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CAPÍTULOS 5

FRANCIS FUKUYAMA

AS ORIGENS
DA ORDEM POLÍTICA
D o s Te m p o s P r é - H i s t ó r i c o s
à Revolução Francesa

Tr a d u ç ã o
RICARDO NORONHA
4 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA
CAPÍTULOS 7

ÍNDICE

Prefácio 9

Parte I: Antes do Estado


1. A necessidade da política 19
2. O estado de natureza 52
3. A tirania dos primos 86
4. As sociedades tribais: propriedade, justiça e guerra 109
5. A chegada do Leviatã 134

Parte II: A construção do Estado


6. O tribalismo chinês 159
7. A guerra e a ascensão do Estado chinês 179
8. O grande sistema Han 205
9. O declínio político e o regresso do governo patrimonial 221
10. O desvio indiano 238
11. Varnas e jatis 255
12. Fraquezas das estruturas políticas indianas 273
13. A escravatura e a saída dos muçulmanos do tribalismo 292
14. Os mamelucos salvam o islão 310
15. O funcionamento e o declínio do Estado otomano 326
16. O cristianismo enfraquece a família 348
8 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

Parte III: O primado do Direito


17. As origens do primado do Direito 369
18. A Igreja torna-se um Estado 394
19. O Estado torna-se uma Igreja 415
20. O despotismo oriental 436
21. Bandidos estacionários 455

Parte IV: A responsabilização governamental


22. A emergência da responsabilização política 479
23. Comportamentos rentistas 499
24. O patrimonialismo do outro lado do Atlântico 525
25. A leste do Elba 551
26. Rumo a um absolutismo mais perfeito 569
27. Taxação e representação 590
28. Porquê a responsabilização? Porquê o absolutismo? 620

Parte V: Rumo a uma teoria do desenvolvimento político


29. Desenvolvimento político e declínio político 641
30. Desenvolvimento político, então e agora 671

Agradecimentos 708
%LEOLRJUDÀD 710

Índice Remissivo 731


CAPÍTULOS 17

Parte I

A N T E S D O E S TA D O
18 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 19

Capítulo 

A NECESSIDADE DA POLÍTICA

A terceira vaga de democratização e as ansiedades contemporâneas relativas


ao futuro das democracias liberais contemporâneas; como tanto a esquerda quanto
a direita se entretêm fantasiando sobre a abolição da ideia de governo; como
na contemporaneidade os países em desenvolvimento representam a concretização
dessas fantasias; como tomamos essas instituições como garantidas, não tendo,
no entretanto, noção das suas origens

Durante o período de 40 anos desde 1970 a 2010, houve um


HQRUPHFUHVFLPHQWRGRQ~PHURGHGHPRFUDFLDVjHVFDODPXQGLDO
Em 1973, apenas 45 dos 151 países existentes no mundo eram con-
siderados «livres» pela Freedom House, uma organização não-go-
vernamental que estabelece parâmetros quantitativos das liberdades
civis e políticas em países do mundo inteiro1. Nesse ano, Espanha,
Portugal e a Grécia eram ditaduras; a União Soviética e os seus sa-
télites da Europa de Leste pareciam sociedades fortes e coesas; a
China tinha sido tomada pela Revolução Cultural de Mao Zedong;
ÉIULFDDVVLVWLDjFRQVROLGDomRQRSRGHUGHXPJUXSRGH©SUHVLGHQ-
tes vitalícios» corruptos; e a maior parte da América Latina havia
caído sob o jugo de ditaduras militares. A geração seguinte assistiu
a transformações políticas de grande fôlego, com democracias e
economias de mercado a surgirem praticamente em todo o mundo,
FRPH[FHomRGR0pGLR2ULHQWHiUDEH1RÀQDOGDGpFDGDGH
cerca de 120 países em todo o mundo – mais de 60% dos Estados
LQGHSHQGHQWHVjHVFDODPXQGLDO²WLQKDPVHWRUQDGRGHPRFUDFLDV
1
Ver o «Country Status and Ratings Overviews» na secção «Freedom in the World»
do sítio da Freedom House na internet (freedomhouse.org). Larry Diamond calcula o
número em cerca de 40, que aumentou depois para 117 quando a terceira vaga atingiu o
seu auge. Ver The Spirit of Democracy: The Struggle to Build Free Societies Throughout the World
(Nova Iorque: Times Books, 2008), pp. 41, 50.
20 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

eletivas2. Esta transformação foi a terceira vaga de democratização


de Samuel Huntington; a democracia liberal enquanto forma esta-
belecida de governo tornou-se uma parte da paisagem política no
início do século XXI3.
Estas mudanças dos sistemas políticos foram acompanhadas
por uma gigantesca transformação social. A transição para a de-
mocracia resultou do facto de milhões de indivíduos anteriormen-
te passivos se terem organizado e começado a participar na vida
política das suas sociedades. Esta mobilização social foi motiva-
GDSRUXPFRQMXQWRGHIDWRUHVXPDFHVVRPDLVJHQHUDOL]DGRj
educação, que tornou as pessoas mais conscientes de si próprias
HGRPXQGRSROtWLFRjVXDYROWDWHFQRORJLDVGHLQIRUPDomRTXH
facilitaram a rápida expansão de ideias e conhecimento; viagens e
comunicações mais baratas, que permitiram que as pessoas votas-
sem com os pés no caso de não gostarem do seu governo; e mais
prosperidade, que induziu as pessoas a exigir uma maior prote-
ção dos seus direitos.
$WHUFHLUDYDJDHVPRUHFHXSRUpPDSDUWLUGHÀQDLVGRVDQRV
1990 e uma «recessão democrática» emergiu na primeira década
do século XXI. Aproximadamente um em cada cinco países que ha-
via integrado a terceira vaga reverteu para o autoritarismo ou so-
IUHXXPDVLJQLÀFDWLYDHURVmRGDVVXDVLQVWLWXLo}HVGHPRFUiWLFDV4.
A Freedom House assinalou o facto de 2009 ter sido o quarto ano
FRQVHFXWLYRQRTXDODOLEHUGDGHGHFOLQRXjHVFDODPXQGLDORTXH
aconteceu pela primeira vez desde que foram estabelecidos os seus
parâmetros de liberdade em 19735.

