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O LUGAR DA IDEOLOGIA NO TOTALITARISMO

– NOTAS A PARTIR DE HANNAH ARENDT

1. Preliminares

As classificações históricas de regimes políticos – as quais se devem, nas suas


formas mais acabadas, a Aristóteles e a Montesquieu – provaram-se inadequadas
perante as experiências observadas no século XX, sobretudo perante aquelas que vieram
a ser designadas como experiências totalitárias. Nestas observou-se algo de novo,
imprevisto e imprevisível, mesmo pelos mais poderosos pensadores do passado.
Hannah Arendt, se não foi responsável pela introdução do termo totalitarismo,
foi inteiramente rigorosa ao fazer-lhe corresponder um regime político radicalmente
distinto, assim não reconduzível à tirania descrita pelos Antigos ou ao despotismo
descrito por Montesquieu1.

2. A ideologia como princípio de governo

2.1. O impulso para a identificação de um novo regime político encontrou-se


sobretudo no confronto com as características próprias das experiências soviética e
nacional-socialista. Como explana Arendt, qualificar tais experiências como formas

1
Este novo termo – totalitarismo – veio a constituir o primeiro termo da classificação de regimes políticos
hoje dominante. Nesta classificação, pela qual se procuram apreender os traços essenciais dos regimes
contemporaneamente observados no quadrante euro-americano, o totalitarismo surge contraposto ao
autoritarismo e à democracia constitucional. Deve dizer-se que a este outro tratamento dos regimes
políticos, muito embora correspondam experiências e termos novos, não subjaz um corte com os referidos
tratamentos históricos. Desde logo, e como referido, os termos tirania e despotismo constituem
precisamente aqueles no confronto com os quais o totalitarismo surge como uma novidade. Por outro
lado, esta nova classificação mantem presente a distinção entre natureza e princípio de governo – entre
elemento externo e elemento interno do regime – enquanto via essencial de aproximação e de
caracterização dos regimes políticos.
modernas de tirania – “um governo sem leis onde o poder é exercido por um só
homem” – não seria satisfatório.
É certo que estes novos regimes desafiam todas as leis no tradicional sentido
normativo, estabilizador e limitador, mesmo aquelas que são estabelecidas por si
próprios: tenha-se presente a Constituição soviética de 1936 onde tal é inclusivamente
assumido. Mas caso tomemos a expressão “leis” noutro sentido que não o referido
sentido tradicional, não se pode rigorosamente dizer que estes regimes tenham como
característica própria o desprezo pelas mesmas.
Pelo contrário: supõe-se sempre estar em causa uma rigorosa subordinação a
“leis” tidas como inexoravelmente correspondentes à história ou à natureza
(designadamente, a uma “natureza” tida como culminante na afirmação da “raça mais
forte” ou “mais apta”)2/3. Com efeito, os regimes totalitários são compreendidos por
aqueles que o materializam como atualizadores do movimento inexorável dessas “leis”4.
Tais “leis” consubstanciam a premissa maior de uma ideologia na qual –
prosseguindo com Arendt – se encontra o princípio de governo correspondente a um
regime totalitário. Na verdade, aquilo que aí determina a agir, que impele à assunção do
papel de carrasco (e também de vítima, assim perversamente no momento em que “o
monstro começou a devorar os seus próprios filhos”), não reside verdadeiramente no
medo (ao contrário do que sucede no despotismo de Montesquieu); nem mesmo reside
em algo que ultrapassa o medo em grau e natureza e que se pode qualificar como terror.
O terror caracteriza, é certo, um regime totalitário, sendo-lhe mesmo essencial.
Ainda assim, o terror é apenas uma decorrência da ideologia: é a partir da adesão a esta
última que se tomam leis inexoráveis da natureza ou da história como ditadoras do
próprio agir; já o resultante terror destina-se a “converter em realidade” o movimento
2
Cfr. The Origins of Totalitarianism, San Diego: Harcourt Brace & Company, (1 a ed., 1951) 1976, p. 460
segs. (nalgumas transcrições socorremo-nos da tradução portuguesa da responsabilidade de Roberto
Raposo: As Origens do Totalitarismo, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004).
3
Interessantemente, Arendt assinala o facto de as “leis” que encabeçam um regime totalitário ocuparem o
lugar ocupado pela “lei natural” (ou, alternativamente, pelo fundamental consensus iuris) da qual as leis
positivas recebem a sua legitimidade num regime de Direito. Verifica-se , no entanto, uma radical
diferença: “A legitimidade totalitária, desafiando a legalidade e pretendendo estabelecer directamente o
reino da justiça na Terra, executa a lei da História ou da Natureza sem a converter em critérios de certo e
errado que norteiem a conduta individual. Aplica a lei directamente à Humanidade, sem atender à conduta
dos homens. Espera que a lei da Natureza ou a lei da História, devidamente executada, engendre a
Humanidade como produto final (…). A política totalitária afirma transformar a espécie humana em
portadora activa e inquebrantável de uma lei à qual os seres humanos apenas passiva e relutantemente se
submeteriam”, Idem, p. 462.
4
Tenha-se particularmente em conta o seguinte passo: “Na intepretação do totalitarismo , todas as leis se
tornam leis de movimento. Embora os nazis falassem da lei da Natureza e os bolcheviques falem da lei da
História, Natureza e História deixam de ser a força estabilizadora da autoridade para as acções dos
homens mortais; elas próprias tornam-se movimentos”, Idem, p. 463.
correspondente a tais “leis”. Por outro lado, o terror não se dirige sobretudo contra os
homens do regime (aqueles cuja ação um princípio de governo permite apreender ou
explicar) mas contra os seus inimigos (assim, ainda que no limite ninguém se possa
considerar seguro). Nas palavras de Arendt, que sintetizam estes dois aspetos, “o terror
executa sem mais delongas as sentenças de morte que – de acordo com a ideologia – a
natureza supostamente pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são
«indignos de viver» ou que a história decretou contra as «classes agonizantes» sem
esperar pelos processos mais lentos e menos eficazes da própria história ou natureza”5.
O princípio de governo de um regime totalitário (a ideologia) ocupa o lugar
correspondente aos princípios de ação pensados por Montesquieu (virtude, numa
república; honra, numa monarquia; medo, no despotismo). Ainda assim, distingue-se
destes últimos, revelando-se aqui a essencial dimensão desumanizadora do
totalitarismo. Na verdade, aqueles princípios são ainda extraídos da esfera da ação
humana: pode dizer-se que ainda lhes corresponde um desejo de agir intrínseca ou
naturalmente humano (mesmo que diferentemente potenciador da excelência humana),
encontrando-se aí a razão de ainda serem princípios de ação em sentido próprio. Já o
princípio de governo de um regime totalitário substitui o desejo de agir pelo agir
mecânico ditado pela cegueira ideológica e que corresponde ao processo meramente
objetivo (tido como tal) da natureza ou da história6.

