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O olhar antes do cinema

Ricardo Costa

Índice têm como origem não unicamente situações


incontroladas mas responsabilidades de pes-
1 Introdução 1 soas que ajudaram a conduzir as coisas nesse
2 Dois modos de ver 1 sentido.
3 Modo de eu olhar pela câmara 3 É certo que todo o progresso tem cus-
4 O que se vê 4 tos e acarreta tragédias, mas a este ponto
5 Como se estivesse no lugar da câmara 5 . . . Sabemos mais ou menos o que ele trouxe,
6 A câmara entre a matéria e o espírito 6 sabemos que aldeias perdidas foram ligadas
ao mundo, modernizadas, mas a que preço
1 Introdução . . . Sabemos do vazio trágico em que foram
deixados certos lugares e certas coisas que
Este artigo foi publicado no Jornal da Edu- o progresso, feito dessa maneira, aniquilou.
cação, em Junho de 1982 e ilustra duas Ficamos também a saber que nada substituiu
coisas: um certo entendimento teórico do realidades admiráveis que foram extintas. É
filme documentário e a metodologia subja- isto que dói, que merece reflexão, mas que
cente aos filmes que nos foi possível fa- nem lamento justifica, porque só nos resta
zer, numa época em que Portugal se abriu à o futuro: que entrevemos mal, porque hoje,
visão, na maior parte dos casos, deslumbrada de entre os responsáveis que temos, há quem
e amarga, de alguns cineastas. tudo faça para que do presente (ou do futuro)
Deixou de se fazer filmes desses, ao nada seja visto daquilo que não lhes interessa
mesmo tempo que, pouco a pouco, o país . . . nem no cinema. Mesmo que isso possa
que deu origem a essas imagens se extinguia. ser belo, comovente, como certas das pes-
Extinguia-se esse país e extinguiram-se os soas, das paisagens, da tal precária riqueza
filmes - precários, à imagem do país, porque do que foi extinto. Não é nostalgia, não!
eram pobres como ele. Pobres neste sentido:
feitos com poucos meios, na proporção da RC - 21/7/97
precariedade que fez com que aquilo que
foi filmado pouco a pouco se extinguisse.
2 Dois modos de ver
Resta-nos o orgulho de terem ficado certas
imagens, que não voltaram a ser vistas. Este Um dia, depois de ter assistido a uma das pri-
desenlace, estes caprichos da história envol- meiras representações do "cinematógrafo",
vem, é claro, um drama e responsabilidades o director do Teatro Robert Houdin, Ge-
que hoje ainda não foi possível precisar e que orge Méliès, pediu a Antoine Lumière que
2 Ricardo Costa

