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MARCEL MAUSS: DA DÁDIVA À QUESTÃO

DA RECIPROCIDADE*

Eric Sabourin

Introdução va (que passou a fazer parte do livro Sociologia e


antropologia, 1950).
Depois dos inúmeros e qualificados escritos De um lado, Mauss evidencia que a dádiva é o
e comentários produzidos a propósito do Ensaio oposto da troca mercantil e, paradoxalmente, pro-
sobre a dádiva, e da produção cada vez mais im- cura nela a origem da troca (ou do intercâmbio).
portante das ciências sociais brasileiras sobre o De outro lado, mostra a essência da reciprocidade
tema,1 o que agregar sem ser repetitivo ou preten- com o caráter universal da tríplice obrigação de
sioso? Neste texto abordarei apenas a questão da “dar, receber e retribuir”, mas não chega a teorizar
relação entre as noções de dádiva, troca2 e recipro- sobre tal reciprocidade4, trabalho que deixou para
cidade3 no Ensaio de Marcel Mauss, apoiando-me seus seguidores, em particular Lévi-Strauss (1967
em algumas publicações recentes e sem pretender [1947], 1997 [1950]) e, mais recentemente, Temple
ser exaustivo. Desenvolverei uma reflexão em tor- e Chabal (1995), Temple (1998, 2003), Godbout
no de um duplo paradoxo do Ensaio sobre a dádi- (2000, 2007), entre outros.
Mas não há consenso entre os seguidores e
* Uma versão preliminar desse texto foi apresentada na estudiosos do Ensaio sobre a dádiva. Sigaud (1999)
Sessão Especial “Marcel Mauss e as Ciências Sociais” mostra, assim, uma descontinuidade da herança
do XXX Encontro Anual da Anpocs, Caxambu – MG.
de Mauss e, sobretudo, as diversas interpretações,
às vezes contraditórias, que foram feitas do Ensaio.
Artigo recebido em janeiro/2007 A autora analisa como Lévi-Strauss (1997 [1950])
Aprovado em dezembro/2007 utilizou partes do Ensaio... para justificar sua teo-

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ria da troca generalizada e da troca simbólica. relativas às formas e às razões do que erronea-
Devemos a Temple e Chabal (1995 e 2003) uma mente é chamado de troca, ‘o escambo’, a ‘permu-
explicação renovada das contribuições respectivas tatio’ das coisas úteis” (Idem, p. 302).
de Mauss e de Lévi-Strauss para a teoria da reci- Mauss identifica nas prestações totais das so-
procidade. ciedades antigas ou primitivas uma forma de re-
Esse duplo paradoxo no Ensaio... leva, por- lação que ele chama de “dádiva-troca” e que se
tanto, às duas partes da minha reflexão. A primei- diferencia da troca mercantil, na medida em que
ra trata da dádiva como algo contrário à troca e associa uma moral, um valor ético, à transação
não como sua origem. A segunda aborda alguns econômica. Ele usa, precisamente, a expressão de
elementos de leitura empírica do princípio de reci- “moral da dádiva-troca”:
procidade no Ensaio... Proponho um breve esboço
de síntese desses ensinamentos e das perspectivas O sistema que propomos chamar o sistema de
que se abrem na terceira parte deste texto. prestações totais, de clã a clã – aquele no qual in-
divíduos e grupos trocam tudo entre si – constitui
o mais antigo sistema de economia e de direito
que podemos constatar e conceber. Ele forma o
A dádiva como contrário da troca fundo sobre o qual se destacou a moral da dádi-
va-troca (Idem, p. 299).
