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Quando Lyndon Baines Johnson assumiu a presidência dos Estados Unidos em novembro
de 1963, foi por obra de uma bala. Na verdade, de duas, alegadamente disparadas por um
atirador de 24 anos, ex-fuzileiro naval e militante do movimento Fair Play for Cuba, chamado
Lee Harvey Oswald. Num dos eventos mais chocantes da história política americana — o
313
PATTERSON, James T. Grand Expectations: The United States, 1945-1974. Oxford University Press, 1996, p.
619. (The Oxford History of the United States, vol. X)
314
“Ho, Ho, Ho Chi Minh! A FLN vai ganhar!”
176
primeiro de uma série de assassinatos que marcariam a década —, Oswald pôs fim à carreira de
John Kennedy e abriu o caminho para que o senador do Texas chegasse ao auge da sua.
Tendo assumido a presidência nessas condições trágicas, Johnson assumiu o compromisso
de levar adiante os programas de seu antecessor: “Vamos continuar”, dizia ele. Apesar disso,
LBJ, como ficaria conhecido, acabaria dando seu toque pessoal ao mandato que herdara. Sempre
atribuindo seus planos à memória de Kennedy, o novo presidente logo deu sinais de que
pretendia, ao contrário de JFK, enfatizar as questões domésticas do país. “Educação para todas as
crianças”, “empregos para os que os procuram”, “cuidado para com nossos idosos”, “direitos
iguais para todos os americanos a despeito de raça ou cor”, esses foram compromissos assumidos
por Johnson em seu primeiro discurso ao Congresso, cinco dias após a morte de Kennedy. Na
ocasião, a recepção da audiência não poderia ser mais calorosa: Johnson foi “aplaudido
entusiasticamente”, no que parecia ser o início, trágico, sim, mas ainda impregnado de esperança,
de mais uma presidência democrata liberal.315
Político com mais de duas décadas de experiência nos corredores do Congresso, Johnson
chegou à presidência com mais do que o desejo de fazer valer o legado de Kennedy. Em uma de
suas primeiras mensagens ao Congresso, em março de 1964, Johnson propôs uma Lei de
Oportunidade Econômica que estabelecia vários programas de bem-estar social voltados para a
população mais pobre. Era o início da “guerra à pobreza”, um dos pilares do projeto da “Grande
Sociedade” de Johnson — uma série de iniciativas federais que ampliariam a rede de proteção
social nos EUA, atuando nas esferas da educação, da habitação, do treinamento de trabalhadores
desempregados, da saúde pública, no combate à discriminação racial, entre outras. Conhecedor
dos meandros da política americana, das negociações de bastidores, das técnicas de cooptação e
da administração das variadas sensibilidades dos políticos de seu tempo, Johnson — nascido
numa família modesta no interior do Texas — ambicionava entrar para a história como o
presidente que mais fez pelos oprimidos. A “redescoberta” da pobreza no início da década — em
parte impulsionada pelo livro de Michael Harrington, A Outra América — parecia lhe oferecer a
oportunidade política propícia para levar adiante uma agenda liberal de expansão do bem-estar
social.
Porém, Lyndon Johnson não herdou apenas alguns dos projetos domésticos da política de
Kennedy. O falecido presidente, como se mostrou no capítulo anterior, era um “guerreiro frio”
315
Ibid., p. 524-5.
177
tenaz, como haviam demonstrado suas tentativas de interferir em Cuba, e havia deixado também
certos problemas pendentes na política externa americana. Entre eles, estava o Vietnã.
A história do envolvimento americano com esse pequeno país do Sudeste Asiático estava
diretamente relacionada à Guerra Fria. O Vietnã, que passou a fazer parte da Indochina Francesa,
havia estado sob o domínio francês desde fins do século XIX. Durante a Segunda Guerra
Mundial, o país foi invadido pelos japoneses, enquanto a própria França estava submetida aos
nazistas. Essa situação estimulou o aparecimento de movimentos de libertação nacional, que
antes da guerra já vinham sendo gestados à sombra da eficiente repressão francesa. Entre esses
grupos, os comunistas liderados por Ho Chi Minh se destacavam, e eles acabaram assumindo a
frente de uma ampla coalizão nacionalista, o Vietminh. Com o fim da Segunda Guerra, em 1945,
e antes do retorno dos franceses, os comunistas, contando com uma base sólida de apoio popular,
declararam a independência nacional e iniciaram negociações com a potência colonial. Não
sendo possível chegar a um acordo, os vietnamitas resistiram à restauração dos dominadores e
iniciou-se uma guerra. Em 1954, depois de perdas consideráveis, os franceses, que haviam
recebido um significativo financeiro apoio americano, concordaram em se retirar, deixando o
Vietnã provisoriamente dividido em duas partes, o Vietnã do Norte, governando pelo partido de
Ho Chi Minh, e o Vietnã do Sul, capitalista, cujo governo, chefiado pelo imperador Bao Daí, fora
instalado pelos ex-colonizadores em 1949.316 Os termos da paz e da retirada francesa foram
discutidos em uma conferência em Genebra, ainda em 1954, com a participação de diplomatas
americanos, soviéticos e chineses. Foi estabelecido um acordo que previa a realização de eleições
em todo o território vietnamita, norte e sul, em 1956, para a escolha de um governo único e a
conseqüente reunificação do país. Como garantia de sua lisura, o pleito seria supervisionado por
uma comissão internacional.317
Do ponto de vista americano, porém, esse arranjo era indesejável. Principal responsável
pela derrota francesa, o Vietminh, representado pelo seu Partido dos Trabalhadores (“Lao
Dong”), era um fortíssimo candidato em qualquer eleição popular, e não havia dúvidas de que sua
vitória significaria a implantação de um regime comunista no país. Coerentes com as diretrizes da
Doutrina Truman, que prescrevia a contenção do comunismo fosse onde fosse, e temendo que um
316
DEBENEDETTI, Charles; CHATFIELD, Charles. An American Ordeal: The Antiwar Movement of the Vietnam
Era. New York: Syracuse University Press, 1990, p. 82.