lhe vendesse um dos seus aparelhos. O pai quina de refazer a vida, Louis Feuillade
dos inventores - Auguste e Louis - recusou: revolta-se contra o espectáculo de feira em
tratava-se de um invento de interesse cientí- que o tinham feito degenerar, procura su-
fico, sem carácter comercial, que não tinha perar o artificialismo do Film d’ Art, opção
qualquer interesse para o prestigitador. de elites, e decide insuflar no cinema um
Méliès construiu o seu próprio aparelho, banho de real. Esta decisão justifica a
baseando-se no invento dos irmãos Lumière, existência de um manifesto vigoroso, de só-
e passou a utilizá-lo para fins que desvirtua- lidas convicções: "De même que dans Le
vam inteiramente a intenção inicial dos in- Film Esthétique nous sommes arrivés à pro-
ventores. Até 1914 Méliès realiza centenas duire une impression de pure beauté que ne
de filmes cuja eficácia se fundamenta na font oublier ni les exhibitions à grand spec-
ilusão e fantasia, cria imagens alucinantes e tacle, ni les cavalcades de la Mi-Carême que
chega a fabricar actualidades trucadas. Con- d’aucuns présentent à la clientèle comme le
strói hábil e cuidadosamente cenários que dernier mot du grand art, de même, nous
lhe permitem criar no filme a ilusão da reali- sommes arrivés dans les scènes de La Vie
dade. Telle qu’elle est à donner une impression de
A partir de então, com Méliès, o cinema vérité inconnue jusqu’à ce jour".
invadiu o mundo, reproduzindo-se numa Com Dziga Vertov essa intenção
onda crescente, tornando-se a arte mais per- consolida-se a partir de pressupostos de
feita da verosimilhança. Inicialmente espec- uma filosofia da história, da prática que o
táculo de feira, por excelência, o cinema cineasta deduz a partir dela: o Kinopravda,
pouco a pouco foi conquistando um estatuto o cinema-verdade, o cinema do olhar.
nobre que, em definitivo, o impôs como arte Decifração documental do mundo visível,
nova e, de facto, sem razão para incrédu- todas as suas produções são feitas "fora
los, a sétima. Com técnicas cada vez mais do estúdio, sem actores, sem décors, sem
apuradas em todos os aspectos da produção, representação".
o cinema aperfeiçoou até um grau admirá- Esta necessidade de radicalizar o cinema,
vel essa sua primordial capacidade de criar a de o remeter à sua origem, à sua essência, à
ilusão do real. sua primordial intenção - o registo animado
Mas já nos primórdios, a contestação ori- do real - fundaria de facto uma tradição de
ginal de Antoine Lumière, perante a pre- renovadas práticas experimentais, como se
tensão "indigna"de Méliès, foi reassumida se tratasse de sucessivas variações à volta do
como questão de princípio e prática por ho- mesmo tema.
mens que quiseram, como os irmãos Lu- "Documentário", "cinema-verdade",
mière, usar o cinematógrafo como meio de "cinema-do-olhar", "candid camera", "living
reproduzir o real com rigor "científico", me- camera", "cinema directo"são expressões
nos como processo ideal de fabricar verosi- que traduzem, de uma forma mais lata ou
milhança do que como meio transparente, mais ou menos técnica, a intenção que
como instrumento subtil e eficaz de produzir determinou o invento dos irmãos Lumière.
verdade. O real que a câmara regista ora é sinónimo
Consciente de que o cinema é uma má- de autenticidade, entendida como atitude

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O olhar antes do cinema 3

moral e não como pura situação naturalista 3 Modo de eu olhar pela câmara
- Flaherty que, no filme Louisiana Story, es-
Mas quem não é sensível à magia de um
colheu dois actores do povo para fazerem de
tal invento? Quem não se deixou ao menos
pai e filho numa história autêntica -, ora é de
uma vez tocar pelos sortilégios desse espec-
facto uma situação natural que a câmara deve
táculo de feira, quem não foi surpreendido
registar e respeitar como um olho neutro -
pelo registo de coisas que nunca veria se não
Richard Leacock, que entende que esse pôr a
fosse por interposição desse medium espan-
nu a realidade é imprescindível para fazer o
toso entre os seus olhos e o que viu, quem
público pensar, visto que o outro cinema só
nunca sentiu uma vez só o insensato desejo
contribui para cada vez mais construirmos
de brincar com o invento, como outrora Lu-
uma imagem da sociedade que é ficção -
mière ou Méliès?
ora é sinónimo de matéria, parte integrante
Como muitos dos lunáticos ou curiosos
do mundo físico, pelo que "o realizador do
que se meteram nisso, eu próprio me tornei
filme documentário não pode mentir, não
obstinado e comecei a levar a sério esse de-
pode deixar de ser verdadeiro. A matéria
sejo. Aprendi umas coisas sobre o assunto.
não admite traição (. . . )- Joris Ivens que
Com um pouco de técnica e intuição meti a
filmou, na construção de um dique, o mar da
câmara à cara, carreguei no botão. E não foi
perspectiva da terra, a terra da perspectiva do
possível voltar atrás. Inúmeras e insuspeitas
mar e os dois da perspectiva da máquina que
situações começaram a apresentar-se a meus
constrói o dique - ora é sinónimo da vida do
olhos, situações que me teriam passado des-
homem no seu estado cru - Pierre Perrault,
percebidas se não tivesse resolvido olhar o
que admite no entanto a possibilidade de a
mundo através do olhar reflex da câmara. Fiz
câmara poder participar na acção filmada
opções radicais na vida e, com a prática, ela-
para a tornar mais clara - ora é expressão de
borei, entre outros princípios, um método de
uma situação de algum modo mitificada que
registo que tenho procurado aperfeiçoar.
importa ser vista de uma perspectiva realista
As coisas passam-se assim:
- Jean Rouch, que entende que a câmara
1) Por assim dizer já com a câmara nos
deve não só participar na acção como pode
olhos - determinado um tema ou situação a
tornar-se actor importante ou até mesmo
filmar - procede-se a uma investigação, tra-
insuspeito protagonista dessa acção -, ora
dicionalmente designada como "répérage",
é resultado de outras outras bizarras ou
em que se estabelece um primeiro confronto
notáveis convicções cinematograficamente
com a matéria bruta.
exercidas por esse mundo fora (e muitas
2) Compreendidas as situações observa-
delas ignoradas) procurando todas exercer
das, ou se estabelece um plano de registo
na prática a pretensão visionária dos irmãos
mais ou menos cuidado1 , ou se funda uma
Lumière, identificando-se elas todas com
1
o radicalismo (o puritanismo) do seu pai Esta necessidade tem sido assumida de várias for-
ao recusar a venda do cinematógrafo para mas na prática do filme documentário. Dziga Vertov,
exibições de feira. para alguns filmes, chegou a elaborar, antes de filmar,
um guia de rodagem que era simultaneamente já um
guia de montagem com subtítulos.