2
Larry Diamond, «The Democratic Recession: Before and After the Financial Crisis»,
em Nancy Birdsall e Francis Fukuyama, eds., New Ideias in Development After the Financial
Crisis (Baltimore: John Hopkins University Press, 2011).
3
Samuel P. Huntington, The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century
(Oklahoma City: University of Oklahoma Press, 1991).
4
Diamond, «The Democratic Recession», pp. 240-59.
5
Freedom House, )UHHGRPLQWKH:RUOG(URVLRQRI )UHHGRP,QWHQVLÀHV (Washington,
D.C.: Freedom House, 2010).
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 21

Ansiedades políticas

No início da segunda década do século XXI, o mal-estar no mun-


do democrático assumiu diversas formas. A primeira foi o evidente
retrocesso das conquistas democráticas ocorrido em países como
a Rússia, a Venezuela e o Irão, onde líderes eleitos se empenharam
em desmantelar instituições democráticas através da manipulação
eleitoral, do fecho ou compra de estações de televisão independen-
tes e órgãos de imprensa ou da repressão das atividades da opo-
VLomR$GHPRFUDFLDOLEHUDOVLJQLÀFDPDLVGRTXHRDSXUDPHQWRGH
maiorias através de eleições; trata-se de uma complexa combinação
de instituições que limitam e regularizam o exercício do poder atra-
vés do Direito e de um sistema de pesos e contrapesos. Em muitos
SDtVHVDDFHLWDomRRÀFLDOGDOHJLWLPLGDGHGHPRFUiWLFDIRLDFRPSD-
QKDGDSHODUHPRomRVLVWHPiWLFDGDÀVFDOL]DomRVREUHRSRGHUH[H-
cutivo e pela erosão do primado do Direito.
Noutros casos, países que pareciam estar a fazer a transição a partir
de governos autoritários permaneceram encalhados no que o analista
Thomas Carother denominou «zonas cinzentas», nas quais não eram
QHPFRPSOHWDPHQWHDXWRULWiULRVQHPVLJQLÀFDWLYDPHQWHGHPRFUiWL-
cos69iULRVSDtVHVTXHVXFHGHUDPjDQWLJD8QLmR6RYLpWLFDFRPRR
Cazaquistão e o Uzbequistão, na Ásia Central, encontraram-se nesta
VLWXDomR1RVDQRVSRVWHULRUHVjTXHGDGR0XURGH%HUOLPHP
tinha havido a assunção generalizada de que praticamente todos os
países estavam a efetuar transições para a democracia e que as falhas
na prática democrática seriam ultrapassadas com o passar do tempo.
Carothers assinalou que o «paradigma transicional» foi uma assun-
omRLQMXVWLÀFDGDHTXHPXLWDVHOLWHVDXWRULWiULDVQmRWLQKDPLQWHUHVVH
em implementar instituições democráticas que diluiriam o seu poder.
Uma terceira categoria de preocupações está relacionada, não com
o falhanço dos sistemas políticos em tornarem-se ou permanecerem

6
Thomas Carothers, «The end of the Transition Paradigm», Journal of Democracy 13,
n.º 1 (2002): 5-21.
22 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

democráticos, mas antes na sua incapacidade de proporcionar os ser-


viços básicos que as pessoas exigem aos seus governos. O mero facto
de um país possuir instituições democráticas diz-nos muito pouco
acerca da sua boa ou má governação. Esta incapacidade de concre-
WL]DUDSURPHVVDGDGHPRFUDFLDpWDOYH]RPDLRUGHVDÀRjOHJLWLPL-
dade destes sistemas políticos.
Um exemplo disso foi a Ucrânia. A Ucrânia surpreendeu o mun-
do em 2004 quando dezenas de milhares de pessoas convergiram
na praça principal de Kiev para protestar contra a manipulação das
HOHLo}HVSUHVLGHQFLDLVGRSDtV(VWHVSURWHVWRVTXHÀFDULDPFRQKH-
cidos como a Revolução Laranja, motivaram a realização de novas
HOHLo}HVHDVXELGDGRUHIRUPDGRU9LNWRU<XVKFKHQNRjSUHVLGrQFLD
Uma vez no poder, contudo, a Coligação Laranja demonstrou-se
extremamente débil, e o próprio Yushchenko desapontou as espe-
ranças dos que o haviam eleito. O governo foi atravessado por dis-
putas internas, revelou-se incapaz de lidar com os sérios problemas
de corrupção do país e provocou o colapso da economia duran-
WHDFULVHJOREDOÀQDQFHLUDGH2UHVXOWDGRIRLDHOHLomR
de Viktor Yanukovitch no início de 2010, precisamente o homem
acusado de viciar as eleições de 2004 que haviam desencadeado a
Revolução Laranja.
Muitos outros tipos de fracassos governativos assolam os paí-
ses democráticos. É um facto bem conhecido que a América Latina
possui um nível de desigualdade económica superior ao de qualquer
outra região no mundo, no qual as hierarquias de classe correspon-
dem frequentemente a diferenças étnicas e raciais. A emergência de
líderes populistas como Hugo Chávez na Venezuela e Evo Mora-
les na Bolívia é menos uma causa da instabilidade do que um sin-
toma de desigualdade e do sentimento de exclusão social vivido
por muitos dos que são nominalmente cidadãos. A pobreza persis-
tente gera frequentemente outro tipo de disfunções sociais, como
os gangsRQDUFRWUiÀFRHXPVHQWLPHQWRJHUDOGHLQVHJXUDQoDSRU
parte das pessoas comuns. Na Colômbia, no México e em El Sal-
vador, onde a criminalidade organizada ameaça o próprio Estado
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 23