2.2. A ideologia apresenta algumas características próprias, perante as quais se


torna compreensível o facto de nela se encontrar o princípio de governo correspondente
ao totalitarismo.
A primeira dessas características é a cientificidade. O cerne da ideologia
encontra-se numa teoria tida como objetiva (isto é, como estritamente adequada ao seu
objeto ou suposto objeto, consubstanciado este na natureza ou na história), assim porque
presumivelmente assente em processos de conhecimento incontaminados pela
subjetividade do sujeito cognoscente e porque essencialmente consubstanciada em
“leis” tidas como “próprias” do seu objeto (leis da natureza ou da história,
precisamente).
Ao pretender-se científica a ideologia encontrou uma forte base persuasória,
independentemente agora da defensabilidade de tal pretensão em sede de Filosofia da

5
Idem, p. 466.
6
Idem, p. 467-468.
Ciência e da maior ou menor seriedade com que a correspondente atitude científica terá
sido assumida. Facto, em qualquer caso, foi que aqueles que devotaram à teoria as suas
certezas, ter-lhe-ão reportado a respeitabilidade e a dignidade da ciência 7, a mais
prestigiada instituição moderna8.
Para além da cientificidade, a ideologia caracteriza-se pelo totalismo e pela
compulsividade ou inexorabilidade. Pelo totalismo porque o que está em causa é uma
pretensão de conhecimento total do ser humano e do processo histórico – um
conhecimento explicativo não apenas do que foi ou do que é, mas também do que virá a
ser9 –, o qual se supõe “desvendado” no âmbito da ideologia. Pela compulsividade
porque a lógica da ideologia, cuja premissa se encontra nas leis da natureza ou da
história que lhe correspondem e no seu movimento, se revele inexorável – revelando-se
compulsivo o agir correspondente –, ao ponto de suspender as capacidades humanas de
experiência e de pensamento10.
O seguinte passo de Arendt é bem ilustrativo a este respeito: «Esse processo
argumentativo não podia ser interrompido nem por uma nova ideia (que teria sido outra
premissa com um diferente conjunto de consequências) nem por uma nova experiência. As
ideologias pressupõem sempre que uma ideia é suficiente para explicar tudo no
desenvolvimento da premissa e que nenhuma experiência ensina coisa alguma porque tudo está
compreendido nesse coerente processo de dedução lógica. O perigo de trocar a necessária
segurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e pela sua weltanshauung
não é tanto o risco de ser iludido por uma alguma suposição geralmente vulgar e sempre
destituída de crítica como o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela
camisa-de-forças da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente como uma
força externa»11.

