambar na cara da inimiga se tornou um ato mais
que urgente. E foi daí em diante que aquele que olhava o nosso bonde, pirava com
nossas “sungas estufadas e calções disformes...” com nossas “... picas enormes e nossos
sacos que parecem granadas lá das quebradas da Maré...”, como poetizam Jojô Todinho
e Chico Buarque.

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Essa piração pode ser reforçada com outro relato, este do século XIX, do
viajante francês Louis Agassiz, que nos oferece uma visão de como o corpo colonial
desviou-se de seu caminho mercantil em busca da homogeneização eurocêntrica
violenta e destruidora:

“Que qualquer um que duvide dos males dessa mistura de raças, e se


inclina, por mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que
as separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente
do amálgama de raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do
mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco,
do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em
energia física e mental”.3

O relato de Agassiz é marcado pela vertente “científica” pessimista acerca dos


corpos miscigenados, porque viajantes europeus como o Agassiz, ou conde de Gobineau
acreditavam estarem diante de um país de corpos degenerados, de raças mistas (negros,
índios, e portugueses), representantes do atraso em função da sua composição étnica e
racial.4
Pensando dessa maneira, acredito como Diana Taylor que a performance
evoque, simultaneamente, a ideia de processo, um modo de apreender, transmitir e
intervir no e sobre o mundo e, por conseguinte, amplia as possibilidades de
compreensão encontradas naquilo que se associa comumente como performance, tal
como a teatralidade ou a representação. O conceito de corpos desviantes e sua relação
com o racismo no Brasil a partir das performances e dos vestígios de memória
transformados em texto e movimento pode transforma-se em repertório (canções,
discursos, orações), que “preserva a memória do corpo” e permite traçar rotas novas
para múltiplos destinos corporais em conflito, mas vivos.
Recalcular a rota é preciso e urgente, e nosso GPS pode ser cenas e
performances que discutem a importância do corpo desviado para emancipação entre os
gestos da comunicação humana e o desejo da compreensão contextual da outra pessoa.
Cito aqui rapidamente de memória algumas pistas desse roteiro:

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Agassiz, Louis. apud DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco, 1989.
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Essa visão mestiça da nação não se resumia, porém, ao olhar que vinha de fora, aos inúmeros
naturalistas que aqui estiveram. Internamente o tema se reproduzia a partir de diferentes locais. Nos
censos, nos jornais, nas pinturas, na visão de políticos e cientistas, raça aparecia como um argumento
partilhado, uma interpretação interna bastante consensual. “Formamos um paiz mestiço... somos mestiços
se não no sangue ao menos na alma”, definia o crítico literário Silvio Romero (1888), da Escola de
Recife, ao comentar a composição étnica e anthropologica singular da população brasileira”.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.p.36.

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"O ato público e cultural “A paixão de Cláudia”, com as performance artísticas,
da atriz Palomaris Mathias arrastando carne no asfalto e Janaina Barros em performance
com Wagner Viana abrindo caminho, exibindo o rosto ensanguentado de Cláudia como
num santo sudário; O vídeo performance "White Face and Blonde Hair", da
performance artista Renata Felinto realizada pela artista em São Paulo, na rua Oscar
Freire, por onde ela caminhou com o rosto pintado de branco e uma peruca loira
discutindo o padrão de beleza caucasiano e nórdico adotado pela sociedade brasileira.
Ou ainda O espetáculo Peça-Panfleto-Itinerante NEGROR, dos atores e performances
Pedrão Guimarães, Vítor Bassi, Larissa Nunes e Sidney Santiago Kuanza, que discute o
genocídio da juventude negra brasileira.
E, finalmente, eu gostaria de terminar essa minha fala com algumas questões que
considero importante ou pelo menos indicar caminhos possíveis para o encontro de suas
respostas. Perguntas essas refletidas após ter conhecido a série fotografias do desafio
que se tornou viral nas redes sociais criada pelos angolanos, denominada por “Acaba de
me Matar” – fotos com blocos, tanques, botijas e outros objetos ligeiros e pesados,
incluindo retroescavadora, no corpo, como se a pessoa estivesse morta.
Como nos libertamos da clausura de um dito corpo essencialista brasileiro?
Como criar experimentos cênicos que ultrapassem o discurso do corpo colonial e
desviado que caracteriza o pensar e o fazer dramatúrgico brasileiro com seus black face,
ainda nos dias atuais? E principalmente como rirmos e chorarmos das dores dos corpos
quando eles voltarem ao seu caminho, pois afinal, terminando com o mesmo Boal do
início da minha fala, “Fazer teatro é dominar a dor. As dores mais cruéis tornam-se
belas”. Inclusive as dores do corpo.

Obrigado a todas.

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