e as suas instituições básicas, a legitimidade da democracia foi se-


ULDPHQWHFRPSURPHWLGDSHODLQFDSDFLGDGHGHOLGDUGHIRUPDHÀFD]
com estes problemas.
A Índia, para pegar noutro exemplo, tem sido uma democra-
cia assinalavelmente bem-sucedida desde a sua independência, em
1947 – um feito notável quando se tem em conta a sua pobreza,
diversidades étnica e religiosa, bem como a sua enorme dimen-
são. (A razão pela qual uma perspetiva histórica mais longa do
desenvolvimento político indiano deveria diminuir a nossa sur-
presa será o tema dos Capítulos 10 a 12). Contudo, a democracia
indiana, um pouco como o fabrico de enchidos, parece menos
VHGXWRUD j PHGLGD TXH QRV YDPRV DSUR[LPDQGR GR SURFHVVR
Quase um terço dos legisladores indianos, por exemplo, enfrenta
uma forma ou outra de acusação criminal, alguns dos quais por
crimes sérios, como assassinato ou violação. Os políticos india-
nos praticam abertamente uma forma de clientelismo político na
qual se trocam votos por favores políticos. O fracionamento da
democracia indiana torna muito difícil ao governo tomar decisões
relativas a assuntos como o investimento em grandes projetos de
infraestruturas. E muitas cidades indianas, onde brilham centros
de alta tecnologia de excelência, estão situadas perto de focos de
pobreza de estilo africano.
O aparente caos e a corrupção da política democrática na Índia
têm sido frequentemente comparados com a tomada de decisões
UiSLGDHHÀFD]GD&KLQD2VJRYHUQDQWHVFKLQHVHVQmRVmRFRQVWUDQ-
gidos nem pelo primado do Direito nem pela prestação de contas
democrática; se pretendem construir uma enorme barragem, demo-
lir centenas de bairros para construir autoestradas ou aeroportos,
elaborar um pacote urgente de apoios económicos, podem fazê-lo
muito mais depressa do que a Índia democrática.
8PDTXDUWDIRQWHGHDQVLHGDGHSROtWLFDGL]UHVSHLWRjHFRQRPLD
O capitalismo global moderno demonstrou ser produtivo e capaz
de criar riqueza para lá dos sonhos de qualquer indivíduo que tenha
YLYLGRDQWHVGH1RSHUtRGRDVHJXLUjVFULVHVGRSHWUyOHRGRV
24 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

anos 1970, a dimensão da economia mundial praticamente quadru-


plicou7, e a Ásia, com base na sua abertura ao comércio e ao in-
vestimento, viu grande parte da sua população juntar-se ao mundo
desenvolvido. Mas o capitalismo global não conseguiu encontrar
uma forma de evitar altos níveis de volatilidade, particularmente
QRVHWRUÀQDQFHLUR2FUHVFLPHQWRHFRQyPLFRJOREDOWHPVLGRDV-
VRODGRSRUFULVHVÀQDQFHLUDVSHULyGLFDVTXHDWDFDUDPD(XURSDQR
início da década de 1990, a Ásia em 1997-1998, a Rússia e o Bra-
sil em 1998-1999 e a Argentina em 2001. Esta instabilidade culmi-
nou, porventura com alguma justiça poética, na grande crise que
atingiu os Estados Unidos da América, a casa do capitalismo glo-
bal, em 2008-2009. Os mercados liberalizados são necessários para
promover crescimento a longo prazo, mas não são autorregulados,
nomeadamente no que diz respeito aos bancos e a outras institui-
o}HVÀQDQFHLUDVGHJUDQGHGLPHQVmR$LQVWDELOLGDGHGRVLVWHPDp
XPUHÁH[RHP~OWLPDDQiOLVHGHXPIUDFDVVRSROtWLFRRXVHMDGD
LQFDSDFLGDGHGHSURSRUFLRQDUXPDÀVFDOL]DomRUHJXODGRUDDQtYHO
tanto nacional como internacional8.
O efeito cumulativo desta crise económica não foi necessaria-
PHQWHDSHUGDGHFRQÀDQoDQDVHFRQRPLDVGHPHUFDGRHQDJOR-
balização, enquanto motores do crescimento económico. A China,
a Índia, o Brasil e muitos dos outros países designados mercados
emergentes continuam a ter bons comportamentos económicos
baseados na sua participação no capitalismo global. Mas é claro
que o trabalho político de encontrar os mecanismos de regulação
corretos para conter a volatilidade do capitalismo está ainda por
concretizar.

7
Tomando como referência o valor do dólar em 2008, a economia mundial passou
de 15,93 biliões de dólares americanos para 61,1 biliões de dólares americanos entre 1970
e 2008. Fontes: Indicadores de Desenvolvimento e de Desenvolvimento Financeiro Glo-
bal do Banco Mundial; Bureau of Labor Statistics dos EUA.
8
Francis Fukuyama e Seth Colby, «What Were They Thinking? The Role of Econo-
mists in the Financial Debacle», American Interests 5, n.º 1 (2009): 18-25.
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 25

Declínio político

O último ponto sugere uma área de preocupação com o futuro


da democracia que é tão urgente como habitualmente desprezada.
As instituições políticas desenvolvem-se ao longo do tempo, geral-
PHQWHGHIRUPDOHQWDHGRORURVDjPHGLGDTXHDVVRFLHGDGHVKX-
manas procuram organizar-se de maneira a dominarem o seu meio
ambiente. Mas o declínio político ocorre quando os sistemas políti-
FRVQmRVHFRQVHJXHPDGDSWDUjWUDQVIRUPDomRGDVFLUFXQVWkQFLDV
Existe qualquer coisa como uma lei da conservação das instituições.
Os seres humanos são por natureza animais que obedecem a regras;
QDVFHPSDUDVHDGDSWDUHPjVQRUPDVVRFLDLVTXHREVHUYDPjVXD
volta e investem-nas frequentemente de um sentido e valor trans-
cendental. Quando o seu meio ambiente se altera e surgem novos
GHVDÀRV RFRUUH IUHTXHQWHPHQWHXPD GLVMXQomRHQWUHDV LQVWLWXL-
ções existentes e as necessidades presentes. Essas instituições são
suportadas por legiões de interesses entrincheirados que se opõem
a qualquer mudança fundamental.
As instituições políticas norte-americanas poderão estar a enca-
PLQKDUVHSDUDXPWHVWHGHJUDQGHVGLPHQV}HVjVXDFDSDFLGDGHGH
adaptação. O sistema norte-americano foi construído com base na
ÀUPHFRQYLFomRGHTXHDFRQFHQWUDomRGRSRGHUSROtWLFRUHSUHVHQ-
tava um perigo iminente para as vidas e liberdades dos cidadãos. Por
esta razão, a Constituição dos Estados Unidos foi concebida com
um vasto conjunto de pesos e contrapesos através dos quais as di-
ferentes partes do governo podiam impedir outras partes de exer-
cer um poder tirânico. Este sistema serviu bem o país, mas apenas
porque em certos momentos críticos da história, quando se tornou
necessário um governo forte, foi possível construir um consenso
para lhe dar forma através do exercício da liderança política.
Não existe infelizmente qualquer garantia institucional de que o
sistema, tal como foi concebido, conseguirá limitar sempre o poder
tirânico permitindo, simultaneamente, o exercício da autoridade do
Estado quando a necessidade surgir. Isso depende em primeiro lugar
26 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