317
ATWOOD, Paul. Vietnam War. Microsoft Encarta Online Encyclopedia 2006. Disponível em:
http://encarta.msn.com/encyclopedia_761552642/Vietnam_War.html. Acesso em: 20 de dezembro de 2006.
178
Vietnã comunista acabasse levando os países vizinhos pelo mesmo rumo (o que se chamaria de
“teoria do dominó”), os Estados Unidos pressionaram Bao Daí a nomear como seu primeiro-
ministro o anticomunista e nacionalista Ngo Dinh Diem, que se recusou, junto com os
observadores americanos, a assinar os Acordos de Genebra. No ano seguinte, Diem realizou
eleições de honestidade duvidosa e se tornou o líder máximo do Vietnã do Sul, com 98,2% dos
votos. Uma vez nessa posição, Diem declarou o Vietnã do Sul uma nação independente, chamada
de República do Vietnã, com capital em Saigon. Como apoio, ele contava com a Organização do
Tratado do Sudeste Asiático, um pacto internacional criado pelos Estados Unidos logo após a
conferência de Genebra com o objetivo de deter o avanço comunista na região.318
Essa manobra de Diem, embora encontrasse algum apoio entre os segmentos não-
comunistas da população, criou também problemas internos. Afinal, quando os combates
cessaram em 1954, muitos membros do Vietminh retornaram para sua vilas nativas no sul,
aguardando a reunificação próxima. Agora, eles, que haviam lutado pela autodeterminação de
todo o Vietnã, se viram alienados de seus companheiros no interior de um Estado autoritário de
legitimidade questionável. Lançados na oposição, esses veteranos logo viram sua base aumentar
entre a população majoritariamente camponesa do país à medida que o governo de Diem adotava
políticas impopulares como: a reversão da reforma agrária implantada nas áreas ocupadas pelo
Vietminh antes de 1954, tirando as terras cultivadas pelos camponeses e devolvendo-as aos
antigos proprietários; a relocação forçada de aldeões para prevenir atividades comunistas e o
alistamento obrigatório de seus filhos no exército; a discriminação oficial contra os seguidores do
Budismo; e, finalmente, a perseguição aos membros do Vietminh ainda presentes no país (a quem
Diem chamava de “vietcongues”, uma forma depreciativa de “comunistas”). Representante dos
católicos urbanos, uma minoria que não passava de 10% da população total do Vietnã, o governo
de Diem não era muito feliz na ampliação de sua base popular.
Em 1960, o descontentamento com o governo ganhou nova força com o surgimento da
Frente de Libertação Nacional do Vietnã do Sul, ou simplesmente Frente de Libertação Nacional
(FLN), um movimento guerrilheiro criado com as bênçãos do Vietnã do Norte e que só não
surgira antes porque a ala nortista do Vietminh temia uma intervenção americana. Embora
liderada por comunistas, a FLN era na verdade uma frente ampla, admitindo qualquer um que se
opusesse ao governo de Diem e tivesse como objetivo a reunificação do país.
318
Ibidem.
179
319
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 83.
320
Ibidem, p. 84.
180
como o “agente laranja”, que visavam a privar os guerrilheiros de seus esconderijos na selva e de
fontes de alimentação, e teriam sido responsáveis pela intoxicação (entre outras seqüelas) de
milhares de pessoas; e o emprego da arma química napalm, um composto incendiário de efeitos
assustadores quando atingia seres humanos.321
Nesse contexto, a FLN florescia, enquanto o mal-preparado e pouco motivado Exército da
República do Vietnã (ERV) colecionava derrotas e perdas desproporcionais à sua superioridade
numérica sobre o inimigo. Em janeiro de 1963, por exemplo, um grupo de 2.000 soldados sul-
vietnamitas encontraram um outro, de 350 guerrilheiros, em Ap Bac, uma vila ao sul de Saigon,
já no delta do Rio Mekong.
Foi exatamente nesse ano que o Vietnã começou a receber atenções um pouco maiores
fora dos círculos da Casa Branca. Um punhado de críticos apareceu, incluindo o acadêmico e
conselheiro de Kennedy, Hans Morgenthau, o líder socialista Norman Thomas, o jornalista
Walter Lippmann, o pacifista A. J. Muste e líderes negros como Bayard Rustin e A. Philip
Randolph. Muito dispersos (e certamente ainda não tão engajados) para constituírem um
movimento, eles mostravam que a relativa invisibilidade do Vietnã aos olhos do grande público
tendia a diminuir com o tempo. Ainda uma questão conhecida apenas pelos cidadãos mais
informados ou envolvidos com o pacifismo — há uma referência ao Vietnã na Declaração de
Port Huron —, o Vietnã aos poucos iria ganhando importância.
Coube a Lyndon Johnson tirar a guerra vietnamita do campo dos especialistas e levá-la às
manchetes. No primeiro dia de agosto de 1964, o destróier americano Maddox teve um breve
enfrentamento com torpedeiros norte-vietnamita no Golfo de Tonkin. O presidente foi informado,
mas nada repassou ao Congresso ou ao público. Em vez disso, Johnson mandou um segundo
destróier, o C. Turner Joy, para auxiliar o Maddox em suas operações. Quando chegou um
relatório informando a respeito de um novo confronto, em 4 de agosto, o presidente anunciou que
321
ATWOOD, op. cit.
322
Ibidem.