7
Salientando este aspecto especificamente a respeito do marxismo-leninismo, cfr. François Furet, O
Passado de uma Ilusão – Ensaio sobre a Ideia Comunista do Século XX, trad., Lisboa: Presença, 1996,
422.
8
Sobre este último aspecto, cfr. Charles Taylor, A Secular Age, Cambridge MA: Harvard University
Press, 2007, em especial, p. 299 segs.
9
The Origins of Totalitarianism, p. 469.
10
Para mais desenvolvimentos sobre a destruição das capacidades humanas no âmbito das experiências
totalitárias, cfr. A Banalidade do Mal como Ausência de Direito.
11
The Origins of Totalitarianism, p. 470 segs. Arendt ilustra esta subjugação, no que diz respeito à
preparação de vítimas e carrascos nos seguintes termos: Na lógica correspondente à ideologia, «o
argumento mais persuasivo – argumento muito do gosto de Hitler e de Estaline – é: não se pode dizer A
sem dizer B e C e assim por diante, até ao fim do infame alfabeto. Parece ser esta a origem da força
coerciva da lógica: emana do nosso pavor à contradição. Quando o expurgo bolchevique faz com que as
vítimas confessem delitos que nunca cometeram, confia principalmente nesse medo básico e argumenta
da seguinte forma: todos concordamos com a premissa de que a História é uma luta de classes e com o
papel do partido nessa luta. Sabemos, portanto, que, do ponto de vista histórico, o partido tem sempre
razão (nas palavras de Trotski, “só podemos ter razão com o Partido e através dele, pois a história não nos
concede outro meio de termos razão”). Neste momento histórico, que obedece à lei da História, alguns
2.3. Como vimos, Arendt rejeita a classificação das experiências nacional-
socialista e soviética como tirânicas – preferindo o termo totalitarismo – em ordem a
frisar que o que está aí em causa não são governos independentes de “leis”. Antes são
governos que seguem “leis” – aquelas “leis”, da natureza ou da história, que
consubstanciam a premissa das correspondentes ideologias –, ainda que “leis” num
sentido muito diferente do tradicional sentido normativo, estabilizador e limitador. Com
efeito, e como já referido, as “leis” em causa já não demarcam uma “estrutura de
estabilidade dentro da qual podem ocorrer os atos e os movimentos humanos”12,
correspondendo muito pelo contrário ao inexorável movimento da natureza ou da
história13.
Também Leo Strauss se ocupou das experiências contemporâneas que
constituem a base de reflexão de Arendt, diagnosticando as suas características
essenciais em termos não muito distantes: o que caracterizaria essencialmente tais
experiências, segundo Strauss, seriam as ideologias – ideologias pressuponentes da
“ciência”, ou melhor dizendo, “de uma particular interpretação, ou tipo, de ciência” –
aliadas à disponibilidade de tecnologia14.
Ainda assim, Strauss rejeita o termo totalitarismo, preferindo a conservação do
termo tirania. A razão prende-se com a perspetiva envolvida num e noutro termo.
Segundo Strauss, termos como totalitarismo envolveriam uma perspetiva
valorativamente neutra, assim não condenatória, das experiências classificadas. Já o
termo tirania envolveria uma perspetiva valorativa, trazendo implicada uma condenação

crimes serão certamente cometidos e o partido, conhecendo a lei da História, deve puni-los. Para esses
crimes, o partido necessita de criminosos; pode suceder que este, conhecendo os crimes, não avalie
inteiramente os criminosos; porém, mais importante que ter a certeza quanto aos criminosos é punir os
crimes, porque, sem essa punição, a História não poderia progredir e até mesmo o seu curso poderia ser
tolhido. Tu, portanto, ou cometeste os crimes ou foste convocado pelo partido para desempenhar o papel
de criminoso – de qualquer forma, és objectivamente um inimigo do partido. Se não confessares, deixarás
de ajudar a História através do partido e tornar-te-ás um verdadeiro inimigo. A força coerciva do
argumento é: se te recusas, contradizes-te, com esta contradição toda a tua vida perde o sentido; pois o A
que pronunciaste domina toda a tua vida através das consequências B e do C que se lhe seguem
logicamente».
12
Idem, p. 463.
13
O facto de os totalitarismos serem marcados por este constante movimento conduz alguns a afirmar ser
inadequada a respectiva designação como regimes. Nesse sentido, Emilio Gentile contrapõe à expressão
regime a designação experiência, pretendendo assim sublinhar “o facto de o totalitarismo ser um processo
contínuo que não pode considerar-se completo em nenhuma fase da sua implementação”, cfr. Politics as
Religion, trad., Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2006, 48.
14
Cfr. On Tyranny e Restatament on Xenophon’s Hiero, in Leo Strauss On Tyranny, ed. Victor
Gourevitch / Michael S. Roth, Chicago e Londres: University of Chicago Press, 2000, p. 22-131 e 177-
212.
das formas de governo em causa como formas degeneradas. Nesta linha, em lugar de
abandonar o termo tirania – e a perspetiva valorativa nele implicada – impunha-se
conservá-lo, distinguindo simultaneamente tiranias antigas e tiranias modernas, estas
últimas caracteristicamente permeadas por ideologias marcadas por certa ideia de
ciência.
A principal marca de degenerescência das tiranias modernas (as quais não se
esgotam, segundo Strauss, no sovietismo e no nacional-socialismo) encontrar-se-ia na
inerente destruição daquela possibilidade que em maior grau demarca a excelência
humana: a possibilidade de filosofia. Na verdade, a liberdade envolvida na filosofia (o
questionamento constante e a intransigente busca que esta por natureza envolve) seria
necessariamente comprometida perante “um Tirano final que se apresenta a si mesmo
como um filósofo, como a autoridade filosófica maior, como o supremo exegeta da
única filosofia verdadeira, como o executor e carrasco autorizado pela única filosofia
verdadeira”15.
A nosso ver, caso o termo totalitarismo envolvesse a perspetiva neutralmente
não condenatória a que Strauss se refere, esse seria um argumento decisivo para o
rejeitar. Não é seguro, no entanto, que assim seja, pois ao firmar-se que o governo
totalitário tem por princípio uma ideologia inibidora das capacidades humanas de
experiência e de pensamento – precisamente aquilo que Arendt assinala – está-se a
reportar ao mesmo a degenerescência que Strauss reporta em exclusivo ao termo tirania.
Assim sendo, dizer totalitarismo ou dizer tirania moderna no sentido desenvolvido por
Strauss não será significativamente diferente.