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ideia geral directriz que condicionará toda a mara põe-se de lado, sem de facto participar,
actividade de filmagem, deixando uma am- tornando-se um simples observador, retirado
pla margem de previsões para o imprevisto. e esquecido, do que acontece ou vai aconte-
3) Procede-se então à filmagem, onde se cer. Limita-se a estar presente, é aceite por
cumprem estas condições: todos os participantes da acção como se lá
– aproveitamento das situações que cor- não estivesse.
respondam ao plano ou ideia geral que se 4) A partir de então, existindo já um ma-
estabeleceu terial fílmico bastante elaborado, em função
– articulação dessas situações a outras si- da linha condutora que se determinou à par-
tuações motivadas, encenadas com persona- tida, procede-se ao trabalho de montagem,
gens reais que são actores conscientes repre- que obedece a uma repartição do material
sentando a sua própria vida2 , situações diri- e a uma planificação condicionada pela in-
gidas em função de necessidades que a acção tenção, pelo sentido, pela estrutura que final-
possa impor ao próprio acto de filmar mente se pretende dar ao filme.
– manipulação dessas situações tidas
como necessárias em vários graus: é possí-
4 O que se vê
vel ficcioná-las inteiramente com os perso-
nagens reais nos seus papéis reais, ao ponto, Sendo o documentário por natureza e defi-
por exemplo, de se estabelecer ou criar uma nição a fixação em imagem cinematográfica
situação totalmente fictícia como é caracterí- de situações reais e não fictícias - registo
stica do cinema de ficção pura - elaborar pe- de situações ontologicamente verdadeiras -
quenos diálogos ou monólogos para serem o resultado final do filme documentário é de
debitados em situações reais ou adaptadas facto a existência de uma matéria parcelar de
na própria realidade, como coisas realmente movimentos, de imagens e de sons verda-
possíveis deiros e não simplesmente verosímeis. A
– no acto de filmagem, por fim, a con- verosimilhança é o estatuto por natureza do
dição determinante para reforçar o efeito de cinema de ficção : ter a capacidade de ser
realidade e preservar a verdade do aconte- exactamente como se fosse realidade, a ca-
cimento ou da situação é que a câmara se pacidade de, como ficção, ser por vezes mais
afaste. Assim afastada do seu objecto3 , a câ-
nica que Jean Rouch promoveu. Ele, no entanto, pro-
2
De um modo diferente de Dziga Vertov, e desen- cede de modo a que a câmara intervenha no acon-
volvendo uma tendência que pontualmente se prati- tecimento fazendo com que os personagens se con-
cava desde Louis Lumière com todos os operadores frontem numa espécie de psicodrama, a fim de fazer
de filmes de actualidade, Robert Flaherty é o primeiro surgir certas verdades ocultas. No método que preco-
documentarista que conscientemente utiliza a técnica nizamos - e que é possível desenvolver a um extremo
de encenar certas situações. Como exemplo, para re- difícil de prever -, trata-se antes de criar uma situação
construir cenas da vida de Nanouk, o esquimó, no normal ou possível no contexto real em que os per-
interior de um "igloo", Flaherty fá-lo construir um sonagens existem e se movem, dia a dia. Essa situação
"igloo"muito maior que o normal, desprovido de cú- que foi possível criar por exigência da câmara acaba
pula para poder filmar. por, em certo momento, se inscrever naturalmente no
3
Provocar situações cujo desenvolvimento a câ- próprio real: ela seria possível mesmo que a câmara
mara irá explorar para delas retirar revelações foi téc- lá não estivesse.

