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Marcas

do tempo
DENISE GALVÃO
Marcas
do tempo
DENISE GALVÃO
Expediente

Estudante
Denise Bastos Galvão

Oficina de Jornalismo I
Prof. ª Tânia Motta

Comunicação Social
Jornalismo
5° semestre
Sumário

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09

Três vidas, um destino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Abrigo: um século de história . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Marcas de dor e coragem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

O trabalhador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

É preciso saber envelhecer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Considerações Finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Agradecimentos

Quando se escreve um livro, é quase impossível agradecer a todos de


maneira apropriada. A dificuldade não é por esquecer quem contribuiu,
e sim pela quantidade de pessoas que cooperaram de forma especial,
direta ou indiretamente para a realização deste trabalho.

A Deus que me dá capacidade para cumprir minhas tarefas. Aos meus


pais que sempre são minha força em qualquer situação. A coordenação
geral do abrigo que abriu as portas para a realização da pesquisa. E
as fontes - os idosos - que colaboraram com suas histórias e a quem
dedico esse livro.

Denise Galvão
Três vidas,
um destino

11

“Ele sou eu amanhã. Ele, hoje, representa o respeito que quero ter
também, amanhã.”

(autor desconhecido)
Marcas do tempo

12
Trê vidas, um destino

Dionéa Lima, 80 anos, nunca


foi casada, nem ao menos se
relacionou quando jovem.
Possui poucos familiares pre-
sentes. Seu sonho é que Deus
a leve logo e seu medo é dar
13
trabalho aos outros. Boa parte
de sua infância foi na cidade
de Oliveira dos Campinhos, in-
terior da Bahia. Sua história é
marcada por incansáveis lutas
pela vida e aceitação.
Marcas do tempo

14
Trê vidas, um destino

Manoel Pinto, 82 anos, viúvo,


dez filhos, 35 netos e 25 bisne-
tos. Sonha em ter saúde sem-
pre, que o mundo seja melhor
e as pessoas mais cordatas.
15
É destemido, feliz e saudoso.
Nascido em Muritiba, interior
da Bahia, ganhou da câmara de
vereadores de Salvador, o título
de “História de Vida”.
Marcas do tempo

16
Trê vidas, um destino

Margarida Marques , 89 anos,


divorciada. Pacata e singela.
Toda sua juventude foi no tra-
balho doméstico. Nasceu em
17
Jacobina, também interior da
Bahia. A criação obtida através
de sua mãe é o que marca sua
história de vida.
Marcas do tempo

O que esses baianos possuem em comum? Não é somente a idade e as


marcas fortes de expressão nos rostos e mãos que os aproximam, mas
o lugar em que vivem e a posição que ocupam na sociedade. Os três
idosos de personalidades distintas, aqui apresentados, são moradores
do Abrigo Dom Pedro II.

Dionéa, Manoel e Margarida. Idosos a quem dei a voz para falarem


de seus anseios, de suas vidas, dos seus passados e, principalmente, da
relação tão conflituosa que vemos entre idoso e sociedade. Sabemos
que o idoso tem o direito de viver preferencialmente com sua família.
Mas, estes foram tirados de seus lares e foram acolhidos em um abrigo
que necessita, também, de cuidados.

Percebemos, na vida, variadas maneiras de discriminação e isso me


preocupa. Talvez, uma das que mais ocorre é o envelhecimento. Porém,
hoje, ainda existem entidades que tentam lutar pelos direitos dos idosos
18 e providenciam o cumprimento de leis direcionadas a eles. É preciso
inibir e coibir atitudes de maus tratos e a falta de cordialidade do qual
o idoso é alvo frágil e fácil. Sabemos que todos um dia, chegarão à
velhice. O envelhecimento é uma etapa natural na vida de qualquer
ser humano.

Neste livro-reportagem será abordado o sofrimento dos idosos com


o preconceito da sociedade. Dessa forma, foi escolhido um abrigo de
Salvador para a escolha de personagens que irão compor os capítulos
que tratarão, além do preconceito ao idoso, o abandono das famílias,
dentre outros temas. Esses temas serão direcionados ao público com
faixa etária a partir dos 60 anos e demais interessados nas histórias de
vida e superação dos idosos que vivem em abrigos.

É comum os idosos serem desrespeitados e destituídos de garantias,


de direitos fundamentais. Sempre nos deparamos com história de
pessoas com idade avançada que são abandonados em abrigos por
Trê vidas, um destino

seus familiares. E, também, em alguns casos, eles mesmos procuram


por vontade própria estar num ambiente compartilhando história
e vivências com pessoas da mesma idade por não possuir espaço na
sociedade ou outros motivos.

O Dom Pedro II abriga 78 idosos, sendo 56 mulheres e 22 homens.


