Você está na página 1de 9

II Colóquio da Pós-Graduação em Letras

UNESP – Campus de Assis


ISSN: 2178-3683
www.assis.unesp.br/coloquioletras
coloquiletras@yahoo.com.br

REFLEXÕES SOBRE “NOSSA AMÉRICA”, DE JOSÉ MARTÍ

Davi Siqueira Santos


(Mestrando – UNESP/Assis – FAPESP)

RESUMO: O cubano José Martí, no ano de 1891, escreve um texto de grande valor para o
pensamento social latino-americano. Nele, procura investigar alguns elementos sócio-culturais
advindos da singular composição deste conjunto de países, preocupação que desafiava as
gerações precedentes e continuou a sondar tantas outras ao longo do século XX. Porém, Martí,
de modo condensado, reúne nas poucas páginas que compõem seu “artigo-manifesto”, uma
enormidade de assuntos e questionamentos que, até os dias atuais, geram inúmeras
discussões. Dentre as muitas reflexões podemos citar sua defesa à ideia de reciprocidade
amorosa, crítica e investigativa entre os homens de “nossa América”. Este elogio à união em
meio à multiplicidade étnica e cultural subcontinental é patente em diversos momentos do
discurso martiano como, por exemplo, quando diz: “É a hora da avaliação e da marcha unida, e
devemos marchar bem unidos, como a prata nas raízes dos Andes”. O intuito principal desta
investigação sobre este texto medular para o pensamento latino-americano é perceber como
vai se construindo, ideia após ideia, um possível ponto de convergência entre os elementos
constituintes desta “Nossa América”.

PALAVRAS-CHAVE: José Martí; “Nossa América”; construção identitária.

A América Latina, ao longo do século XIX e XX, recebeu sucessivas leituras


advindas das mais diferentes paragens. Muitas delas não lograram uma disseminação
em larga escala, ficando circunscritas a uma reduzida recepção, porém, outras,
alcançaram posições de destaque e, devido à amplitude de sua difusão, arrebataram
muitos leitores, deixando um número significativo de discípulos.
Esse é o caso de “Nossa América”, texto de caráter persuasivo e doutrinário
cujo intuito de arrebatar aqueles que dedicam alguma atenção às especificidades do
continente americano, está patente no tom discursivo com que suas ideias são
expostas. Por apresentar ainda um olhar marcadamente prospectivo, buscando
sempre formar novos elos de adesão, chamamos de “artigo-manifesto”, uma vez que
estabelece diretrizes básicas para se trilhar um caminho repleto de lutas, armadilhas e
derrotas, mas também, superação, conquista e liberdade, sempre apontando para o
futuro.

397
Em relação ao processo de construção do termo e de todo significado
subjacente a ele, a cubana Aimée Gonzales Bolaños, resgata de maneira clara sua
trajetória, dizendo:

O termo “Nossa América” aparece desde 1875-1878, quando Martí


vive exilado no México e na Guatemala. Certamente o conceito não
permanece invariável. Em contato com um conjunto de experiências
históricas vitais, tem progressivas enunciações, entre as quais
sobressai o discurso Madre América (1889). Atinge sua forma cimeira
no ensaio Nuestra América (1891), de expressão dominantemente
poética e filosófica. Ao lado disso, a imagem-conceito sustentará toda
uma prática discursiva – oratória, narrativa, poesia, epistolário,
jornalismo –, sendo fio de engaste capital na obra martiana.
(BOLAÑOS, 2007, p.483)

Diante de tal percurso transformativo, percebemos que a problemática sócio-


cultural vai se tornando complexa e assumindo maturidade até chegar ao que Bolaños
chama de “forma cimeira”, por seu alto valor expressivo, materializada nas páginas do
ensaio em análise. É válido ainda ressaltar o fato da “imagem-conceito” de “Nossa
América”, servir de sustentáculo para toda a obra martiana, seja ela poética, narrativa,
epistolaria ou jornalística. O certo é que seus sentimentos de afeição às preciosidades
e peculiaridades subcontinentais davam o tom expressivo de sua escrita, ou melhor,
ainda com Bolaños, eram o “fio de engaste capital na obra martiana”.
“É sempre difícil ler, criticamente, um clássico”. (RAMOS, 2008, p.262) Esta
afirmação é do porto-riquenho Julio Ramos, diante de sua proposta de investigar
“Nossa América”. A leitura de um clássico assemelha-se à fruição de uma obra de arte
consagrada ao longo de sucessivas gerações, podendo perder com suas repetidas, e,
muitas vezes, vãs reproduções, o sabor da singularidade de seu momento de
produção. Observador atento deste fato, Ramos conclui seu pensamento dizendo:

