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Relatório da viagem para MS, realizada de 4 a 27 de janeiro de 2018, por Kristina

Balykova (Bolsista de IC de fevereiro de 2016 a janeiro de 2017, Mestranda em


Linguística, UFRJ)

No dia 4 de janeiro, eu e Gustavo Godoy chegamos a Corumbá. No mesmo dia, fomos


visitar a dona Eufrásia, nossa principal informante Guató. A caminho da sua casa, em
um bar, encontramos Jaci, prima de Eufrásia por parte do pai. Perguntamos Jaci sobre
sua avó, dona Mariquinha, irmã do pai de Eufrásia (portanto, pura Guató) e sobre sua
mãe, Maria Erotilde, que foi casada com um não índio. Além disso, Jaci nos contou um
pouco sobre a história da sua vida e sua relação com a língua Guató, que ela não chegou
a aprender.

Depois de termos conversado com Jaci, fomos à casa de Eufrásia, onde a encontramos
como sempre na companhia do seu esposo, Geraldo. Eles nos contaram algumas
novidades das suas vidas. Não fizemos elicitação nesse dia.

No dia 5, voltamos a encontrar Jaci no bar e conversar com ela. Dessa vez, conversamos
sobre o irmão dela, Robertinho, que mora na aldeia Uberaba. Depois disso, fomos à
casa de Eufrásia. Gravamos uma entrevista com ela sobre sua infância e os primeiros
anos de casada. Depois disso, fizemos uma sessão de elicitação da língua Guató.

Nesse mesmo dia, fomos com Eufrásia e Geraldo visitar Fátima. Fátima é neta da finada
Francolina Rondon, uma das últimas falantes Guató. Desde julho de 2017, Fatima e seu
marido Pedro residem na aldeia Uberaba. Foram eles que nos contaram, durante o nosso
encontro, que a lancha Guató I estava no porto e subiria à aldeia na terça-feira, dia 9.

Além de encontrar Fátima, conheci a dona Brandina, sua mãe, filha da finada
Francolina. Brandina falou um pouco sobre a atitude dela e dos irmãos em relação à
língua Guató, durante a infância. Ela contou que as crianças riam da mãe, quando essa
falava na língua.

Depois de termos conversado com Fátima, Paulo e Brandina, fomos ao porto para saber
se poderíamos subir para a aldeia junto com os Guató. Conversamos com Osvaldo,
liderança da aldeia, e recebemos uma resposta positiva.

No dia 6, voltamos à casa de Eufrásia. Perguntamos se ela queria ir à aldeia Uberaba


conosco, visto que ela morou lá no final dos anos 60 e já havia expressado o desejo de
rever os lugares por onde passou. Eufrásia confirmou que queria ir, já seu esposo,
Geraldo, resolveu ficar, pois não enxerga. Nesse dia, gravamos mais frases da língua
Guató. Ainda nesse dia, de noite, passamos de novo na lancha para acertarmos a nossa
ida e volta. Decidimos que subiríamos o rio Paraguai na lancha e desceríamos de
voadeira, no dia 19.

No dia 7, voltamos à casa de Eufrásia e fizemos mais uma sessão de elicitação da


língua.
No dia 8, de manhã, Gustavo foi à lancha para acertar a nossa volta de voadeira com o
piloto, Fernando, e comprar gasolina. Lá ele soube também que a partida foi adiada para
a noite do dia 10. Depois que Gustavo voltou da lancha, fomos fazer algumas compras
necessárias para a viagem: lanternas, mosquiteiros, uma mochila para Eufrásia levar
seus pertences etc.

Na tarde do dia 8, fomos à casa de Maria Lúcia Saboya, que conheceu Adair Palácio,
autora da tese sobre a língua Guató. A família de Maria Lúcia possuía uma fazenda
perto da baía Uberaba e ajudou Adair Palácio a subir o rio Paraguai na sua primeira
viagem de campo. Maria Lúcia e Adair ficaram amigas desde então, até que a linguista
ficou com Alzheimer e não entrou mais em contato. Gravamos uma entrevista com
Maria Lúcia em que ela contou sobre Adair Palácio, sobre a finada Josefina, a principal
informante Guató da linguista, e sobre a situação dos Guató no final dos anos 70.

No dia 9, de tarde, fomos à casa de Eufrásia para entregarmos as compras feitas para
ela. Além disso, levamos para ela uma foto que revelamos, publicada originalmente no
livro Na Rondônia Ocidental (1938) por Frederico Rondon. Nessa foto, estão Joaquim
Ferreira, avô materno de Eufrásia, e quatro mulheres, uma das quais deveria ser Sabina,
a mãe de Eufrásia. Porém, Eufrásia não reconheceu ninguém da foto. Nesse mesmo dia,
gravamos apenas algumas frases em Guató, que diziam respeito à biografia de Eufrásia.