Para Mauss, as prestações primitivas revestem
a forma de dádivas, de presentes, reguladas por Mauss diferencia essas dádivas de presentes,
três obrigações interligadas: dar, receber, retribuir bens e símbolos da troca utilitarista. Para o au-
(Mauss, 2003, pp. 200 e 243). Dar é uma obriga- tor, não são os indivíduos e sim as coletividades
ção, sob a pena de provocar uma guerra (Idem, p que mantêm obrigações de prestações recíprocas,
201). Cada uma dessas obrigações cria um laço de mediante os grupos familiares, comunitários ou
energia espiritual entre os atores da dádiva. A re- mediante seus chefes no caso do potlach: “Em pri-
tribuição da dádiva seria explicada pela existência meiro lugar, não são indivíduos, são coletividades
dessa força, dentro da coisa dada: um vínculo de que se obrigam mutuamente, trocam e contratam
almas, associado de maneira inalienável ao nome [...]” (Idem, p. 190). Nessas prestações existem
do doador, ou seja, ao seu prestígio. A essa força “misturas entre almas e coisas”, entre riquezas ma-
ou ser espiritual ou à sua expressão simbólica liga- teriais e espirituais, ao passo que nas sociedades
da a uma ação ou transação, Mauss dará o nome modernas, direitos reais e direitos pessoais, mate-
polinésio de mana. rial e espiritual, são muito bem separados. Assim
Em primeiro lugar, Mauss mal resolve qualifi- ele descreve as oferendas mútuas:
car de “troca” as relações que está analisando. De
um lado, ele encontra nas sociedades indígenas Ademais, o que eles trocam não são exclusiva-
formas de troca que não correspondem “a nossa”, mente bens, riquezas, bens moveis e imóveis,
no sistema ocidental. coisas úteis economicamente. São, antes de tudo,
amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares,
Descreveremos os fenômenos de troca e de con- mulheres, crianças, danças, festas [...].(Idem, ibi-
trato nessas sociedades que são, não privadas de dem).
mercados econômicos como se afirmou – pois Trata-se, no fundo, de misturas. Misturam-se as
o mercado é um fenômeno humano que, a nosso almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas
ver, não é alheio a nenhuma sociedade conheci- (Idem, p. 212).
da –, mas cujo regime de troca é diferente do
nosso (Idem, p.188). Com efeito, se material e espiritual se mis-
turam, pode-se conceber que a coisa dada leva
De outro lado, algumas dessas prestações algo do ser do doador. Dessa forma Mauss faz
representam, precisamente, o contrário da troca, uma distinção, em particular em sua análise do
inclusive para as prestações de coisas úteis: “Esses potlach e da dádiva agonística, entre a troca mer-
fatos respondem também a uma série de questões cantil, motivada pelo interesse, e o sistema de dá-
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diva, no qual reina a nobreza e a honra e no qual [...] a materialidade e a espiritualidade não estão
o doador ganha prestígio. Para Temple e Chabal mais ligadas a um estatuto comum de objeto, são
(1995, p. 19), se o autor interpreta a dádiva como opostas mediante dois estatutos, conjugados por
uma relação de contradição: o espiritual aparece
um intercâmbio arcaico, não é no sentido utilita-
adquirido pelo doador, enquanto o material é ad-
rista, em que o doador deveria recuperar seu bem, quirido pelo donatário. O uso da noção de troca
mas porque o donatário quer resguardar seu mana, não é mais necessário (1995, p. 26, tradução do
seu prestígio, isto é, sua integridade espiritual: autor).

Se coisas são dadas e retribuídas, é porque se De fato, para Mauss, nas dádivas, não existe
dão e se retribuem “respeitos” – podemos dizer
nem troca, nem compra. A dádiva e a contradá-
igualmente, “cortesias”. Mas é também porque as
pessoas se dão ao dar, e, se as pessoas se dão, é diva, redescobertas por Mauss, pertencem a uma
porque se “devem” – elas e seus bens – aos outros dialética social e econômica polarizada pelo pres-
(Mauss, 2003, p. 263). tígio e pela honra. Essa polaridade por si só proíbe
reduzir o sistema dádiva/contradádiva a uma troca
Vale lembrar que Mauss foi criticado por ter e reduzir o efeito de redobramento da dádiva ao
dado demasiada importância ao mana, Mas Tem- interesse do primeiro doador.
