Você está na página 1de 26

4 - A VIRADA REVOLUCIONÁRIA

A violência é tão americana quanto a torta de cereja.

H. Rap Brown, SNCC.

O que eu estou fazendo aqui? Nos não ganhamos terreno.


Também não o cedemos. Apenas mutilamos corpos. O que
diabos estamos fazendo aqui?

De um soldado americano no Vietnã.313

Ho, Ho, Ho Chi Minh! NLF is gonna win!314

Slogan de estudantes radicais, 1968-9.

4.1 – AS MUITAS GUERRAS DE LYNDON JOHNSON

Quando Lyndon Baines Johnson assumiu a presidência dos Estados Unidos em novembro
de 1963, foi por obra de uma bala. Na verdade, de duas, alegadamente disparadas por um
atirador de 24 anos, ex-fuzileiro naval e militante do movimento Fair Play for Cuba, chamado
Lee Harvey Oswald. Num dos eventos mais chocantes da história política americana — o

313
PATTERSON, James T. Grand Expectations: The United States, 1945-1974. Oxford University Press, 1996, p.
619. (The Oxford History of the United States, vol. X)
314
“Ho, Ho, Ho Chi Minh! A FLN vai ganhar!”
176

primeiro de uma série de assassinatos que marcariam a década —, Oswald pôs fim à carreira de
John Kennedy e abriu o caminho para que o senador do Texas chegasse ao auge da sua.
Tendo assumido a presidência nessas condições trágicas, Johnson assumiu o compromisso
de levar adiante os programas de seu antecessor: “Vamos continuar”, dizia ele. Apesar disso,
LBJ, como ficaria conhecido, acabaria dando seu toque pessoal ao mandato que herdara. Sempre
atribuindo seus planos à memória de Kennedy, o novo presidente logo deu sinais de que
pretendia, ao contrário de JFK, enfatizar as questões domésticas do país. “Educação para todas as
crianças”, “empregos para os que os procuram”, “cuidado para com nossos idosos”, “direitos
iguais para todos os americanos a despeito de raça ou cor”, esses foram compromissos assumidos
por Johnson em seu primeiro discurso ao Congresso, cinco dias após a morte de Kennedy. Na
ocasião, a recepção da audiência não poderia ser mais calorosa: Johnson foi “aplaudido
entusiasticamente”, no que parecia ser o início, trágico, sim, mas ainda impregnado de esperança,
de mais uma presidência democrata liberal.315
Político com mais de duas décadas de experiência nos corredores do Congresso, Johnson
chegou à presidência com mais do que o desejo de fazer valer o legado de Kennedy. Em uma de
suas primeiras mensagens ao Congresso, em março de 1964, Johnson propôs uma Lei de
Oportunidade Econômica que estabelecia vários programas de bem-estar social voltados para a
população mais pobre. Era o início da “guerra à pobreza”, um dos pilares do projeto da “Grande
Sociedade” de Johnson — uma série de iniciativas federais que ampliariam a rede de proteção
social nos EUA, atuando nas esferas da educação, da habitação, do treinamento de trabalhadores
desempregados, da saúde pública, no combate à discriminação racial, entre outras. Conhecedor
dos meandros da política americana, das negociações de bastidores, das técnicas de cooptação e
da administração das variadas sensibilidades dos políticos de seu tempo, Johnson — nascido
numa família modesta no interior do Texas — ambicionava entrar para a história como o
presidente que mais fez pelos oprimidos. A “redescoberta” da pobreza no início da década — em
parte impulsionada pelo livro de Michael Harrington, A Outra América — parecia lhe oferecer a
oportunidade política propícia para levar adiante uma agenda liberal de expansão do bem-estar
social.
Porém, Lyndon Johnson não herdou apenas alguns dos projetos domésticos da política de
Kennedy. O falecido presidente, como se mostrou no capítulo anterior, era um “guerreiro frio”

315
Ibid., p. 524-5.
177

tenaz, como haviam demonstrado suas tentativas de interferir em Cuba, e havia deixado também
certos problemas pendentes na política externa americana. Entre eles, estava o Vietnã.
A história do envolvimento americano com esse pequeno país do Sudeste Asiático estava
diretamente relacionada à Guerra Fria. O Vietnã, que passou a fazer parte da Indochina Francesa,
havia estado sob o domínio francês desde fins do século XIX. Durante a Segunda Guerra
Mundial, o país foi invadido pelos japoneses, enquanto a própria França estava submetida aos
nazistas. Essa situação estimulou o aparecimento de movimentos de libertação nacional, que
antes da guerra já vinham sendo gestados à sombra da eficiente repressão francesa. Entre esses
grupos, os comunistas liderados por Ho Chi Minh se destacavam, e eles acabaram assumindo a
frente de uma ampla coalizão nacionalista, o Vietminh. Com o fim da Segunda Guerra, em 1945,
e antes do retorno dos franceses, os comunistas, contando com uma base sólida de apoio popular,
declararam a independência nacional e iniciaram negociações com a potência colonial. Não
sendo possível chegar a um acordo, os vietnamitas resistiram à restauração dos dominadores e
iniciou-se uma guerra. Em 1954, depois de perdas consideráveis, os franceses, que haviam
recebido um significativo financeiro apoio americano, concordaram em se retirar, deixando o
Vietnã provisoriamente dividido em duas partes, o Vietnã do Norte, governando pelo partido de
Ho Chi Minh, e o Vietnã do Sul, capitalista, cujo governo, chefiado pelo imperador Bao Daí, fora
instalado pelos ex-colonizadores em 1949.316 Os termos da paz e da retirada francesa foram
discutidos em uma conferência em Genebra, ainda em 1954, com a participação de diplomatas
americanos, soviéticos e chineses. Foi estabelecido um acordo que previa a realização de eleições
em todo o território vietnamita, norte e sul, em 1956, para a escolha de um governo único e a
conseqüente reunificação do país. Como garantia de sua lisura, o pleito seria supervisionado por
uma comissão internacional.317
Do ponto de vista americano, porém, esse arranjo era indesejável. Principal responsável
pela derrota francesa, o Vietminh, representado pelo seu Partido dos Trabalhadores (“Lao
Dong”), era um fortíssimo candidato em qualquer eleição popular, e não havia dúvidas de que sua
vitória significaria a implantação de um regime comunista no país. Coerentes com as diretrizes da
Doutrina Truman, que prescrevia a contenção do comunismo fosse onde fosse, e temendo que um

316
DEBENEDETTI, Charles; CHATFIELD, Charles. An American Ordeal: The Antiwar Movement of the Vietnam
Era. New York: Syracuse University Press, 1990, p. 82.
317
ATWOOD, Paul. Vietnam War. Microsoft Encarta Online Encyclopedia 2006. Disponível em:
http://encarta.msn.com/encyclopedia_761552642/Vietnam_War.html. Acesso em: 20 de dezembro de 2006.
178

Vietnã comunista acabasse levando os países vizinhos pelo mesmo rumo (o que se chamaria de
“teoria do dominó”), os Estados Unidos pressionaram Bao Daí a nomear como seu primeiro-
ministro o anticomunista e nacionalista Ngo Dinh Diem, que se recusou, junto com os
observadores americanos, a assinar os Acordos de Genebra. No ano seguinte, Diem realizou
eleições de honestidade duvidosa e se tornou o líder máximo do Vietnã do Sul, com 98,2% dos
votos. Uma vez nessa posição, Diem declarou o Vietnã do Sul uma nação independente, chamada
de República do Vietnã, com capital em Saigon. Como apoio, ele contava com a Organização do
Tratado do Sudeste Asiático, um pacto internacional criado pelos Estados Unidos logo após a
conferência de Genebra com o objetivo de deter o avanço comunista na região.318
Essa manobra de Diem, embora encontrasse algum apoio entre os segmentos não-
comunistas da população, criou também problemas internos. Afinal, quando os combates
cessaram em 1954, muitos membros do Vietminh retornaram para sua vilas nativas no sul,
aguardando a reunificação próxima. Agora, eles, que haviam lutado pela autodeterminação de
todo o Vietnã, se viram alienados de seus companheiros no interior de um Estado autoritário de
legitimidade questionável. Lançados na oposição, esses veteranos logo viram sua base aumentar
entre a população majoritariamente camponesa do país à medida que o governo de Diem adotava
políticas impopulares como: a reversão da reforma agrária implantada nas áreas ocupadas pelo
Vietminh antes de 1954, tirando as terras cultivadas pelos camponeses e devolvendo-as aos
antigos proprietários; a relocação forçada de aldeões para prevenir atividades comunistas e o
alistamento obrigatório de seus filhos no exército; a discriminação oficial contra os seguidores do
Budismo; e, finalmente, a perseguição aos membros do Vietminh ainda presentes no país (a quem
Diem chamava de “vietcongues”, uma forma depreciativa de “comunistas”). Representante dos
católicos urbanos, uma minoria que não passava de 10% da população total do Vietnã, o governo
de Diem não era muito feliz na ampliação de sua base popular.
Em 1960, o descontentamento com o governo ganhou nova força com o surgimento da
Frente de Libertação Nacional do Vietnã do Sul, ou simplesmente Frente de Libertação Nacional
(FLN), um movimento guerrilheiro criado com as bênçãos do Vietnã do Norte e que só não
surgira antes porque a ala nortista do Vietminh temia uma intervenção americana. Embora
liderada por comunistas, a FLN era na verdade uma frente ampla, admitindo qualquer um que se
opusesse ao governo de Diem e tivesse como objetivo a reunificação do país.

