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Nietzsche em 1870
Em defesa da Cultura
Foi um choque para ele. Ainda estonteado pelas informações que recebera, refugiou-se
na casa do historiador da cultura Jacob Burckhardt (1818-1897), o célebre helenista e
historiador da cultura, pesquisador da Itália renascentista, que igualmente estava
desconsolado. Acreditaram os dois amigos que toda a arte ocidental estava ameaçada.
Séculos de beleza estavam em vias de ser totalmente devastados pelo vandalismo das
massas parisienses revoltadas.
O ataque direto que Nietzsche desencadeou contra o cristianismo radicalizou-se com o seu
"O Anticristo" (Der Antichrist), mas foi inicialmente exposto na A genealogia da moral (Zur
Genealogie der Moral), de 1887. Argumentou que a ética cristã era uma moral de escravos,
de gente fraca e vil que havia, através do cristianismo, desvirilizado o espírito senhorial e
dominante dos aristocratas. A origem desse processo, segundo Nietzsche, remontava à aos
tempos da Palestina ocupada pela raça romana, raça de senhores. Os judeus, impotentes em
poder livra-se deles, terminaram por aperfeiçoar a psicologia do ressentimento provocando
uma inversão dos valores. Tudo aquilo que era "débil", "humilde", "medíocre", eles
apresentaram como "bom", enquanto palavras tais como "nobreza', "honra", "valor", foram
vistas como "mal". O resultado desse trabalho de sapador, feito por séculos de pregação
cristã, foi o enfraquecimento das energias vivificantes da sociedade ocidental, especialmente
das suas elites, na medida em que o "doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se
de todos os seus instintos".
A rebelião dos escravos na moral se deu devido a sua impotência para destruir com a
escravidão (ou o seu avalista, o poder romano). A nova religião - o cristianismo -
tornou-se o instrumento deles para canalizar o seu ódio impotente, um "ódio que tinha a
contentar-se com uma vingança imaginária". O produto desse ressentimento foi fazer
com que os escravos, a "raça inferior e baixa", tornassem tudo aquilo que fosse digno e
nobre em algo pecaminoso. Transformaram a prostração e a pobreza em virtude, e a
abjeta covardia de dar o outro lado da face em caso de agressão, num ato sublime de
perdão.
Via, portanto, o cristianismo como uma doença maligna que havia atacado o Império
Romano, contribuindo para que ele sucumbisse vitimado por uma espécie de "febre das
catacumbas". E, pior, "a mentalidade aristocrática foi minada até o mais profundo de si
própria pela mentira da igualdade das almas; e se a crença na prerrogativa da maioria
faz e fará revolução - é ao cristianismo que devemos sua difusão. São os juízos de
valores cristãos que qualquer revolução vem transformar em sangue e crime. O
cristianismo é uma insurreição do que rasteja contra o que tem elevação: O Evangelho
dos pequenos tornado baixo".
Portanto, os nossos conceitos de bem e de mal eram estratagemas dos derrotados, que
fizeram a façanha de substituir os valores superiores da nobreza. Dessa forma retiraram
dela, enternecendo-a com rogos de piedade, a seiva necessária para aplicar uma política de
mão firme para conter esse moderno movimento neobárbaro, cuja carantonha havia
emergido na Comuna de Paris de 1871. O socialismo não passava de um "cristianismo
degenerado [...] o anarquista e o cristão vêm da mesma cepa [...]". Era preciso, pois,
primeiro, expurgar de si esta moral de gente covarde. Retornar às fontes de energia
aristocráticas, aplicar uma política da impiedade, onde somente o mais nobre e o mais viril
fosse tomado em consideração.