Eufrásia com a foto do avô

No dia 10, de manhã compramos alimentos para levar à aldeia. Por volta das 17h, fomos
buscar Eufrásia para irmos à lancha. Partimos do porto de Corumbá por volta das
19h20min. Na lancha, Eufrásia encontrou, além de Fátima e Pedro, seu primo, Alfredo.
Ele mora na aldeia Uberaba e não via Eufrásia há quase 50 anos. Alfredo é filho da
finada Zulmira, tia paterna de Eufrásia. Zulmira era falante Guató, mas seus filhos não
aprenderam a língua, exceto algumas palavras. Assim, Alfredo ainda lembra alguns
nomes de bicho, de peixe e de utensílios domésticos, além do seu nome na língua:
motabɯ, que significa ‘cágado’.

Passamos o dia 11 viajando. Eufrásia estava de bom humor, olhando a paisagem e


conversando com Fátima e Alfredo. Ela se dirigia em Guató a esse último de vez em
quando, rindo depois, porque "é filho de índia, mas não entende nada". Além disso, ela
conversou com um adolescente da aldeia, que lhe perguntou algumas palavras e frases.
Ao longo do dia, ela falou várias frases em Guató de forma espontânea, inclusive se
dirigindo a Gustavo e, às vezes, a mim.

Conhecemos Sebastião, um morador da aldeia, que nos contou sobre a habilidade


flecheira excepcional do finado David, ex-marido de Eufrásia.

Eufrásia na lancha

Chegamos à aldeia por volta das 5h de manhã do dia 12. Passamos a manhã na casa de
Severo, ex-cacique, e Dalva, sua esposa. Eu já havia conhecido Dalva na viagem feita
em julho de 2017, mas foi a primeira vez em que encontramos Severo. Depois do
almoço, fomos visitar Fátima e Pedro e, em seguida, a dona Cecília e seu
esposo,Valeriano (também conhecido como Caboclo), primo de Eufrásia por parte do
pai. Tanto Cecília como Valeriano são guatós puros, que pararam de falar na língua
ainda crianças. De noite, encontramos Felipe, professor da língua Guató na escola da
aldeia, e o cacique, Luiz Carlos.

No dia 13, de manhã, acompanhados por Felipe, fomos visitar a casa de Alfredo. Ele
nos apontou o lugar onde ficava a casa da finada Sabina, mãe de Eufrásia. Porém,
Eufrásia não reconheceu o lugar. De tarde, voltamos à casa de Cecília para gravarmos
uma entrevista sobre a sua vida. Cecília era falante monolíngue em Guató até cinco anos
de idade, quando foi levada por fazendeiros.
No dia 14, de manhã fizemos uma sessão de elicitação com Eufrásia. De tarde,
conhecemos Jinho e Benedito, irmãos de Alfredo e, portanto, primos de Eufrásia. Eles
nos mostraram o local onde ficava a casa da mãe deles, a finada Zulmira. Depois disso,
passamos na casa de Alfredo. Encontramos Alfredo na companhia de Lúcio, irmão de
Sebastião, que também conheceu o finado David, ex-marido de Eufrásia, e falou um
pouco sobre este último. Em seguida, gravamos uma entrevista com Alfredo sobre sua
vida e sobre seus pais.

Alfredo e Eufrásia

No dia 15, de manhã chegou Fernando, o piloto da voadeira. Havíamos combinado com
ele que nesse dia ele nos levaria à casa de Vicente, outro falante do Guató, que mora
isolado na barra do rio São Lourenço. Partimos para lá por volta das 11h: Gustavo,
Eufrásia, eu, Fernando e o cacique. Chegamos à casa de Vicente por volta das 14h.
Conhecido por ter um temperamento difícil e inconstante, Vicente estava bem-
humorado e nos recebeu muito bem. Quando viu que sabíamos falar algumas coisas em
Guató, ele quis nos ensinar mais palavras e até pediu, ele mesmo, para ligarmos o
gravador.

