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A Cigarra e a Formiga

Ela está na cama tricotando uma blusa colorida e ouvindo na vitrola um disco do
Funga-Funga da Vila Sésamo. Ela canta alto junto com o som da vitrola quando o
marido chega trazendo uma grande bolsa preta e se coçando.

Ele (ofegante) – Ainda não acabou essa roupa?

Ela (cantando) – “Sou um pouco diferente, mas não entendo porque todo mundo me
olha como se eu não fosse gente”.

Ele (coçando-se) – Tá um espetáculo.

Ela – O que é isso, meu bem! Óia como vai ficar graciosa (mostra a ele o comprimento
da blusa). Credo! Você trouxe um corpo dentro dessa sacola?

Ele – É uma coisa que já te mostro! Carnaval é só em fevereiro para tuda essas cor, mas
aí vai tá um calor que não combina com lã. Mas se você se esforçar consegue fazer uma
fantasia para ir sambar com os pinguins.

Ela – Você joga é praga para eu nunca conseguir terminar e ficar linda porque tá difícil
porque eu quero ficá ouvindo a música e vira e mexe essa vitrola encrenca e eu tenho
que levantá pra dá um soco em cima dela para ela voltá a funcioná e perco um tempão
com isso... Minha perna já não anda aguentando... (Canta) “Quando eu começo falar
alguma coisa, ninguém me ouve, como sofro, gente!”.

Ele – Nem é estranho a sua perna e a vitrola se encrencá... Elas nem são antigas.

Ele, disfarçadamente, tira a vitrola da tomada com o pé. Senta na cama e continua a se
coçar.

Ela (cantando sem o som da vitrola) – “Mas parece que as pessoas só gostam das coisas,
que elas já viram, que elas conhecem, conhecem muito bem”. Faz um favor para mim,
home? Dá um socão em cima para ela voltá a tocá.

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Ele – Ô Muié, não tá vendo que eu to coçando todo? O dia foi cansativo!

Ela – Explica esse negócio: você vai na psicóloga e ao invés de voltar com a cura volta
carregando esse negócio preto estranho que só de ver faz parecer pesar 5 tonelada. Liga
a música. É só socar.

Ele – Fica ouvindo esse negócio alto e depois reclama que seu ouvido zune!

Ela – Zune que zune mesmo! É melhor que a música fique ligada ou que você fique
falando comigo, porque é no silêncio que começa a zunir mais. Fica fazendo triuuu feito
cigarra. O médico falou que é pra mim ir no lugar lá em São Paulo que tem uma
sociedade de gente que só cuida disso...É a sociedade do triiu do ouvido...Eu esqueci o
nome... O que é que tem aí dentro?

Ele tira um saxofone de dentro do estojo preto.

Ela – Socorro! A vitrola eu aprecio ouvir, mas se você começar a tocar esse trambone o
triiu do meu ouvido vai começar a se contorcer dentro da minha cabeça.

Ele – É saxofone! Ai se eu não tivesse casado e virado artista eu creio que hoje ia ter um
montão de muié desenrugada que ia me ouvir tocar e não ficar fazendo esses ticrô para
escola de samba do pólo norte. Aí eu num ia hoje ser estressado e o meu corpo não ia
coçar tudo (Falando mais baixo em solilóquio) Óia: parece que ela está indo pra outro
planeta.

Ela está pensativa e, ao mesmo tempo, concentrada. Ele pára de falar e paira no ar um
silêncio que dura um ou dois segundos.

Ela (alto) – Não faz isso!

Ele (assustando-se) – Quê?!

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Ela – Parar de falá! Sem o som da vitrola eu preciso ficar ouvindo o barulho de alguma
coisa. Nem que seja ouvir você falar esse monte de cácas. Porque no silêncio o ouvido
começa a fazer barulho na minha cabeça triuu e eu não consigo me alembrá.

Ele – Lembrá o quê?

Ela – Quando eu areio a panela e ela fica limpinha como é mesmo que eu falo que
ficou? Ah: Tinindo! Eu falo que ficô tinindo!

Ele – É Tinido.

Ela – Quase. Eu li na net esses dias o nome certo.

Ele – Você conseguiu ligar a rede?

Ela – Não foi deitada na rede que eu li. Foi no computador.

Ele – Ai.

Ela – O certo é tinitus. Não tinido como ocê falou. E se não me engano tem dois tes ou
dois enes.

Ele – Tanta coisa por causa de um nome?!

Ela – Nome? É cultura! Os jóvins vem sempre cobrando que a gente tem que se esforçá
para tê cultura.

Ele – Céus.

Ela – Você mesmo fala que a sua psicóloga diz isso. E ainda não me contou como é que
foi lá.

Ele – Ocê deixou? Ela me f...