"Deus está morto!" Foi sua mais célebre proclamação. Como conseqüência, os homens
deveriam buscar valores que transcendessem a moral convencional divulgada pelo
cristianismo; um retorno "à ordem de castas, à ordem hierárquica [...] para a conservação
da sociedade, para que sejam possíveis tipos mais elevados, tipos superiores - a
desigualdade dos direitos é a condição necessária para que haja direitos". Concluiu dizendo:
"Quais são aqueles que mais odeio no meio da canalha dos nossos dias? A canalha socialista,
os apóstolos [...] mirando o instinto, o prazer, o contentamento do trabalhador no seu
pequeno mundo - que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança [...] a injustiça nunca
reside na desigualdade dos direitos, ela está na reivindicação de direitos iguais".
Nietzsche e a História
Nietzsche rompeu também com a relação entre a Filosofia e a História que havia sido
estabelecida por Hegel, entendida esta última como uma crônica da racionalidade.
Considerava que "o excesso de história" parecia "hostil e perigoso à vida", limitador da ação
humana, inibindo-a. Devia-se ousar, avançar perigosamente para o ilimitado, porque a
racionalização histórica levava o homem a "perder-se ou destruir seu instinto fazendo com
que ele não ouse soltar o freio do 'animal divino' quando a sua inteligência vacila e o seu
caminho passa por desertos. O indivíduo torna-se então timorato e hesitante e perde a
confiança em si..." terminando por fazer com que "a extirpação dos instintos pela história
transforma os homens em outras tantas sombras e abstrações."
Instinto contra a Razão
Nietzsche recolocou claramente o confronto outrora posto pelos românticos quando opunham
os instintos - geralmente entendidos como uma manifestação da pureza e autenticidade
humana - à razão, símbolo do utilitarismo cinzento e materialista.
Uma das influencias mais significativas que Nietzsche recebeu foi-lhe inspirada pela leitura
de Fédor Dostoievski (1821-1881). O escritor russo foi o primeiro, sob o enfoque cristão, a
detectar o perigo da emergência do homem - idéia, ou do homem-deus enaltecido pelos
românticos, desde os tempos de Fichte. A moderna sociedade liberal e progressista ao atacar
os valores religiosos , sem se dar conta do perigo, abria uma brecha nos valores
estabelecidos por onde aflorava o terrível homem-idéia, o indivíduo ateu e materialista que
devotava sua vida a favor de uma causa, normalmente de inspiração niilista. Ele era um
perigoso abnegado e um obcecado que rompia com os valores da sociedade, criando um
universo ético próprio, só dele, totalmente afastado do cristianismo.
Pois foi justamente este homem-idéia, esse ateu de novo tipo, que Dostoievski via com
angústia e apreensão, que se tornou o arquétipo do novo homem moderno, é que foi o herói
de Nietzsche. Ele, e somente ele, teria a coragem de doravante assumir a realidade de um
mundo onde Deus estava morto. Mas isso estava longe de significar uma vida sem sentido
como muitos moralistas e homens de fé acreditavam. Bem ao contrário! O terrível dito de
advertência de Dostoievski de que "se Deus esta morto, tudo é permitido", que o russo
entendia como uma chamamento à licença, à desordem e ao crime, Nietzsche entendeu
como uma liberação. A possibilidade do indivíduo construir o seu destino não mais tolhido
por qualquer regra, por qualquer impedimento, dilatava os horizontes para extensões
impensadas.
A liderança do super-homem
E era exatamente nisso que estava o significado inaudito dos tempos vindouros. Devia-se
aceitar na totalidade um mundo onde uma nova ordem deveria fatalmente imperar, na qual
as novas regras, acima do bem e do mal, seriam impostas por essa figura exponencial que
era o super-homem. (Übermensch), Este titã moderno, liberto de toda e qualquer ladainha
cristã-humanitária, desprezaria qualquer sentimento de arrependimento, varrendo de dentro
de si a fraqueza da piedade . Como Nietzsche deixou dito no "Humano, demasiado
humano"(Menschliches, Allzumenschliches): "Se o homem consegue adquirir a convicção
filosófica da necessidade absoluta de todas as ações e, ao mesmo tempo, da total
irresponsabilidade destas, se consegue converter essa convicção em carne e em sangue ,
então desaparecerá também este resto de remorso de consciência".
