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Mouffe Agonístico PDF
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2006
Chantal Mouffe
RESUMO
Este artigo propõe uma redescrição dos princípios fundamentais da democracia de modo a abrir espaço
para o conflito, a paixão e o político. Em um primeiro momento, criticam-se as versões mais propagadas da
democracia deliberativa, em sua neutralização e redução do pluralismo político e abuso dos propósitos
democráticos de legitimidade e racionalidade. Em seguida, analisam-se os insights de Carl Schmitt em sua
compreensão do conceito do político. Finalmente, o conceito do político é apropriado de modo crítico no
âmbito de uma proposta de modelo agonístico de democracia, em que se deve renunciar à naturalização das
fronteiras da democracia e dos embates entre seus atores – os que eram tidos como inimigos, no interior de
uma sociedade democrática, devem assumir o papel de adversários que compartilham um conjunto de
valores e princípios ético-políticos, cuja interpretação está em disputa.
PALAVRAS-CHAVE: democracia; pluralismo; neutralidade; conflito; conceito de político.
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tos constitucionais essenciais” fornece o quadro tido é racional e não um mero acordo. Essa é a
para o exercício da “razão pública livre”. No que razão pela qual a ênfase é colocada na natureza do
concerne a Habermas, tem-se a defesa do que procedimento deliberativo, bem como nos tipos
chama de abordagem estritamente procedimental, de razão que são tidos como aceitáveis para parti-
em que nenhum limite é estabelecido para a am- cipantes competentes. Benhabib expõe-no da ma-
plitude e o conteúdo da deliberação. São os cons- neira seguinte: “De acordo com o modelo
trangimentos procedimentais da situação ideal de deliberativo de democracia, é condição necessá-
fala que eliminarão as posições que não podem ria para a obtenção de legitimidade e racionalidade
ser aceitas pelos participantes do “discurso” mo- com relação ao processo de tomada de decisão
ral. Como relembrado por Benhabib, as caracte- coletiva em uma unidade política que as institui-
rísticas de tal discurso são as seguintes: “(1) a ções dessa unidade política arranjem-se, de tal
participação em tal deliberação é governada pelas modo que aquilo que é considerado no interesse
normas de igualdade e simetria; todos têm as mes- comum de todos resulte de um processo de deli-
mas chances de iniciar atos de fala, para questio- beração coletiva conduzido racional e eqüitativa-
nar, interrogar e abrir o debate; (2) todos têm o mente entre indivíduos livres e iguais”
direito de questionar os tópicos definidos da con- (BENHABIB, 1996, p. 69).
versação e (3) todos têm o direito de iniciar argu-
Para os habermasianos, o processo de delibe-
mentos reflexivos sobre as próprias regras do pro-
ração tem resultados razoáveis assegurados, na
cedimento discursivo e o modo pelo qual são apli-
medida em que se estabeleçam as condições do
cadas e implementadas. Não há regras que em
“discurso ideal”: quanto mais igual e imparcial,
princípio limitem a agenda da conversação ou a
mais aberto será o processo; quanto menos os
identidade dos participantes, desde que qualquer
participantes são coagidos e prontos para serem
pessoa ou grupo excluído possa demonstrar
guiados pela força do melhor argumento, mais os
justificadamente que são afetados de modo rele-
interesses verdadeiramente generalizáveis poderão
vante pela norma proposta em questão”
ser aceitos por todos os afetados de modo rele-
(BENHABIB, 1996, p. 70).
vante. Habermas e seus seguidores não negam que
Nos termos dessa perspectiva, a base de legi- haja obstáculos para a realização do discurso ide-
timidade das instituições democráticas deriva do al, mas os mesmos são entendidos como tendo
fato de que as instâncias que afirmam um poder natureza empírica. Tais obstáculos devem-se ao
coercitivo fazem-no sob a presunção de que suas fato de que é improvável, dadas as limitações prá-
decisões representam um ponto de vista imparci- ticas e empíricas da vida social, que possamos
al, que se situa na conjunção do interesse igual de deixar de lado completamente todos os nossos
todos. Cohen, depois de enunciar que a legitimi- interesses particulares a ponto de que nossos in-
dade democrática decorre de decisões coletivas teresses venham a coincidir com nosso “si-mes-
entre membros iguais, declara: “De acordo com mo” [self] racional universal. Esse é o motivo pelo
uma concepção deliberativa, uma decisão é cole- qual a situação ideal de fala é apresentada como
tiva apenas no caso em que emerge das disposi- “ideal regulativo”.
