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Resumo
Diversidade sexual é muitas vezes um tema que causa estranhamento aos professores da
Educação Básica, mesmo o assunto sendo de fundamental importância para o currículo
escolar. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/96) e os Parâmetros
Curriculares Nacionais da Educação Básica oferecem suporte legal, teórico e metodológico
para o ensino de inúmeros saberes considerados basilares na formação de sujeitos que
reconheçam seu papel político e social na sociedade. Este estudo objetivou levantar e
problematizar o tratamento que os documentos legais da educação dão aos conceitos como
diversidade sexual e identidade de gênero, temas que precisam ser discutidos na educação
escolar, buscou também identificar se os estes documentos oferecem caminhos metodológicos
possíveis para o trabalho dentro da sala de aula e não apenas reproduzem a lógica
heteronormativa ao abordar assuntos relativos à sexualidade. A metodologia desta pesquisa
baseou-se em analisar na íntegra os documentos legais nos quais se sustenta a Educação
Básica, confrontando as informações destes com as pesquisas de autores que abordam o tema
diversidade sexual e identidade de gênero na escola.
1. Introdução
1
Acadêmica do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Fronteira Sul.
2
Professor do curso de Ciências Sociais – Licenciatura da Universidade Federal da Fronteira Sul.
normatizações legais e regulações que partem do Estado também incidiriam na reprodução
destas identidades. Nessa perspectiva, a atuação macro-estrutural também encontraria na
escola um ponto importante de apoio. Este capítulo pretende abordar o espaço escolar como
ponto de intersecção entre dimensões micro e macro políticas no que tange a produção de uma
normatividade sexual hegemônica, identificando suas contradições e dando destaque para as
determinações legais. Diante disso, torna-se necessário analisar se existe um caminho possível
para que os professores da Educação Básica possam atuar de modo a não reproduzir práticas
normatizadoras e naturalizar formas hierarquizantes e excludentes de sexualidade e
identidades de gênero.
Este estudo objetivou levantar e problematizar o tratamento que os documentos legais da
educação dão aos conceitos como diversidade sexual e identidade de gênero, temas que
precisam ser discutidos na educação escolar, buscou também identificar se estes documentos
oferecem caminhos metodológicos possíveis para o trabalho dentro da sala de aula e não
apenas reproduzem a lógica heteronormativa ao abordar assuntos relativos à sexualidade.
A metodologia desta pesquisa baseou-se em analisar na íntegra os documentos legais nos
quais se sustentam a Educação Básica, são eles: Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (9.394/20 de dezembro de 1996), Parâmetros Curriculares Nacionais para a
Educação Básica (Ensino Fundamental e Ensino Médio), confrontando as informações destes
com as pesquisas de autores que abordam o tema diversidade sexual e identidade de gênero na
escola.
Tal como sugere Gramsci nos Cadernos do Cárcere, os diferentes grupos na sociedade
portam determinadas visões de mundo, ou seja, formas de conceber a realidade e a si próprios
que possuem força de norma de conduta. Elas apresentam respostas aos problemas colocados
pela realidade, cumprindo o papel de organizar as práticas das pessoas dentro de certa
coerência. “A própria concepção de mundo responde a determinados problemas colocados
pela realidade, que são bem determinados e ‘originais’ em sua atualidade” (GRAMSCI, 2013,
p. 95). Disso se estabelece o nexo entre teoria e prática, que permite que as ações ganhem
sentido dentro da visão de mundo que as orienta. Para Gramsci, quando as visões de mundo se
expressam no direito, nas artes, na economia e nas manifestações individuais e coletivas, elas
podem ser denominadas ideologias (idem, p. 98-99). Isso significa que as práticas sociais
carregam uma lógica própria, que as adéqua a uma determinada moral, que por sua vez está
relacionada com uma forma de conceber o mundo. Permite-se, então, estabelecer uma
identificação entre ideologia e política, uma vez que a ideologia incide praticamente na
realidade.