O manifesto de Zaratustra
Dali Zaratustra desce para vaticinar a vinda daquele que irá superar o
homem: o super-homem. "Que é o macaco para o homem?" - pergunta o
profeta àqueles a quem encontra na praça do mercado da cidade, e
responde: "Um motivo de riso e dolorosa vergonha. E é justamente isso que o
homem deverá ser para o super-homem: um motivo de riso ou de dolorosa
vergonha". E, mais adiante, diz ao povo que "o homem é uma corda O profeta iraniano
estendida entre o animal e o super-homem - uma corda sobre um abismo"... que inspirou
Nietzsche
o homem é ao mesmo tempo "uma transição e um ocaso". Uma nova era, de
superação de antigos tempos está para vir "... não existe Diabo, nem inferno", diz Zaratustra
"a tua alma estará morta ainda mais depressa do que o teu corpo; portanto não receies
nada!"
As metamorfoses do espírito
Os homens, segundo Zaratustra, teriam passado por três metamorfoses do espírito: foram
primeiramente camelos, por carregarem em si as culpas do mundo, o sentimento do pecado
ensinado pelos religiosos. Depois tornaram-se leões na medida em que se rebelaram contra
esse passado de fadigas e culpas ignominiosas, onde seus instintos puros eram condenados
como pecaminosos e, finalmente, assumiram a forma de crianças, na esperança de renascer
numa nova moralidade, distinta da anterior, livres dos preceitos estabelecidos pelo bem e
pelo mal.
O futuro é das águias
"Lembrem-se: Quanto mais alto planamos, menores vemos são as pessoas que não
conseguem voar". - Nietzsche
Mas esse devir radioso, liberto da moral passada, não é um lugar reservado a todos "[...]
Na árvore do futuro, construamos o nosso ninho; para nós os solitários, águias deverão
trazer alimento em seus bicos! E, como fortes ventos, queremos viver acima deles,
vizinhos das águias, vizinhos da neve, vizinhos do sol: assim vivem os ventos fortes. E
tal como o vento forte, quero algum dia, soprar no meio deles [da canalha] e, com o meu
espírito, tirar o respiro ao seu corpo: assim quer meu futuro". Zaratustra detesta "os
pregadores da igualdade" que, segundo ele, não passam de " tarântulas e bem ocultas
almas vingativas". Concluindo não querer "ser confundido com esse pregadores da
igualdade. Porque, a mim, assim falava a justiça: os homens não são iguais".
A morada do super-homem é nas alturas (cena dos Alpes)
O super-homem está no devir
Não se fará reconhecido por nenhum atributo genético, por nenhuma descendência
aristocrática, mas sim pela consciência e poder que irá naturalmente transbordar da sua
pétrea personalidade. A missão dele será partir "as velhas tábuas". Ele formará "uma nova
nobreza, que se oponha a toda a plebe e a toda a tirania e que escreverá novamente em
novas tábuas a palavra 'nobre".
Zaratustra esperançoso olha para a frente: "A minha águia está acordada e, como eu, presta
homenagem ao sol. Estende suas aduncas garras de águia para a nova luz. Sois os animais
certos para mim; eu vos amo. Mas faltam-me, ainda, os meus homens certos!"
Maquiavel e Nietzsche
Tal como Maquiavel encerrava O príncipe na expectativa de que surgisse na Itália dilacerada
do seu tempo uma figura magnífica, despida de preconceitos, que lançasse mão de
quaisquer recursos, mesmo que inescrupulosos, para unificar o país ameaçado pelos
bárbaros, Nietzsche-Zaratustra esperava o mesmo na emergência de um super-homem.
Só que os temores da época de Nietzsche eram outros. Os novos bárbaros que assustavam o
Ocidente que ele pretendia defender eram as idéias democráticas, o socialismo (que para ele
eram sinônimos) o feminismo, o mau gosto vulgar da nascente cultura de massas, que devia
ser exorcizado. Portanto, chegou mesmo a considerar - em nome da boa arte - a
necessidade da escravidão. Toda a beleza apolínea da arquitetura grega antiga e sua
imorredoura qualidade estética havia sido produto de uma sociedade escravista. O Pártenon
poderia dever muito à iniciativa de Péricles e ao gênio de Fídias, mas também à chibata do
feitor!