ções de escolhas coletivas exigíveis que estabele-
Além disso, Habermas agora aceita que haja
cem as condições para o raciocínio público livre
questões que devam permanecer alheias às práti-
entre iguais que são governados pelas decisões”
cas de debate público racional, como questões
(COHEN, 1998, p. 186).
existenciais que dizem respeito não a questões de
Nessa óptica, não seria suficiente que um pro- justiça, mas à vida digna – este seria em sua visão
cedimento democrático levasse em consideração o domínio da ética –, ou, ainda, conflitos entre
os interesses de todos e alcançasse um compro- grupos de interesse que só possam ser resolvidos
misso capaz de estabelecer um modus vivendi. O por via de compromisso. Contudo, ele considera
propósito é o de gerar “poder comunicativo” e que “essa diferenciação, dentro do campo de ques-
isso requer o estabelecimento de condições para tões que requerem decisões políticas, não nega a
o livre consentimento de todos os envolvidos – importância central de considerações morais, nem
daí a importância de encontrarem-se procedimen- a praticidade do debate racional como a forma
tos que garantiriam a imparcialidade moral. Ape- mesma de comunicação política” (HABERMAS,
nas aí se pode ter certeza de que o consenso ob- 1991, p. 448). Em sua perspectiva, questões po-
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líticas fundamentais pertencem à mesma catego- também mostra como esse autor fornece um bom
ria que questões morais e podem ser decididas exemplo da compatibilidade entre as duas aborda-
racionalmente. Ao contrário das questões éticas, gens. Particularmente, Cohen destaca o processo
elas não podem depender de seu contexto. A vali- deliberativo e afirma que a democracia requer que
dade de suas respostas vem de uma fonte inde- os participantes não apenas sejam livres e iguais,
pendente e tem um alcance universal. Ele perma- mas também “razoáveis” – a democracia entendi-
nece inflexível quanto à afirmação de que a troca da como um sistema de arranjos sociais e políti-
de argumentos e contra-argumentos, como cos, capaz de ligar o exercício do poder ao livre
verificada em sua abordagem, é o procedimento exercício da razão entre iguais. Por “razoáveis”
mais adequado para o alcance da formação racio- quer dizer que “eles [os participantes] procuram
nal da vontade de onde o interesse geral surgirá. defender e criticar instituições e programas nos
termos de considerações que outros, como livres
A democracia deliberativa, nas duas versões
e iguais, têm razão para aceitar, dado o fato do
consideradas aqui, em benefício da perspectiva
pluralismo razoável” (COHEN, 1998, p. 194).
agregativa, admite que nas condições modernas
uma pluralidade de valores e interesses precisa ser III. FUGINDO DO PLURALISMO
reconhecida e que o consenso sobre o que Rawls
Após ter delineado as idéias principais da de-
chama de visões “abrangentes” [comprehensive]
mocracia deliberativa, examinarei agora em maior
de natureza religiosa, moral e filosófica deve ser
detalhe alguns pontos do debate estabelecido en-
abandonado. Seus defensores, porém, não acei-
tre Rawls e Habermas, com o objetivo de trazer a
tam que isso leve à impossibilidade de um con-
lume os defeitos cruciais da perspectiva
senso racional sobre decisões políticas – enten-
deliberativa. Dois pontos, a partir daí, assumem
dendo-se por isso não um simples modus vivendi,
particular relevância.
mas um tipo moral de acordo, resultado do racio-
cínio moral livre entre iguais. Dado que os proce- O primeiro refere-se a uma das pretensões
dimentos de deliberação assegurem imparcialida- centrais do “liberalismo político” defendido por
de, igualdade, abertura e ausência de coerção, eles Rawls: um liberalismo político não-metafísico e
guiarão a deliberação em direção a interesses ge- livre de visões abrangentes. Estabelece-se uma
neralizados que possam ser subscritos por todos separação clara entre o reino privado – em que
os participantes, conseqüentemente produzindo uma pluralidade de diferentes e irreconciliáveis
resultados legítimos. A questão da legitimidade é visões abrangentes coexistem – e o reino público,
mais fortemente enfatizada pelos habermasianos, em que um consenso sobreposto pode ser esta-
mas não há diferenças fundamentais entre belecido sobre uma concepção compartilhada de
Habermas e Rawls nesse ponto. De fato, Rawls justiça.