da existência de um consenso social sobre os objetivos políticos, algo


que tem faltado na vida política norte-americana nos anos recentes.
2V(VWDGRV8QLGRVHQIUHQWDPXPDVpULHGHJUDQGHVGHVDÀRVDPDLRU
parte dos quais relacionados com a correção a longo prazo da sua
VLWXDomRÀVFDO$RORQJRGDJHUDomRSDVVDGDRVQRUWHDPHULFDQRV
gastaram dinheiro consigo próprios sem o pagar através da cobrança
ÀVFDOXPDVLWXDomRH[DFHUEDGDSRUDQRVGHDFHVVRGHPDVLDGRIiFLO
ao crédito e de gastos excessivos a nível particular e governamental.
2FRODSVRÀVFDODORQJRSUD]RHRHQGLYLGDPHQWRH[WHUQRDPHDoDP
DSUySULDEDVHGRSRGHUQRUWHDPHULFDQRjHVFDODPXQGLDOjPHGLGD
que outros países, como a China, ganham dimensão relativa9.
1HQKXPGHVWHVGHVDÀRVpWmRJUDQGHTXHQmRSRVVDVHUUHVROYLGR
através de uma ação demorada, ainda que dolorosa. Mas o sistema
político norte-americano, que deveria facilitar a formação de consen-
sos, está pelo contrário a contribuir para o problema. O Congresso
WRUQRXVHDOWDPHQWHSRODUL]DGRSURYRFDQGRHQRUPHVGLÀFXOGDGHV
jDSURYDomRGHOHLV3HODSULPHLUDYH]QDKLVWyULDPRGHUQDRGHPR-
FUDWDPDLVFRQVHUYDGRUGR&RQJUHVVRHVWijHVTXHUGDGRUHSXEOLFDQR
PDLVjHVTXHUGD2Q~PHURGHOXJDUHVQR&RQJUHVVRFRQTXLVWDGR
por uma margem de 10%, ou menos, isto é, que podem ser ganhos
por qualquer um dos partidos, caiu continuamente de quase 200 no
ÀQDOGRVpFXORXIX para apenas pouco mais de 50 no início do sécu-
lo XXI. Ambos os partidos políticos se tornaram mais homogéneos
do ponto de vista ideológico, tendo-se deteriorado o debate delibe-
rativo entre eles10. Este tipo de divisões tem antecedentes históricos,
mas estes foram superados no passado através de uma forte lideran-
oDSUHVLGHQFLDOTXHQmRSDUHFHHVWDUjYLVWD
O futuro da política norte-americana reside, não só na política,
PDVWDPEpPQDVRFLHGDGH$SRODUL]DomRGR&RQJUHVVRUHÁHWH

9
Fareed Zakaria, The Post-American World (Nova Iorque: Norton, 2008); para uma crí-
tica, ver Aaron L. Friedberg, «Same Old Songs: What the Declinists (and Triumphalists)
Miss», American Interests 5, n.º 2 (2009).
10
William A. Galston, Can a Polarized American Party System Be «Healthy?» (Washington,
D.C.: Brookings Institution Issues in Governance Studies n.º 34, abril de 2010).
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 27

uma tendência mais ampla para a crescente homogeneização dos


EDLUURVHUHJL}HVjPHGLGDTXHRVQRUWHDPHULFDQRVVHGLVWULEXHP
ideologicamente pelos lugares que escolhem para viver11. A tendên-
cia para a associação exclusiva a pessoas que pensam de maneira
VHPHOKDQWHYrVHIRUWHPHQWHDPSOLÀFDGDSHORVPHLRVGHFRPXQLFD-
ção social, nos quais a proliferação de canais acaba por enfraquecer
a experiência partilhada da cidadania12.
A capacidade do sistema político norte-americano em lidar com
RVHXGHVDÀRÀVFDOpDIHWDGDQmRVySHODSRODUL]DomRHQWUHHVTXHUGD
e direita no Congresso, mas também pelo crescimento e poder de
grupos de interesses instalados. Sindicatos, agronegócios, compa-
nhias farmacêuticas, bancos e um vasto conjunto de outros lobbies
RUJDQL]DGRVH[HUFHPIUHTXHQWHPHQWHXPYHWRHIHWLYRjOHJLVODomR
que pode ferir os seus livros de contabilidade. É perfeitamente le-
gítimo e na verdade expectável que os cidadãos defendam os seus
interesses numa democracia. Mas, a um certo ponto, essa defesa dá
o salto para a exigência de privilégios, ou uma situação de impasse
HPTXHQHQKXPLQWHUHVVHSRGHVHUGHVDÀDGR,VWRH[SOLFDRVQt-
YHLVFUHVFHQWHVGHUDLYDSRSXOLVWDWDQWRjHVTXHUGDFRPRjGLUHLWD
TXHFRQWULEXHPSDUDDSRODUL]DomRHUHÁHWHPXPDUHDOLGDGHVRFLDO
em confronto com os próprios princípios de legitimação do país.
A queixa dos norte-americanos de que os Estados Unidos são
cada vez mais dominados pelas elites e por poderosos grupos de in-
WHUHVVHUHÁHWHDUHDOLGDGHGDFUHVFHQWHGHVLJXDOGDGHGDGLVWULEXLomR
de riqueza e rendimentos no período situado entre a década de 1970