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O olhar antes do cinema 5

transparente para o espectador que o próprio dadeiro tempo, o momento em que a acção
real. Daí a circunstância de todo o cinema verdadeiramente decorreu. Por muito verda-
de ficção ser inevitavelmente uma arte rea- deira, por muito realista que seja a ficção -
lista, mesmo quando tematicamente não o é no cinema ou na literatura - esse resultado, o
nada. O cinema de ficção é sempre mais rea- realismo ou a verdade que transmite, só fun-
lista que a mais realista literatura, mas essa ciona como convenção, como categoria do
circunstância só é devida à ilusão que cria espírito, como efeito da imaginação. Num li-
ao servir-se (através da transparência da pelí- vro recentemente publicado Roland Barthes
cula, do rigor iconográfico das imagens que cita Janouch que dizia a Kafka: "As pessoas
fabrica) de um simulacro de realidade, re- fotografam coisas para as afastar do espírito.
criada com décors, situações, pessoas e ob- As minhas histórias são um modo de fechar
jectos. Simulacro que, já se sabe, pode ser o os olhos". O espectador de ficção, a certo ní-
mais aleatório e falso deste mundo. vel, vê sempre um filme de olhos fechados.
Ao contrário do cinema de ficção, o docu- É obrigatoriamente cego para certas coisas.
mentário é muito menos uma arte de repre- No filme documentário fica sempre visí-
sentação que uma arte do real, sem necessa- vel, poderosamente presente, algo da reali-
riamente ser realista, nos vários sentidos que, dade viva que o espectador vê, ouve e en-
em teoria estética, esse conceito possa ter. tende, tal como se estivesse presente no lu-
Irmão consanguíneo da fotografia pelo su- gar da câmara, coisa que na ficção ele sabe
porte que utiliza - a película -, o cinema con- à partida ser ilusão pura: na ficção entre
quistou o privilégio de registar a imagem, o a câmara e o mundo existe um parasita, a
movimento, o som e a palavra. Reproduz a mise-en-scène. O espectador do filme docu-
vida: é como se fosse a vida no exacto mo- mentário, de um modo diferente do da ficção,
mento do seu acontecer. Na ficção, de facto, acaba por estar sempre de olhos abertos.
predomina este estatuto. No documentário
a questão é um tanto diferente. No docu-
5 Como se estivesse no lugar da
mentário (e sobretudo no documentário en-
tendido como "puro") vê-se a vida no mo- câmara
mento em que acontece. Em suma: en- É neste lugar estratégico, nesta posição a que
quanto na ficção o real se produz através o espectador do filme documentário é obri-
de um artifício que é a simulação, no docu- gado a estar, que é possível jogar-se com a
mentário ele produz-se através de uma re- sua ingenuidade (o que, no fundo, ele aceita),
presentação tão despojada quanto possível, ao ponto de se deixar manipular. A condição
muito mais pura, visto processar-se através necessária é que ele aceite ser ingénuo, que
de uma transparência irredutível como a do se deixe levar . . . até certo limite, fronteira do
espelho - a da película - e do modo fiel como documentário. O espectador de ficção tam-
o olhar é dirigido, através da câmara. A ir- bém se deixa levar: mais facilmente, bas-
realidade mais sensível que esse expediente tante mais longe e por outras razões.
acarreta é consequência apenas e sobretudo O truque consiste nisto: pôr a câmara nos
de uma certa décalage, de um certo desa- olhos do espectador sem que ele se aperceba
juste da acção filmada em relação ao seu ver-