Os critérios para recepção dos idosos é ter a partir de 60 anos, ser
considerado lúcido e orientado, além da verificação das possíveis
doenças que o candidato possa ter. Atualmente estão distribuídos em
quatro pavilhões – os outros quatro estão desativados – sendo um
masculino e três femininos. Participam do dia-a-dia do abrigo um
médico, assistentes sociais, nutricionistas, terapeutas ocupacionais,
capelães, irmãs da Ordem de São Vicente de Paulo e outros funcionários
distribuídos nos demais setores.

Neste trabalho será relatado a vida de três moradores, cada um com sua
particularidade. O objetivo é trazer mais acesso a essas vidas, muitas 19
vezes, marcadas por abandono. E não somente isso, trazer histórias de
superação, pois, é possível viver com dignidade após se alcançar a 3ª
idade.
Cápitulo 1

Abrigo: um século
de história

21

Dois anos antes da proclamação da República. 1887 foi um ano de


novas descobertas, como a obtenção do segundo passo para a realização
da rádio, a descoberta das “ondas hertzianas”. A Bahia ainda era um
estado agrícola, mesmo com o inibido crescimento do setor industrial.
Como nos dias de hoje, era uma época de rendas desiguais. Os barões
do café e do açúcar moravam em suas grandes fazendas, enquanto os
camponeses eram muito mais pobres. Neste cenário, nasce o, atual,
Abrigo Dom Pedro II, instalado na larga, extensa e arborizada Avenida
Luiz Tarquínio, na Cidade Baixa, em Salvador, onde aconteciam os
grandes carnavais da cidade. Por ela tem-se acesso à Igreja de Nossa
Senhora da Boa Viagem e, também, à Ponta de Humaitá, local de
belíssimo pôr-do-sol. Ocupando grande parte da avenida com seus
muros imponentes, assemelha-se ao Palácio de Versalhes, em Paris,
com seus diversos traços e contornos em estilo neoclássico, o qual
Marcas do tempo

valorizava o conforto das mansões - mármores, pedras, demarcações


geométricas. A entrada é antecedida por um atrium gradeado com
colunas culminadas por estatuetas neoclássicas com jarros de louça.
Nem mesmo a parte externa foi esquecida. Nela, os jardins, em suas
vias de acesso, apresentam alamedas que caracterizam um palácio.

No início, o local era chamado de Abrigo de Mendicidade Santa Isabel.


Porém, em 18 de julho de 1943, ano da I e II Guerra Mundial e época
dos carnavais de máscaras, confetes e serpentinas, passou-se a chamar
Abrigo Dom Pedro II e a internar unicamente pessoas idosas sem haver
discriminação de raças, etnias, credo. Em épocas anteriores, o abrigo
acolhia moradores de rua e indigentes de qualquer idade. Rodeada por
jardins, vasos, fontes e imagens, a moradia é pacata e repleta de árvores.
Um espaço amplo, dividido em oito pavilhões, tombado pelo Instituto
do Patrimônio Artístico Histórico Nacional – Iphan em 1980.

22 Hoje, passados 122 anos de sua fundação, seus jardins, praças e vias
denotam traços de abandono. Percorrendo os caminhos que levam até
os dormitórios, percebe-se que há poucos idosos dispostos a falar de
suas histórias, de suas motivações, de seus anseios e de suas alegrias.
Muitos olham com desconfiança a presença de visitantes. Outros os
recebem com amor, afinal alguém se lembrou deles e se fez presente
num lugar distante e esquecido até mesmo pelo poder público
municipal, que mantém o pobre funcionamento do abrigo.

O dia-a-dia dos moradores é modesto. O sol nasce e, pouco a pouco,


os idosos vão se movimentando. Entre uma refeição e outra, eles
encontram amparo nas poucas atividades oferecidas pelo serviço
social. Alguns saem dos dormitórios para momentos de lazer, cultura e
interação. Outros recebem atendimento fisioterápico no próprio leito.
Uns se afastam dos leitos e atravessam todo o espaço do abrigo em
busca de suas companhias para conversar, jogar, costurar, assistir TV.
Os considerados lúcidos e orientados possuem autorização para sair e
Abrigo: um século de história

visitar a família.

***

Em um banco debaixo de uma árvore está sempre um senhor escutando


seu rádio. Aquele lugar parece já ser seu. Viro-me e deparo-me com
outro senhor empurrando uma imitação de carrinho de limpeza, feito
com uma cadeira de rodas, um balde, uma vassoura e muito lixo. Ele é
um ex-funcionário da LIMPURB – Limpeza Urbana de Salvador - que
não deixa a vida da limpeza por nada nem por ninguém. Abrigou-se lá
após ter perdido sua mulher num trágico incêndio. Num outro salão
vazio, uma senhora costura sem parar, todos os dias, incessantemente.
Uns cuidam dos mais doentes, outros assistem TV, alguns jogam
dominó. Uns andam sós de lá para cá, outros nem saem dos seus leitos.
Parecem apenas esperar a hora da morte.