318
Ibidem.
179

Como inicialmente previsto pelo Vietminh, o governo americano reagiu ao nascimento da


oposição armada no Vietnã do Sul, mas não como o esperado. Pouco depois do fracasso da
operação na Baía dos Porcos, em abril de 1961, o presidente Kennedy autorizou o envio de 400
membros das forças especiais do exército para o Vietnã do Sul, onde atuariam como
“conselheiros militares” das forças armadas locais. Também estavam autorizada a “expansão do
assédio e da sabotagem clandestina contra o Vietnã do Norte por agentes sul-vietnamitas sob a
direção da CIA”.319 A idéia era utilizar o próprio exército sulista para as principais operações de
combate, ficando os americanos encarregados de planejamento e do apoio, inclusive no que dizia
respeito a veículos bélicos. Uma medida do sucesso dessa iniciativa (ou da falta dele) é o
aumento constante do número de tropas americanas estacionadas no Vietnã do Sul: em dezembro
de 1961, os “conselheiros” haviam aumentado para 3.164 homens; um ano depois, eram 11.326;
em 1963, na época da morte de Kennedy, eram 16.700; em fins de 1964, cerca de 23.000. E isso
considerando que o exército sulista contava com 526.000 homens em 1962, ao passo que a FLN
não tinha mais que 17.000.
O grande problema americano, não resolvido por esse aumento de tropas, e que se
alongaria pelos anos seguintes, era a viabilidade do governo do Vietnã do Sul. Para garanti-la, o
governo Eisenhower autorizara, entre 1955 e 1960, uma assistência econômica e militar estimada
em um bilhão de dólares, que só fez crescer depois disso. Entretanto, um governo viável não se
constrói apenas com armas e empréstimos, e a legitimidade precária do regime de Saigon seria
um dos grandes desafios para o estabelecimento de um Vietnã de Sul capitalista e estabilizado.
Como dizia Bernard Fall, um dos conselheiros de Kennedy e especialista no Vietnã, o conflito
entre norte e sul era “uma guerra revolucionária, isto é, uma operação militar com fortes tons
políticos. Vencer a batalha militar, mas perder a guerra política, bem poderia ser o destino dos
EUA no Vietnã”.320 A própria intensificação da presença americana agravava esse problema, uma
vez que impunha à população medidas tão ou mais alienantes que aquelas tomadas inicialmente
por Diem. Por exemplo, a política de “aldeias estratégicas”, pela qual os habitantes de uma
localidade eram obrigados, não raro sob a mira de armas, a deixarem suas vilas ancestrais e se
assentarem em novas aldeias fortificadas para prevenir a infiltração da FLN (o que os críticos
viriam a chamar de “campos de concentração glorificados”); o uso de desfolhantes químicos

319
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 83.
320
Ibidem, p. 84.
180

como o “agente laranja”, que visavam a privar os guerrilheiros de seus esconderijos na selva e de
fontes de alimentação, e teriam sido responsáveis pela intoxicação (entre outras seqüelas) de
milhares de pessoas; e o emprego da arma química napalm, um composto incendiário de efeitos
assustadores quando atingia seres humanos.321
Nesse contexto, a FLN florescia, enquanto o mal-preparado e pouco motivado Exército da
República do Vietnã (ERV) colecionava derrotas e perdas desproporcionais à sua superioridade
numérica sobre o inimigo. Em janeiro de 1963, por exemplo, um grupo de 2.000 soldados sul-
vietnamitas encontraram um outro, de 350 guerrilheiros, em Ap Bac, uma vila ao sul de Saigon,
já no delta do Rio Mekong.

As tropas do ERV estavam equipadas com caças a jato, helicópteros e


transportes blindados, enquanto as forças da FLN só tinham armas pequenas.
No entanto, 61 soldados do ERV foram mortos, assim como 3 conselheiros
militares americanos. Em contraste, as forças da FLN perderam apenas 12
homens. Alguns conselheiros militares americanos começaram a relatar que
Saigon estava perdendo a guerra, mas o oficialato e os assessores de imprensa
da embaixada relataram Ap Bac como uma vitória significativa do ERV.322

Foi exatamente nesse ano que o Vietnã começou a receber atenções um pouco maiores
fora dos círculos da Casa Branca. Um punhado de críticos apareceu, incluindo o acadêmico e
conselheiro de Kennedy, Hans Morgenthau, o líder socialista Norman Thomas, o jornalista
Walter Lippmann, o pacifista A. J. Muste e líderes negros como Bayard Rustin e A. Philip
Randolph. Muito dispersos (e certamente ainda não tão engajados) para constituírem um
movimento, eles mostravam que a relativa invisibilidade do Vietnã aos olhos do grande público
tendia a diminuir com o tempo. Ainda uma questão conhecida apenas pelos cidadãos mais
informados ou envolvidos com o pacifismo — há uma referência ao Vietnã na Declaração de
Port Huron —, o Vietnã aos poucos iria ganhando importância.
Coube a Lyndon Johnson tirar a guerra vietnamita do campo dos especialistas e levá-la às
manchetes. No primeiro dia de agosto de 1964, o destróier americano Maddox teve um breve
enfrentamento com torpedeiros norte-vietnamita no Golfo de Tonkin. O presidente foi informado,
mas nada repassou ao Congresso ou ao público. Em vez disso, Johnson mandou um segundo
destróier, o C. Turner Joy, para auxiliar o Maddox em suas operações. Quando chegou um
relatório informando a respeito de um novo confronto, em 4 de agosto, o presidente anunciou que

321
ATWOOD, op. cit.
322
Ibidem.
181

o Vietnã do Norte tinha disparado contra as duas embarcações, e retaliou com um ataque aéreo de
cinco horas contra bases torpedeiras inimigas e depósitos de combustível (o que resultou na
morte de um aviador americano). Em seguida, LBJ usou os incidentes para pedir ao Congresso
que o autorizasse a empregar “todas as medidas necessárias” para “repelir quaisquer ataques
armados às forças dos Estados Unidos e a prevenir futura agressão” na área. Em resposta, um
Congresso patrioticamente excitado aprovou a Resolução do Golfo de Tonkin, com votações de
416 a zero na Câmara dos Deputados e 88 a 2 no Senado (os dois opositores solitários foram
Ernest Gruening, do Alasca, e Wayne Morse, de Oregon). A resolução dava amplos poderes ao
presidente para levar a intervenção em um distante país rural do Sudeste Asiático até onde fosse
preciso — além, inclusive, do que os congressistas imaginavam na época.323
O incidente de 4 de agosto em Tonkin fora, na verdade, mais nebuloso do que LBJ dera a
entender ao se dirigir ao Congresso. Não se tinha realmente certeza de que os norte-vietnamitas
haviam feito disparos contra os destróieres, não houve danos, ferimentos ou mortes; o relatório de
ataque se baseava unicamente em sinais de radar que os próprios militares admitiam que
poderiam ter outras causas, inclusive meteorológicas. Ainda assim, Johnson e seu secretário de
Defesa, Robert McNamara, preferiram usar os relatórios para fins mais políticos do que
propriamente militares: “mostrar aos norte-vietnamitas que os Estados Unidos estavam dispostos
a revidar”, e aos americanos que Johnson “era tão durão, ou mais, que Barry Goldwater, seu
oponente na campanha política” pela presidência. Esse tipo de manobra insincera envolvendo os
fatos da guerra seria recorrente ao longo do seu período na presidência.
Apesar disso, Johnson não começou uma grande escalada, ao menos não imediatamente.
O que ele fez foi aproveitar os ganhos políticos de sua demonstração de firmeza diante da
“provocação” do inimigo, refletida nos 85% de aprovação popular à sua reação aos incidentes de
Tonkin, segundo pesquisas de opinião realizadas logo depois.324 Com isso, LBJ tirou do
candidato republicano Barry Goldwater — famoso por declarações como a de que empregaria
armas nucleares no Vietnã — o monopólio da imagem de líder altivo e determinado na defesa
dos valores americanos contra a agressão comunista. Ao mesmo tempo, diante de um
anticomunista extremado como Goldwater, LBJ podia se apresentar como o candidato da
moderação, da busca de soluções pacíficas sempre que possível. E isso incluía evitar que a guerra