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Ela (interrompendo-o e falando interruptamente) – Um dia a nossa neta falou que esse
negócio de vitrola tava ultrapassado e que eu podia aprendê a pegá umas músicas pela
net. Mas eu não consegui aprendê direito e ela perdeu a paciência...

Ele – Não consigo imaginar o motivo.

Ela – Eu queria puxá...Como é que fala? Baixar ou abaixar... Não lembro... Fiquei braba
porque só achamo no gugle o retrato do Funga-Funga e não tinha a música. Aí eu falei
que ia pro PROCON reclamá. Onde já se viu ter a foto do disco e não ter a música!? E
ela se irritou e nem me ensinou como fazia pra mim mandá um....(pensando)... Como
chama mesmo aquilo que vai pela metade? Um emeio! Eu aposto que se fosse essas
músicas dos matusquela de hoje em dia tinha tudo. Mas quando é para ser uma música
bonita do nosso tempo, não tem...

Ele (levemente irônico) – É mesmo linda...

Ela – Não é a oitava maravilha do mundo, mas pelo menos é canção pacata, educativa,
entende? Nós fica ultrapassado, não sabe mexer nessas maquinas de hoje e então elas
controla o mundo com as pocas vergonhas de hoje... Olha, eu tenho uma...Como fala?
Teoria! É assim a minha teoria: Eles fazem esses computador cheio de botão que a gente
não entende nada de propósito só para não dar mesmo pra gente mexer e eles puderem
colocá só as coisa deles e não ter como a gente mexer ou reclamar das coisas que a
gente não gosta. Não é isso?

Ele – É... E eles fazerem isso tudo porque eles tão morrendo de preocupação com a
senhora e seu amigo Funga-Funga.

Ela – Ocê não entende nada dessas coisas de modernidade. Não entende nada do que eu
to falando. Se eu tivesse no computador ia ser bom por um lado porque eu não ia
precisar ficar levando as pernas doloridas pra lá e prá cá para ficar dando socos na
vitrola, mas, por outro lado, sei que eu ia demorar um tempão pra eu aprendê a fazê
tocá. E é bem capaz que os jóvins não ensinam gente de propósito!

Ele (coçando-se com mais intensidade) – É. O mundo está contra você.

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Ela – Faz o favor de pará de se coçar e dá um socão na vitrola para ela voltá a tocá?

Ele – Deixa essa vitrola quieta um pouco! Acho que quero dormir.

Ela – Mas se ocê dormir vai ficá tudo em silêncio e eu vô te que ficá ouvindo alguma
coisa para ter que encobrir o barulho que meu ouvido faz na cabeça. Você se importa de
eu ficar falando sozinha?

Ele – Ela pergunta como se acreditasse que fosse dar tempo de ela me deixar responder.

Ela se levanta e caminha lentamente até a vitrola e começa a socar em cima dela. Ele
continua a se coçar.

Ela – Acho que quebrou de vez! Eu queria mandar para o conserto, mas o consertador
falou que precisava de uma peça que não existe mais! Tristeza!

Ele – Tristeza é esse formigueiro.

Ela – Me conta da psicóloga. Prefiro ouvir você do que meu ouvido que vai começar a
fazer triuu de cigarra na cabeça.

Ele – Não entendo esse negócio de ter que ir na psicóloga para a gente ficá falando com
ela. Eu falei hoje para ela “olha, minha filha, ou ocê dá uma solução para o meu caso
dessa coceira ou eu vou parar de ficar te pagando para você só falá comigo. Eu tenho
amigos para conversar da minha vida, caso você não saiba...”

Ela (com um furtivo riso) – Ocê tem amigos?

Ele – Um monte! Aí eu obriguei – (com orgulho) obriguei mesmo! – ela a dá solução


para o caso enveis de só ficar perguntando das coisa e tê que me fazê contá que tudo na
minha vida foi um formiguero, que eu cortei lenha desde pequeninho, mudei para a
cidade para me casá e achei que seria o paraíso mas foi outro formiguero...

Ela – Ói hein?!

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Ele (com leve acesso de nervos) – Deixa eu falar! Aí ela falou que o meu caso podia ser
de ansiedade generalizada e que se eu quisesse tentar um remédio eu devia esperar na
fila do SUS para pedir a receita porque ela não podia dá porque psicóloga não é médica
e não dá receita... Aí depois esperei horas na fila e o médico me deu a receita do tal
remédio bom para ansiedade, mas eu fui na farmácia comprar e vixiiii....Mesmo com o
desconto do plano era bem sargado. Aí eu voltei...

Ela (irritada) – Não tem dinheiro e aparece aqui com um trambone?!

Ele – É saxofone! E eu ganhei do Zé que não ia mais usar. E deixa eu terminar a história
que você só sabe me interromper. Como eu estava dizendo, eu voltei no médico e falei
que não tinha dinheiro e aí ele falou que tinha um remédio para ansiedade barato que ia
me receitá. Aí eu notei que esse remédio era o mesmo que você toma para zunido de
ouvido! Aí eu nem comprei porque sei que tem de monte em casa. Mas nem vou tomar.
Andei hoje o dia todo à toa.