Essa é, certamente, uma possível definição do texto clássico: um


acontecimento discursivo que, na história de suas leituras – apagadas
as condições específicas de sua produção – assume um enorme
poder referencial; um texto que, institucionalizado, perde seu caráter
de acontecimento discursivo e passa a ser lido em função da
presença imediata do mundo representado. (RAMOS, 2008, p.263)

Ao longo do século XX diversos foram os momentos em que a figura do


homem-mito, admirável e idealista, José Martí, atingiu o posto central do pensamento
latino-americano. Com a tomada de poder por parte de Fidel Castro, em 1959,
homenagens ao “apóstolo” cubano, morto em combate na luta de independência com
a Espanha, não faltaram. O próprio Castro, por diversas vezes, se refere à Marti, como
quando da homenagem à URSS, no cinquentenário de sua fundação, em 1972,
dizendo:

398
José Martí, guia e apóstolo de nossa guerra de independência contra
a Espanha, ensinou-nos esse espírito internacionalista que Marx,
Engels e Lênin confirmaram na consciência de nosso povo. Martí
pensava que “pátria é humanidade” e nos traçou a imagem de uma
América Latina unida, frente à outra América imperialista e soberba,
“conturbada e brutal” – como ele dizia –, que nos desprezava. (Apud
RETAMAR, 1983, p.62)

O mesmo processo de valorização e revalorização ocorreu com o ensaio


“Nossa América”, sendo lido por diversas vezes, das mais diferentes formas, em meio
aos mais contrastantes contextos, sofrendo, assim, inúmeras interpretações. Muitas
delas ocultam claramente seu caráter de acontecimento discursivo – 1891: busca pela
autonomia definitiva da Ilha em particular e, de “nossa América” de forma geral –
passando a ser compreendido apenas com base na “presença imediata do mundo
representado”.
Entretanto, a marca deixada pelo contundente discurso martiano em “Nossa
América” foi tal, que levou Julio Ramos a considerar: “No ensaísmo – ‘Nuestra
América’ e algumas crônicas anteriores de Martí são os primeiros exemplos –, a
literatura começa a se autorizar como um modo alternativo e privilegiado para falar
sobre a política”. (RAMOS, 2008, p.22). Devido a essa abertura concedida por meio de Que exerce
textos como o de Martí, Ramos em prólogo ao seu estudo adverte: “Se não reduzimos uma atividade
por prazer, e
a leitura a materiais homogeneamente literários é porque pensamos, precisamente, não por
que a categoria da literatura é problemática na América Latina”. (RAMOS, 2008, p.21) obrigação

Tais reflexões nos levam a observar que, José Martí, ao longo de sua vida, e
durante o processo de composição de sua obra, jamais escreveu por diletantismo. A
tarefa do escritor só se justificava quando colocada a serviço de uma causa, o que
dava ao seu estilo um caráter personalíssimo: vibrante, exuberante, entusiasmado.
Sente-se, assim, por diversos momentos que, por trás do escritor e orador que
emocionava auditórios, existe um idealista convencido da grandeza de seus
propósitos.
Observando este fato, o também cubano e ensaísta, Roberto Fernández
Retamar, desenvolve interessantes afirmações:

A primeira vista, a obra escrita de Martí é paradoxal. Por um lado,


Martí não publicou nenhum livro: só alguns opúsculos políticos e dois
cadernos de versos. [...] Acreditamos estar em presença de um dos
grandes espíritos ágrafos, como Sócrates. E, entretanto, o outro lado
desta verdade é que na sua morte, aos quarenta e dois anos, haja
deixado tantas páginas escritas, que a edição, por enquanto, mais
completa de suas obras [...] conta com várias dezenas de volumes.
(RETAMAR, 1983, p.56)

399
Diante do exposto, concluímos que por trás de um espírito aparentemente
ágrafo se oculta um escritor responsável por uma importante obra, distribuída em
pequenos textos jornalísticos, cartas e poemas, compondo, em seu conjunto, um
material extremamente significativo e prolífico para os estudos latino-americanos.
Julio Ramos, observando a importância do ensaísmo a partir dos escritos
críticos – sociais e artísticos – de Martí sobre a América Latina, chega a significativas
percepções.