323
PATTERSON, op. cit., p. 603.
324
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 98.
182

envolvesse grandes efetivos americanos, já que os milhares de soldados no Vietnã exerciam


apenas a função de “conselheiros” e não passava pela cabeça do presidente “mandar garotos
americanos para 9 a 10 mil milhas de distância de casa para fazer o que os garotos asiáticos
deveriam estar fazendo sozinhos”.325 Aos olhos dos eleitores, declarações como essa deixavam
claro que escaladas significativas estavam fora de questão. O que eles não tinham como saber era
que, já na época em que essa declaração de Johnson foi dada, em outubro de 1964, “havia um
consenso secreto na administração de que a guerra teria de ser ampliada pelos ataques aéreos dos
EUA no começo do novo ano” — justamente a plataforma anunciada por Goldwater.326
E assim foi. Eleito com ampla vantagem em 1964, Johnson anunciou a escalada em
fevereiro de 1965, na forma de um bombardeio sistemático de alvos no Vietnã do Norte,
chamado de operação “Trovão Rolante”. Teoricamente uma resposta a um ataque da FLN a
tropas americanas, ocorrido no início do mês, a operação era o início de um grande e veloz
aumento nos recursos materiais e humanos empregados na luta pelo Vietnã do Sul. Em março, os
fuzileiros navais americanos passaram a entrar regularmente em operações de combate, e no fim
de 1965 a presença militar americana no Vietnã do Sul havia alcançado o surpreendente número
de 184.000 pessoas. No ano seguinte, seriam 450.000 e, em 1968, havia um efetivo astronômico
superior a meio milhão. As baixas aumentaram proporcionalmente: entre mortos, feridos,
hospitalizados e desaparecidos, elas foram, cumulativamente, de 2.500 em 1965 para 33.000 em
1966, 80.000 em 1967 e 130.000 em fins de 1968, ano em que o envolvimento americano chegou
ao ápice.327 O total em dez anos de guerra (1965-1975) seria de mais de 58.000 mortos e 300.000
feridos, sendo que, destes, metade teve lesões graves.328 Além disso, os “aviões americanos
lançaram mais bombas, muitas delas com napalm, sobre o Vietnã entre 1965 e 1967 do que em
todos os teatros da Segunda Guerra Mundial”, de modo que, apenas em 1970, a carga de
explosivos usada nessa guerra excedia aquela “de todas as guerras anteriores na história
humana”.329 Números impressionantes por si mesmos, mas que empalidecem comparados às
perdas e prejuízos de toda ordem que acometeriam combatentes e sobretudo civis tanto ao norte
quanto ao sul da fronteira entre os dois Vietnãs. Por décadas após o fim da guerra, em 1975, o

325
The Columbia World of Quotations 1996. Disponível em: http://www.bartleby.com/66/71/31071.html. Acesso
em: 20 de dezembro de 2006.
326
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 98.
327
PATTERSON, op. cit., p. 595.
328
ATWOOD, op. cit.
329
PATTERSON, op. cit., p. 595.
183

governo vietnamita viria a admitir apenas 1,5 milhão de mortos, até que documentos revelados
em 1995 viriam a aumentar essas cifras para 1 milhão de combatentes e 4 milhões de civis,
tomando a população vietnamita (Sul e Norte) como um todo.330
Com a escalada — iniciada, ressalte-se, sem uma declaração formal de guerra —, o que
era um assunto marginal de política externa entrou para a pauta do dia. Pesquisas de opinião
indicavam que a grande maioria dos cidadãos americanos apoiava a intervenção na Ásia. Os
meios de comunicação “confiavam pesadamente em comunicados dos líderes políticos e militares
americanos, e os jornais imprimiam milhares de matérias com estatísticas grandemente infladas
sobre a contagem de corpos dos inimigos e outras supostas realizações” das forças americanas no
Vietnã.331 Entretanto, após o anúncio dos bombardeios no Vietnã do Norte, a Casa Branca passou
a receber centenas de telegramas por semana, dos quais os que condenavam a medida superavam
os de apoio numa razão de seis a doze para um.332 Era o primeiro sintoma de que, se havia um
apoio majoritário, a Guerra do Vietnã estaria longe de contar com um consenso. Como Johnson
em pouco tempo iria descobrir, a guerra na Ásia teria uma segunda frente de batalha, e esta era na
própria América.

4.2.1 – O MOVIMENTO ANTIBELICISTA: TENDÊNCIAS GERAIS

Com o anúncio de um maior engajamento na guerra, a oposição ganhou novas dimensões.


Até então, o que se tinha era uma

significativa base de dissenso da política para o Vietnã, mas ainda não uma
oposição organizada. No geral, os críticos ainda não estavam tão alienados das
autoridades a ponto de estarem preparados para apoiar um protesto mais ativo,
concentrado e constante. Mas o dissenso já tinha adquirido quatro
características duradouras. Primeira, ele era frágil mas amplo, formalmente
desorganizado mas expressando o variado sentimento antibelicista no país.
Segunda, a oposição era animada (mas não dominada) por ativistas da
movimento pela paz e era legitimada (mas não liderada) por membros da elite
tomadora de decisões do pais. Terceira, a despeito de sua manifestação
essencialmente moderada, o desafio à política oficial tinha começado a ter um
sabor esquerdista por várias razões, incluindo o declínio do ativismo liberal pela
paz depois de 1962, a convergência de uma esquerda radical sobre a questão da
guerra em 1964, o surgimento de uma questão decisiva sobre a “retirada

330
Vietnam War. Disponível em: http://www.vietnam-war.info/. Acesso em: 20 de janeiro de 2007.
331
PATTERSON, op. cit., p. 620.
332
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 106.
184

imediata” [das tropas americanas no Vietnã] e a mudança cultural e a


polarização social na vida americana no início dos anos sessenta.

Por fim, o dissenso antibelicista era fragmentado por uma divisão incipiente
[...], [pois] cada facção antibelicista tinhas suas próprias razões para protestar
contra a política de Washington.333

A oposição à guerra seguia essencialmente quatro linhas de raciocínio, para as quais havia
colaborado a observação de situações parecidas em guerras anteriores, como a dos franceses na
Argélia e na Indochina e a dos próprios americanos na Coréia. Eram as seguintes:
A primeira, que ia ter ampla repercussão nos círculos estudantis e na Nova Esquerda em
particular, era de natureza moral: os Estados Unidos não tinham o direito de “lutar até o último
vietnamita em prol de um regime não-comunista em Saigon contra uma revolução liderada pelos
comunistas à sombra da China”, uma vez que isso poderia significar uma guerra tremendamente
custosa para a população do Vietnã. O uso de armas químicas e de “aldeias estratégicas” só fez
reforçar esse argumento, convencendo muita gente de que a luta contra a FLN era muito mais
brutal e desumana do que um governo comunista poderia vir a ser. Também entrava nesse tipo de
consideração se valia a pena sacrificar a vida de jovens americanos em uma guerra questionável
que não visava a combater qualquer ameaça direta aos Estados Unidos.
A segunda era de caráter prático: a intervenção militar no Vietnã era inútil, pois seria
impossível estabilizar o Sul, dada a sua fragilidade política. Conseqüentemente, mesmo uma
ocasional vitória militar seria vã diante de um desastre político. Além disso, o esforço necessário
para obter essa vitória excederia qualquer interesse concreto que o Vietnã pudesse ter para os
EUA. Essa era uma linha argumentativa freqüente entre críticos de elite como Walter Lippmann.
A terceira, de caráter geopolítico, era de que a guerra era contraproducente e mesmo
prejudicial aos interesses americanos no mundo, e que seria melhor buscar soluções negociadas.
Implícito nesse argumento estava a idéia de que a grande ameaça à segurança americana e o alvo
real da intervenção no Vietnã era a China, que, num cenário de guerra no país vizinho, poderia
intervir numa escala ainda maior do que na ocasião da Guerra da Coréia. Uma variante era a
defesa de conversações com Ho Chi Minh, visando a estimular seu nacionalismo e afastá-lo da
influência de Pequim, de modo a torná-lo uma espécie de Marechal Tito da Ásia.
Finalmente, a quarta linha de crítica, relacionada à primeira, dizia respeito aos ideais
americanos. Além de acusações de sonegação de informações por parte do governo e a suspeita