181
o Vietnã do Norte tinha disparado contra as duas embarcações, e retaliou com um ataque aéreo de
cinco horas contra bases torpedeiras inimigas e depósitos de combustível (o que resultou na
morte de um aviador americano). Em seguida, LBJ usou os incidentes para pedir ao Congresso
que o autorizasse a empregar “todas as medidas necessárias” para “repelir quaisquer ataques
armados às forças dos Estados Unidos e a prevenir futura agressão” na área. Em resposta, um
Congresso patrioticamente excitado aprovou a Resolução do Golfo de Tonkin, com votações de
416 a zero na Câmara dos Deputados e 88 a 2 no Senado (os dois opositores solitários foram
Ernest Gruening, do Alasca, e Wayne Morse, de Oregon). A resolução dava amplos poderes ao
presidente para levar a intervenção em um distante país rural do Sudeste Asiático até onde fosse
preciso — além, inclusive, do que os congressistas imaginavam na época.323
O incidente de 4 de agosto em Tonkin fora, na verdade, mais nebuloso do que LBJ dera a
entender ao se dirigir ao Congresso. Não se tinha realmente certeza de que os norte-vietnamitas
haviam feito disparos contra os destróieres, não houve danos, ferimentos ou mortes; o relatório de
ataque se baseava unicamente em sinais de radar que os próprios militares admitiam que
poderiam ter outras causas, inclusive meteorológicas. Ainda assim, Johnson e seu secretário de
Defesa, Robert McNamara, preferiram usar os relatórios para fins mais políticos do que
propriamente militares: “mostrar aos norte-vietnamitas que os Estados Unidos estavam dispostos
a revidar”, e aos americanos que Johnson “era tão durão, ou mais, que Barry Goldwater, seu
oponente na campanha política” pela presidência. Esse tipo de manobra insincera envolvendo os
fatos da guerra seria recorrente ao longo do seu período na presidência.
Apesar disso, Johnson não começou uma grande escalada, ao menos não imediatamente.
O que ele fez foi aproveitar os ganhos políticos de sua demonstração de firmeza diante da
“provocação” do inimigo, refletida nos 85% de aprovação popular à sua reação aos incidentes de
Tonkin, segundo pesquisas de opinião realizadas logo depois.324 Com isso, LBJ tirou do
candidato republicano Barry Goldwater — famoso por declarações como a de que empregaria
armas nucleares no Vietnã — o monopólio da imagem de líder altivo e determinado na defesa
dos valores americanos contra a agressão comunista. Ao mesmo tempo, diante de um
anticomunista extremado como Goldwater, LBJ podia se apresentar como o candidato da
moderação, da busca de soluções pacíficas sempre que possível. E isso incluía evitar que a guerra
323
PATTERSON, op. cit., p. 603.
324
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 98.
182
325
The Columbia World of Quotations 1996. Disponível em: http://www.bartleby.com/66/71/31071.html. Acesso
em: 20 de dezembro de 2006.
326
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 98.
327
PATTERSON, op. cit., p. 595.
328
ATWOOD, op. cit.
329
PATTERSON, op. cit., p. 595.
183
governo vietnamita viria a admitir apenas 1,5 milhão de mortos, até que documentos revelados
em 1995 viriam a aumentar essas cifras para 1 milhão de combatentes e 4 milhões de civis,
tomando a população vietnamita (Sul e Norte) como um todo.330
Com a escalada — iniciada, ressalte-se, sem uma declaração formal de guerra —, o que
era um assunto marginal de política externa entrou para a pauta do dia. Pesquisas de opinião
indicavam que a grande maioria dos cidadãos americanos apoiava a intervenção na Ásia. Os
meios de comunicação “confiavam pesadamente em comunicados dos líderes políticos e militares
americanos, e os jornais imprimiam milhares de matérias com estatísticas grandemente infladas
sobre a contagem de corpos dos inimigos e outras supostas realizações” das forças americanas no
Vietnã.331 Entretanto, após o anúncio dos bombardeios no Vietnã do Norte, a Casa Branca passou
a receber centenas de telegramas por semana, dos quais os que condenavam a medida superavam
os de apoio numa razão de seis a doze para um.332 Era o primeiro sintoma de que, se havia um
apoio majoritário, a Guerra do Vietnã estaria longe de contar com um consenso. Como Johnson
em pouco tempo iria descobrir, a guerra na Ásia teria uma segunda frente de batalha, e esta era na
própria América.
significativa base de dissenso da política para o Vietnã, mas ainda não uma
oposição organizada. No geral, os críticos ainda não estavam tão alienados das
autoridades a ponto de estarem preparados para apoiar um protesto mais ativo,
concentrado e constante. Mas o dissenso já tinha adquirido quatro
características duradouras. Primeira, ele era frágil mas amplo, formalmente
desorganizado mas expressando o variado sentimento antibelicista no país.
Segunda, a oposição era animada (mas não dominada) por ativistas da
movimento pela paz e era legitimada (mas não liderada) por membros da elite
tomadora de decisões do pais. Terceira, a despeito de sua manifestação
essencialmente moderada, o desafio à política oficial tinha começado a ter um
sabor esquerdista por várias razões, incluindo o declínio do ativismo liberal pela
paz depois de 1962, a convergência de uma esquerda radical sobre a questão da
guerra em 1964, o surgimento de uma questão decisiva sobre a “retirada
330
Vietnam War. Disponível em: http://www.vietnam-war.info/. Acesso em: 20 de janeiro de 2007.
331
PATTERSON, op. cit., p. 620.
332
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 106.
