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Desabraço

Namoro durou um ano e foi na trave. Dezessete meses e o casamento ainda era

uma barreira.

Ela não se despia; a luz do quarto a queimava; o tato da mão dele ardia, feito

chibatada. Era hora de saber as causas.

Conversa pra vários dedos. Entretantos, trançados e silenciosos, não explicavam;

lágrimas, envergonhadas, irritadiças, dançavam, híbridas. Ele exigia com candura; ela

calava com desespero.

Ameaças de divórcio eram rebatidas com promessa de morte. Um arame farpado

os abraçava, até que a verdade foi revelada. Tonéis de ódio foram despejados sobre ele,

agora só a fúria vingativa. Foi para a prática. Ao final restou o posterior relato:

***

Foi um pouco difícil para descobrir onde o dito morava sem ninguém desconfiar

da minha intenção. A mãe do cara sabia, mas não ia fazer sentido nenhum chegar lá e

perguntar "escuta, onde o seu filho mora?", sem essa nem mais aquela. Já não tínhamos

contato há muito tempo, e na verdade, mesmo quando convivíamos eu não fazia a

menor questão dele. Então, fiz assim: sábado amanhecido, bati palma no portão da

velha, me apresentei tímido, disse "A Elza falou que seu filho é azulejista, preciso

reformar cozinha, banheiro e quintal, o trabalho até que é grande, será que ele tem

interesse?". A velha ficou toda feliz, passou o contato do cara. Disse que o filho andava

duro e sem conseguir trabalho. Entre outras coisas, ele pegava empreitadas, recebia

adiantado e largava a obra incompleta. Pode reparar: o demônio, quando toma conta de

alguém, sempre deixa rastro; quem é ruim, mas ruim mesmo, sempre deixa a marca da
garra por onde passa. Não existe isso de “mas ele era tão bom!”, ninguém que é mau de

fato é mau só pra dentro até estourar, a sujeira vai escorrendo até o dique abrir.

A segunda parte foi mais fácil. Convencer dois cabras violentos e amargurados a

dar um cacete em estuprador pedófilo é a tarefa mais simples do mundo, os bandidos se

sentem como uma espécie de anjo vingador, paladino da justiça, mesmo que em dias

úteis esfreguem a cara da mulher no chapisco da parede crua, ainda que marquem as

costas da filharada com a lapada seca da fivela do cinto ou com a brasa do cigarro.

Sempre tem um demônio pior, sempre existe uma justificativa pra arrancar as tripas de

alguém. Se é pra celebrar o ódio, que seja por alguém que precise, em alguém que

mereça, ao menos de vez em quando.

Falei que matar não era o caso, não queria essa mancha no meu prontuário

celeste. Os caras relutaram, mas respeitaram minha fé, quero morrer cristão e imaculado

em certos assuntos. Uma surra bem dada, dentes quebrados, ossos partidos, já era

serviço benfeito, recado mandado, generosa prova de humanidade da parte deles.

Telefonei, o cara feliz passou endereço, não era assim tão perto, na favela do

Buraco da Mata. Ele ia encontrar com a gente na beirada do asfalto, umas nove da noite,

quando o movimento baixa. Enfiar o maldito no carro e levar pra outro buraco de mata,

perto da minha casa, não ia ser trabalho nenhum.

Família é uma coisa estranha. O amor se infiltra nas frestas do ódio e não adianta

usar a lógica pra convencer ninguém de nada. Certo tipo de parente, na hora da decisão,

perdoa fácil, ainda que passe anos planejando a vingança. A esposa não podia saber de

nada, ainda que não houvesse sangue compartilhado com aquele apodrecido daquele

cunhado da irmã que morava no mesmo quintal, quase um meio-irmão, idades quase

que meio próximas. Tomei a vingança pra mim, sem que ela soubesse. A coitadinha é

boa, por isso a vítima; é das que mantêm a cabeça baixa, a voz espremida entre com
licenças, por favores e obrigados. É das que silencia. Por isso a demora em descobrir o

que a mantinha sempre tão refratária a amores de pele, escondia o pescoço quando eu

encanudava o beiço para beijá-lo, nunca se despia por completo e o amor era sempre no

breu, silencioso, escondido de todos os demônios. Eu lá merecia isso? Fiel feito um

coroinha que beija a mão da santa, mestre de todas as obras entre as represas

Guarapiranga e Billings, quatro sacos de cimento nas costas de cada vez abraçando o

labor desde antes do canto do galo até horas mortas, pra não ter na mulher o descanso

do guerreiro? Aí um dia ela diz, Danone e Yakult a troco de violentas depravações

disfarçadas de brincadeiras. O dito, mais velho e esperto o suficiente pra receber

respeito e certa admiração da criançada resfolegava na pureza de umas quantas meninas

da rua, minha mulher, sua preferida. Bastou a introdução do enredo pra que não

precisasse ouvir mais nada, e agora era necessário fazer algo, eu era o macho ferido, o

marido machucado, ainda que fosse segredo a consciência cobrava algo de mim que eu

deveria responder para a sociedade, para o meu quebrantado e humilhado desejo.