333
Ibidem, p. 101.
185

diante da falta de propostas alternativas por parte do Congresso e de outras instituições políticas,
havia uma questão ético-ideológica: era legítimo, em nome da liberdade e da democracia, intervir
no país alheio para deter uma insurreição popular autêntica, embora liderada por comunistas? E
ainda por cima recorrendo a métodos como o da relocação forçada de aldeias inteiras, enquanto
era tão difícil, por exemplo, conseguir as devidas medidas federais no combate à violência racial
no Sul?334

Moralmente errada, imprudente e inviável, contraproducente para os interesses


nacionais na estabilidade regional e mundial, e antitética aos ideais americanos
— [seria] nestas linhas [que] a intervenção no Vietnã seria contestada na década
seguinte.335

Ao longo de todo o conflito, os estudantes universitários seriam a grande base do


movimento antibelicista. A princípio isentos, em sua maioria, do serviço militar, mudanças nos
critérios de recrutamento tornariam a guerra no Vietnã uma questão muito concreta também para
eles: em 1966, autorizou-se que os universitários com baixo rendimento fossem passíveis de
recrutamento, para o que as universidades teriam de repassar as notas para o órgão encarregado
de alistamento e seria aplicado um exame nacional para testar o desempenho intelectual dos
graduandos336; em 1968, quando o número de tropas no Vietnã chegava ao auge, estudantes de
pós-graduação que ainda não tivessem completado dois anos de estudo também passaram a ser
recrutáveis, bem como quem já estivesse formado e ainda não tivesse alcançado a idade-limite de
26 anos. Essa preferência por graduados fora explicitada pelo próprio presidente Johnson:

“‘Comecem com a idade de vinte e três anos, disse ele, ‘Se não for o bastante,
vão para vinte e dois, vinte e um, vinte, e finalmente dezenove. Pela primeira
vez, parecia, os filhos diplomados da classe média poderiam enfrentar os
terrores da selva.”337

Constituindo a parte mais culta da população na faixa etária do serviço militar, não chega
a surpreender que a primeira manifestação de repercussão nacional contra a guerra tenha sido o
teach-in na Universidade de Michigan em Ann Arbor, e que teve entre seus organizadores
ninguém menos que Arnold Kaufman. Na noite de 24 para 25 de março de 1965, e apesar da
oposição de vários políticos do estado, mais de 3.000 estudantes, professores e funcionários

334
Ibidem, p. 87-91.
335
Ibidem, p. 91.
336
SALE, Kirkpatrick. SDS. New Yotk: Vintage Books, 1973, p. 253.
337
PATTERSON, op. cit., 632.
186

administrativos ocuparam o Salão Angell, no campus, e promoveram palestras, debates e grupos


de discussão a respeito da guerra. Apesar de o salão ter sido evacuado duas vezes por conta de
falsos alertas de bomba, o protesto transcorreu sem maiores problemas. Para muitos de seus
participantes, “foi o destaque de seus anos na universidade, uma noite ‘em que as pessoas
realmente se deram ao trabalho de falar de coisas que realmente importavam’”. Em uma semana,
já havia outros 35 teach-ins em diferentes universidades, e seriam 120 até o fim do ano letivo.338
Embora eventualmente houvesse conflitos com manifestantes pró-guerra (incluindo ocasionais
embates físicos), essa nova modalidade de protesto acadêmico indicava o interesse que a guerra
despertava nos campi americanos. Ela também revelava uma premissa que seria a ênfase do
movimento antibelicista, ao menos do ponto de vista de radicais como os da SDS, no período
entre 1965 e 1967: a de que era possível pôr fim à guerra por meio do suficiente esclarecimento
da população a respeito do que ela significava, do que realmente estava por trás da decisão da
maior potência militar do mundo de interferir numa questão interna de um pequeno país atrasado
no outro lado do planeta. Desafiar os representantes do governo para debates públicos,
desmascarar seus pretextos, denunciar sua manipulação das informações, levar os cidadãos a
pressionar os políticos para que favorecessem negociações de paz, ensinar os jovens a se valerem
dos meios legais disponíveis para não serem recrutados em uma guerra que não era justificável:
essas eram as tônicas desses primeiros anos. Tudo isso para mostrar que a intervenção militar no
Vietnã era uma política equivocada, e, portanto, os cidadãos conscientes deveriam buscar corrigi-
la por meio dos canais existentes, ou ao menos sem quebrar seus vínculos com um sistema
político que permanecia legítimo em seus fundamentos.
Nessa fase, os protestos eram majoritariamente não-violentos, e, mesmo quando
envolviam dezenas de milhares de pessoas, ainda era só uma pequena porcentagem da população
universitária que tomava parte neles. Dado, porém, a grande expansão dos estudantes de nível
superior nos anos 60, mesmo uma minoria já podia formar uma multidão bastante visível e
barulhenta, fosse no interior do campus ou fora dele. A violência, quando havia, era esporádica,
não raro envolvendo brigas com manifestantes pró-guerra (que, no campus, costumavam se
concentrar em fraternidades, equipes esportivas e em determinados cursos fora da área de
Ciências Humanas e Sociais339). Ações mais radicais existiam: em 1965, o quacre Norman

338
DEBENEDETTI; CHATFIELD, p. 108.
339
Cf. HEINEMAN, Kenneth J. Campus Wars: The Peace Movement at American State Universities in the Vietnam
Era. New York: New York University Press, 1993, 347 p.
187

Morrison incendiou o próprio corpo em frente ao Pentágono, em protesto contra a escalada, a


apenas 50 metros do escritório do Secretário de Defesa, Robert McNamara; no ano seguinte, o
mesmo McNamara teve o carro cercado por estudantes de Harvard que queriam questioná-lo
sobre a guerra, e teve de sair carregado pela polícia;340 mas eram excepcionais.
Apesar disso, desde cedo estabeleceu-se uma divisão crucial e crescente entre
liberais/moderados e radicais dentro do movimento antibelicista. Grosso modo, os primeiros
tinham uma perspectiva de “oposição leal”: seu objetivo era mudar uma política específica, e não
toda a organização da sociedade. Como diria o líder socialista Norman Thomas, “Eu estou
interessado na paz, [e isso] não requer que odiemos a América” e que fosse preciso transformá-la
radicalmente.341 Em geral, defendiam uma paz negociada no Vietnã, sem a retirada imediata das
tropas, atentos à imagem internacional dos EUA como defensores do mundo livre. Já para os
radicais, fossem esquerdistas ou apenas pacifistas, a guerra no Sudeste Asiático era uma agressão
americana que só poderia terminar pela retirada imediata dos soldados. Mas, embora tivessem
suas próprias discordâncias, eles iam além dessa exigência objetiva.

Concluindo que os Estados Unidos eram uma fonte importante de injustiça e


violência globais, os pacifistas radicais procuravam revolucionar o país em
combinação com os negros, estudantes e outros descontentes que rejeitavam a
autoridade em vigor e procuravam[, por sua vez,] construir uma oposição
extraparlamentar através de instituições paralelas em uniões comunitárias,
novos partidos políticos e, ocasionalmente, “um novo congresso continental”.342
Os radicais de Liberation [revista do pacifista David Dellinger] acreditavam
que a América só poderia ser salva mediante uma revolução de resistência
individual não-violenta e ação coletiva democrática, e que o Vietnã só poderia
ser salvo da América por meio da resistência dos Vietcong. Os pacifistas
liberais argumentavam, por outro lado, que o problema não era tanto a América
quanto a guerra em si, e propunham atacar o sistema bélico promovendo a não-
violência imparcial em vez de uma revolução. Os pacifistas devem visar, dizia
[Robert] Pickus, “não a polarizar, mas a permear a sociedade” com valores
alternativos. Eles não devem apoiar um lado ou outro, mas opor-se à guerra.343