define o princípio liberal de legitimidade de um
Habermas contesta que Rawls não pode ter
modo congruente com a visão de Habermas: “Nos-
êxito nessa estratégia de evitar questões filosófi-
so exercício do poder político é adequado e logo
cas controversas, porque seria impossível desen-
justificável apenas quando ocorre de acordo com
volver sua teoria no modo independente como ele
uma constituição por cujos elementos essenciais
anuncia. De fato, sua idéia de “razoável”, assim
espera-se razoavelmente o apoio de todos os ci-
como sua concepção de “pessoa”, necessariamente
dadãos, conforme princípios e ideais aceitáveis
o envolve em questões pertinentes aos conceitos
para eles como razoáveis e racionais” (RAWLS,
de racionalidade e verdade que pretende ultrapas-
1993, p. 217). Essa força normativa, devido ao
sar (HABERMAS, 1995, p. 126). Além disso,
princípio de justificação geral, sintoniza-se com a
Habermas declara que sua própria abordagem é
ética do discurso de Habermas e essa é a razão
superior à de Rawls, em função de seu caráter
por que se pode argüir a possibilidade de
estritamente procedimental, que lhe permite “dei-
reformulação do construtivismo político rawlsiano
xar mais questões abertas porque deposita mais
na língua da ética do discurso3. Na verdade, isso
confiança no processo de constituição da opinião
é o que o próprio Cohen, de certo modo, faz; isso
e da vontade racionais” (idem, p. 131). Por não
delimitar uma separação forte entre o público e o
privado, seria uma perspectiva mais bem talhada
3 Tal argumento é apresentado por Rainer Forst em sua para acomodar a amplitude de deliberação que
resenha de Liberalismo político (FORST, 1994, p. 169). decorre da democracia. A isso, Rawls replica que
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a perspectiva de Habermas não pode ser tão estri- pios fundamentais estão envolvidos – não é um
tamente procedimental como ele gostaria, pois terreno neutro que poderia ser isolado do
deve incluir uma dimensão substantiva, dado que pluralismo de valores ou em que soluções racio-
questões relativas ao resultado dos procedimen- nais e universais poderiam ser formuladas.
tos não podem ser excluídas das escolhas que le-
O segundo ponto é outra questão concernente
vam a eles (RAWLS, 1995, p. 170-174).
à relação entre autonomia privada e autonomia
Ambos estão corretos em suas críticas mútu- pública. Como vimos, ambos os autores procu-
as. Realmente, a concepção de Rawls não é tão ram conciliar as “liberdades dos antigos” com as
independente de visões abrangentes como ele acre- “liberdades dos modernos” e argumentam que os
dita e Habermas não pode ser tão procedimentalista dois tipos de autonomia necessariamente cami-
como pretende. Que ambos sejam incapazes de nham juntos. Contudo, Habermas considera que
separar o público do privado, ou o procedimental apenas sua abordagem consegue estabelecer a co-
do substancial, como declaram, é revelador. O que originalidade de direitos individuais e participação
isso revela é a impossibilidade de conseguir-se o democrática. Afirma que Rawls subordina a so-
que cada um deles, apesar de por diferentes ca- berania democrática aos direitos liberais porque
minhos, está realmente perseguindo, ou seja, cir- ele concebe a autonomia pública como um meio
cunscrever um domínio que não seria sujeito ao para autorizar a autonomia privada. Habermas, por
pluralismo de valores e em que um consenso sem seu turno, como Charles Larmore apontou, privi-
exclusão poderia ser instaurado. Com efeito, ao legia o aspecto democrático, dado que assevera
evitar doutrinas abrangentes, Rawls está motiva- que a importância dos direitos individuais subsis-
do por sua crença de que nenhum acordo racional te em sua capacidade de tornar possível o
é possível nesse campo. Eis a razão por que, com autogoverno democrático (LARMORE, 1996, p.