Mas as ideologias, uma vez que são política, entram em conflito. Assim, uma
determinada visão de mundo deve se impor sobre as demais, apresentando-as como parciais e
particulares enquanto coloca a si própria como universal e total, portanto, natural e
verdadeira. Quando isso acontece pode-se dizer que ela tornou-se hegemônica. A hegemonia
de uma visão de mundo, entretanto, não ocorre exclusivamente no terreno da cultura. Ela se
realiza a partir de um conjunto de aparelhos capazes de elaborar, sistematizar e difundir a
ideologia, servindo-lhe de suporte e fornecendo materialidade (BIANCHI, 2008, p. 179).
Neste ponto, incidem uma diversidade de instituições culturais, sociais e políticas, privadas e
também estatais, que fazem que com que ganhe força material efetiva quando orienta as
práticas de indivíduos de grupos sociais. No momento de sua elaboração, atuam os
intelectuais, que são aqueles que dão coerência e sistematicidade à visão de mundo. Aqui ela é
chamada de filosofia. Sua difusão também passa pelos intelectuais, mas essencialmente pelos
aparelhos de hegemonia, capazes de fazê-la ressoar pelo conjunto da sociedade, tornando-se
senso comum. Ao organizar as práticas sociais, responder aos problemas objetivos colocados
pela realidade, ela atua como elemento unificador de indivíduos e grupos. Isso implica em
atribuir coesão e identidade a um grupo, organizando sua conduta e sua compreensão da
realidade e de si mesmo. Gramsci faz analogia com a religião, que explica a realidade ao
mesmo tempo que oferece uma moral, um conjunto de normas de conduta que adéquam a
ação prática à teoria (GRAMSCI, 2012, p. 289). Assim, a política se constitui na mediação e
elo de unidade entre a ideologia e o grupo social. Este processo não ocorre isento de
contradições, ponto que voltarmos mais adiante.
Para a autora, este ideal normativo determinaria, no próprio corpo das pessoas,
elementos que definiriam seu gênero, sua sexualidade, sua orientação sexual, enfim, sua
identidade. De modo mais preciso, gênero e sexualidade seriam expressos por meio de ações
performáticas, ou seja, por meio de símbolos carregados no corpo, gestos, modos de agir, falar
e se portar, que indicariam em qual esquema classificatório um indivíduo de enquadraria. As
ações performativas seriam o resultado de práticas reguladoras, de poderes disciplinares que
controlam os corpos e organizam suas ações, de modo a produzir a identidade sexual e de
gênero como seu efeito. Isso resulta no dever ser que se impõe sobre mulheres e homens, e é a
base para a heteronormatividade.
O ideal normativo de gênero de que nos fala Butler deve ser compreendido como
construção política hegemônica. Deste modo, determinaria o que é normal, sadio, verdadeiro
e desejável. Fazendo isso, estaria determinando igualmente seu contrário, o anormal, o
patológico, o falso e o indesejável. Tanto para a autora quanto para Foucault, essa construção
passa essencialmente pela política, mais especificamente pelos micro-poderes que interpelam
as pessoas, que interditam os corpos que disciplinam os gestos, que impõem os símbolos e
atribuem os significados, realizando a sujeição das pessoas.
De acordo com Louro (2013) “a norma que se estabelece, historicamente, remete ao
homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão...” (p. 15), e é essa a
referência de normalidade que se tornou hegemônica.
Embora essa contribuição seja útil, ela perde de vista a dimensão macro-estrutural da
política e tende a restringir os conflitos que decorrem deste processo aos jogos de resistência e
ressignificação das ações performativas. Para se compreender o papel da escola no processo
de produção de identidades hegemônicas é preciso retornar a Gramsci.
A força do poder disciplinar está de fato e em boa medida manifesta nas micro-
relações sociais. As fronteiras de gênero que definem o que é o masculino e o feminino
precisam ser constantemente reafirmadas. Qualquer transgressão é severamente punida, seja
de formas sutis, seja de formas violentas. Contudo, tais ações punitivas e disciplinadoras
demandam legitimidade e normatização para se manterem. Assim, mesmo que um aluno seja
alvo de piadas e chacotas, quando não de socos, por não adequar-se ao comportamento
considerado masculino, as agressões que ele sofre exigem o consentimento das pessoas para
ocorrerem, e o têm.