11
Ver os capítulos escritos por Thomas E. Mann e Gary Jacobson em Pietro S. Ni-
vola e David W. Brady, eds., Red and Blue Nation?, Vol. 1 (Washington, D.C.: Brookings
Institution Press, 2006); ver também James A. Thomson, A House divided: Polarization and
Its Effect on RAND (Santa Monica, CA: RAND Corporation, 2010). Existe algum debate
sobre o grau de polarização do público norte-americano; relativamente a várias questões
culturais, como o aborto e as armas, existe um vasto grupo centrista sem convicções fortes,
com minorias muito mais comprometidas em ambos os extremos. Ver Morris P. Fiorina
et al., eds., Culture War? The Myth of a Polarized America, 3.ª ed. (Boston, Longman, 2010).
12
2IHQyPHQRGDFUHVFHQWHFRPSDUWLPHQWDomRGRGLVFXUVRSROtWLFRGHYLGRjH[SDQ-
são da comunicação por banda larga foi previsto há uns anos por Ithiel de Sola Pool, Te-
chnologies of Freedom (Cambridge, MA: Belknap Press, 1983).
28 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

e os primeiros anos do século XXI13. A desigualdade, por si própria,


nunca foi um grande problema na cultura política norte-america-
na, que enfatiza sobretudo a igualdade de oportunidades em vez da
igualdade de rendimentos. Mas o sistema permanece legítimo apenas
enquanto as pessoas acreditarem que, trabalhando no duro e dando
RVHXPHOKRUWDQWRHODVFRPRRVVHXVÀOKRVWrPXPDERDKLSyWHVH
de evoluir e que os ricos chegaram lá jogando conforme as regras.
O facto é, porém, que as taxas de mobilidade social intergeracio-
nal nos Estados Unidos são muito mais baixas do que a maioria dos
QRUWHDPHULFDQRVDFUHGLWDHPHVPRLQIHULRUHVjVGHPXLWRVRXWURV
SDtVHVGHVHQYROYLGRVJHUDOPHQWHFRQVLGHUDGRVUtJLGRVHHVWUDWLÀFD-
dos14. Com o passar do tempo, as elites revelam-se capazes de de-
fender a sua posição jogando com o sistema político, transferindo o
seu dinheiro para offshoresGHPDQHLUDDHYLWDUDWD[DomRÀVFDOHWUDQV-
PLWLQGRHVVDVYDQWDJHQVDRVVHXVÀOKRVDWUDYpVGRDFHVVRSULYLOHJLD-
do a instituições de elite. Muitas desses factos tornaram-se óbvios
GXUDQWHDFULVHÀQDQFHLUDGHTXDQGRGRORURVDPHQWHVH
percebeu que existia uma relação muito pequena entre o sistema de
FRPSHQVDo}HVQRVLVWHPDGHVHUYLoRVÀQDQFHLURVHDVXDFRQWULEXL-
ção real para a economia. O setor havia utilizado a sua considerável
IRUoDSROtWLFDSDUDGHVPDQWHODUDUHJXODomRHDÀVFDOL]DomRGXUDQWH
as décadas anteriores, continuando a evitar a regulação na sequên-
cia da crise. O economista Simon Johnson sugeriu que o poder da
ROLJDUTXLDÀQDQFHLUDQRV(VWDGRV8QLGRVQmRHUDPXLWRGLIHUHQWH
do que existe em países emergentes como a Rússia ou a Indonésia15.
Não existe qualquer mecanismo automático através do qual os
sistemas políticos se adaptem a circunstâncias em transformação.

13
Ver, por exemplo, Isabel V. Sawhill e Ron Haskins, Getting Ahead or Loosing Ground:
Economic Mobility in America (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2008).
14
Organização para a Cooperação Económica e o Desenvolvimento, «A Family Af-
fair: Intergenerational Social Mobility across OECD Countries» in Going for Growth (Paris:
OCDE, 2010); Emily Beller e Michel Hout, «Intergeneration Social Mobility: The United
States in Comparative Perspective», Future of Children 16, n.º 2 (2006): 19-36; Chul-In Lee
e Gary Solon, «Trends in Intergenerational Income Mobility», Review of Economics and Sta-
tistics 91, n.º 4 (2009): 766-72.
15
Simon Johnson, «The Quiet Coup», Atlantic, maio de 2009.
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 29

A história das incapacidades de adaptação, e portanto o fenómeno


do declínio político, é contada nas últimas páginas deste volume.
Não houve nenhuma razão incontornável para que o sultanato ma-
meluco do Egito não tivesse adotado armas de fogo mais cedo, de
PDQHLUDDHQIUHQWDUDVFUHVFHQWHVDPHDoDVH[WHUQDVWDOFRPRÀ]H-
ram os otomanos que acabaram por derrotá-los; tal como não era
inevitável que os últimos imperadores da dinastia Ming, na China,
se revelassem incapazes de taxar adequadamente os seus cidadãos
de maneira a suportar um exército capaz de defender o país dos
manchus. Em ambos os casos, o problema residiu na enorme inér-
cia institucional existente por trás do statu quo.
A partir do momento em que uma sociedade se revela incapaz
GHHQIUHQWDUXPDFULVHÀVFDOGHJUDQGHVSURSRUo}HVDWUDYpVGHXPD
reforma institucional séria, como foi o caso da monarquia france-
sa após o fracasso do Grand PartiHPFHGHjWHQWDomRGHUH-
correr a um conjunto de arranjos de curto prazo que acabam por
FRUURHUHÀQDOPHQWHFRUURPSHUDVVXDVSUySULDVLQVWLWXLo}HV(VWHV
arranjos incluíram a cedência a vários setores privilegiados e grupos
de interesses que representavam invariavelmente as pessoas com
riqueza e dinheiro na sociedade francesa. A incapacidade de equili-
EUDURRUoDPHQWRGRSDtVFRQGX]LXjEDQFDUURWDHjSHUGDGHOHJL-
WLPLGDGHGRSUySULR(VWDGRXPUXPRTXHFXOPLQDULDÀQDOPHQWH
na Revolução Francesa.
Os Estados Unidos não se encontram sequer remotamente mer-
JXOKDGRVQXPDFULVHÀVFDOHPRUDOWmRVpULDFRPRD)UDQoDGR$Q-
tigo Regime. O perigo, contudo, é que a situação continue a piorar
ao longo do tempo, na ausência de alguma força poderosa capaz
de tirar o sistema do seu atual equilíbrio institucional disfuncional.