184
Por fim, o dissenso antibelicista era fragmentado por uma divisão incipiente
[...], [pois] cada facção antibelicista tinhas suas próprias razões para protestar
contra a política de Washington.333
A oposição à guerra seguia essencialmente quatro linhas de raciocínio, para as quais havia
colaborado a observação de situações parecidas em guerras anteriores, como a dos franceses na
Argélia e na Indochina e a dos próprios americanos na Coréia. Eram as seguintes:
A primeira, que ia ter ampla repercussão nos círculos estudantis e na Nova Esquerda em
particular, era de natureza moral: os Estados Unidos não tinham o direito de “lutar até o último
vietnamita em prol de um regime não-comunista em Saigon contra uma revolução liderada pelos
comunistas à sombra da China”, uma vez que isso poderia significar uma guerra tremendamente
custosa para a população do Vietnã. O uso de armas químicas e de “aldeias estratégicas” só fez
reforçar esse argumento, convencendo muita gente de que a luta contra a FLN era muito mais
brutal e desumana do que um governo comunista poderia vir a ser. Também entrava nesse tipo de
consideração se valia a pena sacrificar a vida de jovens americanos em uma guerra questionável
que não visava a combater qualquer ameaça direta aos Estados Unidos.
A segunda era de caráter prático: a intervenção militar no Vietnã era inútil, pois seria
impossível estabilizar o Sul, dada a sua fragilidade política. Conseqüentemente, mesmo uma
ocasional vitória militar seria vã diante de um desastre político. Além disso, o esforço necessário
para obter essa vitória excederia qualquer interesse concreto que o Vietnã pudesse ter para os
EUA. Essa era uma linha argumentativa freqüente entre críticos de elite como Walter Lippmann.
A terceira, de caráter geopolítico, era de que a guerra era contraproducente e mesmo
prejudicial aos interesses americanos no mundo, e que seria melhor buscar soluções negociadas.
Implícito nesse argumento estava a idéia de que a grande ameaça à segurança americana e o alvo
real da intervenção no Vietnã era a China, que, num cenário de guerra no país vizinho, poderia
intervir numa escala ainda maior do que na ocasião da Guerra da Coréia. Uma variante era a
defesa de conversações com Ho Chi Minh, visando a estimular seu nacionalismo e afastá-lo da
influência de Pequim, de modo a torná-lo uma espécie de Marechal Tito da Ásia.
Finalmente, a quarta linha de crítica, relacionada à primeira, dizia respeito aos ideais
americanos. Além de acusações de sonegação de informações por parte do governo e a suspeita
333
Ibidem, p. 101.
185
diante da falta de propostas alternativas por parte do Congresso e de outras instituições políticas,
havia uma questão ético-ideológica: era legítimo, em nome da liberdade e da democracia, intervir
no país alheio para deter uma insurreição popular autêntica, embora liderada por comunistas? E
ainda por cima recorrendo a métodos como o da relocação forçada de aldeias inteiras, enquanto
era tão difícil, por exemplo, conseguir as devidas medidas federais no combate à violência racial
no Sul?334
“‘Comecem com a idade de vinte e três anos, disse ele, ‘Se não for o bastante,
vão para vinte e dois, vinte e um, vinte, e finalmente dezenove. Pela primeira
vez, parecia, os filhos diplomados da classe média poderiam enfrentar os
terrores da selva.”337
Constituindo a parte mais culta da população na faixa etária do serviço militar, não chega
a surpreender que a primeira manifestação de repercussão nacional contra a guerra tenha sido o
teach-in na Universidade de Michigan em Ann Arbor, e que teve entre seus organizadores
ninguém menos que Arnold Kaufman. Na noite de 24 para 25 de março de 1965, e apesar da
oposição de vários políticos do estado, mais de 3.000 estudantes, professores e funcionários
334
Ibidem, p. 87-91.
335
Ibidem, p. 91.
336
SALE, Kirkpatrick. SDS. New Yotk: Vintage Books, 1973, p. 253.
337
PATTERSON, op. cit., 632.
186
338
DEBENEDETTI; CHATFIELD, p. 108.
339
Cf. HEINEMAN, Kenneth J. Campus Wars: The Peace Movement at American State Universities in the Vietnam
Era. New York: New York University Press, 1993, 347 p.
187
No entanto, a Guerra do Vietnã era um produto da Guerra Fria, uma situação que muitos
americanos ainda viam em termos de um enfrentamento entre o bem e o mal. Conseqüentemente,
340
BERGER, Dan. Outlaws of America: The Weather Underground and the Politics of Solidarity. Oakland: AK
Press, 2006, p. 34.
341
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., . 116.
342
Essa era uma proposta de Tom Hayden rejeitada em uma reunião da SDS, e que aludia aos congressos
continentais estabelecidos pelos então colonos americanos, em 1774 e 1775, para decidirem como agir frente ao
endurecimento das normas britânicas para as Treze Colônias. Formalmente ilegais pelas leis britânicas, foi no
Segundo Congresso Continental que se decidiu empreender a guerra pela independência.
343
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 117.
188
essas nuances do movimento antibelicista nem sempre eram compreendidas pelo público em
geral. Para muitos, os ativistas pela paz eram tolos ou inocentes úteis servindo inadvertidamente à
causa do comunismo, na melhor das hipóteses; na pior, eram simplesmente comunistas. Por causa
de sua oposição a um conflito oficialmente apresentado como o auxílio a um país aliado sob
ataque comunista, esses militantes eram “rotineira e indiscriminadamente desqualificados como
idiotas articulados [...]. Editorialistas reclamavam que, ao encorajarem os vietcongues a
calcularem mal a vontade da nação, os críticos estavam prolongando a guerra, quando não
promovendo o comunismo”.344 Esse tipo de acusação era levada tão a sério que o senador Dodd,
encarregado do Subcomitê de Segurança Interna, prometeu que investigaria as fontes comunistas
dos teach-ins; dois anos mais tarde, em 1967, o próprio LBJ pediria à CIA que procurasse provas
de que o movimento antibelicista era orquestrado por comunistas. Nada foi encontrado.345
Naturalmente, havia comunistas e simpatizantes no movimento antibelicista, mas eram
uma minoria, longe de ter condições para organizar um movimento tão descentralizado e diverso.
