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O Polêmico Romanbce Submissão de Michel Houellebecq...

- Agostinho

O Polêmico Romance Submissão De Michel Houellebecq E A Crítica Ao Homem


Contemporâneo

Por Rafael Agostinho1

Resumo: Uma possível perda de valores fundamentais para a sociedade


ocidental, como a liberdade no mundo contemporâneo capitalista pós-moderno e a
imposição do islamismo que substitui o Estado laico tão respeitado pela República
Francesa, é a representação da “Submissão”, título do polêmico romance do escritor
francês contemporâneo mais lido atualmente na França e em diversos países, Michel
Houellebecq.

Palavras-chave: Submissão, romance francês, Michel Houellebecq.

Abstract: A possible loss of the fundamental values to Western society, such as


freedom in the postmodern capitalist modern world and the imposition of Islam
replacing the laic State so respected by the French Republic, it is the representation of
"Submission", the controversial title novel of contemporary French writer most widely
read in France and in several countries, Michel Houellebecq.

Keywords: Submission, French novel, Michel Houellebecq.

Este romance fictício e político de Houellebecq, lançado em janeiro deste ano,


em uma França abalada pelos atentados ao semanário Charlie Hebdo, suscita discussões
e polêmicas em torno da explícita crítica do autor ao cenário social e político atual da
França que pode se transformar em poucos anos em um país dominado por embates
sociais que beiram à guerra civil e que passa a ser governado democraticamente pelo
partido Fraternidade Muçulmana (partido fictício).
Este livro é um romance, uma ficção representativa de um personagem
houellebecquiano descrente e frustrado, apesar de ter uma vida de sucesso acadêmico.
Este personagem e centro da narrativa é François, professor da Universidade Sorbonne -
Paris III, com seu histórico de estudos realizados na Sorbonne IV. Doutor especialista
literário em Joris-Karl Huysmans, um naturalista cristão, François tem suas expectativas
frustradas quando é nomeado para ser professor em uma Universidade um pouco menos
prestigiada que esta onde estudou por sete anos, este é o princípio de sua frustração
acadêmica.
Por toda a sua triste juventude, o próprio personagem narra em primeira pessoa
que teve como companheiro Huysmans e seus escritos. Este escritor francês e crítico de
arte fez parte, inicialmente, do movimento naturalista e, posteriormente, do
decadentismo que foi considerado contrário aos ditos costumes morais e às convenções
sociais, sobretudo burguesas, do final do século XIX. Huysmans também exaltava o
individualismo e sua infeliz realidade. É conhecido por suas passagens por diversas
crenças ao longo de sua vida, do esoterismo ao catolicismo fiel. Quando a Igreja
Católica o aceitou novamente, ele se tornou um cristão resignado e devoto,

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Rafael Agostinho é internacionalista, graduado em Letras-Tradução-Francês pela Universidade de
Brasília e mestrando em Estudos Europeus e Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de
Grenoble.

