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Nascido em 1932, Paul Virilio, arquiteto e urbanista, foi presidente e editor da

revista do grupo “Architecture Príncipe”, professor e, mais tarde, diretor geral da


École Speciale de Architecture (ESA), e diretor, a partir de 1973, da revista
“L’Espace Critique”, editada pela Galilée de Paris. Não obstante suas atividades
de arquiteto e urbanista, Virilio tem se afirmado no meio acadêmico internacional
como filósofo e crítico da contemporaneidade, tornando-se, a partir de 1990,
diretor de programas do Collège International de Philosophie de Paris.

Apresentado ao publico brasileiro em 1984, através do livro-entrevista Guerra


Pura, Virilio tornou-se presença constante entre nós. Analista da então chamada
“pós-modernidade”, teórico dos movimentos ecológicos e pacifistas, crítico das
tecnologias, Virilio tem sido muitas vezes, ao lado de pensadores como Jean
Baudrillard, chamado de pessimista ou catastrófico, título este recusado pelo
mesmo. Suas análises e insights, tendo o mérito de permanecerem atentas a um
conjunto restrito de temas da sociedade atual - espaço, tempo, velocidade,
guerra, imagem, tecnologias e acidente - não só o afastaram das análises
impressionistas e por vezes equivocadas de pensadores como Baudrillard, como
colocam-no numa posição privilegiada para a compreensão de uma época onde a
exceção tornou-se norma, a guerra total e as subjetividades mínimas.

De sua vivência como um “war-baby”, menino de guerra (em 1940 e 43 Virilio


presenciou a ocupação nazista e os bombardeios dos aliados em Nantes) e sua
formação como urbanista resultaram a compreensão da guerra como dimensão
originária, mítica, pura, onde importa mais sua “preparação” constante do que sua
realização ocasional. É esta dimensão que dará origem às cidades, verdadeiras
máquinas de guerra, as quais, por sua vez, levarão a uma mudança na lógica da
guerra – a passagem da tática para a estratégia.

As questões do ordenamento do espaço, da disposição e transposição do espaço


geográfico, da organização da população de um território tornam-se fundamentais
ao estrategista militar e ao político-urbanista. Em seu livro Guerra Pura podemos
ver as conseqüências espaciais e sociais dessa estratégia na sociedade da guerra
total: crescimento da economia armamentista, disseminação da população no
espaço, desurbanização, desaparecimento do lugar e do indivíduo etc.

Se, ao pensar a dimensão mítica da guerra, as questões espaciais saltaram à


vista, Virilio reconhece desde cedo a necessidade de se “colonizar o tempo”,
donde sua preocupação com os meios de deslocamento. O entrecruzamento
espaço-tempo levará tanto a uma nova prioridade na lógica da guerra – a logística
– quanto à percepção da importância da velocidade e das tecnologias para as
sociedades contemporâneas. Se com as guerras de massa as questões dos
suprimentos alimentares, dos transportes e munições, isto é a logística da guerra,
ganhava relevância; com o desenvolvimento dos novos meios de transporte e das
novas tecnologias atópicas a “localização geográfica parece ter perdido
definitivamente seu valor estratégico e, ao contrário, este mesmo valor é atribuído
à não localização do vetor...” (Velocidade e Política).

A adesão à perspectiva dos “não-lugares” e a visão da importância mítica da


velocidade: “toda sociedade é fundada numa relação de velocidade. Toda
sociedade é dromocrática”, levarão nosso autor, a partir de 1977, a falar da
necessidade de uma economia política da velocidade e a empreender um esforço
teórico para reler a história do Ocidente, pelo menos a história recente, a partir
deste novo ponto de vista.

Seus estudos de fenomenologia na Sorbonne com Merleau-Ponty fizeram-no ver


que a velocidade é mais do que a medida do tempo de deslocamento de objetos
entre um ponto e outro, mas “uma forma de olhar o mundo, de vê-lo com outros
olhos”. A dromologia implica pois uma nova percepção do mundo, uma logística
da percepção.

O livro que agora se reedita, Guerra e Cinema, foi inicialmente lançado em Paris
no ano 1984, tendo como subtítulo “logística da percepção”. Se, antes, interessou-
lhe o “poder-mover” da logística da guerra, agora sua atenção volta-se ao “poder-
comover”. Resultado da ação da velocidade sobre os sentidos, o poder
dromoscópico 1 rouba do homem o tempo para a reflexão, petrifica o espectador,
põe em causa a própria realidade. Eis aí, os objetivos da guerra: “A guerra não
pode jamais ser separada deste espetáculo mágico porque sua principal finalidade
é justamente a produção deste espetáculo:abater o adversário é menos capturá-lo
do que cativá-lo, é infligir, antes da morte, o pânico da morte”.

Afirmando não existir “guerra sem representação ou arma sofisticada sem


mistificação psicológica”, ou ainda que “a história das batalhas é, antes de mais
nada , a história da metamorfose de seus campos de percepção”, Virilio nos
aponta para o casamento entre arma e olho. É deste casamento que surgirá sua
análise do filme de guerra.

Trata-se menos da apresentação de filmes que contenham cenas de guerras ou


batalhas, ou ainda de advogar um possível compromisso do cinema industrial com
o fascismo, do que vê-lo como arma de guerra “a partir do momento em que está
apto a criar a surpresa técnica ou psicológica”, razão pela qual Virilio pode
considerar O fundo do coração (One from the heart), de Francis Ford Coppola,
como um filme de guerra.