2.4. Tal como Strauss, também Alexander Kojève preferiu continuar a referir-se
a tirania, distinguindo concomitantemente tirania antiga e tirania moderna. Quanto à
caracterização desta última, afirma Kojève que a mesma se caracteriza, não por ser um
governo arbitrário de um só em prossecução do interesse próprio (tal era o caso na
tirania antiga), mas por ser um governo desinteressadamente prosseguido ao serviço de
“ideias políticas, sociais ou económicas verdadeiramente revolucionárias”16.
Kojève assinala ainda que o princípio correspondente à tirania moderna não é o
medo ou o terror, sublinhando mesmo que a situação de um governo que “comanda

15
Restatement on Xenophon’s Hiero, p. 211.
16
Tyranny and Wisdom, in Leo Strauss On Tyranny, ed. Victor Gourevitch / Michael S. Roth, Chicago e
Londres: University of Chicago Press, 2000, p. 135-176, p. 139.
através do terror” é “absolutamente impossível”17. Os governos tirânicos são sempre
reconhecidos por alguns, precisamente aqueles que comungam das ideias
revolucionárias que se lhes encontram subjacentes.
A análise de Kojève revela-se interessante na medida em que nos permite
identificar – porventura contra Kojève – um problema traduzido na distinção entre o
reconhecimento correspondente às tiranias modernas e o reconhecimento
correspondente a outras formas de governo (ou, de outro modo, entre o reconhecimento
correspondente aos governos totalitários e o reconhecimento correspondente aos
governos não totalitários).
Uma das vias de solução desse problema, sugerida em Arendt, prende-se com a
distinção entre princípio de ação e princípio de governo: às tiranias modernas ou
governos totalitários corresponderá tão só um princípio de governo e não um princípio
de ação. Assim, o reconhecimento que lhes corresponde não relevará de um desejo de
agir intrínseca ou naturalmente humano. Ao comando e à obediência espontâneos que
perturbadoramente se verificam nos governos totalitários antes corresponde uma
disposição a um agir mecânico implementador do movimento das leis supostamente
científicas e inexoráveis em que a ideologia se centra.
Uma outra via, porventura conexa, de distinção prende-se com o facto de os
governos tirânicos ou totalitários serem irreconhecíveis por alguns daqueles que lhes
subordinam – pelo menos independentemente de auto-negação. Na verdade, a ideia que
lhes preside é invariavelmente uma ideia redutora de alguns à condição de inimigos –
em razão da raça ou da classe, consoante os casos –, algo particularmente gravoso, já
que não apenas os exclui de entre aqueles cujo reconhecimento é relevante, como os
destina mesmo à destruição física ou moral (neste último caso, por via do castigo
exemplar ou da reeducação).
Nesta última linha, o que poderá distinguir governos tirânicos de governos não
tirânicos não será o reconhecimento efetivo por um número significativo – esse será
necessário tanto num caso como noutro, pois um governo absolutamente não
reconhecido é absolutamente impossível. O que poderá distinguir uns e outros governos
antes será a suscetibilidade de reconhecimento por todos os que se lhe subordinam, ou