Fantasias de um mundo sem Estado

8PÀRFRPXPOLJDPXLWDVGDVQRVVDVDQVLHGDGHVFRQWHPSR-
UkQHDV DFHUFD GR IXWXUR GHVGH R GHVOL]H DXWRULWiULR GD 5~VVLD j
30 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

corrupção na Índia, aos Estados fracassados no mundo em de-


senvolvimento, aos grupos de interesse entrincheirados na política
norte-americana contemporânea. Diz fundamentalmente respeito
jGLÀFXOGDGHGHFULDUHPDQWHULQVWLWXLo}HVSROtWLFDVHÀFLHQWHVJR-
vernos que sejam simultaneamente poderosos, respeitem as regras
e prestem contas. Este pode parecer um argumento óbvio, com
o qual qualquer aluno da quarta classe concordaria, e, contudo,
olhando bem, trata-se de uma verdade que muitas pessoas inteli-
gentes não conseguem entender.
Comecemos pela questão do recuo da terceira vaga e da re-
cessão democrática que teve lugar em todo o mundo no início
do século XXI. A razão para o nosso desapontamento com a inca-
pacidade da democracia em espalhar-se não está atualmente, na
minha opinião, ao nível das ideias. As ideias são extremamente
importantes para a ordem política; é a perceção da legitimidade
do governo que mantém as populações unidas e as leva a aceitar
a sua autoridade. A queda do Muro de Berlim assinalou o colapso
de um dos grandes rivais da democracia, o comunismo, e o rápi-
do alastramento da democracia liberal como a forma de governo
mais amplamente aceite.
Isto permanece verdade no presente, no qual a democracia, nas
palavras de Amartya Sem, continua a ser a condição política «por
defeito»: «Embora a democracia não seja universalmente pratica-
da, nem universalmente aceite, no clima geral da opinião pública
mundial a governação democrática conseguiu o estatuto de ser ge-
ralmente considerada a melhor16.» Muito poucas pessoas no mun-
do admitem abertamente admirar o petronacionalismo de Vladimir
Putin ou o «socialismo para o século XXI» de Hugo Chávez, ou a
República Islâmica de Mahmoud Ahmadinejad. Nenhuma institui-
ção internacional importante aceita outra coisa que não a democra-
cia como a base de uma governação justa. O rápido crescimento
da China levanta algum interesse e inveja, mas o seu modelo exato

16
Amartya K. Sen, «Democracy as a Universal Value», Journal of Democracy 10 (1999): 3-17.
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 31

de capitalismo autoritário não é facilmente seguido, muito menos


emulado, por outros países em desenvolvimento. Tal é o prestígio
das democracias liberais modernas, que os atuais aspirantes a auto-
ritários se veem forçados a encenar eleições e a manipular os meios
de comunicação social nos bastidores para se legitimarem. Não só
o totalitarismo desapareceu praticamente do mundo, como os au-
WRULWiULRVSUHVWDPWULEXWRjGHPRFUDFLDTXDQGRID]HPGHFRQWDTXH
são democratas.
O fracasso da democracia está, por isso, menos no conceito do
que na sua execução: a maioria das pessoas pelo mundo fora prefe-
riria fortemente viver numa sociedade na qual o governo prestasse
contas e IRVVHHÀFD]HSURYLGHQFLDVVHRWLSRGHVHUYLoRVVROLFLWDGRV
pelos cidadãos de uma forma célere e económica. Mas poucos go-
vernos são efetivamente capazes de fazer as duas coisas, porque as
instituições são fracas, corruptas, incapazes ou, nalguns casos, com-
pletamente ausentes. O entusiasmo dos contestatários e defensores
GDGHPRFUDFLDSHORPXQGRIRUDGDÉIULFDGR6XODWpj&RUHLDGD
5RPpQLDj8FUkQLDSRGHVHUVXÀFLHQWHSDUDREWHU©PXGDQoDVGH
regime» do autoritarismo para um governo democrático, mas este
não obterá sucesso sem um longo, custoso, laborioso e difícil pro-
cesso de construção de instituições.
([LVWHDOLiVXPDFXULRVDFHJXHLUDUHODWLYDPHQWHjLPSRUWkQFLD
das instituições políticas que tem afetado muitas pessoas ao longo
dos anos, pessoas que sonham com um mundo no qual iremos de
alguma forma transcender a política. Esta fantasia em particular
QmRpXPWHUUHQRHVSHFtÀFRGDHVTXHUGDRXGDGLUHLWDDPEDVWrP
a sua versão. O pai do comunismo, Karl Marx, elaborou a famo-
sa previsão da «extinção do Estado» após a tomada do poder pela
revolução proletária e da abolição da propriedade privada. Revolu-
cionários de esquerda desde os anarquistas do século XIX em diante
FRQVLGHUDUDPVXÀFLHQWHGHVWUXLUDVYHOKDVHVWUXWXUDVGHSRGHUVHP
GHGLFDUXPDUHÁH[mRVpULDDRTXHGHYHUiVXEVWLWXtODV(VWDWUDGLomR
continua até ao presente, com a sugestão feita por autores antiglo-
balização como Michael Hardt e Antonio Negri, de que a injustiça
32 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