O fato de Virilio iniciar este percurso dromoscópico em 1904 é devido ser este o
ano da instalação, em Port Arthur, do primeiro “projetor de guerra”, dando início a
“guerra da luz” que culminará no clarão nuclear de Hiroshima . Estava aberto pois
o caminho que transformaria o campo de batalhas num set cinematográfico. Foi
preciso, entretanto, esperar 10 anos para que, com o casamento entre a luz e a
velocidade do avião, o mundo se deparasse com um novo percepto.

1
Virilio inventa o neologismo “dromologia” e seus derivados a partir da palavra grega dromos, para expressar
a idéia de uma lógica da corrida, de uma sociedade que privilegia a mobilidade, de um equivalente-
velocidade.
Em seu segundo capítulo Virilio nos apresenta os termos desse acoplamento:
canhões, esquadrilhas de caça, bombardeiros juntam-se a holofotes e às
câmeras-metralhadoras deixando ver aquilo que somente a luz solar tornava
visível. Será entretanto a visão aérea – que em 1914 era ainda tributária da noite e
das condições climáticas – que permitirá que se escape da visão euclidiana
experimentada em terra firme: “É portanto normal que a violenta violação
cinemática do continuum espacial – deflagrada pela arma aérea – e os notáveis
progressos das tecnologias de guerra tenham literalmente rompido, a partir de
1914, com a antiga visão homogênea e engendrado a heterogeneidade dos
campos de percepção. A metáfora da explosão é então corretamente empregada
tanto na arte quanto na política. Os cineastas que sobreviveram ao primeiro
conflito mundial evoluíram continuamente do campo de batalha à produção de
cinejornais e, mais tarde, para os ‘filmes de arte’”.

A perda da dimensão euclidiana da visão propiciada pela altura e pela velocidade


trará duas conseqüências fundamentais. A primeira é a falsificação das distâncias,
a fragilidade das aparências, a instabilidade de toda dimensão, uma dislexia da
imagem. Mais uma vez, afirmará Virilio: “o cinema é a metáfora desta nova
geometria que transforma os objetos em figuras/fusão”. O poder bélico e de
comoção deste mundo artificial, não-euclidiano, aparece no capítulo O cinema Fer
Andra, onde,ao analisar a rivalidade entre o cinema nazista e Hollywood, Virilio
mostrará a osmose existente entre guerra e cinema industriais. Como Leni
Riefenstahl , Albert Speer e Joseph Goebbels demonstraram tratou-se menos do
poder das armas do que da conquista e manutenção do “coração de um povo”
através de cidades cinematográficas, cidades de pura luz, logotipos e gestos
estudados. Com a Segunda Guerra Mundial, entramos pois na era das
superproduções imagéticas.

A segunda conseqüência é uma espécie de alienação causada pelas “máquinas


de visão”. Isto é, o surgimento da visão telescópica e dromológica subjugou a
visão humana ao aparato técnico. Quer no “isolamento” do piloto de avião em sua
cabine pressurizada, quer nos confins de seu entrincheiramento, quer diante do
paralisante espetáculo de luzes e sons do set de guerra ou ainda diante de “armas
invisíveis que querem fazer ver” , a capacidade de percepção e raciocínio deixa
de ser substancial para se tornar acidental e perigosa. A conseqüência foi o
desenvolvimento das cabines opacas - “que impedem que os pilotos militares
vejam o ambiente porque ‘ver pode ser perigoso” - substituindo-se a acuidade
visual pela acuidade tecnológica. Agora, dirá Virilio, “a desintegração da
personalidade do guerreiro já se encontra em estado avançado”. Eis, pois, a
derradeira conseqüência da transformação da paisagem de guerra em realidade
cinemática.

Guerra e Cinema nos apresenta assim os passos iniciais de uma mudança de


perspectiva, de uma nova forma de ver o mundo que constitui nossa
contemporaneidade. As conseqüências éticas, sociais e políticas desta natureza
tecnológica, através daquilo que Virilio denomina epistemo-técnica, serão os alvos
dos trabalhos subseqüentes. A compressão espaço-tempo propiciada pelas novas
tecnologias, o desenvolvimento de sofisticadas próteses visuais e de meios de
rastreamento e detecção levaram ao desenvolvimento da chamada “guerra
eletrônica”, mudando, mais uma vez, a logística e os termos da percepção
contemporânea. Ao se privilegiar as imagens instrumentais fornecidas pelos
aparatos tecnológicos, restará ao indivíduo o processamento destas informações –
atividade esta cada vez mais ao encargo das máquinas ditas “inteligentes” -,
donde a importância do controle cibernético dos conhecimentos e do
desenvolvimento de meios sofisticados e seguros de estocagem e transmissão de
informações A imediaticidade requisitada – suprimida a barreira espacial, trata-se
de ultrapassar a barreira do tempo – levará Virilio a pensar sobre o “tempo real” e,
neste sentido, a imagem-vídeo e a internet talvez nos forneçam mais subsídios
para se pensar o percepto contemporâneo do que a imagem cinematográfica.
Mas, alerta Virilio, nos seus mais recentes trabalhos (A bomba informática e
Internet, a política do pior), não nos iludamos: a bomba informática é mais potente
que a bomba atômica e com a internet a tirania tecnocientífica se afirma
publicitariamente. Mais uma afirmação polêmica de um pensamento dissonante e
radical.

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