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principalmente, devido aos seus diversos problemas de saúde no fim de sua vida
terrestre.
O narrador de Submissão o escolheu como centro de estudos, ao ponto de
escrever uma tese de doutorado por sete anos e com 788 páginas, com certa
inconsciência de que sua trajetória de vida seria tão conexa à de Huysmans, mas certo
de que reconhecia sua própria situação de miséria humana à deste escritor. Não foi por
acaso que o autor desta obra escolheu Huysmans como representação da ante vida do
personagem principal. Houellebecq foi vencedor do prêmio da Academia de Goncourt
em 2010 que teve como um dos fundadores e como presidente o escritor Joris Karl
Huysmans.
Para o personagem François, a vida acadêmica nas ciências humanas assim
como os estudos na área de letras, não levam a quase lugar nenhum. Passa a viver à
deriva do tempo, com relações amorosas e sexuais voláteis e descartáveis com prazo de
validade de um ano acadêmico, em uma rotina de prazeres materiais e etílicos. François
observa, portanto, de forma inerte a corrida eleitoral à Presidência da França no ano de
2022. Enquanto isso, o aumento da violência e confrontos interétnicos são abafados
pelas meios de comunicação e pelas mídias televisas.
Enquanto François tenta, de forma abissal, manter o caso com a jovem aluna
Myriam, no primeiro turno das eleições presidenciais vemos a ascensão no quadro
político de um partido pouco conhecido e chamado de Fraternidade Muçulmana. Para
um segundo turno absolutamente inédito e imprevisível, o Partido Socialista está fora do
páreo e a corrida eleitoral se polariza entre a Frente Nacional, de extrema direita
representada por Marine Le Pen e o partido recém projetado Fraternidade Muçulmana
representado por Mohammed Ben Abbes. François se despede de Myriam não de forma
tão trágica, mas teoricamente romântica para o mundo atual, tendo em vista que seria
possível manter contato por meio da internet. Ela parte para Israel com sua família judia
pois seus pais preveem um cenário pouco favorável para a liberdade religiosa.
No âmbito político, com o objetivo de evitar uma vitória da extrema direita, o
tradicional Partido Socialista apoia e faz alianças políticas com a Fraternidade
Muçulmana. Um dos acordos que representa a perda da grande conquista intelectual
ocidental na visão da França, a submissão do ensino à uma religião, sobretudo ao Islã. O
islamismo impõe regras estritas e restringe a liberdade, principalmente das mulheres.
Com a vitória do Partido Fraternidade Muçulmana e a ascensão ao poder de Mohammed
Ben Abbes, há uma queda da taxa de desemprego pois os homens dominam o mercado
de trabalho, funcionárias da Sorbonne são obrigadas a usar véus para manterem suas
rendas, professoras passam a não ter mais o direito de lecionar em universidades
públicas, mulheres são estimuladas a estudar somente até os 12 anos de idade, já que
seu papel social é casar-se e realizar trabalhos domésticos. A poligamia passa a ser
estimulada pelo governo e ser reconhecida juridicamente. E assim, o personagem
houellebecquiano, já que não é muçulmano, tem como única alternativa profissional a
aposentadoria precoce.
François mergulha em um período depressivo da sua vida e como de costume
sem objetivos pessoais, sofre com a distância e com saudades de Myriam, usufrui ainda
mais dos grandes prazeres sexuais e materiais. Ele se vê perdido espiritualmente e cada
vez mais indiferente aos acontecimentos políticos. Até que passa a observar a mudança
comportamental das mulheres submissas aos seus maridos.
Posteriormente, é convidado pelo novo diretor nietzschiano da Sorbonne, o Sr.
Robert Rediger, a retomar suas atividades junto à Universidade. O primeiro passo seria
ler o livro intitulado “Dez questões sobre o islã”. No início, um livro pouco interessante
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que fala sobre a religião, a imensidão e a harmonia do Universo. De forma curiosa,