No entanto, a Guerra do Vietnã era um produto da Guerra Fria, uma situação que muitos
americanos ainda viam em termos de um enfrentamento entre o bem e o mal. Conseqüentemente,
340
BERGER, Dan. Outlaws of America: The Weather Underground and the Politics of Solidarity. Oakland: AK
Press, 2006, p. 34.
341
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., . 116.
342
Essa era uma proposta de Tom Hayden rejeitada em uma reunião da SDS, e que aludia aos congressos
continentais estabelecidos pelos então colonos americanos, em 1774 e 1775, para decidirem como agir frente ao
endurecimento das normas britânicas para as Treze Colônias. Formalmente ilegais pelas leis britânicas, foi no
Segundo Congresso Continental que se decidiu empreender a guerra pela independência.
343
DEBENEDETTI; CHATFIELD, op. cit., p. 117.
188

essas nuances do movimento antibelicista nem sempre eram compreendidas pelo público em
geral. Para muitos, os ativistas pela paz eram tolos ou inocentes úteis servindo inadvertidamente à
causa do comunismo, na melhor das hipóteses; na pior, eram simplesmente comunistas. Por causa
de sua oposição a um conflito oficialmente apresentado como o auxílio a um país aliado sob
ataque comunista, esses militantes eram “rotineira e indiscriminadamente desqualificados como
idiotas articulados [...]. Editorialistas reclamavam que, ao encorajarem os vietcongues a
calcularem mal a vontade da nação, os críticos estavam prolongando a guerra, quando não
promovendo o comunismo”.344 Esse tipo de acusação era levada tão a sério que o senador Dodd,
encarregado do Subcomitê de Segurança Interna, prometeu que investigaria as fontes comunistas
dos teach-ins; dois anos mais tarde, em 1967, o próprio LBJ pediria à CIA que procurasse provas
de que o movimento antibelicista era orquestrado por comunistas. Nada foi encontrado.345
Naturalmente, havia comunistas e simpatizantes no movimento antibelicista, mas eram
uma minoria, longe de ter condições para organizar um movimento tão descentralizado e diverso.
Entretanto, o antibelicismo militante, fosse na versão gradualista liberal ou na da retirada
imediata dos radicais, crescia continuamente a cada ano, embora jamais chegassea constituir mais
que um movimento minoritário. E para esse crescimento colaboravam muito mais os atos do
próprio governo, com sua escalada contínua e intensificação do recrutamento, do que qualquer
conspiração ideológica. Sobretudo para os radicais, e aí se pode incluir toda a Nova Esquerda
estudantil, um fator particularmente exasperante era a aparente inutilidade da escalada de
protestos em produzir efeitos sensíveis na política do governo Johnson. Petições, marchas,
protestos de rua, panfletos, audiências públicas no Congresso promovidas pelos poucos políticos
que se opunham à escalada — todo o arsenal não-violento seria largamente experimentado nos
primeiros três anos após Tonkin, sem que o governo de LBJ diminuísse o número de tropas em
um único homem. Embora o próprio presidente ficasse cada vez mais exaurido e emocionalmente
desgastado à medida que a situação no Vietnã se prolongava sem uma perspectiva concreta de
vitória,346 a guerra ganhou cada vez mais prioridade em sua agenda de governo, inclusive em
prejuízo dos programas da Grande Sociedade. Tendo procurando conciliar a guerra com as
reformas sociais pelo tempo que pôde, Johnson acabaria tendo de optar por uma ou outras, dado o
considerável aumento nas despesas representado pela escalada; em 1968, a opção foi feita: os

344
Ibidem, p. 118.
345
PATTERSON, op. cit., p. 633.
346
Ibidem, p. 629-636.
189

EUA tinham 515.000 homens no Vietnã, e o presidente concordou em diminuir as despesas


domésticas em US$ 6 bilhões, diminuindo consideravelmente a verba de vários dos itens da
Grande Sociedade.347
Foi em fins de 1967, com a Semana de Parar o Alistamento e a marcha sobre o
Pentágono, que a ala radical do movimento antibelicista iniciou sua segunda fase — a da
resistência, que para setores importantes da Nova Esquerda seria o prólogo da adoção de um
discurso francamente revolucionário. Esse seria o padrão seguido pela SDS, numa trajetória que
seria profundamente marcada pela guerra.

4.2 – A NOVA SDS

Desde sua fundação, a SDS entendeu que uma organização radical comprometida com a
reforma da sociedade americana deveria privilegiar os problemas internos do país. Aliás, um dos
pilares de sua crítica à Velha Esquerda e à política estabelecida nos anos da afluência era
justamente o de que a política externa (leia-se: a Guerra Fria) tinha uma importância
desproporcional na agenda da nação, ao passo que questões domésticas prementes, como os
direitos civis dos negros, eram tratadas com circunlóquios e medidas simbólicas. Na Declaração
de Port Huron, já se lia que “um anticomunismo irracional tem se tornado um grande problema
social para aqueles que querem construir uma América mais democrática”, e por isso o “debate
político é restrito, padronizado, a ação é inibida por demandas de ‘unidade’ e ‘comunhão’ em
face do perigo declarado”.348 A SDS tinha como premissa que a melhor maneira de combater os
excessos americanos na Guerra Fria era desfazer o monopólio da “elite do poder” apontada por
C. Wright Mills e aumentar o grau de democracia na sociedade, incentivando a participação real e
eficaz dos cidadãos na tomada das decisões que os afetavam. Em outras palavras, aplicando a
democracia participativa.
Portanto, era natural que assuntos de política externa tivessem um interesse secundário na
pauta da organização, enquanto causas como o combate à segregação no Sul tivessem máxima
prioridade. Embora o desarmamento e a paz mundial recebessem menções em seus textos
(inclusive no manifesto de 1962) e fizessem parte dos muitos tópicos previstos pela abordagem
347
MATUSOW, Allen. The Unraveling of America: A History of Liberalism in the 1960s. New York: Harper &
Row Publishers, 1984, p. 171-173.
348
The Port Huron Statement. In: MILLER, James. Democracy Is in the Streets: From Port Huron to the Siege of
Chicago. New York: Touchstone/Simons & Schuster, 1987, p. 350
190

multitemática da SDS, nunca foram o foco principal. Mesmo quando surgiu uma emergência
nacional como a Crise dos Mísseis, a organização encontrou-se muito desestruturada para
coordenar qualquer ação significativa. Já na ocasião da Resolução do Golfo de Tonkin, a SDS, já
um pouco mais organizada e com mais pessoal, estava com a maior parte de seus melhores
quadros e recursos envolvidos com os projetos de organização comunitária. Nada levava a crer
que uma guerra distante e provavelmente rápida iria se tornar o seu principal foco de atuação nos
anos seguintes.
O primeiro contato com a questão do Vietnã veio por meio do PREP (Peace Research and
Education Project, Projeto de Educação e Pesquisa da Paz), o centro de pesquisa de um homem
só criado por Richard Flacks e que fora assumido por Todd Gitlin e Paul Booth. De caráter
essencialmente acadêmico, e longe de ter o prestígio do ERAP entre os membros da organização,
o PREP foi o responsável pela introdução de questões internacionais na pauta de manifestações
da SDS em nível nacional. Foi por sua iniciativa que o jornalista I. F. Stone foi convidado para
uma reunião do Conselho Nacional da SDS em 29 de dezembro de 1964. Stone “apresentou uma
história lúcida do envolvimento da América no Sudeste Asiático”, explicou as razões da guerra e
por que os EUA deveriam sair.349 No dia seguinte, após longas discussões e duas votações, o
Conselho Nacional aceitou a proposta de Gitlin de realizar uma marcha em Washington
protestando contra a intervenção americana no Vietnã. Segundo a proposta de um dos delegados
presentes, também submetida a votação e aprovada, a justificativa do projeto era que a SDS
“advoga que os Estados Unidos saiam do Vietnã pelas seguintes razões: a) a guerra fere o povo
vietnamita; b) a guerra fere o povo americano; c) a SDS se preocupa com o povo vietnamita e o
povo americano”. Apesar da oposição de vários dos presentes, particularmente o pessoal do
ERAP, para quem uma marcha era algo pouco impressionante, e dos temores de envolver a
organização em um grande evento de tema único, decidiu-se que o evento seria realizado nas
férias de primavera, em abril.
Foi ainda nessa mesma reunião do Conselho Nacional que a SDS apresentou o que Paul
Booth definiria como “o primeiro exemplo de sectarismo”. Além dos já citados ERAP e PREP,
existia um terceiro projeto, liderado por Steve Max e Jim Williams, chamado Political Education
Project (Projeto de Educação Política, PEP). O PEP trabalhava com uma das propostas inclusas
na Declaração de Port Huron, a de que era possível “realinhar” o Partido Democrata à esquerda,