Entretanto, o antibelicismo militante, fosse na versão gradualista liberal ou na da retirada
imediata dos radicais, crescia continuamente a cada ano, embora jamais chegassea constituir mais
que um movimento minoritário. E para esse crescimento colaboravam muito mais os atos do
próprio governo, com sua escalada contínua e intensificação do recrutamento, do que qualquer
conspiração ideológica. Sobretudo para os radicais, e aí se pode incluir toda a Nova Esquerda
estudantil, um fator particularmente exasperante era a aparente inutilidade da escalada de
protestos em produzir efeitos sensíveis na política do governo Johnson. Petições, marchas,
protestos de rua, panfletos, audiências públicas no Congresso promovidas pelos poucos políticos
que se opunham à escalada — todo o arsenal não-violento seria largamente experimentado nos
primeiros três anos após Tonkin, sem que o governo de LBJ diminuísse o número de tropas em
um único homem. Embora o próprio presidente ficasse cada vez mais exaurido e emocionalmente
desgastado à medida que a situação no Vietnã se prolongava sem uma perspectiva concreta de
vitória,346 a guerra ganhou cada vez mais prioridade em sua agenda de governo, inclusive em
prejuízo dos programas da Grande Sociedade. Tendo procurando conciliar a guerra com as
reformas sociais pelo tempo que pôde, Johnson acabaria tendo de optar por uma ou outras, dado o
considerável aumento nas despesas representado pela escalada; em 1968, a opção foi feita: os
344
Ibidem, p. 118.
345
PATTERSON, op. cit., p. 633.
346
Ibidem, p. 629-636.
189
Desde sua fundação, a SDS entendeu que uma organização radical comprometida com a
reforma da sociedade americana deveria privilegiar os problemas internos do país. Aliás, um dos
pilares de sua crítica à Velha Esquerda e à política estabelecida nos anos da afluência era
justamente o de que a política externa (leia-se: a Guerra Fria) tinha uma importância
desproporcional na agenda da nação, ao passo que questões domésticas prementes, como os
direitos civis dos negros, eram tratadas com circunlóquios e medidas simbólicas. Na Declaração
de Port Huron, já se lia que “um anticomunismo irracional tem se tornado um grande problema
social para aqueles que querem construir uma América mais democrática”, e por isso o “debate
político é restrito, padronizado, a ação é inibida por demandas de ‘unidade’ e ‘comunhão’ em
face do perigo declarado”.348 A SDS tinha como premissa que a melhor maneira de combater os
excessos americanos na Guerra Fria era desfazer o monopólio da “elite do poder” apontada por
C. Wright Mills e aumentar o grau de democracia na sociedade, incentivando a participação real e
eficaz dos cidadãos na tomada das decisões que os afetavam. Em outras palavras, aplicando a
democracia participativa.
Portanto, era natural que assuntos de política externa tivessem um interesse secundário na
pauta da organização, enquanto causas como o combate à segregação no Sul tivessem máxima
prioridade. Embora o desarmamento e a paz mundial recebessem menções em seus textos
(inclusive no manifesto de 1962) e fizessem parte dos muitos tópicos previstos pela abordagem
347
MATUSOW, Allen. The Unraveling of America: A History of Liberalism in the 1960s. New York: Harper &
Row Publishers, 1984, p. 171-173.
348
The Port Huron Statement. In: MILLER, James. Democracy Is in the Streets: From Port Huron to the Siege of
Chicago. New York: Touchstone/Simons & Schuster, 1987, p. 350
190
multitemática da SDS, nunca foram o foco principal. Mesmo quando surgiu uma emergência
nacional como a Crise dos Mísseis, a organização encontrou-se muito desestruturada para
coordenar qualquer ação significativa. Já na ocasião da Resolução do Golfo de Tonkin, a SDS, já
um pouco mais organizada e com mais pessoal, estava com a maior parte de seus melhores
quadros e recursos envolvidos com os projetos de organização comunitária. Nada levava a crer
que uma guerra distante e provavelmente rápida iria se tornar o seu principal foco de atuação nos
anos seguintes.
O primeiro contato com a questão do Vietnã veio por meio do PREP (Peace Research and
Education Project, Projeto de Educação e Pesquisa da Paz), o centro de pesquisa de um homem
só criado por Richard Flacks e que fora assumido por Todd Gitlin e Paul Booth. De caráter
essencialmente acadêmico, e longe de ter o prestígio do ERAP entre os membros da organização,
o PREP foi o responsável pela introdução de questões internacionais na pauta de manifestações
da SDS em nível nacional. Foi por sua iniciativa que o jornalista I. F. Stone foi convidado para
uma reunião do Conselho Nacional da SDS em 29 de dezembro de 1964. Stone “apresentou uma
história lúcida do envolvimento da América no Sudeste Asiático”, explicou as razões da guerra e
por que os EUA deveriam sair.349 No dia seguinte, após longas discussões e duas votações, o
Conselho Nacional aceitou a proposta de Gitlin de realizar uma marcha em Washington
protestando contra a intervenção americana no Vietnã. Segundo a proposta de um dos delegados
presentes, também submetida a votação e aprovada, a justificativa do projeto era que a SDS
“advoga que os Estados Unidos saiam do Vietnã pelas seguintes razões: a) a guerra fere o povo
vietnamita; b) a guerra fere o povo americano; c) a SDS se preocupa com o povo vietnamita e o
povo americano”. Apesar da oposição de vários dos presentes, particularmente o pessoal do
ERAP, para quem uma marcha era algo pouco impressionante, e dos temores de envolver a
organização em um grande evento de tema único, decidiu-se que o evento seria realizado nas
férias de primavera, em abril.