ple e Chabal (1995) consideram, ao contrário, que
Mauss percebera justamente que a matriz do laço
entre as almas, do mana, se encontrava na obri- A questão da reciprocidade: o papel
gação de retribuir, na obrigação de reciprocidade. do terceiro
Contudo, de fato, a pesquisa de Mauss limitou-se
apenas à reciprocidade das dádivas (isto é, a reci-
O Ensaio sobre a dádiva é introduzido por
procidade positiva, segundo a proposta de Temple
um verdadeiro programa de pesquisa em torno de
e Chabal) e, por isso, não conduziu a uma teoria
duas perguntas complementares: Por que as dádi-
da reciprocidade. O mana expressaria o sentido
vas de presentes devem ser obrigatoriamente de-
dado ao homem ou criado pelo homem quando
volvidas? E por que existe essa universalidade da
entra numa relação recíproca:
retribuição?
Nas palavras de Mauss: “Qual é a regra de
O mana é o valor da reciprocidade, um Terceiro
direito e de interesse que, nas sociedades de tipo
entre os homens, que não está ainda aqui, mas
para nascer, um fruto, um filho, o Verbo que cir- atrasado ou arcaico, faz que o presente recebido
cula (a Palavra), que dá a cada um seu nome de seja obrigatoriamente retribuído [...]. Que força
ser humano, e a sua razão ao universo (Idem, p. existe na coisa dada que faz que o donatário a
15, tradução do autor). retribua?” (2003, p. 188). Segundo o autor, as dá-
divas voltam, são recíprocas e necessariamente
Portanto, a análise de Mauss deve ser reto- devolvidas ou retribuídas. Mas a obrigação de re-
mada e aprofundada numa direção diversa que tribuir parece desmentir a gratuidade das dádivas.
aquela escolhida pelos teóricos da troca, a qual Ela seria apenas aparente, ocultando uma troca
examinarei na segunda parte deste artigo. interessada. Portanto, no início da explicação, ele
Em síntese, pode-se concluir que as observa- mantém a tese da troca universal, situando a “dá-
ções descritas no Ensaio... mostram que a dádiva diva-troca” como um ponto de passagem entre as
equivale, para Mauss, a um crescimento da consciên- prestações totais das sociedades arcaicas e os in-
cia de ser, a um incremento de autoridade e de tercâmbios modernos. Assim, a história mostraria
fama para o doador. Dar não é mais oferecer algo a evolução da troca a partir de prestações primiti-
de si, mas adquirir esse “si”. O prestígio nasce da vas em que a comunicação entre os homens seria
dádiva e relaciona-se àquele que toma a iniciativa: ao mesmo tempo material e simbólica – troca de
ao doador, para constituir seu próprio nome, sua bens e comunhão entre os seres – isto é, até a se-
fama, o valor de “renome” (Mauss, 2003, p. 258). paração entre as comunicações espirituais, afetivas
Para Temple e Chabal, nesse sentido, e materiais dos tempos modernos. Nas origens,
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segundo Mauss, interessa não somente as coisas, Mauss acredita que os Maori querem explicar
mas os seres, o ser: a reciprocidade das dádivas dando uma expres-
são ao mana. Portanto, esse terceiro parceiro seria
Mas, por ora, é nítido que, em direito Maori, o vín- necessário para visualizar um valor moral.6 O au-
culo de direito, vínculo pelas coisas, é um vínculo tor é levado assim a introduzir entre os parceiros
de almas, pois a própria coisa tem uma alma, é um Terceiro de natureza ontológico, o mana ou
alma. Donde resulta que apresentar alguma coisa o hau, isto é, o nome do doador. Porém a tese de
a alguém é apresentar algo de si (Idem, p. 200).