349
SALE, op. cit., p. 170.
191

tornando-o de fato um partido progressista e distinto do Republicano. Para isso, diziam seus
membros, era preciso trabalhar dentro do sistema eleitoral — por exemplo, através de pressão a
favor de leis no Congresso e o engajamento (com ressalvas) na campanha de Lyndon Johnson à
presidência, e que tinha como lema “Part of the way with LBJ” (“Parte do caminho com LBJ”).
Um motivo adicional para esse apoio era o temor em relação a uma possível vitória de Goldwater
e a conseqüente guinada da política nacional para a direita mais reacionária. Entretanto, o
afastamento da SDS em relação a liberais como Johnson era tão grande nesse momento que
figuras de peso na organização, como Al Haber, estavam fazendo campanha contra o voto
alegando que uma grande vitória de LBJ significaria o triunfo de uma política centrista em
detrimento dos extremos, “o extremo de Goldwater e também o nosso”.350 Quando Max e
Williams compareceram ao Conselho com uma elaborada proposta de pesquisa e promoção de
legislação progressista e um projeto de registro de eleitores na cidade de Cairo, Illinois,
encontraram um ambiente hostil. Em meio a acusações e insinuações de que fariam apologia ao
liberalismo corporativo, os dois foram “sangrados”351 no Conselho. A proposta de legislativa foi
cortada até se reduzir a um esforço de propaganda a favor da contestação que o Partido
Democrático da Liberdade do Mississippi, e o projeto de registro eleitoral foi tirado deles e
entregue ao ERAP, que o abandonou em dois dias. Era o fim da linha para o PEP. Dois meses
depois, na correspondência de trabalho enviada aos membros-chave da organização, Max
comunicou oficialmente a extinção do projeto, acrescentando:

Na maior parte do tempo, houve gente espumando e gritos de “vendidos” toda


vez que as palavras “Nova Coalizão” [i.e., realinhamento] foram usadas. Como
um substituto para um debate real, circularam noções sobre complôs contra a
organização e complôs para organizar uma facção para a Convenção [anual, a
se realizar em meados de 1965].

Vamos esperar que, agora que o PEP se dissolveu e sua equipe se dispersou,
não haja mais desculpas para a falta de diferenças políticas abertas e legítimas
na SDS, e que aqueles que lidaram com a situação em termos faccionais sejam
agora forçados a se mostrar e a defender uma posição política real.

Essa rejeição das formas representativas tradicionais do sistema político, o próprio campo
de ação do PEP, expressava o medo de “cooptação” pelo liberalismo no poder, que havia se
tornado corrente na maior parte dos membros da SDS. Para eles, especialmente depois da

350
Ibidem, p. 156.
351
Ibidem, p. 157.
192

experiência do MFDP com a convenção democrata em Atlantic City, o liberalismo se tornou


quase um sinônimo de “conservadorismo sofisticado”, que, aparentando boas intenções,
procurava levar os radicais a concessões que punham em risco os princípios de honestidade e
igualdade que esposavam. A própria guerra à pobreza do presidente Johnson, por exemplo, era
vista como uma ameaça.

O perigo com esses programas liberais, como dizia um paper preparado para a
convenção de 1964 da SDS dizia, era que “o liberalismo corporativo pode
produzir programas econômicos que pareçam ser iguais aos dos movimentos
insurgentes”. Para distinguir programas radicais genuinamente igualitários das
reformas liberais “simbólicas” projetadas apenas para cooptar o dissenso e
firmar o sistema, a SDS se sentiu impelida a pôr cada vez mais ênfase “na
questão do poder e da participação”. Ao mesmo tempo, a SDS tornou-se cada
vez mais crítica das estruturas e normas liberais — os conflitos políticos na
América eram “estéreis, retóricos e desprovidos de significado”, as eleições
tinham “uma aura de irrealidade sem escolha significativa”, e a liberdade
intelectual era uma farsa. O liberalismo americano do século vinte estava
“comprometido com uma política antidemocrática e manipuladora”. Para
muitos SDSers, definir sua própria identidade cada vez mais significava rejeitar,
352
até demonizar, o liberalismo.

Esse antagonismo era particularmente nítido nos círculos do ERAP, que, como já foi dito,
incluía boa parte dos principais quadros da organização. Para eles, o liberalismo no poder se fazia
sentir mais diretamente por meio de “assistentes sociais, equipes do departamento de bem-estar
social, sindicatos, organizações religiosas”,353 que muitas vezes constituíam um empecilho à
mobilização e à conscientização radical que os organizadores comunitários tentavam promover.
Fora os conflitos habituais que os próprios habitantes das comunidades tinham com os
funcionários públicos encarregados de lhes entregar os benefícios e fiscalizar o seu merecimento,
havia a questão ideológica de se deixar envolver pelo sistema. Afinal de contas, o objetivo do
ERAP não era simplesmente obter melhorias materiais imediatas (embora, como se demonstrou,
este acabasse sendo o seu resultado prático para as comunidades envolvidas), mas iniciar um
movimento de massa. Ao oferecer formas mais “fáceis” para ganhos de curto prazo, o liberalismo
e o aparato governamental que ele comandava ameaçavam atenuar o radicalismo dos
organizadores e desmobilizar as comunidades em que estes atuavam.

352
ELLIS, Richard J. The Dark Side of the Left: Illiberal Egalitarianism in America. Lawrence: University Press of
Kansas, 1998, p. 129.
353
Ibidem.
193

Esse era a tendência da organização, ainda relativamente obscura, quando o ano de 1965 a
catapultou para a fama.

4.2.1 – A “DESCOBERTA” DA SDS: MARÇO-ABRIL de 1965

Em uma recente noite de sábado, um grupo de estudantes da Universidade de


Chicago se reuniu em um apartamento para uma festa. Não havia bebida nem
dança, nem conversas sobre basquetebol, política estudantil ou sexo.

Em vez disso, os rapazes, em casacos esportivos sem gravata, e as moças, de


saias e meias pretas, sentaram-se no chão e conversaram sobre coisas como
“organização comunitária”, “falta de poder” e “democracia participativa”.

Assim começava um artigo de Fred Powledge publicado na primeira página do jornal The
New York Times em 15 de março de 1965. Era uma das primeiras reportagens do jornal a respeito
da “Nova Esquerda estudantil”.354 Não por acaso, o dono da festa mencionada era Bob Ross, e os
convidados sentados no chão, todos membros da SDS. Powledge fizera uma pesquisa de meses
para compor um retrato adequado do movimento, entrevistando mais de 70 ativistas em Nova
York, Chicago, Atlanta, Newark, S. Francisco, Louisiana e Austin . Sua descrição segue, após um
breve resumo de protestos dos quais os estudantes tomaram parte, dizendo:

Eles acreditam que o movimento pelos direitos civis, a emergência da pobreza


como uma causa nacional e a possibilidade de extinção nuclear tornam
imperativa uma mudança fundamental.

Letras minúsculas preferidas

Eles não negam que parecem muito com os jovens radicais dos anos trinta em
suas aspirações. Alguns deles, que comparam seu movimento a uma
“revolução”, querem ser chamados de radicais.

A maioria, contudo, prefere ser chamada de “organizadores”. Outros replicam


que são “democratas com ‘d’ minúsculo” ou “socialistas com ‘s’ minúsculo”.
Uns poucos gostam de ser chamados de marxistas.

A maioria despreza quaisquer rótulos específicos, e não se importam em serem


chamados de cínicos. Poucos se permitiram desenvolver um senso de humor a
respeito de seu trabalho; eles funcionam à base de crises.

[...]

354
GITLIN, Todd. The Whole World Is Watching: Mass Media in the Making & Unmaking of the New Left.
Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1980, p. 26-7.
194

Jeff Shero, um texano de 23 anos, [...] [explica] seu cinismo particular:


“Esta geração tem testemunhado a hipocrisia como nenhuma outra. As igrejas
não estão fazendo o que deviam fazer. Há uma mentira após a outra na
televisão. A própria sociedade é gerida e composta por mentiras.

“As pessoas são manipuladas. O tipo de ética que nossos pais pregavam não é
praticado, pois agora nós vemos como nossos pais realmente vivem.

“Nós somos a primeira geração a crescer com a idéia de aniquilação. Numa


situação como esta, você tem de sair e criar sua própria religião.”

[...]

Embora uns poucos exibissem a tendência a defender a União Soviética como


um exemplo do tipo de sociedade que querem criar, a grande maioria dos que
foram questionados dizem ser tão céticos a respeito do comunismo quanto de
qualquer outra forma de controle político.

Suas conversas mostram que eles não são nem dirigidos nem inspirados pelo
comunismo, como alguns de seus críticos têm alegado. “Você pode dizer que
somos a-comunistas”, disse um deles, “assim como pode dizer que somos
amorais e a-quase qualquer outra coisa.”

[...]

Eles acreditam que a única solução para os problemas da nação é a criação de


uma nova esquerda. Rejeitam muitos dos heróis velhos esquerdistas, descritos
como “vendidos”; querem escrever sua própria filosofia,e criar uma aliança
entre os milhões de americanos brancos e negros que não possuem poder
econômico.

A maioria é cética a respeito de suas próprias chances de êxito, mas desejam


investir o resto de suas vidas na causa.