Muitos fazem parte de quase toda a história do abrigo. A maioria já 23


mora lá há muito tempo. Os costumes parecem os mesmos todos os
dias. Do outro lado do abrigo, as enfermeiras conversam e fazem seu
trabalho. No outro pavilhão, a alimentação chega e é distribuída pela
nutricionista.

Naquelas praças e quartos, ouvi e vi histórias de vida fascinantes.


Histórias de pessoas que lutam pela sobrevivência e não possuem
mágoas e ressentimentos por morarem ali ou por terem sido deixadas
no abrigo. Apesar de toda a rotina e de todos os anos vivendo longe
de suas casas, alguns demonstram que o melhor presente que se tem é
a vida e que aquele lugar transformou-se em um verdadeiro lar, onde
encontram cuidado e companhia.

A sensação é a de que esses costumes do abrigo de hoje são parecidos


com os do passado. São sempre histórias de vida semelhantes. O
abrigo, continuamente, recebe e perde anciãos, cada um com sua
Marcas do tempo

particularidade. Todos, porém, com o mesmo espírito, com motivos e


circunstâncias similares. Um ciclo contínuo de vida e morte.

Em mais de um século, o Abrigo Dom Pedro II traz vivências de pessoas


marcadas pela suas trajetórias de vida. Essas experiências fizeram com
que, cada dia mais, eu quisesse voltar para conversar com os idosos.
Aprendi, com eles, que o preconceito não vale a pena e que qualquer
um de nós está sujeito a terminar seus dias em um lugar semelhante
àquele.

Apesar dos anos passados, o cenário continua exatamente o mesmo.


Entretanto, renova-se sempre o elenco. Os salões onde se realizam as
festas juninas e bazares são iguais aos de outrora. O que modifica são
as recordações deixadas ali naquelas paredes tingidas de verde, branco
e azul. Recordações que dão sentido à vida daqueles que, hoje, não
podem compartilhá-las com ninguém.
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O abrigo é, atualmente, como um idoso. Acolheu e viu diversas gerações
desde sua fundação e hoje se faz guardião de várias histórias tristes e
histórias de superação. Viveu estações de colheita das muitas flores,
da calmaria dos ventos outonais, de muitas decepções e tempestades e
tempos de muito calor, onde se quer dar amor. Sobreviveu a todas elas
e traz consigo referências que fazem parte deste mais de um século de
construção e reconstrução de mentes e vidas.
Abrigo: um século de história

25

Entrada do abrigo
Marcas do tempo

26
Abrigo: um século de história

27

Área externa do abrigo (patrimônio tombado)


Marcas do tempo

28
Abrigo: um século de história

29

Casa principal (patrimônio tombado)


Cápitulo 2

Marcas de dor
e coragem

31

No calendário, iniciava a primavera, era um dia ensolarado. Me


preparei para fazer uma viagem no tempo. Afinal, iria conversar com a
pessoa que mora há mais tempo no abrigo e que teve mais dificuldades
para residir lá. Seria, talvez, a entrevista mais complexa que teria.
Diria, delicada. A história de D. Dionéa é marcada, ao mesmo tempo,
por desprezo, doença e determinação.
Em um dos amplos salões do abrigo, onde os idosos assistem TV, jogam
dominó e participam das comemorações, conversei com ela. Aquela
senhora estava apreensiva. Mas, seu universo, hoje, é mais tranqüilo
que outrora. Ela conta que a moradia no abrigo trouxe paz pra sua
vida mas que, ainda assim, tudo podia ter sido diferente se não fosse o
preconceito e o medo que as pessoas têm quando alguém possui algo
diferente.
Marcas do tempo

Cabelos curtos e brancos, marcas profundas de expressão no rosto


e nas mãos, sorriso encabulado, olhos verdes. Um olhar carinhoso e
seguro. Assim D. Dionéa se ajeitava na cadeira e apertava suas mãos.
Suas unhas estavam pintadas de esmalte vermelho já desgastado.
A história dela é diferenciada, pois, chegara ao abrigo com 30 anos.
Com essa idade não se podia receber pessoas no abrigo, pois se trata
de um lugar apenas para pessoas a partir de 60 anos. Mas, questões
políticas ajudaram e fizeram com que Dionéa passasse a ser moradora
da instituição.

Convulsões, tremores e febre, a epilepsia - alteração na atividade


elétrica do cérebro -, a qual foi vítima desde os nove meses de idade,
lhe trouxeram sofrimento devido, principalmente, ao preconceito. Há
quase 60 anos, não sabia do que se tratava. Muitos se distanciavam
da adolescente frágil e destemida que ainda estava descobrindo a vida.
Fragilidade somente na saúde, pois Dionéa tinha determinação e
32 sempre se destacava nos estudos.

