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do dolo e da culpa estariam diluídos e, portanto, sempre seria possível afinal, o que significa verdadeiramente assumir o risco do resultado? Essa
argumentar a favor de uma imputação dolosa. Consequência: o critério pergunta expressa um dos maiores pontos de instabilidade da dogmática
adotado pelo PLS amplia de modo desmedido, e sem qualquer parâmetro penal: a fronteira entre o dolo eventual e a culpa consciente. Para precisar
seguro de controle, o campo do dolo. essa fronteira, a literatura científica recorre aos mais diversos substitutivos
Com esses argumentos, é possível chegar a uma primeira conclusão: linguísticos, como, aliás, o próprio PLS tenta fazer (acima, § 2). Assumir
os defeitos do PLS, nesse ponto, são verdadeiramente irrecuperáveis. o risco é, apenas, um dos vários recursos linguísticos disponíveis que
E, por isso mesmo, a princípio, assiste razão à PA em sugerir que a podem ser empregados. Outras teorias – não menos relevantes, tampouco
regulamentação do dolo permaneça como está. Aqui está presente um menos defendidas – sugerem outros substitutivos: o legislador poderia
traço de responsabilidade da proposta alternativa: evita cair na tentação ter consignado, por exemplo, que o autor levou a sério a possibilidade
da reforma aventureira. do resultado (i) ou que tomou uma decisão pela lesão do bem jurídico
Dito isso, o objeto da minha análise volta-se para texto-base da parte (ii). Aqui, igualmente, não há espaço para apontar a imprecisão desses
geral de 1984. Agora, a pergunta a ser respondida é: devemos deixar a substitutivos linguísticos,(14) mas há espaço para uma constatação
redação de 1984 como ela está? inarredável: não há nenhum acordo na literatura sobre qual deles tem
o melhor rendimento científico. E, se é assim, duas perguntas precisam
3. O texto-base do art. 18, I da parte geral de 1984 ser respondidas: não seria prudente que uma reforma conscienciosa
evitasse fazer uma opção legal no capítulo dogmático onde não há um
A PA mantém o texto-base da parte geral de 1984. E por quê? Os seus
autores fizeram consignar que sobre esse tema – mas também outros – razoável grau de estabilidade científica? Caso seja dada uma resposta
ainda repousam “viscerais incertezas”,(10) razão pela qual é recomendável satisfatória a essa pergunta, uma outra precisaria ser enfrentada: por que
convocar a ciência para desempenhar um papel supletivo de precisão do optar legalmente pela teoria do consentimento em detrimento das demais
preceito legal. Aqui está presente um traço de prudência da PA. Resta teorias de disposição de ânimo (ou mesmo das teorias cognitivas)? Essas
saber se, aqui, a prudência será positiva. respostas (ainda) não foram dadas de modo satisfatório.
A atual redação do art. 18, I, embora não realize uma definição Com isso, já é possível unir aquilo que analisei separadamente: a
propriamente dita de dolo, também faz uma opção legal por uma das teorias visceral incerteza tanto sobre a necessidade de um elemento volitivo do
de disposição de ânimo. É lugar comum a afirmação de que o “assumir dolo como sobre a sua precisão recomenda seja evitada qualquer opção
o risco do resultado” seria a expressão linguística adotada para expressar legal. E essa foi a minha segunda conclusão preliminar. Permanece aberta,
a teoria do consentimento. Essa redação é somente um adorno legal, de então, uma última questão: qual seria o melhor caminho e por quê? Com
pouca utilidade prática, e coloca o jurista em uma situação delicada. Por isso, passo ao meu último e breve ponto.
que ela é de pouca utilidade? Porque a questão sobre o que significa querer
o resultado (a) ou assumir o risco de produzi-lo (b) não pode ser derivada 4. A contraproposta de redação para o art. 18 da parte geral do
da sua redação, senão do labor científico, como apontado pelos autores código penal
da PA. Examinarei cada um dos problemas separadamente. Primeiro, a
Considerando a segunda conclusão preliminar, o leitor talvez esteja
expressão querer o resultado (a); depois, a expressão assumir o risco (b).
se perguntando qual seria, então, a solução menos custosa para a ciência.
