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Lúcia Maria de Paula Freitas PDF
Lúcia Maria de Paula Freitas PDF
Muitos são os motivos que fazem com que o desejo pelo filho, o desejo do filho, o
desejo pela paternidade e pela maternidade produza suas manifestações no ser
humano.
Por que colocar como precedente e essencial a busca da origem desse desejo?
Essa crença de que se procria pelo determinismo genético pode vedar a real
possibilidade da construção da relação de amor, de afeto entre pais e filhos, a
primeira e essencial relação a se estabelecer, de onde tudo se irradia. Pode-se
projetar essa estrutura familiar diretamente para um outro patamar, categorizado
como da órbita da substância, do cerne: a relação de paternidade que se dá sob a
órbita do determinismo, vista sob o aspecto do social, ou seja, paternidade enquanto
papel social. 1 A Questão Precedente e Essencial
Muitos são os motivos que fazem com que o desejo pelo filho, o desejo do filho, o
desejo pela paternidade e pela maternidade produza suas manifestações no ser
humano.
Por que colocar como precedente e essencial a busca da origem desse desejo?
Essa crença de que se procria pelo determinismo genético pode vedar a real
possibilidade da construção da relação de amor, de afeto entre pais e filhos, a
primeira e essencial relação a se estabelecer, de onde tudo se irradia. Pode-se
projetar essa estrutura familiar diretamente para um outro patamar, categorizado
como da órbita da substância, do cerne: a relação de paternidade que se dá sob a
órbita do determinismo, vista sob o aspecto do social, ou seja, paternidade enquanto
papel social.
Mas, não se trata também de uma visão restrita, negando um desejo humano
subjacente e uma capacidade humana de estruturar-se afetivamente de formas tão
complexas e mais que isso, simbolizar e produzir ou, até mesmo, exterminar cultura?
Tal discurso que impregna muitos outros discursos funda-se num determinismo
patriarcal, patriarcalismo esse que hoje, inclusive, não mais se sustenta absoluto e
inarredável diante das novas organizações familiares que se estabelecem tanto
afetivamente como economicamente.
Essa a questão essencial no desejo pelo filho. O desejo pelo filho, que é também o
desejo do filho, funda-se no desejo humano, essencial, de amar e ser amado. Esse
desejo não pertence à ordem restrita do biológico, nem se realiza verdadeiramente no
seu aspecto social. É, antes, essencialmente, um vínculo de afeto que, como tal,
precisa ser desnudado e assim vivido pelos homens, para que se dissipem os
preconceitos, busque-se mais a essência afetiva da paternidade e chegue-se à
realização dos avanços do direito em relação à efetiva tutela das relações de
paternidade e filiação.
Portanto, também não é novidade que os filhos não biológicos tornam-se filhos
verdadeiramente, antes que pelo ato jurídico, pelo instituto da adoção, através do
mesmo desejo e construção que move os pais biológicos a tornarem-se
verdadeiramente pais de seus filhos. Não se pode admitir que um ato mecânico,
instintivo torne pura e simplesmente alguém filho de alguém, em essência. Também
não é um papel social desempenhado, desconectado de sua essência original afetiva,
de um sentimento centrado na necessidade humana de amar e ser amado que torna
alguém filho de alguém.
Assim, a filiação adotiva dá-se nas mesmas bases da filiação biológica, quando se
investiga o sentido dessa relação sob o aspecto afetivo e não do determinismo
genético.
E assim também, essa filiação adotiva pode dar-se nos mesmos moldes do sentido
social que se ancora no genético: o cumprimento de um papel social, de um
determinismo genético, de uma ordem natural: crescer e viver a paternidade
enquanto papel social, enquanto personas de pai e mãe, enquanto papéis que se
esperam dos adultos pela sociedade.
“Por mais que as leis jurídicas queiram trazer garantias da paternidade através dos
registros cartoriais, de investigações de paternidade, etc., por mais que seja
importante para o filho saber de sua origem genética, não há como assegurar, pela
via apenas jurídica, a verdadeira paternidade. Esta, como já dito, é muito mais da
ordem da cultura que propriamente da biologia ou genética. ‘A paternidade não é
apenas um ‘dado’: a paternidade se faz’, já disse o grande jurista contemporâneo,
LUIZ EDSON FACHIN em seu trabalho ‘A tríplice paternidade dos filhos imaginários’.”
1
“A adoção, como sabido, é uma ficção legal de uma geração de sangue entre
adotante e adotado; é na tradicional definição de COLIN e CAPITAIN, ‘ato jurídico que
cria entre duas pessoas relações fictícias e puramente civis de paternidade e de
filiação’. Na feliz expressão de ANTONIO CHAVES ‘a legalização da suposição do
parto’.” 2 (destacou-se)
Não se pode questionar se a tal discurso não corresponda, dada tanta ficção e
suposição nele contidas, um preconceito que faz crer na impossibilidade de uma
verdadeira relação de filiação estabelecida entre pais e filhos sem vínculo biológico e,
contrario sensu, numa presunção absoluta de filiação verdadeira entre pais e filhos
biológicos?