Um deles [é] Richard Rothstein, um trabalhador de 21 anos em um distrito de


Chicago que contém pobres brancos, negros, mexicanos e porto-riquenhos.

[...]

“Nós rejeitamos a idéia de que você pode trazer mudanças se elegendo para a
legislatura e então concedendo a mudança a partir de cima”, disse ele. “De
alguma forma, sob esse sistema, os pobres ainda são tratados de maneira
pobre”.355

355
POWLEDGE, Fred. The Student Left: Spurring Reform. The New York Times. 15 de março de 1965. Disponível
em: http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=F40D14FA3E5812738DDDAC0994DB405B858AF1D3.
Acesso em: 22 de dezembro de 2006.
195

O texto menciona ainda outras organizações estudantis, como o SNCC e os Clubes


DuBois (estes, de filiação socialista e comunista). Em geral, o tom é respeitoso, simpático até,
embora cometa um erro factual: o presidente da SDS é apresentado como sendo Todd Gitlin,
quando, no período de junho de 64 a junho de 65, era Paul Potter. Era o começo da celebridade
para a SDS, que o repórter informa ter 1.700 filiados em 44 núcleos, mais 50 funcionários. Esse
número seria mais do que triplicado até o fim do ano.
Cinco dias depois, novamente o New York Times mencionaria a SDS, desta vez
informando o nome certo do seu presidente. Porém, as circunstâncias eram menos favoráveis
agora: Paul Potter havia sido preso no dia anterior junto com outras 48 pessoas na porta da sede
do Chase Manhattan Bank, em Nova York. Motivo: um sit-in, ou melhor, um “sitdown” nos
degraus do prédio, em protesto contra os empréstimos do Chase ao governo racista da África do
Sul. Envolvendo 400 pessoas (“a maioria estudantes brancos”, o repórter não deixou de notar), o
protesto era uma iniciativa do PREP, com a colaboração de outras organizações, depois que um
comentário casual levou Todd Gitlin a investigar as relações entre o banco e o regime sul-
africano. “A questão era moralmente instigante e intelectualmente interessante, levantando a
questão do empresariado americano na política externa”, diria ele, duas décadas depois.356 A
matéria informava ainda que Potter e os demais cinco líderes do protesto resolveram se sentar na
entrada do prédio depois de manter uma conversa de cerca de uma hora com o seu vice-diretor,
exigindo que os empréstimos cessassem. Em vão.357
A pesquisa que levou a SDS à porta de um dos maiores bancos americanos não reuniu
uma grande multidão e talvez tenha passado relativamente despercebida da maioria dos leitores
da época. Afinal, protestos desse tipo, especialmente depois da campanha dos direitos civis,
estavam longe de ser raridade no noticiário americano. Porém, a SDS havia sido pioneira ali:
tratava-se, segundo Gitlin, da primeira “manifestação distintamente anti-imperialista dos anos
sessenta”. Mais ainda: núcleos da SDS em vários pontos do país haviam liderado protestos
semelhantes contra diversas companhias e bancos envolvidos com o governo sul-africano. “Um
repórter inquiridor que não se prendesse a uma cobertura centrada na polícia poderia ter

356
GITLIN, Todd. The Sixties: Years of Hope, Days of Rage. New York: Bantam Books, 1987, p. 179.
357
JONES, Theodore. 49 Arrested at Chase Building in Protest on South Africa Loans. The New York Times. 20 de
março de 1965. Disponível em:
http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=F50910FA3E5812738DDDA90A94DB405B858AF1D3. Acesso em:
22 de dezembro de 2006.
196

descoberto isso entrevistando a equipe da SDS ou lendo seus numerosos relatórios”.358 Assim, o
primeiro ato oficial de desobediência civil359 organizado pela SDS foi minimizado pela imprensa.
Fosse como fosse, um mês depois a organização voltaria às manchetes.
A marcha de Washington foi marcada para o dia 17 de abril. Aguardava-se inicialmente
um público de aproximadamente 3.000 pessoas. Na primeira vez que a SDS participara (mas não
liderara) de uma manifestação pela paz no Vietnã, ali mesmo em frente à Casa Branca, em 20 de
fevereiro, o público fora de 400 pessoas, com direito a uma contra-manifestação de estudantes de
direita.360 Para a sua própria marcha, porém, a SDS concentrou todas as forças, chegando a
aumentar o número de funcionários em tempo integral do Escritório Nacional de quatro para
nove (todos com salários de subsistência). Foram impressas 150.000 convocações para a marcha,
e foram preparados 15.000 broches, além de se abrir um escritório em Washington apenas para
acertar os detalhes locais. Às vésperas do evento, a expectativa de público aumentou para 10.000
pessoas.
Nos bastidores, conflitos surgiram. Era comum em manifestações pela paz que a
responsabilidade (e o crédito) fosse dividida entre mais de uma organização, uma vez que as
entidades envolvidas com essa causa costumavam ser pequenas e com recursos modestos. A
SDS, porém, não abriu mão de centralizar a organização da marcha sob a sua égide. E por isso
mesmo recusou-se peremptoriamente a seguir uma outra tradição entre os grupos pacifistas: ela
não ia discriminar comunistas ou quem quer fosse. Sua convocação simplesmente se dirigia a
“todos aqueles que concordam conosco que a guerra fere tanto os vietnamitas quanto os
361
americanos, e deve ser parada”. Correram boatos de que alguém ia erguer a bandeira da FLN
na manifestação. Isso causou alarme entre figuras proeminentes do movimento antibelicista,
como Bayard Rustin, Norman Thomas e A. J. Muste, que no dia anterior ao evento publicaram no
jornal New York Post um editorial conjunto desencorajando a participação na marcha, que
arriscava se tornar um “alucinado espetáculo anti-americano e tendencioso”.362 Agora, além das
dificuldades normais, a marcha tinha contra si a publicidade negativa de alguns decanos do

358
GITLIN, Todd. The Whole World Is Watching: Mass Media in the Making & Unmaking of the New Left.
Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1980, p. 43.
359
SALE, op. cit., p. 185.
360
The New York Times. 21 de fevereiro de 1965. Disponível em:
http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=FB0B13FC345B1B728DDDA80A94DA405B858AF1D3. Acesso
em 22 de dezembro de 2006.
361
SALE, op. cit., p. 177.
362
Ibidem, p. 179.
197

liberalismo e da Velha Esquerda. “Originalmente eu estava melancólico”, recordaria Todd Gitlin.


“Achei que já seria bom se conseguíssemos cinco mil pessoas”.363
Apareceram 20.000. Segundo algumas estimativas, 25.000. Era a maior manifestação
contra a guerra até então. Brancos, negros, estudantes, adultos, anônimos e celebridades como
Joan Baez (presente também no levante de Berkeley), Phil Ochs e Judy Collins. À vista, nenhuma
bandeira da FLN ou com foices e martelos, mas cartazes exigindo o fim imediato da guerra e,
numa ligação entre temas típica da SDS, “UM HOMEM, UM VOTO — SELMA OU SAIGON”.
O senador liberal Ernest Gruening, um dos dois únicos votos contra a Resolução do Golfo de
Tonkin, foi um dos oradores, ao lado de I. F. Stone e do historiador Staughton Lynd. Mas coube a
Paul Potter fechar o evento com um discurso que sintetizava o significado da guerra na análise da
SDS.

A maioria de nós cresceu pensando que os Estados Unidos eram uma nação
forte, mas humilde, que se envolvia nos assuntos mundiais apenas com
relutância, que respeitava a integridade das outras nações e se engajava em
guerras apenas como um último recurso. Esta era uma nação sem nenhum
grande exército permanente, sem um projeto de conquista externa, que
procurava primariamente a oportunidade de desenvolver seus próprios recursos
e seu próprio modo de vida [...]. A Guerra Fria, com todas as suas categorias
ordenadas e descrições em preto e branco, fez muito para nos confirmar que o
que nos tinha sido ensinado era verdade.

Mas, nos últimos anos, o recuo da histeria da era da Guerra Fria e o


desenvolvimento de uma política externa mais agressiva e ativista fizeram com
que muitos de nós repensássemos atitudes profundas e sentimentos básicos a
respeito de nosso país. A incrível guerra no Vietnã [...] finalmente cortou o
último vestígio da ilusão de que a moralidade e a democracia são os guias da
política externa americana. [...] Quanto mais exploramos a realidade do que este
país está fazendo e planejando no Vietnã, mais somos levados à conclusão do
senador Morse de que os Estados Unidos podem bem ser a maior ameaça à paz
no mundo hoje.