Não me comovem as histórias tristes contadas pelos bandidos. Não me

importava que o cara fosse bastardo rejeitado pelo pai, que a mãe abnegada trouxesse

esse mesmo pai pra debaixo do teto quando a tuberculose cravou as unhas no peito do

bicho. Não acredito em trauma por trás de atrocidade, não justifico monstruosidade com

pirulitos negados na segunda infância. Pra mim o sujeito se amaldiçoa pelos próprios

atos, não pela frieza ou cabeçada de pai bastardo, mãe dócil, madrasta afogada no

rancor, avó cafetina. Não existe maldição hereditária, existe, isso sim, alma borrada pela

falta de caráter, mas nada que uma surra não resolva, e se não resolver não importa,

cabra ruim merece o castigo, então, antes do perdão, a facada, acho que Hamlet diria

alguma coisa por aí, se é que não disse.


Hamlet, sim! Sou mestre de obras, mas já tive meus fumos de letras, na escola

era sabido nas humanidades dos estudos sociais e nas linguagens do português/inglês.

Uma vez a gente foi ao teatro, excursão, pra ver peça de Shakespeare. Ninguém

entendeu quase nada, mas fiquei com aquela ideia da vingança a vencer o perdão, um

dia eu veria. Era agora. Na família há o demônio, há quem perdoe e quem justice: eu

justiço.

Minão Marreta e Deozinho aceitaram o desafio. Não contei a história inteira, não

falei que a vítima era minha própria esposa, vizinha, quase irmã de criação do monstro e

querida por todos. Se passasse o serviço completo, os dois não ofereceriam menos que a

morte mais sofrida possível. Inventei história confusa, cobri a pedofilia com

adolescências, idades próximas, insinuei que a garota atacada poderia, quem sabe, ter

seduzido o cara, uma prima distante e esnobe. Quase desconvenci os dois de que o dito

merecia castigo; precisei reforçar o caldo das palavras que cheiram a inferno, pedofilia,

estupro, e reacendi em ambos a brasa necessária para tarefas espúrias. O acordo

permaneceu de que matar, não, eu não merecia participar de homicídio. Minão e

Deozinho eram grotescos, sanguinários, mas também leais e não desejavam macular

minha reputação.

A emboscada, como já disse, foi simples e nem merece maior detalhamento. O

problema começou após termos o cara no banco de trás,encapuzado e com uma faca em

seu pescoço.

"Coisa errada, aí."

"Sem erro até agora, o cara é esse mesmo", falei sem a menor preocupação em

disfarçar a voz, no fundo eu queria que ele soubesse que era eu o mandante, duvidava

que o cabra tentasse qualquer coisa depois do que lhe aconteceria, covarde que era.
"Mas o cara não tem um braço!", percebeu Deozinho, ligeiramente mais letrado

que Minão.

"E daí? Isso agora dá o direito de estuprar?"

"Cara, pra estuprar tem que ter força", ponderou Minão.

"Ele é um pedófilo! Uma promessa de brinquedo, um doce, um pouco de força

na mão" − única mão, a garra da serpente com patas ― "e o serviço está feito!"

"Não é muita covardia três caras baterem em um deficiente?", ponderou

Deozinho, o justo.

"Ele pegou uma criança, uma menina. Aliás, uma atrás da outra, minha prima, de

quem falei, entre elas. Abusou sem defesa, xeque-mate."

Nessa hora, o canhestro soltou um gemido oco. Ele bem sabia do que a gente

estava falando e nem tentava se defender. Ou não sabia, casos vários, muita gente

querendo o sangue sujo dele. Minão o tempo todo com a faca firme no pescoço. Já havia

dado um soco certeiro no olho direito, antes do capuz.

"E se nem for verdade?"

"Qual é, Deozinho, duvidando de mim, agora?"