Ela – Rivotril? Meu médico falô que muito dos sintoma que a gente tem é na verdade de
cabeça. Se a gente resolver o mental, olha que chique, se a gente resolver o mental pode
resolver todo o resto. Ele até me contou uma história.Disse que existe o livro de uma
moça que ficou viciada numa droga que eu esqueci o nome... Como chama aquele que
faz uma coisa muito legal e a gente fica feliz por causa disso?

Ele – Palhaço?

Ela – Não! Tipo Homem-Aranha!

Ele – Herói?

Ela – Isso. Se o herói fosse uma mulher seria... Heróina! Sabe aquela moça que era
viciada em heroína!? A Christiane F! Olha como eu sou culta? Ela também tinha coceira
porque ficava estressada porque queria droga e ao mesmo tempo queria parar. Ela até
chegava a coçar a perna com uma escova de cabelo. E o amigo dela se coçava com o
canivete, sabia?

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Ele (triste) – A minha perna tá tudo machucada.

Ela – Tinha um médico famoso que também tinha isso. Ele chamava Gungo, acho. Eu
sei que escreve de um jeito mais pronuncia-se de outro. Sofisticado! Acho que escreve.
G-U-M-G! Não... é: J-U-N-G! Isso: Jung! Mas fala de outro jeito... Ele estudava uma
coisa parecida com metrô, não, com coletivo... Quando a gente desmaia a gente fica
como? Ah! Insconsciente... Inconsciente Coletivo! Isso, e...

Ele – Essa sua conversa está me deixando mais maluco ainda! Eu nem quero mais saber
de toda essa falação, dessa menina drogada e desse homem que estudava o metrô!
(Coçando-se) Só sei que eu não tenho dinheiro para comprar esse remédio caro e que
rivotril não vai me adiantar.

Ela – Porque não?

Ele – Ué, você não toma isso para a cabeça que é para melhorar também essa cigarra
que você tem no ouvido?

Ela – Tomo.

Ele – E olha como adianta! Você não tem jeito mesmo é de ficar boa da cabeça e nem de
nada! Eu devo me coçar mesmo é por causa de você que me deixa ansioso e estressado!
Não tem cura!

Ela (brava) –Eu é que trabaio feito uma furmiga e quando eu quero cantar você não
deixa!

Ele – Eu trabalho feito um formigão! E quando eu arresolvo arrumar um sax você não
qué me ouvi tocá! Eu podia ter sido um Caetano Veloso se não tivesse me casado.

Ela (rindo) – Tadinho do Caetano! Não consigo imaginar ele se coçando lá em cima do
palco... Mas o Caetano não toca trambone, toca?

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Ele – Eu cansei e vou dormir!

Ela – Vou também!

Ele vira para o seu lado da cama com raiva e fecha os olhos. Ela coloca em cima da
vitrola a blusa colorida que estava tricotando, toma um comprimido e também vira
para o lado e fecha os olhos.

Ela (resmungando) – Quando eu morrer você vai sentir saudades porque nunca mais vai
nascer outra igual.

Ele – Graças aos céus.

Ela – Da mesma linhagem que a minha só tem eu.

Impera longos minutos de silêncio até que...

Ele – Véia...

Ela – Oi?

Ele – Já dormiu?

Ela – Não. O rivotril já quase nem me faz efeito e eu demoro um tempão para dormir. E
ocê?

Ele – Eu tô coçando. Acho que vou pegá a pomada.

Ela – Eu posso passá na suas costa, se você quisé.

Ele se levanta para ir buscar a pomada, mas antes passa pela vitrola, coloca na
tomada e dá um soco em cima. Depois pega o tricô que ela deixou em cima da vitrola.

Ele – Vai ficar linda em você!

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Ela (graciosa) – Acha mesmo?

A música começa a tocar.

Ele – Acho que fiz voltar funcionar. Sabe que eu até que tava até com saudade de ouvi
essa música? Vamos ficar ouvindo juntos enquanto você passa a pomada na minha
costa?

Ela (sorrindo) – Adorei a ideia! Mas só se você tocar trombone para mim depois.

Eles se deitam e ficam ouvindo e cantando juntos a música que toca na vitrola:

(...) Eu queria tanto que todos gostassem de mim


Como gostam do sol
Como gostam da lua
E das flores também

Mas parece que as pessoas


Só gostam das coisas
Que elas já viram, que elas conhecem
Conhecem muito bem

Eu sou o Funga Funga (6X)

Eles apagam a luz e a música vai lentamente diminuindo de intensidade até imperar o
silêncio absoluto.

FI
M.

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