Foi ainda nessa mesma reunião do Conselho Nacional que a SDS apresentou o que Paul
Booth definiria como “o primeiro exemplo de sectarismo”. Além dos já citados ERAP e PREP,
existia um terceiro projeto, liderado por Steve Max e Jim Williams, chamado Political Education
Project (Projeto de Educação Política, PEP). O PEP trabalhava com uma das propostas inclusas
na Declaração de Port Huron, a de que era possível “realinhar” o Partido Democrata à esquerda,
349
SALE, op. cit., p. 170.
191
tornando-o de fato um partido progressista e distinto do Republicano. Para isso, diziam seus
membros, era preciso trabalhar dentro do sistema eleitoral — por exemplo, através de pressão a
favor de leis no Congresso e o engajamento (com ressalvas) na campanha de Lyndon Johnson à
presidência, e que tinha como lema “Part of the way with LBJ” (“Parte do caminho com LBJ”).
Um motivo adicional para esse apoio era o temor em relação a uma possível vitória de Goldwater
e a conseqüente guinada da política nacional para a direita mais reacionária. Entretanto, o
afastamento da SDS em relação a liberais como Johnson era tão grande nesse momento que
figuras de peso na organização, como Al Haber, estavam fazendo campanha contra o voto
alegando que uma grande vitória de LBJ significaria o triunfo de uma política centrista em
detrimento dos extremos, “o extremo de Goldwater e também o nosso”.350 Quando Max e
Williams compareceram ao Conselho com uma elaborada proposta de pesquisa e promoção de
legislação progressista e um projeto de registro de eleitores na cidade de Cairo, Illinois,
encontraram um ambiente hostil. Em meio a acusações e insinuações de que fariam apologia ao
liberalismo corporativo, os dois foram “sangrados”351 no Conselho. A proposta de legislativa foi
cortada até se reduzir a um esforço de propaganda a favor da contestação que o Partido
Democrático da Liberdade do Mississippi, e o projeto de registro eleitoral foi tirado deles e
entregue ao ERAP, que o abandonou em dois dias. Era o fim da linha para o PEP. Dois meses
depois, na correspondência de trabalho enviada aos membros-chave da organização, Max
comunicou oficialmente a extinção do projeto, acrescentando:
Vamos esperar que, agora que o PEP se dissolveu e sua equipe se dispersou,
não haja mais desculpas para a falta de diferenças políticas abertas e legítimas
na SDS, e que aqueles que lidaram com a situação em termos faccionais sejam
agora forçados a se mostrar e a defender uma posição política real.
Essa rejeição das formas representativas tradicionais do sistema político, o próprio campo
de ação do PEP, expressava o medo de “cooptação” pelo liberalismo no poder, que havia se
tornado corrente na maior parte dos membros da SDS. Para eles, especialmente depois da
350
Ibidem, p. 156.
351
Ibidem, p. 157.
192
O perigo com esses programas liberais, como dizia um paper preparado para a
convenção de 1964 da SDS dizia, era que “o liberalismo corporativo pode
produzir programas econômicos que pareçam ser iguais aos dos movimentos
insurgentes”. Para distinguir programas radicais genuinamente igualitários das
reformas liberais “simbólicas” projetadas apenas para cooptar o dissenso e
firmar o sistema, a SDS se sentiu impelida a pôr cada vez mais ênfase “na
questão do poder e da participação”. Ao mesmo tempo, a SDS tornou-se cada
vez mais crítica das estruturas e normas liberais — os conflitos políticos na
América eram “estéreis, retóricos e desprovidos de significado”, as eleições
tinham “uma aura de irrealidade sem escolha significativa”, e a liberdade
intelectual era uma farsa. O liberalismo americano do século vinte estava
“comprometido com uma política antidemocrática e manipuladora”. Para
muitos SDSers, definir sua própria identidade cada vez mais significava rejeitar,
352
até demonizar, o liberalismo.
Esse antagonismo era particularmente nítido nos círculos do ERAP, que, como já foi dito,
incluía boa parte dos principais quadros da organização. Para eles, o liberalismo no poder se fazia
sentir mais diretamente por meio de “assistentes sociais, equipes do departamento de bem-estar
social, sindicatos, organizações religiosas”,353 que muitas vezes constituíam um empecilho à
mobilização e à conscientização radical que os organizadores comunitários tentavam promover.
Fora os conflitos habituais que os próprios habitantes das comunidades tinham com os
funcionários públicos encarregados de lhes entregar os benefícios e fiscalizar o seu merecimento,
havia a questão ideológica de se deixar envolver pelo sistema. Afinal de contas, o objetivo do
ERAP não era simplesmente obter melhorias materiais imediatas (embora, como se demonstrou,
este acabasse sendo o seu resultado prático para as comunidades envolvidas), mas iniciar um
movimento de massa. Ao oferecer formas mais “fáceis” para ganhos de curto prazo, o liberalismo
e o aparato governamental que ele comandava ameaçavam atenuar o radicalismo dos
organizadores e desmobilizar as comunidades em que estes atuavam.
352
ELLIS, Richard J. The Dark Side of the Left: Illiberal Egalitarianism in America. Lawrence: University Press of
Kansas, 1998, p. 129.
353
Ibidem.
193
Esse era a tendência da organização, ainda relativamente obscura, quando o ano de 1965 a
catapultou para a fama.