- Meu maior sonho era ser uma doutora, seguir a medicina e ajudar os
outros, disse ela emocionada.

Ela não conseguiu realizar seu sonho. Conta que chegou a concluir o
primário com muita força de vontade, mas, ainda assim, foi impedida
de seguir em frente. Com uma memória aguçada e detalhista, ela relata
que não pode mais estudar devido a uma crise de epilepsia, que teve aos
15 anos, durante uma prova na escola. Era sempre assim, vista como
uma pessoa normal até ter a primeira crise. Assim, se desencadeava o
medo nas pessoas em se aproximar dela. Olhavam-na como se ela fosse
tudo, menos um ser humano.

- As pessoas tinham medo de mim, achavam que era contagioso. Não


pude estudar, nem trabalhar, tudo que eu queria fazer, nada dava certo,
relata.
Marcas de dor e coragem

Sua família fazia o possível para ajudá-la. Levava nos melhores médicos,
mas os tratamentos não davam certo, suas crises continuavam trazendo
transtornos à sua vida. O destino parecia reservar a nova moradia para
D. Dionéa.

Sem encontrar outro rumo para sua vida, ela resolveu pedir a benção
de seus pais e de sua família para “fazer uma grande besteira” com sua
vida. Escreveu uma carta, que mais tarde seria seu passaporte para
o abrigo, falando de todas suas dificuldades e justificando o que ela
iria fazer. Sem achar soluções, naquele papel carregado de tristeza e
emoção, ela dizia que acabaria com vida, pois não tinha mais forças
para suportar não ser aceita pelos outros e para sofrer tanto com uma
doença que não se sabia nem o que era.

É triste ver que, desde outrora, o preconceito está enraizado na


sociedade. Basta possuir um timbre de voz, um cabelo, uma cor 33
diferentes para ser repelido pelo “padrão” estabelecido por cada época.
Acabar com a própria vida foi a solução encontrada por ela.

- Pedi a todos e a Deus que me perdoasse por fazer essa miséria, mas não
queria ficar nesse mundo infeliz como estava, diz ela demonstrando
tristeza e revolta.

Sua mãe, quando soube tal desfecho, procurou desesperadamente por


ajuda. Encaminhou a carta para o vereador a quem dedicava seus votos
toda eleição, pediu socorro e ele prometeu procurar um lugar para que
ela ficasse em Salvador. Pois, Dionéa não possuía condições de suprir
todas as suas necessidades. O custo de vida na cidade era alto e era
necessário o uso de muitos medicamentos.

- Recebi uma carta dizendo que tudo seria solucionado, que eu


esperasse e não intentasse contra minha vida. Fiquei rezando muito e
Marcas do tempo

na expectativa de novos rumos para meu caso.

Após muitas audiências com o abrigo e muita argumentação, pois a


idade impedia que ela fosse moradora, chegou-se a um veredicto.
Dionéa foi contemplada com a primeira oportunidade para viver.
Ela foi informada que seu lugar estava preparado, agora ela podia
abandonar sua vida em Conceição do Jacuípe e construir uma nova
vida em Salvador.

Em meio a um tempo de cultura ativa, de intensa produção cacaueira,


do início da indústria do petróleo e de um dinamismo econômico
na Bahia, D. Dionéa chega ao Abrigo Dom Pedro II. Carregada de
novas emoções e motivações, ela, agora, só queria viver em paz, sem
preconceitos. Durante seus 80 anos de vida, a entrada no abrigo foi o
que mais marcou sua história e fez com que ela tivesse novo ânimo para
vida e para enfrentar as adversidades. Ela deixou todo o sofrimento no
34 passado e se ateve no presente que é onde a vida se realiza. Perguntei-
lhe algo que havia me deixado intrigada. Afinal, ela foi tão humilhada
e colocada de lado por tantos. Qual seria seu sentimento em relação a
essas pessoas que tanto a maltrataram?

- Não sinto nada. Não guardo mágoa de ninguém. Deixei para trás
todas essas coisas e todo sofrimento.

Dionéa conta que quando chegou no abrigo, teve algumas crises de


epilepsia, mas, hoje, é preciso muita irritação para que ela se altere. A
aceitação e a convivência no abrigo fez com que, junto ao tratamento,
ela se sentisse cada vez melhor. Ela guarda com muito apreço, receitas
médicas de seu tratamento desde 1977. Relata que sempre foi bem
tratada pelo seu médico que acertou no diagnóstico e fez com que ela
se sentisse gente.

Após se instalar no abrigo, ela colaborou muito com o funcionamento


Marcas de dor e coragem

35

Dionéa no ano que chegou ao abrigo


da instituição. Ajudava a varrer, a lavar os pratos, a fazer velas. Gostava
de se sentir útil, afinal sempre foi impedida de trabalhar. Quando não
estava acompanhando idosos em hospitais, ficava na portaria ajudando
no entra e sai de todos os dias do abrigo.