Não é casual que nas primeiras décadas deste século [XX] o ensaio
prolifere concomitantemente ao projeto culturalista. A forma do ensaio
representa o lugar ambíguo do literato perante a vontade disciplinar,
característica da modernização. O ensaio – entre a poesia e a
Polígrafo: aquele ciência, como dizia Lukács – resiste à norma da pureza discursiva, à
regulamentação dos discursos especializados. O ensaio opera sobre
que escreve acerca
estes discursos, tomando-os como matéria-prima do olhar integrador,
de assuntos ainda que nunca definitivo (teórico), da cultura. O ensaio é a forma da
diversos. metaespecialidade, reflexão sobre a especialização e crítica da
mesma. (RAMOS, 2008, p.246)

Tais observações nos levam a pensar em José Martí como um singular autor
polígrafo e não ágrafo, permanentemente preso a um lugar ambíguo de atuação por
estabelecer elos entre a produção cultural e a problemática social. Configura-se desse
modo a importância do discurso histórico-social, no projeto de construção identitária
latino-americana, pois por meio dele se revela o processo de emancipação dos países
de colonização ibérica no continente americano. Considerando este fato, Ramos
constata a clivagem de posicionamentos, entre os intelectuais latino-americanos:

[...] América Latina existe como um campo de luta, onde diversos


postulados e discursos latino-americanistas têm lutado historicamente
para impor e neutralizar suas representações da experiência latino-
americana; [...] por trás de cada postulado sobre o latino-americano
há o desejo de poder, exercido a partir de lugares diferentes no mapa
das contradições sociais. (RAMOS, 2008, p.262)

Escrito diretamente de Nova Iorque, onde se encontrava exilado, Martí busca


articular a libertação de Cuba do jugo espanhol. Seu texto contém a expressão das
glórias e crises que particularmente o invadiam como homem latino-americano de seu
tempo. Em um “estilo, intrincado e alusivo” (RETAMAR, 1983, p.22) procura estimular
na coletividade um sentimento unificador, com isso aponta para soluções presentes
em caminhos mais agregadores e, consequentemente, mais aptos a obterem
resultados práticos e concretos.
Seu texto apresenta um conjunto de pensamentos condensados em frases
tão enxutas, que ganham força em sua intensa precisão, se transformando em
sequências de aforismos de marcante expressão. Nas palavras de Fernández

400
Retamar: “Martí eletriza o público com seu verbo ardoroso, centelhante de metáforas,
que nunca desce a vulgaridades, que fascina. É mais difícil em sua oratória que em
sua poesia, mas se faz entender: comove”. (RETAMAR, 1983, p.20)
Ainda pensando no estilo de Martí, Pedro Henriquez Ureña, afirma que,
possuía: “Estilo sabio por la estructura, claro en el concepto, original en las imágenes,
infinitamente variado en la expresión y con todo y sobre todo, personal y ‘humano’ y
siempre rico de pensamiento”. (UREÑA, 1989, 291) Enquanto, Bella Josef revela:

De maneira concisa, segura e tenaz pregou a independência


americana, tanto literária como política. Ocupa um posto de
vanguarda entre os valores representativos do continente pela
originalidade inovadora na prosa e na poesia; ambas se igualam.
Suas estrofes eram ondas de poesia, seus discursos, expressão de fé
nos mais puros e nobres ideais. Vocação despertada precocemente
ao toque da devoção pátria, suas primeiras publicações chamam a
atenção para a causa da independência cubana, tal como o fizera
outro cubano ilustre: Heredia. (JOSEF, 1989, p.115)