Assim começava um artigo de Fred Powledge publicado na primeira página do jornal The
New York Times em 15 de março de 1965. Era uma das primeiras reportagens do jornal a respeito
da “Nova Esquerda estudantil”.354 Não por acaso, o dono da festa mencionada era Bob Ross, e os
convidados sentados no chão, todos membros da SDS. Powledge fizera uma pesquisa de meses
para compor um retrato adequado do movimento, entrevistando mais de 70 ativistas em Nova
York, Chicago, Atlanta, Newark, S. Francisco, Louisiana e Austin . Sua descrição segue, após um
breve resumo de protestos dos quais os estudantes tomaram parte, dizendo:
Eles não negam que parecem muito com os jovens radicais dos anos trinta em
suas aspirações. Alguns deles, que comparam seu movimento a uma
“revolução”, querem ser chamados de radicais.
[...]
354
GITLIN, Todd. The Whole World Is Watching: Mass Media in the Making & Unmaking of the New Left.
Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1980, p. 26-7.
194
“As pessoas são manipuladas. O tipo de ética que nossos pais pregavam não é
praticado, pois agora nós vemos como nossos pais realmente vivem.
[...]
Suas conversas mostram que eles não são nem dirigidos nem inspirados pelo
comunismo, como alguns de seus críticos têm alegado. “Você pode dizer que
somos a-comunistas”, disse um deles, “assim como pode dizer que somos
amorais e a-quase qualquer outra coisa.”
[...]
[...]
“Nós rejeitamos a idéia de que você pode trazer mudanças se elegendo para a
legislatura e então concedendo a mudança a partir de cima”, disse ele. “De
alguma forma, sob esse sistema, os pobres ainda são tratados de maneira
pobre”.355
355
POWLEDGE, Fred. The Student Left: Spurring Reform. The New York Times. 15 de março de 1965. Disponível
em: http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=F40D14FA3E5812738DDDAC0994DB405B858AF1D3.
Acesso em: 22 de dezembro de 2006.
195
356
GITLIN, Todd. The Sixties: Years of Hope, Days of Rage. New York: Bantam Books, 1987, p. 179.
357
JONES, Theodore. 49 Arrested at Chase Building in Protest on South Africa Loans. The New York Times. 20 de
março de 1965. Disponível em:
http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=F50910FA3E5812738DDDA90A94DB405B858AF1D3. Acesso em:
22 de dezembro de 2006.
196
descoberto isso entrevistando a equipe da SDS ou lendo seus numerosos relatórios”.358 Assim, o
primeiro ato oficial de desobediência civil359 organizado pela SDS foi minimizado pela imprensa.
Fosse como fosse, um mês depois a organização voltaria às manchetes.
A marcha de Washington foi marcada para o dia 17 de abril. Aguardava-se inicialmente
um público de aproximadamente 3.000 pessoas. Na primeira vez que a SDS participara (mas não
liderara) de uma manifestação pela paz no Vietnã, ali mesmo em frente à Casa Branca, em 20 de
fevereiro, o público fora de 400 pessoas, com direito a uma contra-manifestação de estudantes de
direita.360 Para a sua própria marcha, porém, a SDS concentrou todas as forças, chegando a
aumentar o número de funcionários em tempo integral do Escritório Nacional de quatro para
nove (todos com salários de subsistência). Foram impressas 150.000 convocações para a marcha,
e foram preparados 15.000 broches, além de se abrir um escritório em Washington apenas para
acertar os detalhes locais. Às vésperas do evento, a expectativa de público aumentou para 10.000
pessoas.
Nos bastidores, conflitos surgiram. Era comum em manifestações pela paz que a
responsabilidade (e o crédito) fosse dividida entre mais de uma organização, uma vez que as
entidades envolvidas com essa causa costumavam ser pequenas e com recursos modestos. A
SDS, porém, não abriu mão de centralizar a organização da marcha sob a sua égide. E por isso
mesmo recusou-se peremptoriamente a seguir uma outra tradição entre os grupos pacifistas: ela
não ia discriminar comunistas ou quem quer fosse. Sua convocação simplesmente se dirigia a
“todos aqueles que concordam conosco que a guerra fere tanto os vietnamitas quanto os
361
americanos, e deve ser parada”. Correram boatos de que alguém ia erguer a bandeira da FLN
na manifestação. Isso causou alarme entre figuras proeminentes do movimento antibelicista,
como Bayard Rustin, Norman Thomas e A. J. Muste, que no dia anterior ao evento publicaram no
jornal New York Post um editorial conjunto desencorajando a participação na marcha, que
arriscava se tornar um “alucinado espetáculo anti-americano e tendencioso”.362 Agora, além das
dificuldades normais, a marcha tinha contra si a publicidade negativa de alguns decanos do
358
GITLIN, Todd. The Whole World Is Watching: Mass Media in the Making & Unmaking of the New Left.
Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1980, p. 43.
359
SALE, op. cit., p. 185.
360
The New York Times. 21 de fevereiro de 1965. Disponível em:
http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=FB0B13FC345B1B728DDDA80A94DA405B858AF1D3. Acesso
em 22 de dezembro de 2006.
361
SALE, op. cit., p. 177.
362
Ibidem, p. 179.
197
A maioria de nós cresceu pensando que os Estados Unidos eram uma nação
forte, mas humilde, que se envolvia nos assuntos mundiais apenas com
relutância, que respeitava a integridade das outras nações e se engajava em
guerras apenas como um último recurso. Esta era uma nação sem nenhum
grande exército permanente, sem um projeto de conquista externa, que
procurava primariamente a oportunidade de desenvolver seus próprios recursos
e seu próprio modo de vida [...]. A Guerra Fria, com todas as suas categorias
ordenadas e descrições em preto e branco, fez muito para nos confirmar que o
que nos tinha sido ensinado era verdade.
Potter foi adiante, acrescentando que aqueles que se opunham à guerra e pediam a retirada
das tropas deveriam estar prontos para aceitar o fato de que isso possivelmente implicaria a
criação de um Vietnã unificado sob o comunismo: “Eu devo lhes dizer que prefiro ver o Vietnã
comunista do que vê-lo sob o jugo contínuo ou a ruína que a dominação americana tem trazido.”