Mauss, segundo Temple e Chabal, pode estar ape-
nas incompleta, porque ele propõe também outra
No entanto, essa coerência aparente da sua solução: o hau e o mana não constituem um va-
teoria deixa o próprio Mauss insatisfeito. Ele evo- lor já instituído como próprio do doador, mas, ao
ca várias vezes o vocabulário da troca e do inte- contrário, um valor produzido pela reciprocidade
resse como palavras tipicamente européias que se das dádivas, pelo movimento dos bens materiais
aplicariam tão mal ao que pretendia dizer. Com ou simbólicos.
efeito, lembram-nos Temple e Chabal (1995, p. 15), Nesse embate da reciprocidade, tal valor éti-
Mauss vai procurar uma palavra indígena para ex-
co é compartilhado pelos protagonistas como um
plicar que “os indígenas”5 fazem referência a um
todo indiviso, invisível, um Terceiro incluído.7 Para
motor das prestações econômicas diferente do in-
evidenciar esse “Terceiro” é possível recorrer a uma
teresse. Motor ao qual Mauss dá um nome poliné-
estrutura que não seja um artifício, como imagina
sio: o mana. O autor reconhece não poder reduzir
Mauss, mas uma estrutura de reciprocidade bem
o mana à noção de interesse econômico. Propõe,
concreta, ternária em vez de binária: precisamente
então, compará-lo a um capital imaginário, ao
a estrutura de reciprocidade simétrica.
ser do doador. Mas, explicam Temple e Chabal,
Para Temple e Chabal essa interpretação tem
como a supremacia da sociedade ocidental sugere
o mérito de esclarecer como Ranaipiri – o sábio
fortemente que a troca seja a forma mais evoluída
Maori – explica o funcionamento do hau para o
das prestações humanas, a solução mais fácil pa-
etnólogo Rupert E. Best: “Esse texto [..] por mo-
ra ligar troca e dádiva seria interpretar a reciproci-
dade das dádivas como uma troca arcaica. Preci- mentos surpreendentemente claro oferece apenas
saria, então, reduzir o mana, que segundo as re- uma obscuridade: a intervenção de uma terceira
ferências indígenas comanda a reciprocidade, a pessoa” (Mauss, 2003, p. 198).
um valor que pudesse ser trocado. Mauss atribui o Um fato importante no Ensaio sobre a dádiva
mana ao doador, como uma propriedade espiritu- é precisamente que para o essencial do que desco-
al; assim, dando algo, dá-se algo de si mesmo. A bre e que não corresponde à lógica da troca mo-
noção de dádiva de si leva à idéia de que a dádiva derna Mauss deixa falar os “indígenas”. Quando
cria uma dependência para com o outro, porque o introduz a expressão “manifestar respeitos recípro-
mana, o ser do doador, seria inalienável. Portanto, cos” (Idem, p 237) está traduzindo uma expressão
aquele que receberia esse símbolo seria obrigado dos índios Tlingit. Para qualificar o valor espiritual
a restituí-lo ou a ficar sob a sua dependência. associado ao movimento das dádivas, ou para dar
A interpretação que Mauss faz do hau Ma- conta da necessidade do Terceiro, usa o mana ou
ori parece corroborar essa tese. O hau seria esse a cara do mana. Para falar da figura desse Terceiro
mana, a força de ser do doador que acompanha o que assegura o laço espiritual, ele usa a expressão
bem dado e que, onde quer que esse vá, terá que Kanak: “Nossas festas [a reciprocidade das dádi-
voltar. Para Temple e Chabal, a questão do prestí- vas] são o movimento da agulha que serve para
gio fica no coração de uma reflexão inacabada de ligar as partes do telhado de palha, para que haja
Mauss. O hau maori e o mana polinésio seriam, um único teto, uma única palavra” (Idem, p. 213).
segundo esses povos, a razão da circulação dos Mauss percebeu a preeminência da obriga-
bens. Ora, Mauss observa que para dar conta des- ção de retribuir (devolver), mas não tirou dessa
sa circulação os Maoris falam de um ciclo ternário: observação o princípio de reciprocidade. Para
A dá a B que dá a C o qual devolve a B que dá Temple e Chabal (1995, p. 64), sua insistência em
de novo a A. declarar essa obrigação irredutível aos dois ter-
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mos permite, no entanto, invocar uma estrutura de fato, satisfaz o interesse de cada parceiro. Nesse
mais fundamental que enlaça entre elas todo tipo caso, em que difere da reciprocidade? Precisamen-
de atividades (matrimônios, assassinatos,8 dádivas te porque a reciprocidade implica na preocupação
etc.), precisamente a estrutura de reciprocidade. pelo outro para estabelecer o mana, para produzir
Nas prestações totais, tudo é simbólico, diz Mauss, valores afetivos ou éticos como a paz, a confiança,
e tudo é recíproco. a amizade e a compreensão mútua.