O intuito último do autor, na realidade, é contrabalançar a história latino-


americana, pois, uma vez que verifica a pesada irregularidade entre as forças que se
antagonizam – elite e povo –, posiciona-se com o intuito de lutar por uma maior
estabilidade social, almejando o equilíbrio entre as partes. Divide, então, os
componentes do campo de ação social em bons e ruins. Bons governos e governantes
em oposição aos maus; homens bons – naturais – em contraposição aos letrados
artificiais. Em certo momento opõe civilização e barbárie, porém com pendor manifesto
à barbárie, por ser esta mais sofrida e inglória. Em relação a essa inclinação martiana,
Ramos faz o seguinte comentário:

O discurso martiano se representa, então, como o lugar da


incorporação daqueles setores do mundo americano que para os
letrados haviam marcado os poderosos limites do valor, da identidade
desejada. Parecia que em Martí falava o outro: a barbárie. (RAMOS,
2008, p.271)

Sendo assim, percebe-se que, de saída, em “Nossa América”, soa um alerta


contra o poder desproporcional que acarreta sobremaneira em vingança entre os
membros de uma sociedade. Observa que a ganância, de um modo geral, produz
como resultado final a ignorância. Por essa razão, afirma: “O que resta de aldeia na
América deverá acordar” (MARTÍ, 1983, p.194). “Nossa América” não deve existir
como uma aldeia, ou seja, não pode permanecer em seu processo de consolidação,
como um horizonte tão reduzido que só abarca, decentemente, sua ínfima elite de
selecionados. A nobre elite seria o “aldeão vaidoso”, pois se comporta como se o

401
mundo todo fosse sua aldeia, podendo, assim, se vingar como bem quiser de seus
rivais e manter seus cofres sempre cheios.
Em seguida, Martí testifica serem as boas ideias capazes de consolidar ações
e acontecimentos de modo perene: “Não há proa que possa cortar uma nuvem de
ideias” (MARTÍ, 1983, p.194). Incentiva com isso o estudo do outro, no
aprofundamento da observação de fatos alheios: “Os povos que não se conhecem
devem ter pressa em se conhecer, como aqueles que vão lutar juntos” (MARTÍ, 1983,
p.194).
De modo vigoroso também impõe ao irmão ciumento sua repreensão, uma
vez que morar na casa menor deve ser igual a morar na maior, se ambos derem-se as
mãos e formarem um único sentimento: “Os que se enfrentam como irmãos
ciumentos, que querem os dois a mesma terra, ou o da casa menor que tem inveja do
da casa melhor, devem se dar as mãos para que sejam um só”. (MARTÍ, 1983, p.194)
Como comprovação afirmativa destes fatos pede que deixemos de ser o povo
que vive solto no ar e passemos a fazer uma marcha unida: “Já não podemos ser o
povo de folhas, que vive no ar, carregado de flores, estalando ou zumbindo, conforme
a acaricia o capricho da luz, ou seja, açoitado ou podado pelas tempestades”. (MARTÍ,
1983, p.194) Para Martí, a cultura americana se estabelece em função da raiz-tronco
da autoctonia, que autoriza e fundamenta novas cadeias de sentidos. Assim, em lugar
da cultura de copa, das folhas e do ar, propõe a cultura do tronco. “Enxerte-se em
nossas repúblicas o mundo; mas o tronco terá que ser o de nossas repúblicas”.
(MARTÍ, 1983, p.197)
Clama, com base na solidariedade, pelo fim de toda e qualquer “tradição
criminosa”, incentivando a devolução de terras injustamente tomadas pelo poder da
força: “Os que, ao amparo de uma tradição criminosa, cercearam, com o sabre
banhado no sangue de suas próprias veias, a terra do irmão vencido, do irmão
castigado além de suas culpas, se não querem ser chamados de ladrões pelo povo,
que devolvam suas terras ao irmão”. (MARTÍ, 1983, p.194)
Propõe um projeto radical que, para que ser realizado seria preciso ações
práticas como o ato de impor ao irmão com mais terras sua devolução aos seus
antigos donos, se não quer ficar marcado na história latino-americana como um
ladrão. Contudo, ao longo de todo ensaio, permanece sempre implícita a ideia de
irmandade entre as mais distantes realidades sociais.
Acredita ser imprescindível para os homens de “nossa América” fazer causa
comum com os oprimidos para que se consiga garantir o sistema oposto aos