o fim de tornar as instituições liberais aceitáveis 217). Então, mais uma vez, temos de concluir que
para pessoas de diferentes visões morais, filosó- nenhum deles é capaz de cumprir o que anunci-
ficas e religiosas, precisam ser neutras em rela- am. O que querem negar é o caráter paradoxal da
ção a visões abrangentes. Por isso, a clara sepa- democracia moderna e a tensão fundamental en-
ração que tenta instituir entre o reino privado – tre a lógica da democracia e a lógica do liberalis-
com seu pluralismo de valores irreconciliáveis – e mo. São incapazes de reconhecer que, ao passo
o reino público, em que um acordo político sobre que realmente direitos individuais e autogoverno
concepções liberais de justiça seria assegurado por democrático são constitutivos da democracia li-
meio da criação de um consenso sobreposto em beral – cuja novidade reside precisamente na arti-
termos de justiça. culação dessas tais duas tradições – também exis-
te uma tensão entre suas “gramáticas” respecti-
No caso de Habermas, uma tentativa similar
vas que nunca poderá ser eliminada. Certamente,
de escapar das implicações do pluralismo de valo-
ao contrário do que alguns de seus adversários,
res é feita por intermédio da distinção entre ética
como Carl Schmitt, argumentaram, isso não sig-
– um domínio que permite concepções sobre o
nifica que a democracia liberal é um regime fada-
bem que competem entre si – e moralidade – em
do ao insucesso. Tal tensão, apesar de
que um procedimentalismo estrito pode ser
inerradicável, pode ser negociada de diferentes
implementado e a imparcialidade alcança condi-
maneiras. De fato, uma grande parte da política
ção de liderança na formulação de princípios uni-
democrática dá-se precisamente em torno da ne-
versais. Rawls e Habermas querem fundamentar
gociação de tal paradoxo e da articulação de solu-
a adesão à democracia liberal com um tipo de acor-
ções precárias4. O que é descabida é a procura de
do racional que fecharia as portas para a possibi-
uma solução racional final. Não apenas infrutífe-
lidade de contestação. Eles precisam, por esse
ra, essa empreitada carrega constrangimentos
motivo, relegar o pluralismo para um domínio não-
indevidos ao debate político. Tal procura deveria
público, isolando a política de suas conseqüênci-
ser reconhecida pelo que realmente é – outra ten-
as. O fato de que sejam incapazes de manter a
separação rígida que advogam tem implicações
muito importantes para a política democrática.
Ressalta-se aí que o domínio da política – mesmo 4 Desenvolvi esse argumento em meu artigo “Carl Schmitt
quando questões básicas como justiça ou princí- and the Paradox of Liberal Democracy” (MOUFFE, 1999).
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tativa de insular a política dos efeitos do pluralismo na importância de um outro tipo de racionalidade,
de valores, desta vez tentando fixar terminante- a racionalidade em marcha na ação comunicativa
mente todo o sentido e a hierarquia dos valores e na razão pública livre. Querem fazê-la a força
liberal-democráticos fundamentais. A teoria demo- central de movimento dos cidadãos democráticos
crática deveria renunciar a essas formas de e a base de sua fidelidade em relação a suas insti-
escapismo e enfrentar o desafio que decorre do tuições comuns.
reconhecimento do pluralismo de valores. Isso não
A preocupação de Habermas e Rawls com o
significa aceitar um pluralismo total – alguns limi-
atual estado das instituições democráticas é uma
tes precisam ser estabelecidos com relação ao tipo
que compartilho, mas considero as suas respos-
de confrontação que será vista como legítima na
tas extremamente inadequadas. A solução para
esfera pública. Mas a natureza política dos limites
nossos graves problemas contemporâneos não se
deve ser reconhecida, em lugar da apresentação
resume a substituir a “racionalidade de meios-fins”
de tais limites como exigências da moralidade e
dominante por uma nova forma de racionalidade,
da racionalidade.