- Não saio do abrigo, não quero sair de jeito nenhum.

Os anos foram gradualmente se declinando e juntos com eles, Dionéa


traz histórias em conjunto com as vividas pelo abrigo. Ela participou
de quase todas as festas ali realizadas. Conta com muita alegria dos
passeios para outras cidades que foram realizados através da renda de
bazares.

Histórias como a de Dionéa repetem-se aos montes na sociedade


brasileira. Muitos são aqueles que se aglomeram nas ruas, abandonados
por suas famílias por causa do preconceito. Uma doença, uma opção
sexual, uma religião. São diversos os fatores que levam indivíduos à
vagarem à sua própria sorte.

O que se vê nos dias de hoje são os idosos sendo tratados como


inúteis. O preconceito tem se alastrado a cada dia. Dionéa envelheceu
precocemente, pois foi inutilizada e colocada de lado pela sociedade
por causa de sua doença. Assim como os idosos precisam de cuidados
especiais, ela necessitava de tratamento específico, porém isso não
significa que ela teria de ser excluída e colocada à margem. Da mesma
maneira que o idoso é tido como inválido, Dionéa, na sua tenra idade,
foi invalidada. Ela relata que envelhecer foi doloroso, pois ela queria
ter trabalhado, ter sido útil. O seu maior desejo era que a velhice não
chegasse, pois, dessa forma, não haveria outro jeito a não ser, como ela
disse, “esperar o dia que o Senhor agirá com bondade e a levará desde
mundo”.

Dionéa já nasceu como se tivesse 80 anos. Privada de estudar, de


trabalhar, de utilizar sua capacidade para servir a sociedade. Ela viveu
toda sua vida como um idoso vive hoje no Brasil. Vida abandonada,
sem recursos, sem direitos.
O sonho de Dionéa é o mais singelo dos sonhos. Ela, hoje, só quer que
Deus a leve sem deixá-la sofrer mais do que já sofreu na sua vida.

Após revelar seu sonho, ela conta que amava dançar nas quadrilhas
promovidas pelo abrigo e que tem seu par. Então, pedi a ela para que
me apresentasse seu parceiro nas tardes de dança.

- O nome dele é Manoel, ele é meu camarada.


Cápitulo 3

O trabalhador

39

Ao chegar em um dos bancos distribuídos pelo espaçoso abrigo, lá


estava um pacato senhor que sorria inibido com a nossa chegada.
Manoel Pinto, mãos trêmulas após um AVC – Acidente Vascular
Cerebral. Nem com tantos problemas de saúde ele deixa de sorrir.

Moreno, sorriso simpático, baixa estatura, olhos castanhos escuros,


cabelos brancos e uma bengala. Assim é o senhor Manoel.

Hoje, ele é um homem festeiro, que sente saudades de tudo,


principalmente de seus filhos, a quem só cobra presença. Seus sonhos
se baseiam em melhoria para a condição do idoso na sociedade e a
conscientização das famílias que, muitas vezes, abandona-os.

- Não estaria aqui se eu pudesse escolher, mas as circunstâncias me


Marcas do tempo

obrigaram.
Há 13 anos, um problema familiar mudou os rumos de Manoel.
Enquanto a capital Salvador sofria transformações demográficas em
suas estruturas urbanas, ele sofria modificações na sua vida. Sua filha
Carmen, com quem morava, descobrira uma traição do marido que,
por sua vez, passou a ameaçá-la constantemente afirmando que tiraria
sua vida com tiros e facadas. Após muitas idas e vindas com sua filha nas
emergências hospitalares, um médico que atendera Carmen sugeriu a
Manoel que ele procurasse um abrigo para fazer morada, pois, dessa
forma, sua saúde não iria suportar.

- Lembro-me quando o médico me disse na emergência – “O senhor


vai e seus filhos ficam”. Nenhum pai gosta de ver seus filhos sendo
maltratados e eu acabava me envolvendo na história. Meu genro sabia
que eu era doente e ficava fazendo provocação pra que eu saísse da casa
dele.
40
Manoel foi obrigado pelas circunstâncias a procurar um abrigo e, dessa
maneira, praticamente estagnar sua vida, que um dia foi bastante ativa.

De vendedor de picolé a padeiro. Manoel fez de tudo um pouco.

- De cada coisa eu sou um bucadinho.

Manoel veio da cidade de Muritiba no interior da Bahia em 1945


quando ocorria a II Guerra Mundial. Em Salvador, se iniciava a
construção do aeroporto.