François se interessa objetivamente pela parte que justifica a poligamia como uma
seleção natural, com o objetivo de reprodução da espécie no sentido mais sublime e real.
De um ponto de vista político, pode-se dizer que esta afirmação faz parte do discurso de
extrema direita que está em ascensão no mundo contemporâneo e o personagem
principal se sente confortável com a possibilidade de realizar seus desejos.
A melancolia do ambiente universitário e com o reconhecimento da poligamia
no território francês, François começa a encontrar solução para a angústia que consome
seu interior. Como escape e via de realização do destino da espécie, ele compreende que
a alegria reside na submissão absoluta. A submissão da mulher ao homem e a submissão
do Homem à Deus.
A partir de uma leitura superficial, em um contexto de um país que já sofre com
tensões políticas e por vezes religiosas, podemos identificar e justificar todo alarde
criado pelo lançamento deste livro. Michel Houellebecq com sua narrativa envolvente,
que gera no leitor momentos de incredulidade política e sentimento de revolta religiosa,
nos faz imaginar um cenário desolador em poucos anos. As críticas escritas sobre este
romance foram geralmente sobre a possível realização dessas previsões políticas de
Houellebecq em um tempo não muito distante da nossa realidade.
Este cenário desenhado pelo autor, a partir de uma reflexão sobre a miséria
humana vivida nos dias atuais, com tantas injustiças sociais e atos reais de terrorismo,
nos faz questionar se já não vivemos nesse cenário, onde o Homem está cada dia mais
depressivo e solitário. O personagem principal de Submissão conquistou, enfim, após a
vitória muçulmana uma dimensão coletiva e confortante. Dessa forma, o autor instiga
no leitor a reflexão sobre sua própria condição humana e espiritual e da sociedade de
maneira geral. Certamente, alguns leitores se sentirão confortáveis, outros se sentirão
incomodados com suas crises e desencantamentos incitados ainda mais pelo autor.
Temos aqui o papel literário bem realizado por Houellebecq, onde vemos que a
literatura toca nos nossos bons sentimentos, da mesma forma que gera doloridas
reflexões sobre nossas crises pessoais.
Além disso, se refletirmos sobre qual o papel da literatura na formação da
sociedade, sobretudo nos dias atuais, veremos que a literatura tem o poder de perturbar
nossos pensamentos e nossos sentimentos. Essa perturbação pode ser realizada por um
processo construtivo e até mesmo desconstrutivo. Segundo Antônio Cândido, a
literatura tem um papel formador nas nossas personalidades e isto vai depender da
experiência que tivermos a partir de contato com a literatura. Houellebecq nos
proporciona esta experiência quando nos faz colocar em xeque nossos valores políticos,
morais, civis e religiosos. A literatura nos leva a um outro patamar de análise. Um
patamar mais elevado e profundo, que nesta ficção política, envolve também a Ciência
Política.
Assim, a partir de uma leitura crítica, Submissão nos faz questionar qual a real
crítica feito pelo autor nos pormenores desta narrativa. Houellebecq nos faz refletir, de
fato, sobre qual o nosso papel como cidadão na contemporaneidade e como nossas
atitudes podem influenciar o futuro da sociedade. É, na verdade, uma crítica ao Homem
contemporâneo e seu estilo de vida atual, subjugado pela ditadura capitalista, onde
vemos o Homem fetichizado, travestido em mercadoria e alienado das relações sociais.
Por meio do personagem principal e narrador, o autor evidencia os hábitos de vida
atuais da sociedade francesa que não são muito distantes da sociedade brasileira.
François, um professor doutor universitário desencantado com a profissão, após árduos
anos de estudos literários, se vê angustiado em uma vida de consumo material. É um
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cidadão comum e solitário que consome comidas congeladas, bebidas alcóolicas e