17
Idem, p. 144.
seja, a não redução de alguns à condição de inimigos, a qual terá lugar nos governos
não tirânicos18.

3. Ideologia, ciência e religião

3.1. Ter presente que aos governos totalitários corresponde um princípio não
significa ainda compreender o porquê da sua disseminação. De outro modo, não
significa apreender a razão pela qual as ideologias correspondentes mereceram a adesão
de conjuntos significativos de pessoas, mesmo apesar da sua implausibilidade filosófica
e repugnância moral.
Uma primeira resposta a esta última questão coloca a tónica na cientificidade (ou
suposta cientificidade) das ideologias em causa, as quais constituíram uma outra
expressão – porventura a expressão por excelência – de certa mentalidade moderna
permeada pelo mecanicismo19.
Uma segunda resposta, não necessariamente incompatível com a primeira,
acrescenta que às mesmas ideologias, cientificamente cunhadas (ou assim
supostamente), corresponderam fórmulas (ou “contra-fórmulas”) substitutivas dos
referentes das antigas religiões espirituais e inerentes mundividências, estas últimas
declaradas como ilusórias ou opiáceas. Esta resposta foi desenvolvida por Eric
Voegelin, em cujos termos, na Modernidade, «os métodos da ciência como formas
únicas de estudar os conteúdos do mundo são declarados genericamente como o único
alicerce em que os homens podem basear a sua atitude face ao mundo (…). A palavra
“metafísica” foi banida, a religião declarada “ópio do povo” ou, noutra formulação,
como “ilusão” condenada a prazo. Contra-fórmulas opostas às religiões espirituais e às
18
Perturbadoramente Kojève parece supor que a tirania não pode verdadeiramente ser contraposta a uma
não tirania, supondo pois uma inescapabilidade do político no sentido schmittiano: não podendo ser
afastada, a tirania apenas pode ser minorada naquilo que a fragiliza e que se prende com o não
reconhecimento efectivo por alguns. Ainda mais perturbadoramente, Kojève parece admitir que uma
tirania possa superar a sua própria fragilidade por via de uma activa prossecução da homogeneidade,
assim violentamente geradora de um efectivo reconhecimento por todos os sobreviventes após a
eliminação dos não homogéneos, cfr. Tyranny and Wisdom, em especial, p. 166 segs. Como bem assinala
Strauss a este respeito, é chocante ser confrontado com “a mais que maquiavélica violência” como
Kojève se refere à tirania e a toma como garantida. Kojève não hesita em proclamar os ditadores
contemporâneos como tiranos, não vendo aí qualquer objecção ao seu governo e admitindo-se mesmo
aconselhá-los quanto à superação daquela que considera ser a sua maior fragilidade. E “quanto a qualquer
reverência pela legitimidade, Kojève não tem nenhuma”, cfr. Strauss, Restatament on Xenophon’s Hiero,
p. 185. Se Strauss é certeiro nesta sua apreciação de Kojève, pode dizer-se que se afasta deste último no
essencial? É que também Strauss parece supor uma inescapabilidade do político no sentido schmittiano,
pelo menos tido em conta aquilo que afirma ser ilustrado pelo diálogo Tyrannicus de Xenofonte a respeito
da natureza das coisas políticas, cfr. On Tyranny, p. 66 segs.
19
Strauss, On Tyranny, p. 23 segs. e também Aron, The Future of Secular Religions, p. 177 segs.
correspondentes mundividências são cunhadas e legitimadas supostamente no âmbito da
ciência moderna, única forma válida de conhecimento, contrária à revelação e ao
pensamento místico. Emergem, assim, as “Weltanshaunngen científicas”, o “socialismo
científico” e a “teoria científica da raça”»20.
Uma terceira resposta tem em conta o facto de as ideologias em causa
assumirem um papel parametrizador, preenchendo aqueles que constituem os
inescapáveis enquadramentos morais dos seres humanos. A noção de enquadramentos
ou parâmetros morais foi contemporaneamente desenvolvida por Charles Taylor e
refere-se àqueles eixos de avaliação em cujo âmbito os homens determinam o seu valor,
o valor dos outros e aquilo que consideram uma vida com sentido21. Ora, às fórmulas
ideológicas e correspondentes “leis” correspondem precisamente eixos de avaliação
moral (sempre fundamentalmente distintivos de amigos e inimigos, em razão de um
qualquer termo, como a classe ou a raça), sendo que, na respetiva atualização, muitos
encontraram um sentido para a sua existência e um concomitante sentido constitutivo de
comunidade, o que explica o seu animismo ao serviço dos governos totalitários22.
As manifestações ritualísticas de massas e as formas brutais de expressão
características das experiências totalitárias – nas quais tendeu a manifestar-se uma
repulsiva franqueza – terão precisamente significado exteriorizações desse seu
significado anímico.