Foi camelô em frente ao SESI – Serviço Social da Indústria – no


bairro de Caminho de Areia, na avenida Tiradentes. Ali, até perder
sua barraca quando foi construída a creche do SESI, Manoel vendia
guaraná, queimado – bala caramelada –, pirulitos, dentre outros
confeitos.
O trabalhador

Além de ser vendedor do comércio informal, ele já foi padeiro,


gaveteiro, trabalhou em usina de açúcar e cozinhou em casa de família.
Viúvo desde 1974, os seis filhos homens de Manoel não possuem bom
relacionamento com ele. Não visitam, não o procuram.

- Um dia eles também ficarão velhos, não preciso de nada deles, só da


presença, diz com os olhos cheios de lágrimas.

Manoel afirma que a sua velhice trouxe, além do afastamento dos


filhos, também, a doença.

- Não me sinto contrariado pela velhice, mas sim pela doença, pelo
AVC que tive.

O que fica notório é que os idosos não se importam tanto com a


velhice. Mas, a sociedade trata a chegada da idade com pesar. Manoel 41
afirma que vê sempre na televisão casos revoltantes de maus tratos a
idosos. Para ele, isso é caracterizado como falta de amor ao próximo.

Daqui a 16 anos, a OMS – Organização Mundial de Saúde – adverte


que o Brasil será o sexto país do mundo a ter o maior número de idosos.
A todo momento, se presencia cenas de maltrato, de desrespeito a
maior idade. Manoel foi tirado de seu lar por problemas familiares.
Quantos idosos não têm o direito à vida tirado pelos próprios filhos?

Manoel, representante de muitas outras histórias, teve sua


produtividade interrompida. Ao mesmo tempo em que ele pôde
desfrutar do descanso e do afastamento dos problemas, ele sofre
com o abandono. A família deveria exercer seu principal papel no
fortalecimento das relações. Vemos as hierarquias se modificando.
Os pais, que antes possuíam o comando de seus filhos, passam a ser
comandados. Porém, fica sempre esquecido o cuidado maior que os
Marcas do tempo

idosos necessitam. Todo esse processo pode gerar problemas, o que


motiva muitas famílias ou muitos idosos a procurarem outro lugar pra
ficar.

- Minha profissão era minha vida, mas desde que estou aqui não
trabalho.
Envelhecer é o curso natural da vida e é nessa fase que se encontram as
experiências e características próprias de cada um. Até esse momento
se vê sendo tirado aos poucos dos idosos. Muitos perdem até o direito
de viver em sociedade, como é o caso de Manoel.

- Me sinto feliz, apesar dos problemas. Envelhecer é muito bonito.

Manoel teve os sonhos interrompidos e olha pra trás com a sensação


de que podia ter feito algo de melhor pra o futuro ser diferente. Seu
desejo hoje é que haja conscientização nas famílias para que outros
42 idosos não tenham o mesmo destino que ele.

- Mas, a moradia no abrigo ainda me proporcionou coisas boas. Os


passeios e as festas ficam sempre na história. Sou muito festeiro.

Manoel contou-me carregado de saudade, histórias de quando era


padeiro e camelô. Toca o sino da capela, ali me despedi com a convicção
de que o envelhecimento acompanhado do preconceito deixa marcas,
apesar da superação.
Cápitulo 4

É preciso saber
envelhecer

43

Estava em busca do último personagem. Passando por aqueles


corredores, dormitórios e refeitórios, é impossível não lembrar de
um dos mais tristes eventos que marcou a história do abrigo. No
amanhecer do dia 9 de abril, uma sexta-feira santa, a irmã Lindalva
Justo de Oliveira teve sua vida tirada de forma cruel. Ela tratava a todos
com cordialidade, simplicidade, zelo e alegria. Seu martírio demarcou-
se quando um morador apaixonou-se por ela e passou a assediá-la. Ela
não correspondeu, procurou afastar-se e manter-se em oração, mas isso
não evitou que o interno atentasse contra sua vida.

Enquanto ela, distraída, servia o café-da-manhã, o homem desferiu 44


golpes de faca na religiosa. E ainda ameaçou matar outro interno, que
tentou impedir o fato. Após o fim do trágico assassinato, ele sentou-se
num banco em frente ao abrigo e esperou a chegada da polícia, que
Marcas do tempo

o internou num manicômio. A tragédia culminou num processo de


beatificação da irmã, que é lembrada por todos os internos, mesmo
aqueles que não a conheceram.
Deixando as recordações tristes de lado e continuando a procura, andei
por aquelas vias e me falaram de uma mulher simples e batalhadora
que cuida incessantemente das suas companheiras de dormitório.
Margarida é seu nome. Igual a diversidade e multiplicidade da flor,
ela não pára um segundo. Quando entrei no pavilhão feminino, ela
pediu pra que eu esperasse, enquanto terminava os cuidados a algumas
idosas. Na entrada do dormitório há um cartaz de boas-vindas feito à
mão cujo dizer era “Sua presença torna esse momento precioso”. Ali
onde eu aguardava por ela é acoplado ao refeitório o qual todas as
manhãs elas se deslocam para o café da manhã.