agora “deliberativa” ou “comunicativa”. De fato,
IV. QUE LEALDADE PARA A DEMOCRACIA? há espaço para entendimentos diferentes da razão
e é importante tornar mais complexo o quadro
Se tanto Rawls como Habermas, embora de
oferecido pelos detentores da visão instrumenta-
diferentes maneiras, buscam alcançar uma forma
lista. No entanto, simplesmente substituir um tipo
de consenso racional ao invés de um “simples
de racionalidade por outro não nos ajudará a al-
modus vivendi” ou um “mero acordo” é porque
cançar o problema real que a questão da lealdade
acreditam que, ao obterem bases estáveis para a
política [allegiance] expõe. Como Michael
democracia liberal, esse consenso contribuirá para
Oakeshott relembrou-nos, a autoridade das insti-
assegurar o futuro das instituições liberal-demo-
tuições políticas não é uma questão de consenti-
cráticas. Como vimos, enquanto Rawls conside-
mento, mas de contínua adesão dos cives que re-
ra que a questão-chave é a justiça, para Habermas
conhecem suas obrigações de obedecer às condi-
ela envolve a questão da legitimidade. De acordo
ções prescritas pela res publica (OAKESHOTT,
com Rawls, uma sociedade bem-ordenada é aquela
1975, p. 149-158). Seguindo essa linha de pensa-
que funciona conforme princípios estabelecidos
mento, podemos dar-nos conta de que o que real-
por uma concepção compartilhada de justiça. É
mente está em jogo na fidelidade a instituições
isso que produz estabilidade e a aceitação das ins-
democráticas é a constituição de um conjunto de
tituições por parte dos cidadãos. Para Habermas,
práticas que façam possível a criação de cidadãos
uma democracia estável e funcional requer a cri-
democráticos. Essa não é uma questão de justifi-
ação de uma unidade política integrada por meio
cação racional, mas de disponibilidade de for-
de discernimento racional em direção à legitimi-
mas democráticas de individualidade e subjetivi-
dade. Essa é a razão de os habermasianos enten-
dade. Ao privilegiar a racionalidade, tanto a pers-
derem que a questão crucial descansa na busca
pectiva deliberativa como a agregativa deixam de
de um caminho capaz de garantir que decisões
lado um elemento central, que é o papel crucial
tomadas por instituições democráticas represen-
desempenhado por paixões e afetos na garantia
tem um ponto de vista imparcial, expressando
da fidelidade a valores democráticos. Isso não
igualmente os interesses de todos, o que requer
pode ser ignorado, do que decorre avaliar a ques-
estabelecer procedimentos aptos a propiciar re-
tão da cidadania democrática de modo bem dife-
sultados racionais mediante a participação demo-
rente. O fracasso da teoria democrática contem-
crática. Como expresso por Seyla Benhabib, “a
porânea em atacar a questão da cidadania é a con-
legitimidade em sociedades complexas deve ser
seqüência de seu funcionamento com uma con-
pensada como resultante da livre e desimpedida
cepção de sujeito que vê os indivíduos como an-
deliberação pública de todos, sobre matérias de
teriores à sociedade, portadores de direitos natu-
interesse comum” (BENHABIB, 1996, p. 68).
rais, e tanto agentes da maximização dos benefí-
Em seu desejo de mostrar as limitações do cios como sujeitos racionais. Em todos os casos
consenso democrático como vislumbrado pelo estão abstraídos das relações sociais e de poder,
modelo agregativo – apenas preocupado com a linguagem, cultura e todo o conjunto de práticas
racionalidade instrumental e a promoção do auto- que tornam a ação [agency] possível. O que falta
interesse –, os democratas deliberativos insistem a essas abordagens racionalistas é a própria ques-
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tão de quais são as condições de existência do de opinião, deve haver acordo sobre formas de
sujeito democrático. vida. Em sua ótica, concordar com a definição de
um termo não é suficiente e precisamos de acor-
Pretendo desenvolver a visão segundo a qual
do sobre o modo que a utilizamos. Isso significa
não é com a construção de argumentos sobre a
que os procedimentos devem ser entendidos como
racionalidade incorporada em instituições liberal-
conjuntos de práticas. É porque estão inscritos
democráticas que se contribui para a criação de
em formas de vida compartilhadas e em acordos
cidadãos da democracia. Indivíduos da democra-
sobre juízos que os procedimentos podem ser
cia só serão possíveis com a multiplicação de ins-
aceitos e seguidos. Eles não podem ser vistos como
tituições, discursos, formas de vida que fomen-
regras que são criadas com base em princípios e
tem a identificação com valores democráticos. Eis
então aplicadas a casos específicos. Regras para
a razão por que, apesar de concordar com os de-
Wittgenstein são sempre abreviações de práticas,
mocratas deliberativos sobre a necessidade de um
são inseparáveis de suas formas de vida específi-
conceito diferente de democracia, vejo suas pro-
cas. Isso indica que uma distinção estrita entre
postas como contraproducentes. Em rigor, preci-
“procedimental” e “substancial” ou entre “moral”
samos formular uma alternativa ao modelo
e “ética” – distinções que são fundamentais para a
agregativo e à concepção instrumental da política
abordagem habermasiana – não podem ser sus-
que esse modelo fomenta. Está claro que ao
tentadas. Procedimentos sempre envolvem com-
desencorajarem o envolvimento ativo dos cida-
promissos éticos substanciais e não pode nunca
dãos no funcionamento da unidade política e ao
haver procedimentos puramente neutros.