Ele disse que de mim, não. Mas quem contou a história poderia ter inventado

tudo. Mulher rejeitada é capaz de muita coisa. Como eu fiquei sabendo daquilo? Um

papo informal depois de uma pizza com cerveja em família, uma confissão espremida

entre lágrimas? Eu sempre tão prestativo e impressionável, não seria o caso de alguém

tentar me usar pra uma vingança besta? Mulher rejeitada, segundo Deozinho, virava o

diabo.

Enrolei a língua, não consegui dizer nada a meu favor. Então tentei fazer cara de

senhor da razão, ergui bem o queixo, como que pra dizer que era que ordenava, os

outros obedeciam.
Silêncio. Outro gemido oco do maldito, agora um soco no meio da cara, pegou

nariz, pegou lábio − o soco foi meu. Os dois comparsas hesitaram, interpuseram braços

entre mim e o traste. Se eu falasse que a vítima era minha esposa, refinado exemplar de

flor dos bons modos e da conduta ilibada, o cara não escapava vivo e eu ainda trairia a

confiança dela, a quem prometi segredo de túmulo, ainda que não prometesse em

momento algum não tomar providência.

"Vamos sair daqui", falei tentando voltar à liderança do bando. "No caminho a

gente decide o que faz."

O carro era muito velho, os bancos se equilibravam sem o menor conforto, as

portas não tinham revestimento interno algum, o assoalho cru. Escorria apagado pela

Avenida Dona Belmira Marin até o terreno baldio vizinho do córrego. Aquele que

depois se encheu de viciados em crack e ganhou o nome poético de “Cidade dos

Ossos”. Ele, o demônio, ainda estava vendado. Eu disse pra descer sem alarde, o caso

não seria de morte, mas de surra. "Vem tranquilo", Minão falou; já tomava partido da

besta?

Deozinho mandou que ele se explicasse, ainda vendado.

"Não sei por que me pegaram, não fui eu, sou trabalhador, pai, tenho irmã."

Virei-lhe a mão na cara, agora um tapa cheio, de chapa. Minão ordenou calma.

Ouvir o cara, deixar que se defendesse. Aquilo me irritava ainda mais.

“E você acha que ele vai admitir que estuprou alguém? Confessar a culpa e

apanhar até morrer?” Falava em morte só pra apavorar o cachorro, ou era a garra

despontando sob o meu manto? Deozinho suava, Minão esbugalhava os olhos e

segurava o raptado pelo braço. Ou eu pensava rápido, ou perdia a única chance de fazer

justiça de verdade. Sem Deozinho e Minão eu não ia conseguir nada e o cara, saindo de

lá, obviamente já sabendo quem eu era, poderia aprumar revingança e me contragolpear.


“Injustiça é uma coisa que sempre acontece”, comecei, costurando as palavras

com calma. “Ninguém é a favor da injustiça, todo mundo quer fazer pelo certo, mas de

vez em quando a mão escorrega e acerta o inocente.”

“A gente é do crime, mas não é injusto”, Deozinho declamava em língua viva o

primeiro parágrafo do Manifesto do Comando da Gruta, organização criminosa local. O

manifesto avisava que o crime era a forma mais crua de lutar contra as injustiças, que

cada real roubado era na verdade uma restituição ínfima se comparada aos milhões em

ouro, esmeraldas e terras tomadas da gente da terra, os índios, e das vidas traficadas

pelo mar atlântico, os negros escravizados. Poucas vezes na vida alguém irá deparar

com documento tão infame e cínico como o Manifesto do Comando da Gruta. As

mulheres dos marginais apanha quando eles julgam justo, agente segue assassinada por

quirelas plantadas na mesa de bilhar, o medo rege os irmãos pobres dos bairros da

região. “Entramos no crime para fazer justiça”, o manifesto dizia. A gente é do crime,

mas não é injusto, justificavam os que estupravam e roubavam as prostitutas e travestis

da Avenida Atlântica, nas noites de baixo movimento.

“A injustiça não é desejada, mas pode ser útil. Se um cara sem braço também

apanha por ter feito coisa errada, todo mundo vai saber que ninguém escapa do braço

armado da lei do cão.”

O saruê gemia que não fez nada, eu pedia silêncio para prosseguir. Minão

esbugalhava os olhos, Deozinho fazia cara de reflexão.

“Eu não acredito na inocência desse aí, mas admito que existe uma possibilidade

minguada de que ele não seja culpado. Jesus era inocente e apanhou até morrer. Não há

cristão nesse mundo que não seja grato pelo sacrifício do Cristo, o homem mais santo

que já andou sobre a terra. Esse aí nem tem nada de Cristo, alguma culpa ele carrega!”