402
interesses de mando dos opressores. “Descer até os infelizes e levantá-los nos
braços!” (MARTÍ, 1983, p.199). Ou ainda: “A alma emana, igual e eterna, de corpos
diversos em forma e em cor” (MARTÍ, 1983, p.200).
Em consonância a essa mudança radical de comportamento cultural, percebe
ser imprescindível alimentar toda forma de esperança, pois em um pequeno tempo
histórico surgiam, na América Latina, nações prósperas: “De fatores tão
desordenados, jamais, em menos tempo histórico, criaram-se nações tão adiantadas e
compactas”. (MARTÍ, 1983, p.195)
Diante desta constatação otimista, propõe alguns direcionamentos políticos.
Tanto é assim, que afirma ser preciso a organização de um bom governo capaz de
administrar este espaço tão singular do continente americano:

[...] onde quer que se governe, é preciso prestar atenção para


governar bem; e o bom governante na América não é o que sabe
como se governam o alemão e o francês, mas sim aquele que sabe
de quais elementos está constituído seu país, e como pode guiá-los
conjuntamente para chegar, por métodos e instituições nascidas do
próprio país, àquele estado desejado, onde cada homem se conhece
e cumpre sua função, e todos desfrutam da abundância que a
Natureza colocou para todos no povo que fecundam com seu
trabalho e defendem com suas vidas. (MARTÍ, 1983, p.195-196)

Defende que, os cultos devem aprender a arte do bom governo. Para isso, o
ensino universitário precisa refletir a respeito dos elementos peculiares aos povos da
América, somente assim se formarão bons governantes. Por isso, pede para que
deixemos de adivinhar o mundo com os óculos dos outros, uma vez que a América
padece pelo excesso de ideias e formas importadas que “vieram retardando, por sua
falta de realismo local, o governo lógico” (MARTÍ, 1983, p.197). Devemos buscar,
então, o conhecimento (um “conhecimento de raiz”) para efetuar a resolução dos É um termo que
se refere a algo
problemas que nos são próprios. Segundo Martí, conhecer é resolver. Porém, nem o que seja
livro europeu, nem o ianque podem oferecer a chave para o enigma hispano- relacionado
com a
americano. Hispânia, ou a
Em relação a essa questão, Ramos observa: “O discurso da identidade em pessoas cuja
ascendência
“Nuestra América” se apoia num relato da história, mediante o qual Martí coloca a remonta à
Hispânia. É
problemática – “o enigma hispano-americano” – que seu próprio discurso buscará
também usado
resolver”. (RAMOS, 2008, p.264) E adiante complementa: para referir-se a
tudo aquilo que
O objeto da luta no qual Martí está inserido é a autoridade sobre a tem relação
representação – o saber – do que realmente somos: a chave do com a
enigma. “Nuestra América”, nesse sentido, mais que um “reflexo” da Espanha.
América Latina, é uma reflexão sobre que tipo de discurso podia, de
maneira legítima e eficaz, representar esse campo conflituoso da
identidade. Além disso, no processo de representação do “nós”,

403
“Nuestra América” reflete e debate sobre as condições de
possibilidade, assim como as normas da “boa” representação.
(RAMOS, 2008, p.271)