Sim, porque assim considerada a relação entre pais e filhos sem vínculo biológico,
como estabelecida na órbita da ficção, da suposição, de vínculos puramente civis,
desconsidera-se ou, mais que isso, nega-se a capacidade afetiva do ser humano que
o encaminha, que o move à paternidade.
Assim, negada a construção do amor e do afeto entre pais e filhos sem vínculos
biológicos, perpetua-se a pseudoverdade científica determinista e punem-se os dois
lados dessa relação: o adulto que não se adapta aos melhores exemplares da espécie
humana por não procriar e o filho que, presumidamente rejeitado na cadeia biológica,
há de carregar também essa pecha genética para sempre. À impossibilidade de gerar
filhos biológicos corresponde, dada a ficção, a simulação no campo puramente civil,
uma infertilidade no campo afetivo, no campo do amor entre pais e filhos. A filiação
afetiva pertence, pois, ao campo da ficção e da simulação, restando incapaz de gerar
também afeto e verdadeira relação humana natural de amor, pois que, confirmando a
reflexão já articulada, não é tida como natural, entendendo-se natural apenas no que
se refer ao aspecto genético/biológico da espécie humana.
Também é essa mesma lógica que reserva a tal relação, sem vínculos biológicos, o
papel do filho ao de assujeitado à expectativa social de agradecer a caridade recebida
dos pais pela adoção. Deverá sempre dar o melhor de si, no sentido de representar e
expressar a gratidão numa atitude súplice e submissa ao papel do eternamente grato.
Qualquer deslize e qualquer rebeldia serão punidos com a lembrança de que deve
gratidão pela caridade da adoção. Do julgamento imediato de que seu ato rebelde, de
que suas demandas enquanto sujeito devem-se ao fato de que é adotado. É muito
comum ouvir-se que esse filho teve sorte de ser adotado por pais tão abonados, que
lhe podem dar uma vida digna.
As reflexões advindas dos pais e filhos sem vínculos biológicos são cada vez mais
profícuas no sentido de realizarem o afeto e o amor verdadeiros.
Cada vez mais as peias do preconceito cedem lugar à integralização dos sujeitos e de
sua libertação rumo às relações plenas.
Por isso, entender que a adoção é sempre via de mão dupla, que pais e filhos se
adotam e não os pais aos filhos e que essa relação de troca vai-se dando na órbita
familiar mais ampla, com os avós, os tios, os primos e até na órbita das demais
relações afetivas com os amigos. A relação se amplia e se multiplicam as adoções
recíprocas. Isso permite que o filho não seja assujeitado na relação. Que também seja
sujeito ativo, tanto quanto os pais. Que os pais entendam que também precisam
dessa legitimação da paternidade pelo afeto do filho, pois só serão pais se esse filho
os legitimar.
Nesse mesmo sentido, não podemos deixar de citar o brilhante e excepcional texto do
grande jurista JOÃO BAPTISTA VILLELA: Desbiologização da Paternidade, datado de
1979, no qual, de maneira profunda e corajosa no seu todo e com coerência ímpar, o
autor nos conduz ao descortinamento do preconceito e da prevalência do biológico
sobre o afetivo, na maioria das vezes, em detrimento da verdadeira relação de
paternidade que, não obrigatoriamente, coincide com a gênese biológica. Nesse
ponto, cita o brilhante jurista a lenda do Círculo de Giz, na versão que lhe deu
BRECHT, em que o juiz AZDAK sentencia como verdadeira mãe da criança MIGUEL, a
criada GRUSCHE, diante do sorriso de MIGUEL a ela, ao iniciar-se a prova a definir
sua verdadeira mãe, bem como a atitude dessa em soltá-lo nos braços da mãe
biológica, qando essa mesma atitude levaria à derrota, exclamando ao juiz: “Eu o
criei! Devo agora machucá-lo? Não posso fazê-lo”. Concluindo, reflete VILLELA:
3 Considerações Finais
Finalizando, retomo a questão inicial: quem em nós quer um filho? Só a partir dessa
reflexão profunda e verdadeira, poderemos nos despir dos preconceitos e vivermos,
com vínculos biológicos ou sem vínculos biológicos, a plenitude da relação de pais e
filhos, fundada e centrada no afeto e na construção do amor que, por despido de
preconceito, revoluciona e liberta. Via de conseqüência, poderá o Direito despir-se do
traço preconceituoso de seu discurso, imprimindo às relações de filiação e
paternidade sem vínculo biológico sua finalidade essencial de justiça, de igualdade,
de eficiência e agilidade, de possibilidade viável da vinculação pelos laços afetivos,
legitimando, apenas enquanto lei formal, o que a construção humana afetiva já
legitimou.
4 Bibliografia
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, por que me abandonaste? In: PEREIRA, Tânia da
Silva (Coord.). O melhor interesse da criança. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.