encorajarem a privatização da vida, eles não asse-
guraram a estabilidade que anunciaram. Formas Vistos de um tal ponto de partida, a lealdade à
extremas de individualismo espalharam-se ampla- democracia e a crença no valor de suas institui-
mente, ameaçando a própria “fábrica social” [the ções não dependem em dar-lhes uma fundação
very social fabric]. De outro modo, desprovidos intelectual. Pertencem mais ao âmbito do que
da possibilidade de identificarem-se com concep- Wittgenstein comparou a um “compromisso apai-
ções preciosas de cidadania, muitas pessoas es- xonado a um sistema de referência. Logo, apesar
tão, em um crescendo, procurando formas de de ser crença, é realmente um modo de viver ou
identificação que podem muito freqüentemente de avaliar-se uma vida” (WITTGENSTEIN, 1980,
colocar em risco o laço cívico que deveria unir a p. 85e).Ao contrário da democracia deliberativa,
associação político-democrática. O crescimento tal perspectiva também implica reconhecer os li-
de várias religiões, bem como de fundamentalis- mites do consenso: “Onde dois princípios que não
mos morais e étnicos, é a meu ver a conseqüên- podem ser reconciliados realmente se encontram,
cia direta do déficit democrático que caracteriza a cada homem declara o outro um tolo e um heréti-
maior parte das sociedades liberal-democráticas. co. Eu disse que ‘combateria’ o outro homem –
mas não lhe daria razões? Certamente; mas quão
Para enfrentar seriamente tais problemas, o
longe iriam? Ao fim das razões, vem a persuasão”
único caminho é vislumbrar a cidadania demo-
(WITTGENSTEIN, 1969, p. 81e).
crática de uma perspectiva diferente, de modo a
colocar ênfase nos tipos de práticas e não nas Ver as coisas dessa maneira deveria permitir-
formas de argumentação. Em The Return of the nos perceber que levar o pluralismo a sério requer
Political (MOUFFE, 1993), argumentei que as que se abra mão do sonho de um consenso racio-
reflexões sobre associação civil, desenvolvidas por nal que acarreta a fantasia de que poderíamos es-
Michael Oakeshott em On Human Conduct, são capar de nossa forma de vida humana. Em nosso
muito pertinentes para a concepção de formas desejo de uma compreensão total, diz Wittgenstein,
modernas de comunidade política e o tipo de laço “aportamos sobre o gelo escorregadio onde não
unindo cidadãos democráticos, i. e., a linguagem há fricção e, então, de certo modo, as condições
específica do intercâmbio civil que ele chama de são ideais, mas, também exatamente por isso,
res publica (idem, cap. 4). Também podemos, somos incapazes de andar: então precisamos de
porém, inspirar-nos em Wittgenstein que, como fricção. De volta ao terreno tosco”
demonstrei (MOUFFE, 2000), fornece insights (WITTGENSTEIN, 1958, p. 46e).