20
The Political Religions (1938), in The Collected Works of Eric Voegelin, V, ed. Manfred Henningsen,
Columbia e Londres: University of Missouri Press, 2000, p. 20-73. Assinala perturbadoramente Voegelin
que a adesão a estes conteúdos é tão forte que persiste, mesmo quando as suas pretensões científicas são
desmentidas por críticas indisputadas ou por uma experiência que não as confirma. Na verdade, muitos
não aceitaram então ter aderido a uma construção desmentida ou mentirosa: «em vez disso, o próprio
conceito de verdade é alterado (…); o sistema que antes pretendera ser racional-teorético, nacional-
económico, ou sociológico, é substituído por “mito”», Idem, p. 62.
No que diz respeito à história intelectual do marxismo, pode dizer-se que esse movimento é aquele que
ocorre em Sorel: a partir da admissão de que o marxismo não pode ser encarado como construção
científica, Sorel passa a tê-lo como construção pragmática, a expressão ideológica do único grupo de
pessoas capaz de resgatar a humanidade – o proletariado –, cuja marcha poderia e deveria ser sustentada
em “mitos sociais”. Para uma síntese do pensamento de Sorel, que coloca a tónica neste aspecto, cf. Jan-
Werner Müller, Contesting Democracy – Political Ideas in Twentieth-Century Europe, New Haven e
Londres: Yale University Press, 2011, p. 96 segs.
21
Cfr. Sources of the Self – The Making of Modern Identity, Cambridge Mass: Harvard University Press,
1989, p. 1 segs.
22
Tendo em conta esta terceira resposta, o que se pode eventualmente dizer, é que a observação dos
governos totalitários não desmente, bem pelo contrário, a ideia aristotélica de homem como animal
político, ou seja, como criatura formada no âmbito dos sentidos – parâmetros – correspondentes a cada
cultura política. Neste sentido, o nacional-socialismo e o sovietismo constituíram experiências políticas
possíveis na precisa medida em que às ideologias correspondentes hajam correspondido parâmetros
susceptíveis de “preencher” o homem, conferindo propósito à sua existência e orientando a sua acção.
É sobretudo em razão desse seu significado que alguns Autores se referiram às
ideologias totalitárias como “religiões políticas” (Eric Voegelin)23 ou “religiões
seculares” (Raymond Aron)24.
Tal fórmula, podendo ser interessante e sugestiva, não nos deve ainda assim
fazer esquecer a radical diferença existente entre essas mesmas “religiões” e as antigas
religiões espirituais, entre elas o Cristianismo. No primeiro caso, do que
fundamentalmente se trata é de referir o homem a supostas leis objetivas, vinculando-o
a comportamentos inexoráveis porque relevantes da respetiva atualização – ou seja,
trata-se de “objetivar” o homem e o seu comportamento, ainda que perversamente o
homem objetivado encontre um significado parametrizador ou anímico nas fórmulas
ideológicas que o objetivam. Já nas antigas religiões espirituais, o homem é referido a
um sentido fundamental de ser25 que se projeta em normas em sentido próprio –
designadamente, todos os fundamentais “tu deves” e sobretudo “tu não deves” da
tradição judaico-cristã –, normas cujo cumprimento não é tido como inexorável, mas
antes como atualizador de uma primordial liberdade26.

4. O Estado em perda perante o movimento

4.1. É comum afirmar-se ser característica dos regimes totalitários uma


hipervalorização do Estado27. Não nos parece que seja esse o caso, pelo menos se o

23
Segundo Voegelin, a estas mundividências correspondem formas de religiosidade mundana e pagã
constitutivas de comunidades políticas – comunidades de raça, de classe ou outras – nas quais se
materializa um radical abandono de Deus e da ideia de transcendência. O Autor fala a este respeito em
religiões políticas contrapostas às religiões espirituais, cfr. The Political Religions, passim.
24
Perguntou Aron: se “a religião tem a função de estabelecer os valores mais altos e dar sentido à
existência humana, como podemos negar que as doutrinas políticas da nossa era têm uma essência
religiosa?”. Para Aron, essas doutrinas – religiões seculares, caracterizadas por “estabelecer um objectivo
quase sagrado e por definir o bem e o mal por referência a esse ideal” – encontraram terreno fértil nas
necessidades existenciais do homem moderno, um homem encerrado na “jaula férrea” a que se referiu
Weber, assim isolado e desorientado numa Modernidade burocrática e anónima, cfr. Raymond Aron, The
Future of Secular Religions, trad., in The Dawn of University History, org. Tony Judt, p. 177-223.
25
Carl Jung desenvolveu precisamente este ponto, assinalando a radical diferença existente entre os
sentidos correspondentes às ideologias totalitárias e os sentidos assentes num princípio indisponível de
preservação e desenvolvimento espiritual, cfr. Aion – Researches into the Phenomenology of the Self,
Princeton: Princeton University Press, 1979, p. 36 segs. e The Archetypes and the Collective
Unconscious, Princeton: Princeton University Press, 1990, p. 207 segs.
26
A respeito da descoberta do homem interior nesta tradição, ver muito particularmente Hannah Arendt,
A Vida do Espírito – II – Querer, trad., Lisboa: Instituto Piaget, 2000, em especial, p. 63 segs.
27
Assim por exemplo Paulo Otero no âmbito de um tratamento do totalitarismo que inclui o fascismo
italiano e que encontra entre as suas fontes o pensamento de Hegel lido em termos popperianos, cfr. A
Democracia Totalitária, p. +.
Estado for entendido no sentido mais próprio, ou seja, enquanto construção jurídica a
que, por definição, corresponde um alto grau de institucionalização e estruturação
normativa (aquele Estado que, na sua mais acabada construção teórica, surge concebido
como pessoa jurídica atuante através dos seus órgãos).
Ora, o Estado assim concebido – uma estrutura normativa formal, desfulanizada
e estável com uma inerente relevância estabilizadora e limitadora – surge
necessariamente em perda perante a lógica do totalitarismo. Com efeito, o movimento
das leis em que se centram as ideologias totalitárias pede outra corporização que não o
Estado: pede uma corporização permeada pela incessante dinâmica desse movimento,
dele constantemente atualizadora. Fala-se do partido único de massas e do seu líder.