Cadeiras espalhadas, santinhos, miniaturas diversas, almofadas


bordadas, lençóis floridos, flores, perfumes, ursos de pelúcia, relógios,
44 patuás, jarros de barro para água, costuras, rendas, porta-jóias,
anjinhos, TVs, cortinas quadriculadas. Os dormitórios femininos são
separados por divisórias, cada um com o nome da moradora em um
coração recortado em papel. Tudo muito ajeitadinho e simples. Assim
Margarida passa seus dias ali cuidando das mais debilitadas e indo de
leito em leito vendo as necessidades de cada companheira.

Há 36 anos, quando Salvador foi definida como um dos núcleos


das regiões metropolitanas do Brasil, ela chegara ao abrigo por
necessidade. Margarida não tinha como se sustentar na cidade e foi
obrigada pelas circunstâncias a procurar um lugar para fazer morada.
Casou-se na cidade de Jacobina, interior da Bahia, e mudou-se para o
Rio de Janeiro. Lá, descobriu a traição de seu marido e, então, veio para
Salvador.

Após percorrer alguns abrigos, Margarida chegou ao Dom Pedro II,


mas, também, teve dificuldade para se internar, pois não tinha a idade
É preciso saber envelhecer

permitida. Depois de sugestões de funcionários do abrigo, ela passou a


trabalhar gratuitamente na instituição, apenas para garantir seu espaço
ali até chegar aos 60 anos. Seu trabalho baseava-se no que já fazia desde
moça, o trabalho doméstico. Além, de cuidar dos idosos, como faz até
os dias de hoje.

Quando completara a idade permitida, continuou a morar no abrigo


o qual ela tem muito apreço, pois ali encontrou compreensão e
valorização para si. Uma senhora cuja marca é a simplicidade, sempre
procura para si e para os outros o bem. Com seu cuidado e dedicação,
ela sempre encontra um jeitinho mais confortável para alguém que
está se despedindo da vida.

Calma, paciência, sabedoria e compreensão. Todos esses valores


Margarida diz ter encontrado no dia-a-dia do abrigo. Todas as noites
ela vai de leito em leito verificando as necessidades das idosas a quem
acompanha com ternura. Zelo ensinado através da criação da sua mãe, 45
de quem fala com emoção.

- Peço a Deus sempre a sabedoria para fazer meu trabalho com amor.

Margarida mostra que o desrespeito ao idoso é ocasionado por falta de


amor no coração e diz que só precisa de conforto e um sorriso de quem
vai visitá-los.

- Tudo ajuda um velhinho. Basta um carinho, um agrado. É o suficiente.

Aquela senhora ensina a quem chega grandes lições de vida. Não


carrega a inclinação da idade com pesar, ela vê a velhice como a chegada
da compreensão. Envelhecer torna-se a coisa mais fácil do mundo ao
lado de Margarida.

- Compreender e saber envelhecer que é difícil. É preciso saber


Marcas do tempo

envelhecer.
Margarida, como poucos, foi para o abrigo por vontade própria.
Apesar, de ter sido um pouco obrigada pelas necessidades. Mas se
percebe que o destino reservava essa moradia para uma mulher de
fibra. Encontram-se poucos com essa dedicação por ai. Em muitos
casos, os próprios familiares negligenciam os cuidados aos parentes
com idade mais avançada. Nem sempre os idosos chegam até o abrigo
com as próprias pernas e vontades.

Apesar de todas as dificuldades encontradas no decorrer dos anos


na instituição, Margarida acredita que viveu dias bons ali e que o
tratamento oferecido é o melhor que se pode. Um dia já foi melhor,
mas, ainda assim, ela se sente feliz pelos anos vividos naqueles pavilhões.

- Me sinto forte, boa e feliz. O abrigo trouxe tranqüilidade e segurança


pra minha vida.
46
O seu maior sonho é viver tranqüila, em paz e voltar para sua cidade.
Ela conta que seu maior medo é da morte, não da sua, mas da morte
dos que se foram. Pois, ela cuidou de muitos idosos que morreram em
seus braços e isso ainda amedronta ela.

Nos seus 36 anos morando no Abrigo Dom Pedro II, o que ela mais
gosta de fazer é atuar. Ela conta que sempre há ânimo entre as idosas
quando se fala em teatro.

O que se vê é que cada dia que se passa, as atividades vão diminuindo


e os idosos vão ficando em seus leitos esperando o dia da morte. É
triste passar e ver tantos idosos sem familiares, sem visitas. Durante
todo o período naquele dormitório, avistei poucas fotos de familiares.
A realidade é que a maioria não está ali como Margarida. Ela ainda
procura uma forma melhor de viver seus dias, de ocupar a mente.
Como ela mesmo se refere a velhice, é preciso somente saber envelhecer
e chegar a essa fase da vida com simplicidade.