muito importantes para uma crítica do raciona-
“De volta ao terreno tosco” aqui significa com-
lismo. Com efeito, em seu trabalho tardio, subli-
preender o fato de que, longe de serem meramen-
nhou o fato de que, para alcançarem-se acordos
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que ela acarreta é precisamente o que a aborda- Vislumbrada a partir da óptica do “pluralismo
gem deliberativa renega ao estabelecer a possibili- agonístico”, o propósito da política democrática
dade de um tipo racional de argumentação em que é construir o “eles” de tal modo que não sejam
o poder foi eliminado e em que a legitimidade é percebidos como inimigos a serem destruídos,
fundada na racionalidade pura. mas como adversários, ou seja, pessoas cujas idéias
são combatidas, mas cujo direito de defender tais
Uma vez delimitado o terreno teórico, pode-
idéias não é colocado em questão. Esse é o verda-
mos começar a formular uma alternativa tanto ao
deiro sentido da tolerância liberal-democrática, a
modelo agregativo quanto ao modelo deliberativo
qual não requer a condescendência para com idéias
– um modelo que proponho chamar de “pluralismo
que opomos, ou indiferença diante de pontos de
agonístico”5. Uma primeira distinção é necessária
vista com os quais discordamos, mas requer, sim,
para esclarecer a nova perspectiva que estou for-
que tratemos aqueles que os defendem como
mulando, a distinção entre “política” [politics] e
opositores legítimos. A categoria de “adversário”,
“o político” [the political]. Por “o político” refi-
todavia, não elimina o antagonismo e ela deve ser
ro-me à dimensão do antagonismo inerente às re-
distinguida da noção liberal do competidor com
lações humanas, um antagonismo que pode to-
que ela é identificada algumas vezes. Um adver-
mar muitas formas e emergir em diferentes tipos
sário é um inimigo, mas um inimigo legítimo, com
de relações sociais. A “política”, por outro lado,
quem temos alguma base comum, em virtude de
indica o conjunto de práticas, discursos e institui-
termos uma adesão compartilhada aos princípios
ções que procuram estabelecer uma certa ordem
ético-políticos da democracia liberal: liberdade e
e organizar a coexistência humana em condições
igualdade. Discordamos, porém, em relação ao
que são sempre conflituais porque são sempre
sentido e à implementação dos princípios e não se
afetadas pela dimensão do “político”. Considero
pode resolver tal desacordo por meio de delibera-
que é apenas quando reconhecermos a dimensão
ção ou de discussão racional. De fato, dado o
do “político” e entendemos que a “política” con-
pluralismo inerradicável de valores, não há solu-
siste em domesticar a hostilidade e em tentar con-
ção racional para o conflito – daí a sua dimensão
ter o potencial antagonismo que existe nas rela-
antagonística6. Isso não significa, obviamente, que
ções humanas que seremos capazes de formular
adversários não possam cessar de discordar, mas
o que considero ser a questão central para a polí-
isso não prova que o antagonismo foi erradicado.
tica democrática. Essa questão, vênia aos
Aceitar a visão do adversário significa passar por
racionalistas, não é a de como tentar chegar a um
uma mudança radical de identidades políticas. É
consenso sem exclusão, dado que isso acarreta-
mais uma espécie de conversão do que um pro-
ria a erradicação do político. A política busca a
cesso de persuasão racional (do mesmo modo que
criação da unidade em um contexto de conflitos e
Thomas Kuhn argumentou que a adesão a um novo
diversidade; está sempre ligada à criação de um
paradigma científico é uma conversão). Pactos
“nós” em oposição a um “eles”. A novidade da
[compromises] certamente são também possíveis;
política democrática não é a superação dessa opo-
eles são parte integrante do cotidiano da política,
sição nós-eles – que é uma impossibilidade –, mas
mas deveriam ser vistos como interrupções tem-
o caminho diferente em que ela é estabelecida. O
porárias de uma confrontação contínua.
ponto crucial é estabelecer essa discriminação nós-
eles de um modo compatível com a democracia.
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dade de estabelecer um consenso sem exclusão, tais fronteiras e as formas de exclusão que delas
é de fundamental importância para a política de- decorrem, ao invés de tentar disfarçá-los sob o
mocrática. Ao precaver-nos contra a ilusão de que véu da racionalidade e da moralidade. Compreen-
uma democracia perfeitamente bem-sucedida pos- dendo a natureza hegemônica das relações sociais
sa ser alcançada, força-nos a manter viva a con- e identidades, nossa abordagem pode contribuir
testação democrática. Abrir caminho para o para subverter a sempre presente tentação exis-
dissenso e promover as instituições em que possa tente nas sociedades democráticas de naturalizar
ser manifestado é vital para uma democracia suas fronteiras e “essencializar” as suas identida-
pluralista e deve-se abandonar a própria idéia se- des. Por essa razão, ele é muito mais receptivo do
gundo a qual poderia haver um tempo em que que o modelo deliberativo à multiplicidade de vo-
pudesse deixar de ser necessário, pois que a soci- zes que as sociedades pluralistas contemporâneas
edade seria a tal ponto bem-ordenada. Uma abor- abarcam e à complexidade de sua estrutura de
dagem “agonística” reconhece os limites reais de poder.
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