Vicente possui um vocabulário Guató muito mais vasto que Eufrásia. Para dar um
exemplo, Eufrásia se lembra de pouquíssimos nomes de ave e pássaro, enquanto
Vicente nomeou praticamente todos que lhe mostramos em um álbum das aves do
Pantanal (infelizmente, não conseguimos terminar de mostrar todas as aves do álbum
para ele). Além disso, ele se lembra de vários neologismos do século XX, como
palavras para ‘avião’, ‘telefone’, ‘pilha’ etc. Em compensação, Eufrásia foi bem mais
rápida em formar frases em Guató, talvez, por já ter sido "treinada" durante nossas
elicitações. Ela falou várias frases espontâneas em Guató a Vicente. Por exemplo, ela
perguntou para ele na língua, se ele fritava gato e comia com macarrão (Vicente tem
mais de 20 gatos).
Vicente e Eufrásia

Por volta das 18h, deixamos a casa de Vicente e fomos dormir no alojamento do
PARNA (Parque Nacional do Pantanal), que fica a cinco minutos de voadeira da casa de
Vicente. Nesse mesmo dia, Eufrásia nos disse que queria adiantar a nossa volta a
Corumbá para o dia 17, pois estava preocupada com seu esposo.

No dia 16 de manhã, voltamos à casa de Vicente e continuamos perguntando palavras e


frases em Guató para ele. Não fizemos com ele uma sessão de elicitação mais formal,
pois o piloto do barco e o cacique também participaram da conversa, tirando suas
próprias curiosidades sobre a língua com Vicente. Eufrásia foi menos participativa nesse
dia.

Quando voltamos à aldeia de tarde, fomos de novo à casa de Cecília e Valeriano. Dessa
vez, queríamos gravar uma entrevista com Valeriano, que falou em Guató até 12 anos
de idade, quando sua mãe morreu e ele teve que “sair pelo mundo para ganhar pão”.
Valeriano ainda sabe um bom número de palavras e entende algumas frases simples em
Guató. Infelizmente, ele não quis ser gravado.

Nesse dia de noite, nos despedimos de Valeriano, Cecília, Fátima, Pedro e Luiz Carlos,
o cacique.

No dia 17 de manhã, nos despedimos de Felipe, Dalva e Severo. Infelizmente, por falta
de tempo e pela distância até as casas de Jinho, Benedito e Alfredo, não nos despedimos
deles. Em especial, ficamos tristes por não termos falado com Alfredo que havia sido
muito gentil em nos convidar para um "piquenique" (como ele mesmo chamou):
enquanto prepararíamos arroz, ele pescaria piranha para comermos junto. Saímos da
aldeia às 9h e chegamos a Corumbá às 16h.
No dia 18, visitamos Jaci na sua casa e gravamos com ela uma entrevista. Depois disso,
fomos a casa de Eufrásia e gravamos uma entrevista com seu esposo, que nos contou
como conheceu Eufrásia. Além disso, pela primeira vez, conseguimos gravar uma
história inteira em Guató. Nela, se trata de Motoʤakwo, ou Motoʤokwẽ, um macaco
gigante que sequestra uma mulher. Eufrásia disse que era sua mãe que lhe contava essa
história.

Jaci

No dia 19, de manhã demos uma entrevista ao jornal Diário Corumbaense, em que
falamos sobre o projeto da revitalização da língua Guató e sobre a nossa pesquisa. De
tarde, encontramos a professora Adriana Postigo, que nos falou sobre Sebastião
Rondon, outro filho da finada Francolina Rondon. Adriana nos informou que Sebastião
é aposentado e que sua esposa, Solange, possui uma casa de festas. Decidimos visitá-lo
na semana seguinte.

Nos dias 20 e 21, fizemos sessões de elicitação com Eufrásia. No dia 20, ainda
gravamos mais uma entrevista com Eufrásia, tirando algumas dúvidas sobre a história
da sua vida. No dia 21, passamos na casa do cacique e deixamos com ele dois pendrives
com as gravações feitas: um para ele e outro para Felipe.

No dia 22, não fomos à casa de Eufrásia, pois ela teve que ir ao banco. Passamos o dia
transcrevendo as gravações já feitas e planejando outras. Além disso, Gustavo trabalhou
sobre a etnografia dos Guató.

Nos dias 23 e 24, voltamos à casa de Eufrásia e elicitamos mais frases. No dia 23, além
das frases, elicitamos a história Frog, where are you?. Nesse mesmo dia, levamos para
Eufrásia um álbum com algumas fotos suas tiradas durante a viagem à aldeia, inclusive
fotos com os primos. Além disso, revelamos em um tamanho maior as fotos 3x4 de seus
irmãos, o finado Cipriano e a finada Francisca. No dia 24, fomos à casa de Brandina,
filha da finada Francolina Rondon, para gravarmos uma entrevista, mas não
conseguimos conversar com ela.

No dia 25 de manhã, percebemos que nossos laptops foram roubados da casa onde
estávamos hospedados. Fomos à polícia. Nesse dia, não trabalhamos.

Boletim de ocorrência

No dia 26 de manhã, fomos à polícia de novo. Depois disso, recuperamos o computador


de Gustavo, mas o meu não foi achado. Felizmente, não perdemos nenhum material
gravado.