A partir da articulação entre sociedade civil e Estado, Gramsci entende que uma
determinada visão de mundo torna-se universal e orienta a conduta de pessoas e grupos
sociais inteiros, ganhando materialidade. Uma determinada ideologia torna-se hegemônica
quando tem sua elaboração mais sistemática em certos pontos da superestrutura da sociedade
e se dissemina pelo tecido social até tornar-se senso comum e materializar-se em ações,
comportamentos, discursos e praticas sociais à ela conformes.
A análise da dimensão formal e institucional que interfere nas práticas escolares demanda
o estudo dos documentos que regulam e normatizam a educação. Este estudo contemplará
dois documentos norteadores da Educação Básica Brasileira, são eles: Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (9.394/20 de dezembro de 1996), Parâmetros Curriculares
Nacionais para a Educação Básica (Ensino Fundamental e Ensino Médio). O objetivo é
identificar qual é a abordagem feita acerca das questões de diversidade sexual e identidade de
gênero, avaliando em que medida seu conteúdo reproduz ou se afasta da concepção
hegemônica de sexualidade.
A LDB 9.394/1996 inaugurou uma nova forma de pensar a educação brasileira, de acordo
com Sarturi: “[...] a nova LDB apresenta interesse na emancipação do sujeito, propõe outras
formas de organização curricular e defende a preocupação com a aprendizagem.” (2014,
p.56).
A análise do documento na íntegra mostrou que diversidade sexual e identidade de gênero
não são mostradas em nenhuma das sessões da lei. Embora este debate seja relativamente
recente no Brasil, o que poderia dar margem para um juízo anacrônico da lei, ainda assim
buscamos identificar brechas que abram espaços para o afastamento da concepção
hegemônica. Nesse sentido, mesmo a palavra diversidade só é incluída no documento no ano
de 2013, com o objetivo de tratar das questões étnico-raciais. A lei trata apenas do pluralismo
de ideias. Os princípios norteadores da educação nacional mencionados na lei são os
seguintes:
ORIENTAÇÃO SEXUAL
A Orientação Sexual na escola deve ser entendida como um processo de
intervenção pedagógica que tem como objetivo transmitir informações e
problematizar questões relacionadas à sexualidade, incluindo posturas,
crenças, tabus e valores a ela associados. Tal intervenção ocorre em âmbito
coletivo, diferenciando-se de um trabalho individual, de cunho
psicoterapêutico e enfocando as dimensões sociológica, psicológica e
fisiológica da sexualidade. Diferencia-se também da educação realizada pela
família, pois possibilita a discussão de diferentes pontos de vista associados
à sexualidade, sem a imposição de determinados valores sobre outros.
O trabalho de Orientação Sexual visa propiciar aos jovens a possibilidade do
exercício de sua sexualidade de forma responsável e prazerosa. Seu
desenvolvimento deve oferecer critérios para o discernimento de
comportamentos ligados à sexualidade que demandam privacidade e
intimidade, assim como reconhecimento das manifestações de sexualidade
passíveis de serem expressas na escola. Propõem-se três eixos fundamentais
para nortear a intervenção do professor: Corpo Humano, Relações de Gênero
e Prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS.
A abordagem do corpo como matriz da sexualidade tem como objetivo
propiciar aos alunos conhecimento e respeito ao próprio corpo e noções
sobre os cuidados que necessitam dos serviços de saúde. A discussão sobre
gênero propicia o questionamento de papéis rigidamente estabelecidos a
homens e mulheres na sociedade, a valorização de cada um e a flexibilização
desses papéis. O trabalho de prevenção às doenças sexualmente
transmissíveis/AIDS possibilita oferecer informações científicas e
atualizadas sobre as formas de prevenção das doenças. Deve também
combater a discriminação que atinge portadores do HIV e doentes de AIDS
de forma a contribuir para a adoção de condutas preventivas por parte dos
jovens (BRASIL-MEC, 1997, p.28)
Lendo o fragmento retirado dos PCN’s é possível perceber que o nome o volume nº 10
“Orientação Sexual” não está conectado ao conteúdo do caderno, pois este não explora o
termo “Orientação Sexual”, e sim, coloca vários assuntos que estariam relacionados à
“Educação Sexual” mostrando já no início que a nomenclatura escolhida para este tema
transversal pode contribuir para reforçar a compreensão hegemônica sobre o assunto.
