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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas


HUM04034 – GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS (2015/2)
Professora: Andrea Fachel Leal
AULA EAD 03/11/2015 – Rodrigo Almeida Soares

O caso de Sandra Maria Santos Queiroz é mais um dentre tantos que já ocorreram e continuarão
ocorrendo diante de um sistema anacrônico que torna a mulher protagonista da vida ou culpada pela morte.
Da mesma forma como a maternidade é santificada a sua não opção é uma afronta à sociedade como um
todo, cabendo a esta mulher a devida retaliação pelo descumprimento de sua função social: procriar.
A mídia trata o caso como de abandono de incapaz. Retrata a história da migrante de uma maneira
rápida e rasteira, como que por obrigação, focando-se na criança deixada em meio à via de um bairro nobre
de São Paulo. Com isso, tira-se o enfoque de todo o contexto que levou a agente a cometer o ato da qual é
acusada, centralizando o foco no ato em si e construindo um pré-julgamento de acordo com os preceitos
morais que envolvem a situação, já enviesados pela situação da mulher em um patamar de desigualdade
dentro da sociedade.
Há de se analisar vários fatores que envolveram a situação: a concepção não voluntária, a
impossibilidade de realizar-se um aborto, o medo de ser considerada leviana pelos patrões, o que lhe
custaria o emprego do qual depende para viver, todas as experiências traumáticas pelas quais a mulher passa
durante a gestação, dentre outros. A personagem já vinha sofrendo violência desde o momento em que se
viu desamparada após descobrir a gravidez e o abandono do seu filho foi apenas um meio de tentar se
limpar dos problemas adquiridos.
Atendo-se estritamente à norma, a forma típica mais específica para o caso em tela é a exposição
ou abandono de recém-nascido. Conforme o Código penal pátrio a prática consiste em abandonar recém-
nascido para ocultar desonra própria, possuindo variações de acordo com o resultado.
No caso em tela a agente tentava ocultar a “desonra própria” e por isso providenciou deixar o
incapaz em via pública. Contudo, é de se ressaltar que, mesmo desconsiderando todo o contexto que
precedeu a atitude, o que ocorre não é um abandono, a partir do momento em que - apesar de debilitada
emocionalmente após passar por trabalho de parto em um minúsculo banheiro de uma dependência de
empregada - a agente ainda permaneceu observando o seu descendente até que alguém pudesse leva-lo.
Caso a sociedade em que esta mulher vive não possuísse tantos preconceitos e ódios eclodindo por
todas as partes, ela não seria a vilã ou criminosa na história, mas sim reconhecida como vítima. Alguém
que é obrigada a levar por 9 meses uma gestação escondida, com receio de sofrer represálias em seu
emprego não pode ser considerada criminosa. Alguém quem é abandonada pelo parceiro durante a mesma
gestação e não vê amparo em local algum não pode ser considerada criminosa. Alguém que dá a luz em um
banheiro apertado não pode ser considerada criminosa.
Sandra Maria Santos Queiroz é a vítima nessa história e não a agressora. A mídia, ao noticiar de
forma irresponsável o ocorrido, denotando seu juízo de valor sobre a autora do ato, fere a dignidade daquela
pessoa que já está transtornada. É uma questão de direitos humanos respeitar o caráter privado do ocorrido,
não levando a cena ao público como uma atração de circo servindo aos espectadores.
Como o apoio necessário, essa tentativa de abandono não teria ocorrido. A sociedade e o Estado
falharam com essa mulher e continuarão falhando com outras, pois é mais fácil criminaliza-la e reproduzir
a desproporcionalidade de ser mulher, que providenciar os mecanismos necessários a dar-lhe poder e
permitir que decida sobre seu corpo e sobre seu futuro.
No que tange à Lei Maria da Penha, infelizmente após várias leituras das matérias sugeridas, não
se vislumbra situação de violência em ambiente doméstico ou familiar no caso em tela, s.m.j., não sendo
caso de aplicação da Lei Maria da Penha com as informações disponibilizadas. No contexto de crítica social,
poderia se dizer que ela sofre violência diária, mas na situação fática o fato da agente esconder sua gravidez
por medo de eventual represália de seus empregadores não configura situação abrangida pela Lei Maria da
Penha, exceto se tal situação se comprovar, quando então poderíamos enquadrar a situação em violência
psicológica, ensejando as medidas cabíveis.
Aceitando que as matérias configuram o crime de calúnia, seria passível de construir o argumento
e enquadrar a referida violência no disposto no inciso V do artigo 7 da Lei Maria da Penha. Contudo, não
resta atendida a condição do ambiente doméstico ou familiar ou mesmo a presença da unidade doméstica,
ou relação íntima de afeto, sendo assim, restam faltantes requisitos de aplicação da norma.
Segue jurisprudência nesse sentido:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. FATO PRATICADO POR
EX-MARIDO CONTRA EX-ESPOSA.
LEI MARIA DA PENHA.INAPLICABILIDADE. Não identificada a submissão da
vítima frente ao agressor, em razão de gênero, situação de vulnerabilidade,
hipossuficiência e inferioridade física. Perturbação praticada por ex-familiar, que sequer
coabita com a ofendida, decorrente de atraso no pagamento de dívida. O vínculo de
relação doméstica, familiar ou de afetividade não foi demonstrado. Conflito negativo
improcedente. (Conflito de Jurisdição Nº 70066023482, Sétima Câmara Criminal,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, Julgado em
17/09/2015)
MANDADO DE SEGURANÇA. INAPLICABILIDADE DA
LEI MARIA DA PENHA. REMESSA AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. Paciente
teria agredido e ameaçado a irmã da namorada. Não restou demonstrada a configuração
de uma das hipóteses previstas no artigo 5º da Lei nº 11.343/06. A relação de namoro
existente entre o paciente e a irmã da ofendida não é capaz de configurar uma unidade
familiar, que se estenda à irmã da namorada. Ainda, a irmã da ofendida declarou que não
possui uma boa relação com a vítima. Assim, não se pode presumir que esta - a irmã da
namorada - e o paciente se consideram aparentados, nem tampouco que possuam uma
relação íntima de afeto. O fato de o paciente ter ajudado financeiramente a família da
ofendida não é suficiente para estabelecer um núcleo familiar, que envolva a irmã da
namorada, com laços afetivos. ORDEM CONCEDIDA. (Mandado de Segurança Nº
70064034630, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Diogenes
Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 11/06/2015)
Com a devida vênia, há uma infração aos direitos humanos da autora do ato, principalmente com
a divulgação desnecessária do nome completo da pessoa, bem como de detalhes do possível crime já
deixando a alcunha de criminosa gravada em sua imagem. Contudo não há situação que configure a
aplicação da Lei Maria da Penha, infelizmente, ao passo que é uma legislação penal que abrange situações
específicas de violência contra a mulher em ambiente doméstico ou familiar contra a mulher.

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