Potter foi adiante, acrescentando que aqueles que se opunham à guerra e pediam a retirada
das tropas deveriam estar prontos para aceitar o fato de que isso possivelmente implicaria a
criação de um Vietnã unificado sob o comunismo: “Eu devo lhes dizer que prefiro ver o Vietnã
comunista do que vê-lo sob o jugo contínuo ou a ruína que a dominação americana tem trazido.”
E foi adiante:

363
Ibidem, p. 185.
198

Mas a guerra continua; a liberdade de conduzir essa guerra depende da


desumanização não só do povo vietnamita, mas a dos americanos também; ela
depende da construção de um sistema de premissas e de pensamento que isola
total e completamente o presidente e seus conselheiros das conseqüências
humanas das decisões que eles tomam. Eu não acredito que o presidente ou o
Sr. Rusk [Secretário de Estado] ou o Sr. MacNamara [Secretário de Defesa] ou
mesmo o Sr. Bundy [Conselheiro de Segurança Nacional] sejam homens
particularmente maus. Se lhes fosse pedido que jogassem napalm nas costas de
uma criança de dez anos, eles se encolheriam de horror — mas suas decisões
têm levado à mutilação e à morte de milhares e milhares de pessoas.

Que espécie de sistema é esse que permite que homens bons tomem esses tipos
de decisões? Que espécie de sistema é esse que justifica que os Estados Unidos
ou qualquer país se apodere dos destinos do povo vietnamita e os use para seu
próprio propósito? Que espécie de sistema é esse que cassa os direitos das
pessoas no Sul, deixa milhões e milhões de pessoas em todo o país,
empobrecidas e excluídas da corrente principal e da promessa da sociedade
americana, que cria terríveis burocracias sem rosto e faz delas o lugar onde as
pessoas passam a vida e fazem seu trabalho, que consistentemente põe os
valores materiais acima dos valores humanos — e ainda insiste em se chamar
de livre e em se achar com o direito de ser a polícia do mundo? Que lugar existe
para o homens comuns nesse sistema e como eles vão controlá-lo, fazê-lo se
curvar à sua vontade ao invés de se curvarem à dele?

Nós temos de dar nome a esse sistema. Devemos nomeá-lo, descrevê-lo,


analisá-lo, entendê-lo e mudá-lo. Pois só quando ele for mudado e posto sob
controle que poderá haver esperança de deter as forças que criam uma guerra no
Vietnã hoje ou um assassinato no Sul amanhã ou todas as incalculáveis
atrocidades mais sutis que são impostas ao povo o tempo todo.

Houve gritos para que Potter nomeasse o sistema, que para uns seria o capitalismo, e para
outros o imperialismo — uma explicação ligando o militarismo, o racismo e a desigualdade
social e que em breve se tornaria comum. A indefinição, contudo, era proposital, pois Potter
considerava “capitalismo” uma palavra ideologicamente muito carregada, ligada à Velha
Esquerda, e que havia se tornado um termo “morto, vazio”.364 Tanto era assim que a sua proposta
para entender e mudar o sistema fugia às recomendações que teriam sido feitas na época da
predominância do marxismo-leninismo e suas variantes:

Se as pessoas deste país tiverem de parar a guerra, e mudar as instituições que a


criam, então as pessoas deste país devem criar um movimento social de massa
— e se ele puder ser construído em torno da questão do Vietnã, então é isso o
que devemos fazer.

364
Ibidem, p. 188.
199

Por um movimento social eu me refiro a mais que petições ou cartas de


protesto, ou o apoio tácito a congressistas dissidentes; eu me refiro a pessoas
que estão dispostas a mudar suas vidas, que estão dispostas a desafiar o sistema,
a levar a sério o problema da mudança. Por um movimento social eu me refiro a
um esforço poderoso o bastante para fazer o país entender que nossos
problemas não estão no Vietnã, na China ou no Brasil ou no espaço sideral ou
no fundo do oceano, mas estão aqui nos Estados Unidos. [...]

Pois de uma estranha forma, o povo do Vietnã e o povo nesta manifestação


estão unidos em mais do que uma preocupação comum com o fim da guerra.
Em ambos os países há gente lutando para construir um movimento que tenha o
poder de mudar sua situação. O sistema que frustra esses movimentos é o
mesmo. Todas as nossas vidas, nossos destinos, nossas próprias esperança de
viver, dependem de nossa capacidade de superar esse sistema.365

A multidão, que ouvia sentada, levantou-se para aplaudir. Potter havia resumido a leitura
predominante na SDS de que mesmo os problemas externos do país tinham suas raízes no seio de
sua própria sociedade, e ali, sim, deveriam ser combatidos. O Vietnã era apenas “um sintoma de
um mal mais profundo”, incitando a audiência a ir além dos problemas imediatos e buscar a
ligação com os vários outros “sintomas”. Fez isso, contudo, procurando fugir do jargão da Velha
Esquerda, sem prescrever uma revolução, sem mencionar uma classe revolucionária específica e,
ao mesmo tempo, exortando as pessoas a se engajarem para além da participação numa marcha
ou nas vias de protesto habituais. Ele não disse, mas ali estava subentendida uma idéia cara à
ética da Nova Esquerda, presente na campanha dos direitos e antes dela nos movimentos pela
paz: “pôr o corpo na linha”, ou seja, arriscar-se ao máximo, mesmo com perigos físicos, pela
causa.
A marcha foi encerrada com música do movimento pelos direitos civis e uma tentativa
fracassada de pouco mais de duas dezenas de estudantes de iniciar um sit-in no Capitólio. Não
havia ainda um espírito confrontacional, e ainda existia a esperança de que o governo pudesse
atender à petição entregue pelos manifestantes ao Congresso, e que exigia o fim da guerra.
Para a SDS, a marcha foi um divisor de águas. Não apenas pelo fato de ser o maior
empreendimento da organização até aquele momento e ter superado todas as expectativas apesar
da oposição de figuras de peso entre os movimentos sociais americanos. Seu maior impacto veio
nos dias seguintes, com a cobertura da imprensa (freqüentemente desfavorável, ou mesmo hostil,
além de imprecisa) e até da televisão. De uma hora para outra, a organização se tornou uma
referência nacional sobre o problema do Vietnã, muito especialmente para os jovens

365
Paul Potter’s Speech. Disponível em: http://www.sdsrebels.com/potter.htm. Acesso em: 23 de dezembro de 2006.
200

preocupados com a possibilidade do alistamento militar. Para surpresa de seus próprios


dirigentes, a SDS, que sempre havia olhado para o SNCC como a vanguarda da militância
estudantil, viu-se catapultada à posição de grande força dentro da Nova Esquerda.

4.2.2 – INCHAÇO E O “PODER DA PRADARIA”

A partir do envolvimento mais direto com o Vietnã e a obtenção de visibilidade nos meios
de comunicação, o número de membros da SDS sofreu um processo contínuo de intenso
crescimento. É difícil determinar com precisão o número de membros, pois muito mais gente
gravitava em torno dos núcleos da SDS do que os estudantes que efetivamente se registravam e
pagavam suas contribuições. Além disso, dadas as condições de trabalho freqüentemente caóticas
do Escritório Nacional, a organização não primava pelo rigor administrativo.366 Kirkpatrick Sale,
autor da história mais completa da SDS e tido como referência até mesmo pelos seus ex-
membros, apresenta as seguintes estimativas (os períodos são divididos de acordo com as
eleições internas, realizadas anualmente a cada convenção nacional)367:

1960-62:368
Presidentee: AI Haber Membros: 250 (dezembro/1960)
Vice-Presidente: Jonathan Weiss 575 (novembro/1961)
800 (maio/1962)
Secretário de Campo: Al Haber Núcleos: 8 (dezembro/1960)
(1960-62) 20 (novembro/1961)
Tom Hayden (1961-62) 10 (maio/1962)

1962-63:
Presidente: Tom Hayden Membros: 900 (janeiro/1963)
Vice-Presidente: Paul Booth (447 pg.)
1.100 (junho/1963)
(600 pg.)
Secretário Nacional: Jim Monsonis Núcleos: 9 (janeiro/1963)
Secretário de Campo: Steve Max

366
ROSS, Robert J. Primary Groups in Social Movements: A Memoir and Interpretation. In: MYERS, R. David.
Toward a History of the New Left: Essays from Within the Movement. New York: Carlson Publishing, 1989, p. 160.
367
SALE, op. cit., p. 663. Em 1966-7, passou a haver uma distinção entre os membros filiados diretamente á
organização nacional e aqueles filiados aos núcleos dos campi. Assim, para esse período, eram eles que constituíam a
fonte de renda mais regular (ou a menos irregular) da SDS.
368
Não houve convenção ou eleição de novos quadros em 1961.

Você também pode gostar