4.2. A subordinação do Estado ao partido ou movimento foi assumida enquanto


tal nos regimes totalitários.
No regime soviético, a concentração do poder num só partido, tido como guarda
e intérprete das leis da história, e a correspondente relevância subordinadora do Estado
– um Estado condenado a desaparecer, assim segundo uma lógica marxista antitética à
lógica hegeliana – encontra as suas premissas no próprio marxismo. Aí, preconizou-se
já a ditadura de um movimento fortemente centralizado ao mesmo tempo que se
procurou alcançar uma síntese entre determinismo histórico e vontade humana. Depois,
com a teoria e prática da ação revolucionária concebida por Lenine, a identificação do
partido com uma vanguarda fortemente voluntarista ficou firmemente estabelecida28.
Uma tal identificação e uma inerente desvalorização do Estado enquanto instituição
veio a ser objeto de expresso reconhecimento constitucional no período estalinista: o
artigo 126.º da Constituição de 1936 determinou ser o partido “a vanguarda do povo
trabalhador na sua luta para fortalecer e desenvolver o sistema socialista e o núcleo
liderante de todas as organizações”, entre elas o próprio Estado.
Quanto ao regime nacional-socialista, é de assinalar que a sobreposição do
movimento ao Estado não foi inicialmente pacífica, ainda que tenha acabado por ser
muito intensa. Ora, a discussão ocorrida em seu torno é particularmente interessante
pois ilustra bem o que está em causa nessa sobreposição. Vale pois a pena registá-la.

28
Com efeito, Lenine acentua fortemente o element voluntarístico da teoria marxista em ordem a explicar
o facto de a “ditadura do proletariado” conhecer a sua implementação num país fortemente agrícola e não
num país industrial avançado, cfr. Raymond Aron, From Marxism to Stalinism, trad., in The Dawn of
Universal History, cit., p. 203-223, p. 206 segs.
Tal discussão foi marcada por texto de Ernst Forsthoff, datado de 1933, no qual
o Autor condenou uma subordinação do Estado ao partido nacional-socialista. Com
efeito, Forsthoff opôs-se de um modo assinalável à dissolução da instituição Estado
perante a lógica irrestrita e fulanizada do movimento. É particularmente demonstrativo
o seguinte passo: «O Estado e o movimento não são identificáveis um com o outro. O
movimento pode emergir na pessoa do seu líder. O Estado não. Por mais forte que o momento
da liderança pessoal possa ser, ele é mais que um contexto de liderança pessoal. A comunidade
de liderança pessoal extingue-se com a pessoa do líder e está, por isso, ligada ao tempo. O
Estado não se pode extinguir; ele é a forma da existência política do povo e o povo não pode
declinar politicamente. O Estado está ligado à tradição, à lei e à ordem»29.
Ora, um nacional-socialismo ortodoxo não deixou de reagir a esta tentativa de
preservar um Estado definitoriamente ligado “à tradição, à lei e à ordem” – e por isso
mesmo inerentemente civilizador e limitador – contrapondo-lhe uma inequívoca
preeminência do movimento e do seu líder.
Assim, por exemplo, Alfred Rosenberg, em obra publicada pela editora do
partido nacional-socialista, sustentou ser o Estado enquanto instituição – qualificado
como um “aparelho mecânico” – nada mais do que uma “petrificação” e uma “alienação
do povo” a que cumpriria opor a “totalidade da mundividência nacional-socialista”
corporizada pelo movimento. Impunha-se, pois, a dissolução de tal “aparelho”, apenas
se admitindo a subsistência de um “Estado” meramente instrumental do movimento30.
Este “Estado” meramente instrumental – este Estado dissolvido perante a lógica
desinstitucionalizada do movimento corporizador da ideologia – veio a ser o “Estado
nacional-socialista”, algo apenas remotamente coincidente com o Estado em sentido
próprio, isto é, com o Estado enquanto construção jurídica. Na fórmula de Ernst
Fraenkel, o “Estado nacional-socialista”, na sua progressiva afirmação durante a década
de 30, é cada vez menos um característico “Estado normativo” e cada vez mais um
incaracterístico “Estado prerrogativa”31. Franz Neumann, por seu turno, referiu-se

29
Cfr. The Total State (excertos), trad., in Arthur J. Jacobson / Bernhard Schlink (eds.), Weimar: A
Jurisprudence of Crisis, Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2000, p. 320 segs.
30
Citado por Alexandre Franco de Sá, O Poder pelo Poder: Ficção e Ordem no Combate de Carl Schmitt
em Torno do Poder, Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009, p. 458-59.
31
Desenvolve o Autor, a respeito da sua noção de “Estado-prerrogativa” que o nacional-socialismo “não
mostrou qualquer pejo em demonstrar o seu desprezo pela regulação jurídica do Estado (…). A ‘justiça
formal’ não tem qualquer valor para o nacional-socialismo”, cfr. The Dual State: A Contribution to the
Theory of Dictatorship, trad. E. A. Shils, New Jersey: The Lawbook Exchange, 2006, em especial, p. 46
segs.
mesmo ao “Estado nacional-socialista” como um “não Estado”32. Seja qual for a
fórmula, do que se trata é de identificar um “Estado” fulanizado, desformalizado e
desestruturado, atuante através de medidas arbitrárias pelas quais se tenta executar e
mesmo antecipar as “leis” do movimento.
De dizer que o movimento totalitário veio a permear, dissolvendo-a, toda a
estrutura estadual, tanto administrativa como judicial. Mesmo os juízes foram reduzidos
a agentes do movimento, declaradamente vinculados aos “interesses do nacional-
socialismo”, nomeados e destituídos livremente pelo líder do movimento33.