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que a tem. Este trabalho começa por se fazer de um cinema destes, sendo de custos de
na rua, antes e enquanto se filma. No docu- produção bastante abaixo da média, é uma
mentário, o espectáculo filmado é o que tem solução que vale a pena ser tentada. Aqui,
lugar diante da câmara, directamente, sem por exemplo, neste país pobre e ignorado do
interposto artifício: a realidade "pura"que a mundo e de nós próprios, há muitas verdades
atrai. Quer a câmara participe ou se afaste, que merecem ser reveladas e que o cinema
a realidade registada será sempre verdade. bem pode servir.
Daí a necessidade primária de à partida se
condicionar o espectador para esse efeito.
6 A câmara entre a matéria e o
O documentário (que exige a máxima fi-
delidade) permite manipular, criar, ficcionar, espírito
transformar, ou até mesmo fingir aconteci- No cinema de ficção, a câmara tem muito
mentos que não poderiam existir sem a pre- menos uma função de aparelho fotográfico
sença da câmara e sem a pressuposta neces- que de instrumento intermédio entre o es-
sidade do olhar do espectador. O importante pírito e uma realidade já projectada, como
é que a situação filmada seja ou se trans- as imagens na caverna de Platão. Ela serve
forme numa situação real, de tal modo que, apenas para dar suporte a essa ficção, para
do ponto de vista da câmara, se possa dar gravá-la na película. É um puro instrumento
verdade a essa realidade fabricada. Num ver- intermédio, em certa fase de fabrico, entre
dadeiro lugar, com personagens verdadeiros, uma realidade já ficcionada, encenada e de
em verdadeiras situações, focando-se verda- facto projectada no plateau, e o écran da
deiros problemas, o efeito de verosimilhança sala. Expediente admirável que abre o es-
que se cria com o cinema, com técnica ou pírito para algo que, sendo do seu domínio
imaginação, associado à realidade que se for- exclusivo, se manifesta fora dele: capaz de
jou ou criou e que a câmara filma, pode e levar o espírito onde ele deseja ir, para ver e
deve converter-se num efeito de verdade. A ouvir. Como se o transportasse para fora do
verdade é uma certa forma de conhecimento corpo através dos olhos. Levando-o (visto
do mundo, necessária à sobrevivência do ho- ser inseparável do corpo) ao encontro dessa
mem, que o filme documentário exige como realidade projectada: como se o transpor-
condição formal da sua própria sobrevivên- tasse para fora da caverna. Quando, na ver-
cia. dade, a câmara apenas alcança imagens fa-
Quando no cinema o plateau é a realidade, bricadas, projectadas e reproduzidas no pla-
a fronteira entre o filme de ficção e o filme teau. Parasitando os olhos por um truque de
documentário é indefinida e ocupa uma zona substituição: ao ocupar o lugar dos olhos,
onde são possíveis experiências que poderão a câmara age como se fosse a única janela
trazer resultados surpreendentes. Em países existente entre a physis - a falsa realidade que
condenados a não poderem investir na pro- alcança, a do plateau - e o próprio espírito.
dução de filmes com custos amortizáveis ou Escusado será repetir que este processo -
rentáveis em termos de mercado, em países fazer os olhos ver uma falsa realidade - é o
onde a existência de uma indústria de cinema necessário artifício que, no cinema de ficção,
não é possível com bases sólidas, a prática

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O olhar antes do cinema 7

o espírito inventou para se iludir. No filme


documentário, de um modo diferente, a câ-
mara é directamente apontada para a physis,
para o real. Regista directamente sobre a
physis, sem necessidade da ficção intermédia
que se projecta no plateau. Como resultado
final da intervenção desse olhar "puro"do do-
cumentário, inevitavelmente, porém, a phy-
sis, o real, é também transportada para o in-
terior da caverna, passando a ser do domí-
nio exclusivo do espírito. E a existência que
terá lá, dentro da caverna, a função que irá
cumprir, a fidelidade que mantiver à sua ori-
gem serão sempre questões decisivas do ex-
clusivo domínio do espírito, e que têm a ver
com aquilo que é próprio da ficção.
Quando, no entanto, a câmara regista si-
tuações tocadas, manipuladas ou provocadas
pela mão de alguém na própria physis, no
real que está a acontecer, todas as questões
em jogo passam a ser mais complexas e
as implicações mais graves, em termos de
efeito de registo, em termos de verdade. No
documentário, em que se manipula o real an-
tes de o filmar, a câmara põe em foco uma
outra filosofia, mete em causa problemas que
nos remetem à origem das coisas, a realida-
des e questões anteriores ao próprio cinema.

Ricardo
c Costa, Junho de 1982

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