A troca utiliza esses primeiros valores huma-
nos para se poupar da violência. Trata-se de uma
Síntese e ensinamentos relação de interesses, mas que supõe uma reci-
procidade mínima. A razão aconselha estabelecer
Mauss chega a uma conclusão mestra: as dá- a competição de interesses forjada na confiança,
divas vão e voltam sempre. “Pouco importa seu na paz e na compreensão mútua produzidas pelas
valor, pouco importa sua natureza; podem ser relações de reciprocidade. Dessa forma é possível
idênticas ou não; o importante é que recorram ca- entender que se possa muito facilmente confundir
minhos inversos ou simétricos, que elas se repro- a troca com uma forma de reciprocidade simétrica.
duzam como num espelho; e esta reflexão é o mo-
Mas, em realidade, ela inverte o movimento da re-
tor oculto dos seus movimentos, inclusive quando
ciprocidade, porque em vez de se preocupar com
são aparentemente livres e gratuitas” (Temple e
o outro, procura em primeiro lugar a satisfação do
Chabal, 1995, p. 73, tradução do autor).
próprio interesse.
A devolução da dádiva é explicada pela for-
Segundo Temple e Chabal, Mauss reuniu as
ça presente na coisa dada, pelo laço espiritual ao
principais peças de uma teoria da reciprocidade:
qual, na falta de um termo equivalente nos países
ocidentais, Mauss dá o nome de mana ou que a dádiva, a obrigação de retribuir, o prestígio e
reconhece também no hau dos Maori. O prestígio a presença do terceiro, esse elemento que era “a
não corresponde ao ego do doador, mas ao ser ao única obscuridade da teoria indígena”. Mauss con-
qual ele aspira, que não lhe preexiste e que deve vence-se da idéia de que o ciclo das dádivas leva
ser produzido mediante a relação de reciprocidade à obrigação de retribuir. No entanto, essa obriga-
(Temple e Chabal, 1995). Pois bem, a reciprocida- ção supõe uma estrutura fundamental de simetria
de supõe uma preocupação pelo outro. Não se entre as dádivas ou necessita que se recorra a um
pode estar inquieto do outro sem se preocupar terceiro elemento, seja ele uma pessoa ou um sím-
com suas condições de existência. Tal preocupa- bolo. Pois o ele é um vinculo de almas, sendo a re-
ção torna-se, portanto, hospitalidade, dádiva de ciprocidade sua matriz, o princípio da sua gênese.
alimentos e víveres, proteção, ou seja, motivos ou No final de sua obra, Mauss percebe a origem na-
obrigações para produzir. tural da estrutura de reciprocidade nas condições
A partir das observações de Mauss sobre as do parentesco (exogamia e filiação):
dádivas, Temple (2003, Tomo 1, pp. 81-93) propõe
uma regra de base da economia primitiva: se para [...] a separação por sexo, por gerações, por clãs,
ser é preciso dar, para dar, é necessário produzir. leva a fazer de um grupo A o associado de um
A produção de riquezas materiais é, assim, uma grupo B, mas esses dois grupos, A e B, quer di-
conseqüência da produção de energia espiritual, zer as linhagens, são precisamente divididas por
de mana. Mauss identificou a reciprocidade das sexos e gerações: as oposições cruzam as coe-
dádivas, mas não o motor de uma economia de sões (Mauss, 1968-1969 [1931a], p. 141, tradução
do autor).