De tarde, fomos à casa de festas de Solange Rondon, onde encontramos Aida, irmã de
Sebastião e, portanto, filha da finada Francolina Rondon. Conversamos com ela sobre a
história da sua vida, sobre sua mãe e outros guatós que ela conheceu. Depois de um
tempo, chegou o próprio Sebastião e nos contou sobre a sua chegada em Corumbá, com
15 anos de idade. Sebastião é o único dos irmãos que recebeu instrução escolar
completa, graças aos cuidados de uma tia, e trabalhou como policial militar antes de se
aposentar. Trocamos contatos com Solange Rondon para lhes enviarmos fotos de
Francolina Rondon e para eles nos enviarem uma gravação do Globo Rural em que
aparece a finada Francolina, caso conseguirem encontrar.

No dia 27, fomos à casa de Eufrásia para nos despedirmos. Na volta, passamos no bar
frequentado por ela e por Jaci, onde encontramos Jaci. Anotamos os números de celular
dela e da dona do bar, Paulina, e nos despedimos das duas. Às 16h, peguei um avião
para o Rio de Janeiro. Gustavo foi para Campo Grande na manhã do dia 28.

No total, gravamos 9 horas e 10 minutos de elicitação da língua Guató em áudio. Nosso


foco foram palavras que expressam propriedades como “velho”, “novo”, “molhado”,
“seco”, “bêbado” e outras, pois sua descrição constitui o tema da minha dissertação.
Além disso, procuramos elicitar itens lexicais ainda não registrados em outras fontes.
Assim, conseguimos palavras para “mosquiteiro”, “calçado”, “bolacha”, “lanterna”,
“enterrar”, “parir”, “suar” e muitas outras. Pretendemos fazer uma lista completa dos
itens lexicais que não haviam sido registrados antes da nossa pesquisa.

Gravamos sete entrevistas, de mais de 6 horas de duração no total. As histórias pessoais


contadas para nós servirão de material para futuros trabalhos em quais buscaremos
descrever como e por que a língua Guató foi se perdendo ao longo do último século.
Além das entrevistas, gravamos vários outros vídeos, incluindo Eufrásia durante a
viagem de lancha, Eufrásia na aldeia conversando com os primos Jinho e Benedito, e na
casa de Vicente dirigindo-se a este em Guató. Trata-se de material inédito.

Data Informante Duração


05/01 Eufrásia 28 min
06/01 Eufrásia 50 min
07/01 Eufrásia 57 min
14/01 Eufrásia 42 min
15/01 e 16/01 Eufrásia, Vicente 172 min
20/01 Eufrásia 68 min
21/01 Eufrásia 40 min
23/01 Eufrásia 59 min
24/01 Eufrásia 34 min
Total: 550 min (ou 9 horas e 10 minutos)
Elicitações da língua Guató em áudio

Data Entrevistado(a) Duração


05/01 Eufrásia 93 min
08/01 Maria Lúcia 59 min
13/01 Cecília 65 min
14/01 Alfredo 50 min
18/01 Jaci 40 min
18/01 Geraldo 30 min
20/01 Eufrásia 32 min
Total: 369 min (ou 6 horas e 9 minutos)
Entrevistas realizadas (em vídeo e áudio)

Pretendemos voltar mais vezes a Corumbá. Não sei se conseguiremos organizar mais
um encontro entre Eufrásia e Vicente, dois últimos falantes do Guató. Eufrásia não
reconheceu nada na aldeia Uberaba, nem mesmo conseguiu achar o lugar onde morava.
Ela disse que, antigamente, a ilha era muito diferente, era só mato e agora "aumentou a
casaria". Além disso, ela sofreu muito com as nuvens de mosquitos e, depois da viagem,
disse que nunca mais vai querer voltar para a aldeia.

Além de gravar mais frases e textos com Eufrásia, pretendemos continuar a nossa busca
dos guatós que um dia já falaram a língua. Não tivemos a oportunidade de verificar o
conhecimento da língua por Valeriano, mas Felipe, professor da língua Guató da aldeia,
já havia feito o trabalho de coletar palavras e frases que Valeriano ainda lembrava.
Infelizmente, seu caderno com as anotações estava em Corumbá e ele ficou de me
enviar fotos desse caderno, assim que for possível. Além disso, na aldeia há um senhor
chamado Anselmo que, segundo os relatos de outras pessoas, fala Guató. Porém, ele é
muito fechado e sequer quis conversar conosco. Os pais de Anselmo eram falantes
Guató e, na tese de Adair Palácio, há menção a três irmãs dele, que foram levadas à
cidade de Cáceres (MT) ainda jovens. Valeriano confirmou essa informação e,
atualmente, estamos tentando descobrir algo sobre elas.

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