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UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara – SP

Larissa Nunes Ziviani

ARARAQUARA
2017
INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos o futebol passou a ser explorado economicamente de forma


tão intensa que em junho de 2014 o mercado do esporte movimentou entre R$ 455
bilhões e R$ 577 bilhões (OSWALD, 2014.), fato que torna notório a sua importância e
seu impacto na economia mundial.
Quando analisado como um produto de consumo impulsionado pela paixão dos
torcedores e praticantes, este produto torna-se comercializado através de diversas
maneiras, desde um ingresso para assistir a um jogo, passando por equipamentos e
acessórios, chegando até a venda de pacotes televisivos de transmissão de campeonatos
que por sua vez contribuem para essa grande circulação de capital.
Portanto, este ensaio toma como objeto o futebol, buscando elucidar as relações
deste esporte com os elementos constitutivos da cultura de consumo a partir de uma
etnografia inspirada em Geertz em jogos no Estádio da Fonte Luminosa e em um bar
bastante frequentado por torcedores que transmite jogos ao vivo e uma tentativa da
utilização da proposta teórico metodológica de Jeanne Favret-Saada.

O MÉTODO ETNOGRÁFICO

Clifford Geertz aborda em seus textos o fazer etnográfico com uma matriz
hermenêutica, criticando a utilização desenfreada do conceito de cultura como Tylor
fazia de modo abrangente, por exemplo, ou como Clyde Kluckhohn tratava de maneira
difusa, pois para Geertz a cultura é pública e seria como uma teia de significados, ou
seja, seria um conjunto de símbolos que estariam abertos para as pessoas e que estas
pessoas poderiam compartilhar, por isso tal conceito é semiótico.
De acordo com Geertz, a antropologia seria a interpretação destas teias,
possuindo como instrumento a etnografia para a realização desta interpretação. A
etnografia, portanto, deveria ser uma descrição densa, já que permite compreender o que
representa a análise antropológica como forma de conhecimento, permitindo uma
hierarquia estratificada de estruturas significantes, onde os sistemas simbólicos se
apresentariam de formas múltiplas. Logo, a descrição etnográfica seria interpretativa,
pois interpreta o fluxo do discurso social, já que tenta salvar o dito e fixa-lo em formas
pesquisáveis, ou seja, segundo Geertz, a cultura poderia ser entendida como um texto
que poderia ser lido, sendo deste modo uma interpretação. Por este motivo, o texto
antropológico será sempre uma ficção e uma interpretação de segunda mão.
Com base neste aporte téorico, relatei minha ida a campo da seguinte maneira:
Em minha primeira ida a campo, o dia (24/04/2016) estava muito quente, os
termômetros de Araraquara marcavam 35 graus. Cheguei por volta das 15:40 na “Esfiha
da Fonte”, um bar localizado dentro de uma galeria famosa por transmitir jogos de
futebol. Estava vazio, as mesas estavam sendo colocadas ainda e havia um grupo de 4
pessoas apenas no local. Sentei-me e aguardei as pessoas chegarem. Era a semi-final do
campeonato paulista de 2016 e eu sabia que este jogo iria mexer com o coração dos
torcedores porque Santos e Palmeiras inflaram uma rivalidade enorme em seus últimos
jogos.
Aos poucos, os torcedores dos dois times foram chegando e se acomodando nas
mesas. O clima de tensão era perceptível. Todas as mesas continham ao menos uma
garrafa de cerveja e apesar daquelas pessoas, imagino eu, estarem ali por lazer e
diversão, era notório a preocupação com seus respectivos times, com o jogo, como se
estivessem esperando apenas uma jogada bem trabalhada, um drible desconcertante,
uma defesa ou um gol para explodirem de emoção.
A maioria das pessoas presentes no estabelecimento estava muito animada, na
medida em que o tempo ia passando e o jogo se encaminhando, os torcedores iam
pedindo mais cervejas e ficando cada vez mais exaltados, tão exaltados a ponto de
jogarem cadeiras quando o Palmeiras empatou o jogo. Antes do gol de empate, o Santos
vencia por 2 a 0 e os santistas cantavam o hino do clube e gritavam por diversas vezes
“chupa”, “chupa porcada”. No entanto, após o empate a euforia palmeirense foi geral,
cadeiras foram arremessadas em direção a um canto vazio, muitas batidas nas mesas
com um caráter agressivo e muita gritaria foi ouvida.
Ao meu lado, estava um rapaz jovem já alterado por conta da bebida, vestindo a
camisa do Palmeiras, pulou a grade do estabelecimento e foi para a rua gritar: “chupa,
chupa, aqui é Palmeiras”. O rapaz retornou ao bar e se dirigiu a cada mesa santista e
gritou para os torcedores rivais: “toma, chupa bando de otários, o Palmeiras é grande,
segura o medo agora, segura”, além de vários palavrões. Como todos perceberam que
ele já estava alterado, simplesmente o ignoraram, mas assim que o jogo terminou e o
Santos se classificou, um grupo de santistas cercou o rapaz e o xingaram por alguns
minutos, felizmente o rapaz estava acompanhado da família e não rebateu os santistas.
Após essa imersão, um fato que me despertou o interesse foi a apropriação da
palavra “chupa”, na qual interpreto como um marcador de identidade, cujo grito sai da
boca dos torcedores de forma exaltada, pois o etnógrafo “deve atentar-se para o
comportamento e, com exatidão, pois é através do fluxo do comportamento – ou mais
precisamente, da ação social – que as formas culturais encontram articulação”
(GEERTZ, 1989, p.27).
Além deste marcador de identidade, considero também a utilização das
camisetas de clubes que automaticamente já demonstram o grupo, no caso de torcidas
organizadas, ou time de pertencimento da pessoa. No entanto, esta é uma interpretação
minha, ou seja, de segunda mão.
Diferentemente desta proposta téorico-metodológica, Fravet-Saada utiliza a ideia
do sensível metodologicamente, pois:
“Com efeito, minha experiência de campo com o
desenfeitiçamento, e, em seguida, minha experiência com a terapia
analítica levaram-me a pôr em questão o tratamento paradoxal do
afeto na antropologia: em geral, os autores ignoram ou negam seu
lugar na experiência humana. Quando o reconhecem, ou é para
demonstrar que os afetos são o mero produto de uma construção
cultural, e que não têm nenhuma consistência fora dessa construção,
como manifesta uma abundante literatura anglo-saxã; ou é para votar
o afeto ao desaparecimento, atribuindo-lhe como único destino
possível o de passar para o registro da representação, como
manifesta a etnologia francesa e também a psicanálise. Trabalho, ao
contrário, com a hipótese de que a eficácia terapêutica, quando ela se
dá, resulta de um certo trabalho realizado sobre o afeto não
representado.” (FAVRET-SAADA, 1990)