(a) Antes, é preciso deixar uma advertência: estou convencido de Nesse ponto, parece-me mais prudente sugerir uma redação minimalista.
que um conceito volitivo-psicológico de dolo traz mais problemas que A preferência por uma proposta de redação minimalista teria uma
soluções. O dolo é um conceito jurídico e, como tal, não deve ser um vantagem adicional: o não engessamento das propostas doutrinárias. Se
subordinado da postura psíquica do autor, senão da ciência jurídica. É o não exonero em demasia a literatura científica, nós pouco avançamos
10 direito quem deve dizer se há, ou não, uma conduta dolosa e não o autor do desde HUNGRIA; porque o legislador apontou uma fronteira para a ciência
crime.(11) Mas, para seguir com a argumentação, também é preciso advertir brasileira que, guiada pela literalidade, converteu a teoria do dolo em uma
o leitor de que o verbo querer não pertence exclusivamente à linguagem
submissa da teoria do consentimento. Creio que a ausência do dispositivo
jurídica, senão também à linguagem cotidiana. A ele é possível associar
tal como está deixaria mais evidente aquilo que, até agora, embora óbvio,
duas cargas semânticas bastante distintas: uma com tônica psicológica e
foi solenemente ignorado por parcela da nossa ciência: o legislador não
outra com tônica normativa.(12) Naquela, o significado da expressão está
pode engessar o papel dos cientistas.
próximo da acepção dicionarista. É utilizada, por exemplo, nos seguintes
casos “eu quero beijar você”; “eu quero levantar o braço”; “eu quero Com isso, chego ao último passo: como concretizar a proposta de
uma cerveja gelada”. O querer com tons normativos tem carga semântica redação para o art. 18? Parece-me prudente retirarmos o adorno legal “quis
desvinculada da postura psíquica do autor da conduta, e está ligada à ou assumiu o risco do resultado” por um dispositivo que verdadeiramente
ideia de que o quadro fático permite que um terceiro atribua ao agente um permita à ciência e à doutrina o livre desenvolvimento daquela atividade
querer. Imagine-se, por exemplo a hipótese do pai que desfere vários tapas de integração supletiva. E, para fazê-lo, basta uma singela previsão legal,
no rosto da filha de 10 anos de idade, causando-lhe lesões corporais. Ao já existente em países com a mesma tradição jurídica: sugiro que toda a
ser indagado pelo magistrado sobre o seu comportamento, aquele afirma regulamentação do artigo 18 do código penal, reproduzido pela PA, seja
“eu não queria machucá-la, apenas educá-la”. Nesse segundo caso, parece substituída por uma redação minimalista, vazada nos seguintes termos:
pouco provável que alguém negue o crime de lesão corporal dolosa pela
ausência de querer. E isso é assim porque, nesse caso, usamos o termo não
Atual art. 18 da proposta alternativa Sugestão de redação
mais no sentido psicológico, mas sim no sentido normativo-atributivo. para o artigo 18
Desses argumentos, é possível extrair a seguinte provocação: se não
há na ciência sequer a certeza sobre a necessidade do querer para o dolo Art. 18 - Diz-se o crime: Art. 18. Quando a lei ex-
ou sobre a sua precisão semântica, por que insistir com a sua utilização? Crime doloso pressamente não cominar
Talvez o leitor, ainda insatisfeito, esteja se perguntando “e por que não I - doloso, quando o agente quis o resultado ou pena à atuação culposa, so-
insistir?”. Bem, nesse caso, a resposta é bem objetiva: evitaríamos a quase assumiu o risco de produzi-lo; mente é punível a atuação
Crime culposo dolosa.
automática associação do dolo apenas com a carga semântica psicológica II - culposo, quando o agente deu causa ao resulta-
e, simultaneamente, romperíamos a perplexidade que há quando do por imprudência, negligência ou imperícia.
afirmamos a existência de dolo sem vontade.(13) Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei,
ninguém pode ser punido por fato previsto como cri-
(b) Resta a análise da expressão assumir o risco do resultado. Aqui me, senão quando o pratica dolosamente.
o problema também é grave. Talvez o leitor nunca tenha se perguntado: