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RESUMO: O cubano José Martí, no ano de 1891, escreve um texto de grande valor para o
pensamento social latino-americano. Nele, procura investigar alguns elementos sócio-culturais
advindos da singular composição deste conjunto de países, preocupação que desafiava as
gerações precedentes e continuou a sondar tantas outras ao longo do século XX. Porém, Martí,
de modo condensado, reúne nas poucas páginas que compõem seu “artigo-manifesto”, uma
enormidade de assuntos e questionamentos que, até os dias atuais, geram inúmeras
discussões. Dentre as muitas reflexões podemos citar sua defesa à ideia de reciprocidade
amorosa, crítica e investigativa entre os homens de “nossa América”. Este elogio à união em
meio à multiplicidade étnica e cultural subcontinental é patente em diversos momentos do
discurso martiano como, por exemplo, quando diz: “É a hora da avaliação e da marcha unida, e
devemos marchar bem unidos, como a prata nas raízes dos Andes”. O intuito principal desta
investigação sobre este texto medular para o pensamento latino-americano é perceber como
vai se construindo, ideia após ideia, um possível ponto de convergência entre os elementos
constituintes desta “Nossa América”.
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Em relação ao processo de construção do termo e de todo significado
subjacente a ele, a cubana Aimée Gonzales Bolaños, resgata de maneira clara sua
trajetória, dizendo:
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José Martí, guia e apóstolo de nossa guerra de independência contra
a Espanha, ensinou-nos esse espírito internacionalista que Marx,
Engels e Lênin confirmaram na consciência de nosso povo. Martí
pensava que “pátria é humanidade” e nos traçou a imagem de uma
América Latina unida, frente à outra América imperialista e soberba,
“conturbada e brutal” – como ele dizia –, que nos desprezava. (Apud
RETAMAR, 1983, p.62)
Tais reflexões nos levam a observar que, José Martí, ao longo de sua vida, e
durante o processo de composição de sua obra, jamais escreveu por diletantismo. A
tarefa do escritor só se justificava quando colocada a serviço de uma causa, o que
dava ao seu estilo um caráter personalíssimo: vibrante, exuberante, entusiasmado.
Sente-se, assim, por diversos momentos que, por trás do escritor e orador que
emocionava auditórios, existe um idealista convencido da grandeza de seus
propósitos.
Observando este fato, o também cubano e ensaísta, Roberto Fernández
Retamar, desenvolve interessantes afirmações:
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Diante do exposto, concluímos que por trás de um espírito aparentemente
ágrafo se oculta um escritor responsável por uma importante obra, distribuída em
pequenos textos jornalísticos, cartas e poemas, compondo, em seu conjunto, um
material extremamente significativo e prolífico para os estudos latino-americanos.
Julio Ramos, observando a importância do ensaísmo a partir dos escritos
críticos – sociais e artísticos – de Martí sobre a América Latina, chega a significativas
percepções.
Não é casual que nas primeiras décadas deste século [XX] o ensaio
prolifere concomitantemente ao projeto culturalista. A forma do ensaio
representa o lugar ambíguo do literato perante a vontade disciplinar,
característica da modernização. O ensaio – entre a poesia e a
Polígrafo: aquele ciência, como dizia Lukács – resiste à norma da pureza discursiva, à
regulamentação dos discursos especializados. O ensaio opera sobre
que escreve acerca
estes discursos, tomando-os como matéria-prima do olhar integrador,
de assuntos ainda que nunca definitivo (teórico), da cultura. O ensaio é a forma da
diversos. metaespecialidade, reflexão sobre a especialização e crítica da
mesma. (RAMOS, 2008, p.246)
Tais observações nos levam a pensar em José Martí como um singular autor
polígrafo e não ágrafo, permanentemente preso a um lugar ambíguo de atuação por
estabelecer elos entre a produção cultural e a problemática social. Configura-se desse
modo a importância do discurso histórico-social, no projeto de construção identitária
latino-americana, pois por meio dele se revela o processo de emancipação dos países
de colonização ibérica no continente americano. Considerando este fato, Ramos
constata a clivagem de posicionamentos, entre os intelectuais latino-americanos:
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Retamar: “Martí eletriza o público com seu verbo ardoroso, centelhante de metáforas,
que nunca desce a vulgaridades, que fascina. É mais difícil em sua oratória que em
sua poesia, mas se faz entender: comove”. (RETAMAR, 1983, p.20)
Ainda pensando no estilo de Martí, Pedro Henriquez Ureña, afirma que,
possuía: “Estilo sabio por la estructura, claro en el concepto, original en las imágenes,
infinitamente variado en la expresión y con todo y sobre todo, personal y ‘humano’ y
siempre rico de pensamiento”. (UREÑA, 1989, 291) Enquanto, Bella Josef revela:
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mundo todo fosse sua aldeia, podendo, assim, se vingar como bem quiser de seus
rivais e manter seus cofres sempre cheios.
Em seguida, Martí testifica serem as boas ideias capazes de consolidar ações
e acontecimentos de modo perene: “Não há proa que possa cortar uma nuvem de
ideias” (MARTÍ, 1983, p.194). Incentiva com isso o estudo do outro, no
aprofundamento da observação de fatos alheios: “Os povos que não se conhecem
devem ter pressa em se conhecer, como aqueles que vão lutar juntos” (MARTÍ, 1983,
p.194).
De modo vigoroso também impõe ao irmão ciumento sua repreensão, uma
vez que morar na casa menor deve ser igual a morar na maior, se ambos derem-se as
mãos e formarem um único sentimento: “Os que se enfrentam como irmãos
ciumentos, que querem os dois a mesma terra, ou o da casa menor que tem inveja do
da casa melhor, devem se dar as mãos para que sejam um só”. (MARTÍ, 1983, p.194)
Como comprovação afirmativa destes fatos pede que deixemos de ser o povo
que vive solto no ar e passemos a fazer uma marcha unida: “Já não podemos ser o
povo de folhas, que vive no ar, carregado de flores, estalando ou zumbindo, conforme
a acaricia o capricho da luz, ou seja, açoitado ou podado pelas tempestades”. (MARTÍ,
1983, p.194) Para Martí, a cultura americana se estabelece em função da raiz-tronco
da autoctonia, que autoriza e fundamenta novas cadeias de sentidos. Assim, em lugar
da cultura de copa, das folhas e do ar, propõe a cultura do tronco. “Enxerte-se em
nossas repúblicas o mundo; mas o tronco terá que ser o de nossas repúblicas”.
(MARTÍ, 1983, p.197)
Clama, com base na solidariedade, pelo fim de toda e qualquer “tradição
criminosa”, incentivando a devolução de terras injustamente tomadas pelo poder da
força: “Os que, ao amparo de uma tradição criminosa, cercearam, com o sabre
banhado no sangue de suas próprias veias, a terra do irmão vencido, do irmão
castigado além de suas culpas, se não querem ser chamados de ladrões pelo povo,
que devolvam suas terras ao irmão”. (MARTÍ, 1983, p.194)
Propõe um projeto radical que, para que ser realizado seria preciso ações
práticas como o ato de impor ao irmão com mais terras sua devolução aos seus
antigos donos, se não quer ficar marcado na história latino-americana como um
ladrão. Contudo, ao longo de todo ensaio, permanece sempre implícita a ideia de
irmandade entre as mais distantes realidades sociais.
Acredita ser imprescindível para os homens de “nossa América” fazer causa
comum com os oprimidos para que se consiga garantir o sistema oposto aos
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interesses de mando dos opressores. “Descer até os infelizes e levantá-los nos
braços!” (MARTÍ, 1983, p.199). Ou ainda: “A alma emana, igual e eterna, de corpos
diversos em forma e em cor” (MARTÍ, 1983, p.200).
Em consonância a essa mudança radical de comportamento cultural, percebe
ser imprescindível alimentar toda forma de esperança, pois em um pequeno tempo
histórico surgiam, na América Latina, nações prósperas: “De fatores tão
desordenados, jamais, em menos tempo histórico, criaram-se nações tão adiantadas e
compactas”. (MARTÍ, 1983, p.195)
Diante desta constatação otimista, propõe alguns direcionamentos políticos.
Tanto é assim, que afirma ser preciso a organização de um bom governo capaz de
administrar este espaço tão singular do continente americano:
Defende que, os cultos devem aprender a arte do bom governo. Para isso, o
ensino universitário precisa refletir a respeito dos elementos peculiares aos povos da
América, somente assim se formarão bons governantes. Por isso, pede para que
deixemos de adivinhar o mundo com os óculos dos outros, uma vez que a América
padece pelo excesso de ideias e formas importadas que “vieram retardando, por sua
falta de realismo local, o governo lógico” (MARTÍ, 1983, p.197). Devemos buscar,
então, o conhecimento (um “conhecimento de raiz”) para efetuar a resolução dos É um termo que
se refere a algo
problemas que nos são próprios. Segundo Martí, conhecer é resolver. Porém, nem o que seja
livro europeu, nem o ianque podem oferecer a chave para o enigma hispano- relacionado
com a
americano. Hispânia, ou a
Em relação a essa questão, Ramos observa: “O discurso da identidade em pessoas cuja
ascendência
“Nuestra América” se apoia num relato da história, mediante o qual Martí coloca a remonta à
Hispânia. É
problemática – “o enigma hispano-americano” – que seu próprio discurso buscará
também usado
resolver”. (RAMOS, 2008, p.264) E adiante complementa: para referir-se a
tudo aquilo que
O objeto da luta no qual Martí está inserido é a autoridade sobre a tem relação
representação – o saber – do que realmente somos: a chave do com a
enigma. “Nuestra América”, nesse sentido, mais que um “reflexo” da Espanha.
América Latina, é uma reflexão sobre que tipo de discurso podia, de
maneira legítima e eficaz, representar esse campo conflituoso da
identidade. Além disso, no processo de representação do “nós”,
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“Nuestra América” reflete e debate sobre as condições de
possibilidade, assim como as normas da “boa” representação.
(RAMOS, 2008, p.271)
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cultural. Governo e educação nascidos de nossas realidades; saber e
arte em vínculo produtivo; consciência da história vivida e por viver;
busca das formas originais, próprias, nos múltiplos campos da cultura
material e espiritual; abertura ao mundo a partir das raízes na
construção identitária: eis aqui motivos articuladores de uma proposta
utópica progressiva de desafiante modernidade, em cujo centro está
a vocação libertária humana, em uma retomada admirável, entre
outras fontes reconhecíveis, do pensamento mítico ameríndio no qual
se unem a realização espiritual transcendente e a vontade de atuar
sobre o mundo. (BOLAÑOS, 2007, p.485)
Referências bibliográficas
BOLAÑOS, Aimée Gonzales. Nossa América. In: BÉRND, Zilá (Org.). Dicionário de
figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre: Tomo editorial/Editora da
universidade, 2007, p.483-488.
HEREDIA, Fernando Martinez. Nossa América e a águia temível. In: Oito visões da
América Latina (org. Adauto Novaes). São Paulo: Ed. SENAC, 2006.
MARTÍ, José. Nossa América – Antologia. Trad. Maria Angélica de Almeida Trajber.
São Paulo: Hucitec, 1983, p. 194-201.
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