E foi adiante:
363
Ibidem, p. 185.
198
Que espécie de sistema é esse que permite que homens bons tomem esses tipos
de decisões? Que espécie de sistema é esse que justifica que os Estados Unidos
ou qualquer país se apodere dos destinos do povo vietnamita e os use para seu
próprio propósito? Que espécie de sistema é esse que cassa os direitos das
pessoas no Sul, deixa milhões e milhões de pessoas em todo o país,
empobrecidas e excluídas da corrente principal e da promessa da sociedade
americana, que cria terríveis burocracias sem rosto e faz delas o lugar onde as
pessoas passam a vida e fazem seu trabalho, que consistentemente põe os
valores materiais acima dos valores humanos — e ainda insiste em se chamar
de livre e em se achar com o direito de ser a polícia do mundo? Que lugar existe
para o homens comuns nesse sistema e como eles vão controlá-lo, fazê-lo se
curvar à sua vontade ao invés de se curvarem à dele?
Houve gritos para que Potter nomeasse o sistema, que para uns seria o capitalismo, e para
outros o imperialismo — uma explicação ligando o militarismo, o racismo e a desigualdade
social e que em breve se tornaria comum. A indefinição, contudo, era proposital, pois Potter
considerava “capitalismo” uma palavra ideologicamente muito carregada, ligada à Velha
Esquerda, e que havia se tornado um termo “morto, vazio”.364 Tanto era assim que a sua proposta
para entender e mudar o sistema fugia às recomendações que teriam sido feitas na época da
predominância do marxismo-leninismo e suas variantes:
364
Ibidem, p. 188.
199
A multidão, que ouvia sentada, levantou-se para aplaudir. Potter havia resumido a leitura
predominante na SDS de que mesmo os problemas externos do país tinham suas raízes no seio de
sua própria sociedade, e ali, sim, deveriam ser combatidos. O Vietnã era apenas “um sintoma de
um mal mais profundo”, incitando a audiência a ir além dos problemas imediatos e buscar a
ligação com os vários outros “sintomas”. Fez isso, contudo, procurando fugir do jargão da Velha
Esquerda, sem prescrever uma revolução, sem mencionar uma classe revolucionária específica e,
ao mesmo tempo, exortando as pessoas a se engajarem para além da participação numa marcha
ou nas vias de protesto habituais. Ele não disse, mas ali estava subentendida uma idéia cara à
ética da Nova Esquerda, presente na campanha dos direitos e antes dela nos movimentos pela
paz: “pôr o corpo na linha”, ou seja, arriscar-se ao máximo, mesmo com perigos físicos, pela
causa.
A marcha foi encerrada com música do movimento pelos direitos civis e uma tentativa
fracassada de pouco mais de duas dezenas de estudantes de iniciar um sit-in no Capitólio. Não
havia ainda um espírito confrontacional, e ainda existia a esperança de que o governo pudesse
atender à petição entregue pelos manifestantes ao Congresso, e que exigia o fim da guerra.
Para a SDS, a marcha foi um divisor de águas. Não apenas pelo fato de ser o maior
empreendimento da organização até aquele momento e ter superado todas as expectativas apesar
da oposição de figuras de peso entre os movimentos sociais americanos. Seu maior impacto veio
nos dias seguintes, com a cobertura da imprensa (freqüentemente desfavorável, ou mesmo hostil,
além de imprecisa) e até da televisão. De uma hora para outra, a organização se tornou uma
referência nacional sobre o problema do Vietnã, muito especialmente para os jovens
365
Paul Potter’s Speech. Disponível em: http://www.sdsrebels.com/potter.htm. Acesso em: 23 de dezembro de 2006.
200
A partir do envolvimento mais direto com o Vietnã e a obtenção de visibilidade nos meios
de comunicação, o número de membros da SDS sofreu um processo contínuo de intenso
crescimento. É difícil determinar com precisão o número de membros, pois muito mais gente
gravitava em torno dos núcleos da SDS do que os estudantes que efetivamente se registravam e
pagavam suas contribuições. Além disso, dadas as condições de trabalho freqüentemente caóticas
do Escritório Nacional, a organização não primava pelo rigor administrativo.366 Kirkpatrick Sale,
autor da história mais completa da SDS e tido como referência até mesmo pelos seus ex-
membros, apresenta as seguintes estimativas (os períodos são divididos de acordo com as
eleições internas, realizadas anualmente a cada convenção nacional)367:
1960-62:368
Presidentee: AI Haber Membros: 250 (dezembro/1960)
Vice-Presidente: Jonathan Weiss 575 (novembro/1961)
800 (maio/1962)
Secretário de Campo: Al Haber Núcleos: 8 (dezembro/1960)
(1960-62) 20 (novembro/1961)
Tom Hayden (1961-62) 10 (maio/1962)
1962-63:
Presidente: Tom Hayden Membros: 900 (janeiro/1963)
Vice-Presidente: Paul Booth (447 pg.)
1.100 (junho/1963)
(600 pg.)
Secretário Nacional: Jim Monsonis Núcleos: 9 (janeiro/1963)
Secretário de Campo: Steve Max
366
ROSS, Robert J. Primary Groups in Social Movements: A Memoir and Interpretation. In: MYERS, R. David.
Toward a History of the New Left: Essays from Within the Movement. New York: Carlson Publishing, 1989, p. 160.
367
SALE, op. cit., p. 663. Em 1966-7, passou a haver uma distinção entre os membros filiados diretamente á
organização nacional e aqueles filiados aos núcleos dos campi. Assim, para esse período, eram eles que constituíam a
fonte de renda mais regular (ou a menos irregular) da SDS.
368
Não houve convenção ou eleição de novos quadros em 1961.