De acordo com a autora, a participação do pesquisador em um ritual ou em


alguma outra coisa não deve ser somente por empatia porque esse tipo de afeto abre
uma comunicação específica com as pessoas nas quais o pesquisador está trabalhando.
Portanto, a participação deve ser utilizada como um instrumento de conhecimento.
Segundo a autora:
“Eu, ao contrário, escolhi conceder estatuto epistemológico a
essas situações de comunicação involuntária e não intencional: é
voltando sucessivamente a elas que constituo minha etnografia. 2.
Segundo traço distintivo dessa etnografia: ela supõe que o
pesquisador tolere viver em um tipo de schize. Conforme o momento,
ele faz justiça àquilo que nele é afetado, maleável, modificado pela
experiência de campo, ou então àquilo que nele quer registrar essa
experiência, quer compreendê-la e fazer dela um objeto de ciência. 3.
As operações de conhecimento acham-se estendidas no tempo e
separadas umas das outras: no momento em que somos mais afetados,
não podemos narrar a experiência; no momento em que a narramos
não podemos compreendê-la. O tempo da análise virá mais tarde. 4.
Os materiais recolhidos são de uma densidade particular, e sua
análise conduz inevitavelmente a fazer com que as certezas científicas
mais bem estabelecidas sejam quebradas.” (FAVRET-SAADA,
1990)

Mediante a isto, reflito aqui sobre como seria minha experiência no campo a
partir da proposta de Favert-Saada.
Ao chegar no bar, sentei em uma mesa próxima ao aglomerado de torcedores. Eu
gosto de futebol, e gosto muito e por isso alguns acontecimentos da minha ida a campo
não me surpreenderam, porque eu vivi e vivo nesse universo há muito tempo. Porém,
aprendi que para realizar uma etnografia do seu universo familiar é preciso torná-lo
exótico (ROBERTO DAMATTA, ANO). Fui desarmada de aportes teóricos e por mais
que o jogo não fosse o do meu time do coração, senti-me afetada, mas sem intenção.
Como o jogo era decisivo, uma semi-final, o clima no bar era de tensão total. Eu
pude sentir isso e senti a cada gol perdido de ambas as equipes, a cada “uuuh” de
torcedores, a cada gol, a cada pênalti batido ou defendido. Acredito que fui afetada e
assim como a autora trata em seu texto, abri uma comunicação involuntária com alguns
torcedores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao realizar este exercício de adequar meu objeto de pesquisa a proposta téorico-
metodológica destes dois autores concluo que um dos maiores desafios para os
antropólogos esteja na escrita ou no processo de transformar o observado e o sentido no
escrito, porque quando apenas observamos e/ou participamos de alguma experiência,
estamos no campo da percepção, no entanto o desafio torna-se maior ainda quando
partimos para a escrita e colocamos todos os nossos pensamentos na ponta do caneta
principalmente com o cuidado de não sermos etnocêntricos, donos da verdade e
contribuidores para o "Grande Divisor” (GOLDMAN; LIMA, 1999)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAMATTA, Roberto.

FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Affecté”. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de
l’Anthropologie, 8. pp. 3-9.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.


GOLDMAN; LIMA.

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