reciprocidade, porque no contexto em que vivia
não existia outra possibilidade de evolução econô-
mica, exceto a troca. Como escreve Laval (2006), para Mauss, a re-
ciprocidade não se limita à dádiva entre pares, ela
rege o princípio das relações entre grupos de ida-
Diferença entre troca e reciprocidade de e estatutos. Mauss diferencia assim a recipro-
cidade direta (prestações materiais ou simbólicas
Como Lévi-Strauss (1997 [1950]) mostrou, a devolvidas entre dois indivíduos ou dois grupos)
troca é, às vezes, chamada de recíproca porque, da reciprocidade indireta, quando os bens sim-
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bólicos recebidos não são devolvidos a quem os sentimentos de homens de carne, osso e espírito
deu, mas a outro grupo que, por sua vez, terá que que agem o tempo todo e agiram em toda parte
devolvê-los a um outro grupo. O modelo dessa (Mauss, 2003, p. 299).
reciprocidade indireta é precisamente aquele da
circulação dos bens entre as gerações. “É aquilo Isso quer dizer que o objetivo ético e político
que seu pai fez para você que você pode devolver não é apenas assegurar as condições materiais de
ao seu filho” (Mauss, 1968-1969 [1931b]). vida decentes para todos os seres humanos – para
O que é recebido em termos de educação elas em si –, nem de garantir por si só a liber-
também deve ser devolvido (Laval, 2006). Essa es- dade dos indivíduos psíquicos e coletivos, mas de
trutura de reciprocidade ternária, segundo Temple assegurar a maximização da sua individualização
(1998), é aquela que reproduz também o senti- no sentido de exprimir a sua singularidade, como
mento e o valor ético de “responsabilidade” entre garantia do seu pertencimento diferenciado a co-
gerações. Aplicado aos recursos naturais, é essa letivos ou à totalidade humana.
mesma responsabilidade que levou as gerações
passadas a preservar florestas, rios, lagos e mares.
No fim da vida, Mauss pressentiu a universalidade
desse princípio de reciprocidade quando discutiu
Considerações finais
a teoria educativa de Piaget:
A intuição genial de Mauss foi a sua capaci-
[Ele] faz da noção de reciprocidade um privilégio
dade de vislumbrar a continuidade dessas catego-
do indivíduo saído da infância ou da sociedade rias da dádiva do intercâmbio e da reciprocidade
já civilizada. Mas os fijianos, australianos [...] das nas sociedades modernas:
grandes civilizações neolíticas já possuíam a no-
ção de reciprocidade; no entanto a reciprocidade Veremos a moral e a economia que regem essas
não quer dizer sempre igualdade. Da geração 1 transações. E, como constataremos que essa mo-
à geração 2, como da geração 2 à 3, há recipro- ral e essa economia funcionam ainda em nossas
cidade, mas não igualdade; da mesma maneira sociedades de forma constante e, por assim dizer,
entre homem e mulher (Mauss, 1968-1969 [1931a], subjacente, como acreditamos ter aqui encontra-
p. 301, tradução do autor). do uma das rochas humanas sobre as quais são
construídas as nossas sociedades, podemos dedu-
zir disso algumas conclusões morais sobre alguns
Como reconhece Laval, “podemos conside-
problemas colocados pela crise do nosso direito e
rar que a transmissão cultural é estruturada se- da nossa economia [....] (Idem, p. 188).
gundo o princípio de reciprocidade indireta do
qual Mauss foi o grande descobridor” (2006, p.
Mauss via, também, na antiguidade e na uni-
109). Mas, de fato, já na conclusão do Ensaio..., o
versalidade de uma pluralidade de formas de mer-
autor explica essa moral da reciprocidade como
cados a estrutura da reciprocidade generalizada,
matriz da humanidade:
antecipando as propostas mais recentes da econo-
mia solidária:
Convém que o cidadão não seja nem demasiado
bom e subjetivo demais, nem demasiado insen-
sível e realista demais. É preciso que ele tenha Nesses fenômenos sociais “totais” [...] exprimem-
se de uma só vez as mais diversas instituições:
um senso agudo de si mesmo, dos outros e da
religiosas, jurídicas e morais, políticas e familiares
realidade social (e haverá, nesses fatos de moral
[...] e econômicas – estas supondo formas especí-
uma outra realidade?). Ele deve agir levando em
ficas da produção e do consumo, ou melhor, do
conta a si, os subgrupos e a sociedade. Essa moral
fornecimento e da distribuição [...] (Idem, p. 187).