económica poderia ser abolida enfraquecendo a soberania dos Es-


tados e substituindo-a por uma «multitude» em rede17.
2VUHJLPHVFRPXQLVWDVGRPXQGRUHDOÀ]HUDPpFODURH[DWD-
mente o contrário do que Marx previu, construindo estruturas de
Estado enormes e tirânicas, para obrigar as pessoas a agir coletiva-
mente quando elas não o faziam espontaneamente. Isto levou, por
sua vez, toda uma geração de ativistas democráticos na Europa de
Leste a perspetivar a sua própria forma de ausência de Estado, na
qual uma sociedade civil mobilizada ocuparia o lugar dos partidos
políticos tradicionais e dos governos centralizados18. Estes ativistas
ÀFDUDPVXEVHTXHQWHPHQWHGHVLOXGLGRVDRFRQVWDWDUHPTXHDVVXDV
sociedades não podiam ser governadas sem instituições e quando
VHOKHVGHSDUDUDPRVFRPSOLFDGRVFRPSURPLVVRVQHFHVViULRVjVXD
FRQVWUXomR1DVGpFDGDVSRVWHULRUHVjTXHGDGRFRPXQLVPRD(X-
ropa de Leste tornou-se democrática, mas não está necessariamente
feliz com as suas políticas ou com os seus políticos19.
$IDQWDVLDGDDXVrQFLDGH(VWDGRPDLVSUHYDOHFHQWHjGLUHLWDpD
de que a economia de mercado conseguirá de alguma forma tornar
o governo desnecessário e irrelevante. Durante o boom das empresas
dot-com nos anos 1990, vários entusiastas sustentaram, na linha do
antigo administrador executivo do CityBank, Walter Wriston, que
o mundo estava a experimentar um «crepúsculo da soberania»20, no
qual os poderes políticos tradicionalmente exercidos pelos Estados
estavam a ser questionados por novas tecnologias de informação,
que tornavam impossível policiar as fronteiras e difícil aplicar as

17
Michael Hardt e Antonio Negri, Multitude, War and Democracy in the Age of Empire
(Nova Iorque: Penguin, 2004). Uma parte do amadurecimento ocorrido entre uma im-
SRUWDQWHIDWLDGDHVTXHUGDQDVHJXQGDPHWDGHGRVpFXOR[[FRUUHVSRQGHXjDFHLWDomRGD
observação do marxista italiano António Gramsci de que a concretização de um progra-
ma progressista exigia uma «longa marcha pelas instituições», um slogan adotado pelos
Verdes alemães quando pretenderam participar no processo político democrático alemão.
18
Ver Bronislaw Geremek, «Civil Societt, Then and Now» in Larry Diamond e Marc
F. Plattner, eds., The Global Resurgence of Democracy, 2.ª Edição (Baltimore: John Hopkins
University Press, 1996).
19
Ver Charles Gati, «Faded Romance», American Interest 4, n.º 2 (2008): 35-43.
20
Walter B. Wriston, The Twilight of Sovereignty (Nova Iorque: Scribner, 1992).
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 33

regras. A ascensão da internet levou ativistas como John Perry Bar-


low, da Eletronic Frontier Foundation, a proclamar uma «Declaração
da Independência do Ciberespaço», na qual era dito aos governos
dos países industrializados: «Vocês não são bem-vindos entre nós.
Vocês não têm qualquer soberania onde nós nos juntamos21.» Uma
economia capitalista global substituiria a soberania dos governos
democráticos pela soberania do mercado: se um legislador votasse
favoravelmente uma regulação excessiva ou limitasse o comércio,
seria punido pelos mercados bolsistas e forçado a adotar políticas
consideradas racionais pelo mercado de capitais global22. As fantasias
relativas a um mundo sem Estado sempre encontraram audiências
favoráveis nos Estados Unidos, pois a hostilidade ao Estado é um
dos pilares fundamentais da cultura política norte-americana. Liber-
tários de várias tendências têm sugerido, não só o recuo de um Esta-
do-providência que cresceu demasiado, como também a abolição de
instituições mais básicas como a Reserva Federal (FED) e a Agên-
cia de Proteção do Consumidor (Food and Drug Administration)23.
É perfeitamente legítimo argumentar que os governos moder-
nos cresceram excessivamente e que limitam por isso o crescimento
económico e a liberdade individual. As pessoas têm razão quando
se queixam da burocracia incompetente, dos políticos corruptos e
de uma política desprovida de princípios. Mas no mundo desen-
volvido tendemos a considerar a existência do governo como algo
tão garantido, que por vezes nos esquecemos de quão importante
ele é, de quão difícil foi criá-lo e do que seria o mundo sem certas
instituições políticas básicas.
Não se trata apenas de considerarmos que a democracia está ga-
rantida; também tomamos como garantido o facto de termos um

21
Este texto pode ser lido, entre outros sítios, em http://w2.eff.org/Censorship/
Internet_censorship_bills/barlow_0296.declaration
22
Ver o capítulo «The Golden Sraitjacket» em Thomas L. Friedman, The Lexus and the
Olive Tree (Nova Iorque: Farrar, Straus e Giroux, 1999), pp. 99-108.
23
Ver, por exemplo, Ron Paul, End the Fed (Nova Iorque: Grand Central Publishing,
2009); Charles Murray, What it Means to Be a Libertarian: A Personal Interpretation (Nova
Iorque: Broadway Books, 1997).
34 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