O programa do super-homem
A pregação de Zaratustra foi entendida por George Steiner como uma desconformidade,
entre tantas outras, com a vida tediosa da sociedade burguesa fin de siècle, onde o mundo
aventureiro e belicoso do aristocracia cedia espaço ao utilitarismo frio, prático e calculista, do
homem burguês ocidental. Uma época absolutamente banal na qual a sociedade científico-
positivista via-se crescentemente dominada pelo espírito liberal-igualitário, que impedia o
afloramento da individualidade singular, a emergência do grande homem, da personalidade
fora de série, que o profeta vinha pressagiar. Um estado de espírito que encontrou sua
melhor expressão no dito do poeta Théophile Gautier: "Prefiro a barbárie ao tédio!"
A vontade de poder
A política de domínio
Evidentemente que esta manifestação de vontade de poder, em sua plenitude, só pode ser
exercida pelos mais fortes. Aos fracos cabe a obediência respeitosa ou aceitar o extermínio
silencioso. Esta figura vitoriosa, altaneira, que impõe sua vontade sobre tudo e todos, não
pode ser constrangida pela moral comum dos homens vulgares, dos preceitos seguidos pelas
maiorias, ou pelo imperativo categórico kantiano, que desejava tornar toda e qualquer ação
numa lei universal.
O mais forte faz suas próprias regras, estabelece para si qual é a melhor conduta e não
espera de forma nenhuma que os outros o sigam (é o "façam o que eu digo e não o que eu
faço" de Napoleão). Ele não deve estranhar se o consideram duro e insensível, quiçá até
desumano, pois estes são os atributos do super-homem, que trafega soberbo no seu Olimpo
particular e só tem gestos generosos para com os demais na medida em que isto o enaltece
ou satisfaz.
Despreza "o covarde, o medroso, o mesquinho o que pensa na estreita utilidade; assim como
o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de
homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e sobretudo o mentiroso - é
crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso". Ao homem comum,
ao fraco em geral, só lhe resta a serventia de ser um degrau de apoio sobre o qual a figura
de escol deverá calcar em sua ascensão os cimos mais elevados de uma existência superior.
Uma contra-utopia
Nietzsche de certa forma esboçou, com sua prosa impressionista, o que poderíamos
considerar como uma contra-utopia ou uma utopia direitista. Na sociedade futura que
imaginou, a harmonia seria estabelecida apenas entre os que se consideravam iguais - a
nova nobreza formada pelos super-homens - que regeriam uma comunidade rigidamente
hierarquizada, despida da moral comum, dominada pela "besta loura" que exerceria sua
autoridade baseada numa impiedosa vontade de poder.
A obra de Nietzsche, sob o estrito ponto de vista político e ideológico, foi a mais profunda e
radical manifestação intelectual contra as grandes cartas e documentos que se posicionaram
pela e igualdade e liberdade que vieram à luz na cultura ocidental, desde a Declaração dos
direitos do homem e do cidadão da Revolução Francesa, passando pelo Manifesto comunista
de Marx e Engels, até as leis sociais da sua época.
"Eu sou dinamite!"
O próprio Nietzsche nunca deixou de ter consciência de que suas posições, assumidamente
radicais, teriam conseqüências terríveis nos anos vindouros. Que para ele seriam tomados
por uma reação contra-revolucionária de dimensões espantosas. No Ecce Homo, por
exemplo, a sua autobiografia publicada somente em 1908, oito anos após a sua morte,
reconhece: "Conheço a minha sorte. Alguma vez estará unido ao meu nome algo de
gigantesco - de uma crise como jamais haverá existido na terra, da mais profunda colisão de
consciência, de uma decisão tomada, mediante um conjuro, contra tudo o que até esse
momento se acreditou, exigiu, santificou. Eu não sou um homem, sou dinamite".