é eterna; é comum às sociedades mais evoluídas,
às do futuro próximo, e às sociedades menos edu- O autor já reconhecia os valores e a dialética
cadas que possamos imaginar! Tocamos a pedra da dádiva, subjacente à estrutura econômica de re-
fundamental. Nem mesmo falamos mais em ter- distribuição (ou de compartilhamento), das políti-
mos de direito, falamos de homens e de grupos cas de seguro social hoje tão ameaçadas:
de homens, porque são eles, é a sociedade, são os Toda a nossa legislação de previdência social [...]
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inspira-se no seguinte princípio: o trabalhador 2 A troca, no sentido antropológico geral, é definida


deu sua vida e o seu trabalho à coletividade de como “um termo aplicado a todo movimento de
um lado, a seus patrões, de outro e, se ele deve intenção recíproca entre duas partes” (Encyclo-
colaborar na obra de previdência, os que se bene- pedia universalis, 1984, p. 897). Na economia, a
ficiaram de seus serviços não estão quites em rela- troca corresponde a “diferentes modos de transfe-
ção a ele com o pagamento do salário. O próprio rência de bens e de serviços realizados mediante
Estado, que representa a comunidade, devendo- contrapartida ou equivalência entre uns e outros”
lhe, com a contribuição dos patrões, uma certa se- (Idem, p. 897).
guridade em vida, contra o desemprego, a doen-
3 Na antropologia, a reciprocidade foi muitas vezes
ça, a velhice e a morte (Idem, p. 296). limitada ao sistema “dádiva/contradádiva”. De-
pois da contribuição de Mauss, ela foi associada
Temple e Chabal (1995) lembram na intro- ao conjunto de relações “dar, receber e retribuir”,
dução do seu livro que uma objeção à tese de que corresponde à reciprocidade das dádivas (ou
reciprocidade positiva). De fato, o princípio de re-
Mauss também poderia residir no fato de que, se
ciprocidade é mais global e contempla também
as sociedades fundadas sobre a troca mercantil a reciprocidade negativa (a de vingança) e a re-
emergiram historicamente das sociedades organi- ciprocidade simétrica. Neste sentido mais geral,
zadas pela reciprocidade, isto não significa neces- tal conceito pode ser definido como uma relação
sariamente que a troca provenha da dádiva. Troca mútua reversível entre dois sujeitos.
e dádiva podem ter coexistido e ter se afrontado 4 No conjunto dos textos do Ensaio sobre a dádiva,
desde as origens, e a troca triunfou, por exemplo, o termo reciprocidade aparece uma única vez, o
na sociedade ocidental. Precisamente, nas conclu- adjetivo recíproco, quatro vezes, e a palavra tro-
sões do Ensaio..., Mauss escreve a propósito da ca (intercâmbio), mais de noventa vezes. De fato,
sociedade moderna: Mauss designa por troca fatos bem diversos (des-
de a compensação material ate no sentido amplo
de comunicação: o intercâmbio tece o laço social,
Uma parte considerável de nossa moral e de nossa está na base de todas as sociedades...), mas sem
própria vida permanece estacionada nessa mesma nunca definir esse conceito.
atmosfera em que dádiva, obrigação e liberdade se
misturam. Felizmente, nem tudo ainda é classifica- 5 Os indígenas seriam os inventores da reciprocida-
do exclusivamente em termos de compra e de ven- de, como reconhece Lévi-Strauss na introdução à
da. As coisas possuem ainda um valor sentimental Sociologia e antropologia (2003).
além de seu valor venal, se é que há valores que 6 Essa interpretação foi criticada por Lévi-Strauss
sejam apenas desse gênero (Idem, p. 294). (1997 [1950]). Segundo ele, os Maori, não sabendo
reconhecer a troca como motor oculto da recipro-
Uma releitura do Ensaio sobre a dádiva, cidade das dádivas, invocam um deus ex machi-
como do conjunto da obra de Mauss, ou por que na, o mana.
não dizer de qualquer outro autor, deve, por su- 7 O Terceiro incluído seria “o que é, por si só, con-
posto, ser situada no seu tempo. Assim, considero traditório” da filosofia de Stéphane Lupasco (1987
uma contribuição primordial de Mauss não apenas [1951]).
a qualificação da dádiva como forma de relação 8 A reciprocidade negativa, de acordo a Temple e
social e de transação econômica, mas, sobretudo, Chabal (1995, pp. 81ss).
a universalidade da tríplice obrigação “dar, receber
e retribuir” que permite hoje entender o princípio
de reciprocidade como essa “rocha”, matriz das re-
lações e das civilizações humanas.