Estado capaz de desempenhar certas funções básicas. O Condado


de Fairfax, na Virgínia, um subúrbio de Washington, D.C., onde
vivi durante muitos anos, é um dos mais ricos dos Estados Unidos.
Todos os invernos surgem buracos nas estradas do condado, devi-
GRDRFRQJHODPHQWRHGHVFRQJHODPHQWRVD]RQDLVDVHJXLUjVWHP-
SHVWDGHVGHLQYHUQR(FRQWXGRDWpDRÀQDOGDSULPDYHUDWRGRV
aqueles buracos são magicamente cobertos de maneira a que nin-
guém tenha de se preocupar com a possibilidade de partir o eixo do
carro num deles. Se não forem tapados, os residentes do Condado
GH)DLUID[ÀFDP]DQJDGRVHTXHL[DPVHGDLQFRPSHWrQFLDGRJRYHU-
no local; ninguém (a não ser alguns especialistas em administração
pública) para um momento para pensar no sistema social comple-
xo e invisível que o torna possível ou porque é que se demora mais
tempo a tapar os buracos do Distrito de Columbia, logo ao lado,
ou porque é que os buracos nunca são tapados em vários países em
desenvolvimento.
De facto, as sociedades sem governo, ou com governos míni-
mos, perspetivadas pelos sonhadores da esquerda e da direita não
são fantasias; elas existem efetivamente nos países em desenvolvi-
mento do mundo atual. Muitas partes da África Subsariana são um
paraíso para os libertários. A região no seu conjunto é uma utopia
de impostos baixos, com governos frequentemente incapazes de
cobrar mais do que cerca de 10% do PIB em impostos, compara-
dos com a percentagem superior a 30% nos Estados Unidos e a
50% em certas partes da Europa. Em vez de incentivar o empreen-
GHGRULVPRHVWDEDL[DWD[DGHFREUDQoDÀVFDOLPSOLFDTXHVHUYLoRV
públicos básicos, como a saúde, a educação e a cobertura de bura-
FRVVHYHMDPSULYDGRVGHÀQDQFLDPHQWR$VLQIUDHVWUXWXUDVItVLFDV
em que assenta a economia moderna, como as estradas, os sistemas
judiciais ou a polícia, estão ausentes. Na Somália, que não tem um
JRYHUQRFHQWUDOIRUWHGHVGHRÀQDOGRVDQRVRVLQGLYtGXRV
comuns podem possuir não apenas armas de assalto como também
lança-granadas, mísseis antiaéreos e tanques. As pessoas são livres
de proteger as suas famílias e, de facto, veem-se forçadas a fazê-lo.
A NECESSIDADE DA POLÍTICA 35

$1LJpULDWHPXPDLQG~VWULDFLQHPDWRJUiÀFDTXHSURGX]WDQWRVÀO-
PHVFRPRDIDPRVD%ROO\ZRRGLQGLDQDPDVRVÀOPHVWrPGHREWHU
o seu retorno rapidamente, porque o governo é incapaz de garantir
os direitos de propriedade intelectual e evitar que os produtos se-
jam copiados ilegalmente.
Tornou-se bastante evidente até que ponto as pessoas consi-
deram as instituições políticas como algo de garantido, nos países
desenvolvidos, quando os Estados Unidos planearam, ou foram
LQFDSD]HVGHSODQHDURSHUtRGRSRVWHULRUjLQYDVmRGR,UDTXHHP
2003. O governo dos Estados Unidos pareceu acreditar que a de-
mocracia e a economia de mercado eram as condições naturais a
que o país regressaria, automaticamente, a partir do momento em
que a ditadura de Saddam Hussein fosse derrubada, e aparentemen-
WHÀFRXJHQXLQDPHQWHVXUSUHHQGLGRTXDQGRR(VWDGRLUDTXLDQR
entrou em colapso numa orgia de pilhagem e guerra civil. Os ob-
jetivos dos Estados Unidos foram igualmente travados no Afega-
nistão, onde dez anos de esforço e o investimento de centenas de
milhões de dólares se revelaram incapazes de construir um Estado
afegão legítimo e estável24.
As instituições políticas são necessárias e não devem ser tidas
como garantidas. Uma economia de mercado e altos níveis de ri-
queza não aparecem magicamente quando se «tira o governo do
caminho», antes assentam numa fundação institucional oculta de
direitos de propriedade, primado do Direito e ordem política bási-
ca. Um mercado livre, uma sociedade civil vigorosa, a espontânea
«sabedoria das multidões», tudo isso são componentes importan-
tes de uma democracia que funciona, mas nenhuma delas pode, em
última instância, substituir as funções de um governo forte e hie-
rarquizado. Tem havido um amplo reconhecimento entre econo-
mistas, nos anos recentes, de que «as instituições são importantes»:
os países pobres são pobres, não porque lhes falte recursos, mas

24
Ver Francis Fukuyama, ed., State-Building: Governance and World Order in the 21st Cen-
tury (Ithaca: Cornell University Press, 2004).
36 AS ORIGENS DA ORDEM POLÍTICA

SRUTXHOKHVIDOWDPLQVWLWXLo}HVSROtWLFDVHÀFD]HV3UHFLVDPRVSRU
isso de compreender de onde vieram essas instituições.

Alcançar a Dinamarca

O problema da criação de instituições políticas modernas tem


sido descrito como o problema de «alcançar a Dinamarca», segundo
o título de um ensaio escrito por dois cientistas sociais do Banco
Mundial, Lant Pritchett e Michael Woolcock25. Para as pessoas nos
países desenvolvidos, a «Dinamarca» é um lugar mítico conhecido
por ter boas instituições políticas e económicas: é estável, demo-
FUiWLFRSDFtÀFRSUyVSHURLQFOXVLYRHWHPQtYHLVGHFRUUXSomRSR-
lítica extremamente baixos. Qualquer um gostaria de compreender
como se pode transformar a Somália, o Haiti, a Nigéria, o Iraque
ou o Afeganistão na «Dinamarca» e a comunidade internacional de
ajuda ao desenvolvimento tem uma longa lista do que se presume
VHUHPTXDOLGDGHVjGLQDPDUTXHVDTXHRV(VWDGRVIDOKDGRVSRGHUmR
conseguir com o seu auxílio.
Este objetivo tem vários tipos de problemas. Não parece muito
plausível que países extremamente pobres e caóticos possam esperar
materializar instituições complexas num prazo curto, tendo em conta
o tempo que essas instituições demoraram a evoluir. Para além disso,
DVLQVWLWXLo}HVUHÁHWHPRVYDORUHVFXOWXUDLVGDVVRFLHGDGHVQDVTXDLV
são estabelecidas, não sendo claro que a ordem política democráti-
ca dinamarquesa possa criar raízes em contextos culturais muito di-
ferentes. A maioria das pessoas que vivem em países desenvolvidos
ricos e estáveis não faz ideia de como é que a própria Dinamarca se
tornou a Dinamarca – o que também é verdade no que diz respeito
a muitos dinamarqueses. A luta para criar instituições políticas

25
«Getting to Denmark» foi na verdade o título original do trabalho de Lant Pritchet
e Michael Woolcock «Solutions When the Solution Is the Problem: Arraying the Dissar-
ray in Development» (Washington, D.C.: Center for Global Development Working Pa-
per 10, 2002).

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