“Esse cabra não parece culpado”, ponderou Deozinho, “falta um braço”.


“Mas é um cara que, mesmo desprovido de braço, tem fama ruim. Confia! Não

cumpre prazo, recebe adiantado e não termina serviço, e tem essa “dúvida” (riscava com

ênfase as aspas no ar) sobre ser estuprador ou não. Dar uma surra sem deixar recado,

sem arreganhar motivo, uma mensagem de força pra todo mundo. Do Buraco da Mata

até todas as quebradas em volta da Belmira, do Eldorado e Pedreira até o lado de lá da

outra represa, todo mundo ia entender que alguma coisa o cara fez e pagou.”

“Pode entender também que a gente não respeita nem os aleijados e começar

uma revolta contra o Comando!”, argumentou arfando o condenado.

“Podem achar que o Comando não respeita mais trabalhador”, desembuchou

Minão, como se aquela fala fosse fruto de muita reflexão.

Vi logo que a conversa poderia durar tempo demais. Não queria mais ficar na

Cidade dos Ossos, seus habitantes não estavam em condições de preservar qualquer tipo

de higiene o córrego ali perto fedia. Pedi licença aos meus parceiros e fui até o carro,

pensar no que fazer.

A situação era realmente complexa. Eu acreditava na esposa, mas na prática ela

não apresentou prova alguma, mesmo porque não estava tentando me convencer de

nada e só falou após muita insistência. Não pareça provável a ideia de que ela passou

dois anos de tropeços e frustrações sexuais só para, ao final, me induzir a espancar,

quem sabe até matar, alguém. Mas sempre existe o “vi saber” atrás da orelha de

qualquer pessoa.

Por outro lado, quem me garante que a mulher, para se ver livre daquela

conversa, inventou história qualquer, sobre pessoa que eu já não mantinha contato, na

esperança de ver o assunto encerrado?

Também era preciso avaliar as conseqüências de cada ato. Se deixamos o cabra

ir embora ileso, mesmo sendo ele inocente, colocamos nossa cabeça prêmio. Castigar
um estuprador pedófilo deve ter algo de delicioso, mas a delícia vem mesmo sem a

certeza?

Se a esposa não sabe que castigamos o monstro, na vida dela, não haverá efeito

nenhum de nosso gesto. Se sabe, pode ficar agradecida, pode se sentir livre, pode se

sentir traída e nunca mais confiar em mim, tampouco me perdoar.

Saí do carro ainda cheio de dúvidas, me dirigi até os três que me esperavam.

Sem pensar direito, visualizei a faca apontada pra barriga do traste, pensei que não havia

saída adequada para a situação. Se eu estivesse armado, pode ser que, mesmo com a

inexperiência como atirador, abafasse os coices dos disparos e enfiasse tiros nos três. Na

Cidade dos Ossos é comum amanhecer corpo emborcado. A gente faz o que o momento

exige.

Dei dois socos cheios na cara do suposto. Gritei ameaças, juramentos, arranquei

o capuz, olhei no centro do olho dele perguntando se ele sabia quem eu era e por que

estava ali. Meu hálito, meus perdigotos, meu ódio, minha fraqueza, tudo lançado

naquele rosto que ali parecia tão assustado, tão indefeso quanto o das crianças que

talvez ele tivesse abusado. Que continuasse longe, que não se atrevesse a chegar perto

de criança alguma, que aquele braço arrancado não fosse álibi para se aproximar e

abusar das pequenas. Sem coragem para negar mais nada, concordou com tudo e ficou

lá, ajoelhado, chorando.

Voltei pro carro, chamei Minão e Deozinho para me acompanharem. Não

trouxessem o cabra, a Cidade dos Ossos não era nem muito longe da casa dele.

Confusos, vieram sem fazer pergunta alguma. Era isso? Depois da confirmada certeza

de que o cara quem era, dois socos, três ameaças vagas e tudo estava em paz? Quem

falou em paz?
Quando cheguei em casa, ela estava no sofá da sala, lendo a bíblia. Sem falar

nada, fui direto pro quarto, fiquei muito tempo olhando pro espelho, meus olhos secos.

Ouvi quando ela foi tomar banho, a água caindo feito um bombardeio na minha cabeça.

Ela veio com um meio sorriso para o quarto, úmida, envolta em uma toalha

vermelha. Apressado, excitado, corri para apagar a luz do quarto. Não queria ver no

corpo dela a marca da garra fantasma.

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