Notas BIBLIOGRAFIA

1 Refiro-me aos trabalhos recentes de Caillé (1998), CAILLÉ, Alain. (1998), “Nem holismo, nem indivi-
Sigaud (1999), Lanna (2000), P. H. Martins (2001, dualismo metodológicos: Marcel Mauss
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208 revista brasileira de ciências sociais - vol. 23 nº. 66

MARCEL MAUSS: DA DáDIVA à MARCEL MAUSS: FROM THE GIFT MARCEL MAUSS : DU DON À LA
QUESTãO DA RECIPROCIDADE TO THE ISSUE OF RECIPROCITY QUESTION DE LA RÉCIPROCITÉ

Eric Sabourin Eric Sabourin Eric Sabourin

Palavras chave: Dádiva; Troca; Re- Keywords: Gift; Exchange; Reci- Mots-clés: Don; Échange; Récipro-
ciprocidade; Marcel Mauss. procity; Marcel Mauss. cité; Marcel Mauss.

Por que da dádiva à reciprocidade? Why from the gift to reciprocity? Pourquoi le don de la réciprocité?
Porque, precisamente, ao longo do Because, precisely, along the Essay Car, spécifiquement, au long de l’Es-
Ensaio sobre a dádiva, Marcel Mauss on the gift, Marcel Mauss describes sai sur le don, Marcel Mauss décrit
descreve relações e prestações de re- relations and reciprocity provisions. les liens et les prestations de réci-
ciprocidade. Procurando explicar as In order to explain the human ori- procité. Cherchant à expliquer les
origens humanas da troca, o autor gins of exchanging, the author un- origines humaines de l’échange,
descobre princípios fundamentais covers fundamental principles of l’auteur découvre des principes fon-
da organização e da lógica econô- the organization and economic and damentaux de l’organisation et de la
mica e social das sociedades de reci- social logics in societies of reciproc- logique économique et sociale des
procidade. A dádiva e a contradádi- ity. Both the gift and the counter-gift sociétés de réciprocité. Le don et le
va pertencem a uma dialética social belong to a social and economical contre-don appartiennent à une dia-
e econômica polarizada pelo pres- dialectics polarized by prestige and lectique sociale et économique pola-
tígio e pela honra. Essa polaridade, honor. Such polarity, alone, not only risée par le prestige et par l’honneur.
por si só, proíbe não só reduzir o forbids the simplification of the sys- Cette polarité interdit, à elle seule,
sistema dádiva/contradádiva a uma tem gift/counter-gift to an exchange, non seulement de réduire le système
troca (intercâmbio), mas também but also the explanation of the prin- don/contre-don à un échange, mais
proíbe explicar o princípio de redo- ciple of the gift redoubling on the interdit aussi d’expliquer le principe
bramento da dádiva pelo interesse interest of the first donor. Recogni- de redoublement du don à cause de
do primeiro doador. O reconheci- tion renders prestige and political l’intérêt du premier donneur. La re-
mento traduz-se em prestígio e em authority. However, in order to give, connaissance se traduit en prestige
autoridade política. Mas, para poder it is necessary to produce: such pro- et en autorité politique. Mais, pour
dar, é preciso produzir: a produção duction is subordinated to the dona- pouvoir donner, il faut produire: la
está subordinada à doação, o que tion, which generates an economy production est subordonnée à la do-
gera uma economia com princípios with principles anatropous to those nation, ce qui gère une économie de
inversos àqueles da economia de of the exchange-based occidental principes inverses à ceux de l’écono-
troca ocidental. economy. mie d’échange occidentale.

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