O debate em torno do conceito de Orientação Sexual possui um significado muito
diferente do apresentado nos Parâmetros Curriculares Nacionais. De acordo com os prinípios
de Yogyacarta, o conceito remete à: “[...] capacidade de cada pessoa de experimentar uma
profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo
gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas ou sexuais com estas
pessoas”. (INDONÉSIA, 2006, p. 9). Nesse sentido, refere-se diretamente à
heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade.
O texto afirma o compromisso de problematizar “posturas, crenças, tabus e valores...”
ligados à sexualidade. Isso abre interessante espaço para se tomar os princípios que organizam
o senso comum como objeto de discussão, permitindo certa relativização de questões
naturalizadas. Mais adiante, fala-se explicitamente em “questionamento de papeis rigidamente
estabelecidos a homens e mulheres na sociedade” e a “flexibilização desses papéis”. Do ponto
de vista do debate feito aqui, este parece ser o ponto mais importante para se questionar as
identidades hegemônicas. É exatamente a construção rígida e normativa dos papéis de
masculino e feminino fundamentam a ideologia hegemônica. A imposição do dever ser, a
construção de padrões normais e desejáveis para alunos e alunas e o correspondente
preconceito que recai sobre quem se distancia de tais padrões podem, a partir deste ponto, ser
trabalhados criticamente.
Se este pode ser considerado um significativo avanço, o mesmo parágrafo do texto,
entretanto, retorna aos princípios do dispositivo da sexualidade. O elemento que chama a
atenção diz respeito a uma concepção de educação sexual visivelmente marcada pelos saberes
médicos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais abordam a sexualidade como uma questão de
saúde, reproduzindo assim uma lógica de higiene social. A escola parece trazer a sexualidade
para sala de aula com a visível função de diminuir o índice de doenças sexualmente
transmissíveis, como mostra Altamann:
O interesse do Estado pela sexualidade da população torna-se evidente a
partir desta proposta. De acordo com os PCNs, em virtude do crescimento de
casos de gravidez indesejada entre adolescentes e do risco da contaminação
pelo HIV, o tema Orientação Sexual criado como um dos temas transversais
a ser trabalhados ao longo de todos os ciclos de escolarização (2001, p.576)
4. Considerações finais
A análise da LDB e do volume nº10 dos PCNs (tema transversal: Orientação Sexual)
permitiu identificar elementos contraditórios na legislação educacional. É importante
reconhecer que existem brechas e margens para desconstruir os rígidos papéis de masculino e
feminino que circulam na ideologia hegemônica. Os documentos reforçam o respeito à
diversidade e aos diferentes valores que norteiam a sexualidade. Pontuam os elementos
culturais que a determinam e abrem espaço para se problematizar os elementos que compõem
o senso comum acerca do assunto. Isso oferece algumas das condições necessárias para se
iniciar o trabalho de questionamento da sexualidade hegemônica, e pode amparar a atuação
dos profissionais da educação que estejam dispostos a se enfrentar com a ideologia dominante
e desafiar a lógica que ainda prevalece na educação brasileira.
Por fim, o ponto chave que poderia apontar numa direção nítida de afastamento da
sexualidade hegemônica fica omisso do texto. Não se fala das populações estigmatizadas, de
identidade de gênero e diversidade sexual em si, das práticas que são alvo de discriminação e
violência. Não há suporte explícito para LGBTs, para sexualidades que escapem da norma
imposta.
São estes silêncios e omissões que auxiliam a perpetuar a lógica que ainda prevalece
no que tange a sexualidade e seu tratamento na escola. Embora existam – e deve-se
reivindicar que existem – importantes brechas na norma legal, esta ainda preserva elementos
que mantém a legitimidade das hierarquias sexuais.
Referências