No que concerne ao passado histórico latino-americano, Martí observa que a


constituição hierárquica das colônias permanecia no interior da organização
democrática das repúblicas. Pois, o problema da independência não era uma
mudança de forma, mas de espírito. Consequentemente, a colônia continuava vivendo
nos mecanismos que permaneciam inalterados e compunham as novas
nacionalidades republicanas. Para Martí, seria preciso que a república lutasse contra a
colônia, abrindo seus braços a todos.
Como é possível observar frente essa breve leitura deste clássico do
pensamento latino-americano, escrito na última década do século XIX, mas de elevada
repercussão ao longo de todo século XX e primeira década do XXI, “Nossa América” é
um terreno imaginário, repleto de projeções utópicas, que busca igualdade, amor,
autenticidade e autonomia para os povos latinos da América.
Possui uma dupla visada: planeja o futuro, sedimentando esperanças,
comportamentos, conselhos para os jovens das novas gerações: “Os jovens
arregaçam as mangas, põem as mãos na massa e a fazem crescer com a levedura de
seu suor. Entendem que se imita demais e que a salvação é criar. Criar é a palavra-
chave desta geração. O vinho é de banana, e se sair ácido, é o nosso vinho!” (MARTÍ,
1983, p.199); e ao mesmo tempo, revisita o passado histórico com o intuito de revelar
alguns dados essenciais.
Seu objetivo, ao retomar aspectos vividos em tempos remotos, liga-se muito
bem à percepção manifesta por Fernando Martínez Herendia ao reler “Nossa
América”, de Martí, em ensaio intitulado “Nossa América e a águia temível”, quando
argumenta: “A dimensão histórica é essencial aos latino-americanos, como a toda
comunidade que foi vítima de colonização, porque somos obrigados a demonstrar
repetidamente nossa especificidade”. (HEREDIA, 2006, p.195)
Entretanto, esse espírito estrategicamente posicionado, capaz de orquestrar
com sábia precisão tanto os aspectos que singularizam estes povos presos a
acontecimentos passados, quanto direcionar os pensamentos em sentido de
superação e transformação dos fatos presentes, com uma juventude comprometida
em construir um novo futuro, fazem deste pequeno ensaio de Martí uma referência
constante:

Essa dupla perspectiva, tanto fundacional como de futuridade, da


Nossa América, igualmente supõe uma complexa tarefa de recriação

404
cultural. Governo e educação nascidos de nossas realidades; saber e
arte em vínculo produtivo; consciência da história vivida e por viver;
busca das formas originais, próprias, nos múltiplos campos da cultura
material e espiritual; abertura ao mundo a partir das raízes na
construção identitária: eis aqui motivos articuladores de uma proposta
utópica progressiva de desafiante modernidade, em cujo centro está
a vocação libertária humana, em uma retomada admirável, entre
outras fontes reconhecíveis, do pensamento mítico ameríndio no qual
se unem a realização espiritual transcendente e a vontade de atuar
sobre o mundo. (BOLAÑOS, 2007, p.485)

A complexidade deste texto tão simples, seu equilíbrio desestabilizador, seu


radicalismo amoroso e sua força suave, fazem da perspectiva fundacional observada
por Bolaños, o mais importante grito de futuridade. Seus múltiplos assuntos: política,
educação, arte, sociedade, e muitos outros, são demonstrativos de que uma proposta
de discussão identitária latino-americana, precisa levar em consideração a amplitude
da existência social, em seus mais diversos aspectos. Desse modo, José Martí não
simplificou a pluralidade de “nossa América”, apenas, de modo louvável, a delineou
buscando elementos e formas americanas, com o intuito de realçar, principalmente,
aspectos de generosidade entre estes povos.

Referências bibliográficas

BOLAÑOS, Aimée Gonzales. Nossa América. In: BÉRND, Zilá (Org.). Dicionário de
figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre: Tomo editorial/Editora da
universidade, 2007, p.483-488.

HENRIQUEZ UREÑA, Pedro. Martí escritor. In: La utopía de América. Venezuela:


Biblioteca Ayacucho, 1989, p.290-293.

HEREDIA, Fernando Martinez. Nossa América e a águia temível. In: Oito visões da
América Latina (org. Adauto Novaes). São Paulo: Ed. SENAC, 2006.

JOZEF, Bella. Primeira geração modernista. In: História da literatura hispano-


americana. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, 3.ed, p.115-116.

MARTÍ, José. Nossa América – Antologia. Trad. Maria Angélica de Almeida Trajber.
São Paulo: Hucitec, 1983, p. 194-201.

RAMOS, Júlio. Desencontros da modernidade na América Latina. Literatura e política


no século 19. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

RETAMAR, Roberto Fernández. Introdução a José Martí. In: Nossa América –


Antologia. Trad. Maria Angélica de Almeida Trajber. São Paulo: Hucitec, 1983, p. 13-
62.

405

Você também pode gostar