mantém relações sexuais com as alunas da faculdade. Essas são, na verdade, suas
escolhas em uso do seu livre arbítrio.
No entanto, a partir da narrativa, nos questionamos se o consumo de produtos é
realmente uma escolha individual ou uma imposição mercadológica em um contexto de
vida imerso em um sistema individualista que nos obriga a ter cada mais vez mais anos
de estudos e conquistar empregos com salários cada vez mais altos para sustentar o alto
nível de consumo. Neste sistema, reconhecemos a frustração de François que pode ser a
realidade de muitas outras pessoas.
Outra crítica contemporânea diz respeito às relações humanas e amorosas de
François. Podemos observar que seus relacionamentos são praticamente voláteis. Com a
liberdade sexual, as pessoas trocam de parceiros ao bel prazer, o que gera uma política
comportamental de relacionamentos descartáveis que na primeira dificuldade ou
oportunidade de encontrar novas pessoas mais interessantes, a outra é descartada. Isto
não quer dizer que a liberdade deve ser reprimida, mas demonstra a impaciência e
intolerância do ser humano diante às dificuldades das relações humanas em um mundo
dominado pela internet onde temos rápido acesso às novas experiências. Aqui pode-se
ressaltar os conceitos desenvolvidos pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman em suas
obras Modernidade Líquida e Amor Líquido, onde ele apresenta a lógica de mercadoria
das pessoas e o caráter descartável e frágil dos laços humanos.
Outra característica do movimento romance que está presente nesta obra de
Houellebecq é o sentimento amoroso reprimido pela falta de sensibilidade humana. Ao
longo da narrativa, é perceptível que François tinha admiração e um sentimento mais
profundo por Myriam, mas a viu partir e ir viver sua nova vida em Israel, longe de uma
França calamitosa. Ele a deixou partir, sem reagir, e alimentou as expectativas de
receber e-mails e comunicações. Assim, observa-se mais a uma vez a inércia do
personagem diante o sentimento amoroso.
Não obstante a falta de reação do personagem em relação ao sentimento, a
inércia e alienação política são evidentes nesta narrativa. Podemos ver, como diz o
narrador de Submissão:
Que l’histoire politique puisse jouer un rôle dans ma propre vie continuait à
me déconcerter, et à me répugner un peu. Je me rendais bien compte
pourtant, et depuis des années, que l’écart croissant, devenu abyssal, entre la
population et ceux qui parlaient en son nom, politiciens et journalistes,
devait nécessairement conduire à quelque chose de chaotique, de violent et
d’imprévisible.
[Que a história política possa ter um papel na minha própria vida continuava
a me desconcertar e a me repugnar um pouco. Eu percebia ainda, e há anos,
que o fosso crescente, que havia se tornado abismal, entre a população e os
que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, devia necessariamente
conduzir à alguma coisa caótica, violenta e imprevisível.]2

Aqui vemos que a alienação política e social, do Homem e da sociedade, permitem a


ascensão de forças radicais. Nesta obra representada a ascensão da política islâmica, que
antes tínhamos um cenário insuportável para a vida humana, e após a tomada de poder
pelo partido Fraternidade Muçulmana, a vida se tornou mais suportável. Ademais,
Houellebecq nos apresenta ainda a crítica de que por mais atroz que pareça a ascensão

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Tradução feita pela autor deste artigo.
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do radicalismo religioso, o personagem encontrou a forma, mesmo que submissa, de


pertencer a um grupo e de realizar seus anseios.
Sendo assim, a grande crítica do autor nesta obra é o posicionamento inerte do
personagem diante os acontecimentos sociais e políticos. Por vários momentos,
François que é um intelectual e professor em uma universidade renomada é
completamente apático ao ver os conflitos sociais que acontecem no subúrbio de Paris e
em outras cidades. No cenário político, ele observa tensões políticas tomarem corpo e
ascenderem a um patamar que coloca em risco as liberdades fundamentais e o direito de
ir e vir dos cidadãos, sem ao menos participar do processo democrático pois ele não
votou nas eleições presidenciais. A partir desta análise, podemos nos questionar,
principalmente na sociedade brasileira, sobre o nosso posicionamento como cidadãos e
como influenciamos nas tomadas de decisão dos governantes que elegemos,
principalmente, em um cenário de crise atual. Este romance nos mostra ainda, a crise do
Homem contemporâneo em relação ao sistema capitalista tão esmagador nos dias atuais,
as dificuldades de relacionamentos que devem ser transpassadas e não tratadas como
produtos de troca, que somos responsáveis pelas nossa história, nossas vidas, pelas
nossas ações e, portanto, pela conquista da nossa felicidade. É necessário entendermos
que é um processo evolutivo e construtivo no qual somos personagens principais.

Bibliografia
BAUMAN, Zigmunt.. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003.
CANDIDO, A. Direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1995.
HOUELLEBECQ, M. Soumission. Flammarion, 2015.

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