4.3. É precisamente por referência à dissolução da construção jurídica do Estado


– ou do “Estado normativo” – que Carl Schmitt proclamou a “morte de Hegel” no
nacional-socialismo34.
Semelhante dissolução foi tanto mais marcada quanto o movimento partidário se
estruturasse segundo um princípio de liderança (Führerprinzip) que se converteu em
princípio nuclear do Direito Público nacional-socialista35 - um princípio cuja acabada
formulação se encontra no seguinte passo de Hans Frank: “todo o poder político da raça
alemã se encontra unido no líder, está na sua mão. Em consequência, a lei deriva em
exclusivo dele”36.
No caso do nacional-socialismo, a relevância do líder e inerente culto de
personalidade apresentou-se como algo plenamente congruente com uma ideologia
centrada na existência de uma comunidade de raça concebida em união total com
aquele. Semelhante primitivismo não se coadunaria à partida com a racionalidade
marxista – ou com o marxismo-leninismo, para o qual o verdadeiro centro do
movimento era o partido e não o líder, tendo mesmo Lenine reagido contra qualquer

32
Assinalando a importância destes Autores, os quais logo no final da década de 30 e início da década de
40, verificaram ser o nacional-socialismo essencialmente marcado pela “morte do Estado”, cfr. Jan-
Werner Müller, Contesting Democracy…, p. 119 segs.
33
Cfr. Franz Neumann, Behemoth – The Structure and Practice of National Socialism, 1933-1944,
Chicago: Ivan R. Dee, 2009, p. 452 segs.
34
Assim, precisamente, afirma Manuel Braga da Cruz que, “O nazismo, como ditadura do movimento
relativizou o Estado. (…) Assim se compreende que Carl Schmitt tenha dito que, no mesmo dia em que
Hitler subira ao poder, Hegel morrera. O Estado totalitário era considerado um resquício do liberalismo,
que antepunha o Estado à nação e ao povo. Por isso o nazismo recusou ao Estado qualquer personalidade
jurídica ou ideal de soberania. O nazismo, a par da afirmação do caráter instrumental do Estado, pretendia
a substituição do totalitarismo de Estado pelo totalitarismo da mundividência nacional-socialista”, cfr. O
Partido e o Estado no Salazarismo, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 19.
35
A este respeito, cfr. Michael Stolleis, A History of Public Law in Germany 1914-1945, trad., Oxford:
Oxford University Press, 2004, p. 332 segs.
36
Citado em Franz Neumann, Behemoth…, p. 447.
“glorificação da personalidade”37. Não obstante isso, a experiência soviética evoluiu
também no sentido da concentração de poder no secretário-geral do partido e mesmo do
culto de personalidade38.

2.4.4. No que diz respeita ao poder, o totalitarismo caracteriza-se pela sua


desnormativização, não apenas porque o desinstitucionaliza e fulaniza, mas também e
sobretudo porque o ilimita sob o ponto de vista jurídico e moral.
Com efeito, o poder segue agora a dinâmica inexorável das “leis” em que a
ideologia se centra, algo inteiramente diverso de leis no tradicional sentido jurídico e
moral, estas últimas correspondentes a normas que conjuntamente entretecem uma
estrutura de garantia, estabilidade e previsibilidade.
A obediência cega às “leis” da ideologia – e àqueles homens tidos como
corporizadores do respectivo movimento – veio a gerar aquilo que Arendt designou
como uma “indecente pesquisa experimental do possível”, de modo a assinalar a
natureza sem precedentes do poder totalitário. Com efeito, não se trata apenas de
transcender limites demarcados dentro daquilo que se imaginaria até então possível.
Trata-se de transcender as próprias fronteiras do possível – ou tido como possível pelos
“homens normais”, isto é, pelos homens cujos sentidos haviam sido permeados pela
moral e pelo Direito, aqueles que “não sabem que tudo é possível”39.

37
Perante os primeiros sinais de um culto de personalidade em seu torno – e que após a sua morte se
manifestariam na preservação mumificada do seu corpo em mausoléu – Lenine reagiu negativamente,
afirmando que “durante as nossas vidas persistimos sempre numa luta ideológica contra a glorificação da
personalidade… Esta não é nada boa”, citado em Jan-Werner Müller, Contesting Democracy…, p. 35.
38
A este respeito, referindo-se à influência dos elementos carismáticos da tradição russa que se
evidenciam a partir do estalinismo, cfr. Raymond Aron, From Marxism to Stalinism, p. 214 segs.
39
Cfr. The Origins of Totalitarianism, 436.

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