O que é mais importante pra Margarida e para todos não é que nos
acontece e sim aquilo que fizemos acontecer. O que colocamos na
nossa bagagem? O que esses idosos possuem de história? Basta chegar
a um abrigo e dar a voz. Ouvir cada um com carinho e perceber que
existe um alguém além das rugas. Existe uma outra visão, basta querer
ver. A realidade paira todos os dias nos abrigos de Salvador e em todos
os outros do mundo. Muitas vezes achamos que o individualismo vai
nos levar a algum lugar. Ledo engano. Todos nós iremos envelhecer
como Margarida. Será que saberemos chegar a 3ª idade? Teremos força
e coragem, pra se houver necessidade, ir fazer morada num abrigo
junto a outros?

- Não podemos ter a mesma natureza sempre. Envelhecer faz parte da


vida.
47
Considerações
Finais

49

Mudanças de todo gênero caracterizam o envelhecimento. São


modificações físicas, mentais, psicológicas, sociais. O idoso traz
consigo marcas em suas histórias de vida. Algumas caracterizam-se por
serem histórias de superação. Outras, são marcadas pelo abandono e
pelo descaso do coletivo.

O idoso precisa estar sempre em atividade, estimulando seu intelecto


e aprendendo sempre. Infelizmente não é totalmente assim o perfil do
idoso brasileiro. Principalmente quando se adentra a porta de um abrigo.
Nessas instituições vemos o quanto os anciãos são desprestigiados. È
como se fosse um depósito onde vão sendo colocadas vidas que um dia
fizeram história.

A população idosa vem crescendo cada dia mais. Em pesquisas


Marcas do tempo

realizadas pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


– vemos a comprovação de que o planejamento familiar tem sido mais
executado e, portanto, os idosos tem sido maior número no país. As
pessoas têm tido mais longevidade. A sociedade deve estar preparada
para acolher aos de idade mais avançadas. As famílias devem ser o apoio
essencial para estes que, em muitos casos, vivem à margem. Outro
fator importante é o envelhecimento saudável. As condições básicas
de sobrevivência com saúde vem sendo desconsiderada. Ao passo
que uma vida tem melhor qualidade, o idoso viverá com melhores
condições. Porém, o abandono gera outros problemas como este.

As condições de vida dos idosos refletem em seu papel social. Uma


família, como a de Manoel, coloca um ancião num abrigo, para que
ali ele tenha qualidade de vida. Mas, não é assim que funciona na
prática. Ao entrar num abrigo vemos a qualidade de vida deixada
completamente de lado. A instituição faz sua parte para que eles
50 mantenham o essencial na sobrevivência. Mas, ainda assim, o principal,
o afeto, lhes é tirado. O emocional acaba refletindo na condição
daquele que mora num abrigo.

O ambiente familiar traz mudanças na vida de qualquer indivíduo. Ao


invés de deixar de lado um idoso por causa de suas limitações, deve-se
dar mais carinho e cuidado até chegar o seu último dia. Pois, são muitas
questões que envolvem o envelhecimento. Além de, muitas vezes,
tirarem sua produtividade, o idoso passa a ser visto como inválido, o
que piora seu estado emocional.

É preciso entender que existe um ser humano por trás da pele marcada
pelo tempo. Se faz necessário mudar a visão, pois há muito o que
se vê além das rugas e expressões. A interação pode colaborar para
uma melhor qualidade de vida dos idosos. Diferente do que causa o
abandono. O desamparo provoca sentimento de profunda tristeza e de
Considerações finais

solidão. Isso impossibilita o idoso de conviver com sua família ou no


seu grupo social. Além de extrair a vitalidade e contato com o mundo,
provocando desinteresse pela própria vida.

A cada vez que fechamos nossos olhos para a falta de conscientização


das pessoas, será mais difícil proporcionar aos que sofrem com o
preconceito uma vida mais digna. Uma mão estendida para ajudar a
atravessar a rua, um trabalho social e voluntário em um abrigo ou o
simples fato de não levar nenhum membro de sua família ao estado
do abandono, já é uma grande colaboração para a situação do idoso.
O que se espera é que enquanto houver vida, esta seja vivida com
qualidade e dignidade.

Ainda presenciamos cenas de falta de respeito. Nos ônibus as pessoas


não cedem lugar para os idosos, fazendo-os ficar em pé. Os motoristas
do transporte coletivo, quase sempre não param para o idoso. Essa
falta de consideração inerente a cada atitude de maltrato ao idoso só 51
contribui para o aumento das estatísticas.

Enfim, alguns artifícios básicos de sobrevivência são, normalmente,


desprezados pela sociedade. Apenas no ano de 1994, o nosso país
adquiriu a Política Nacional do Idoso - Lei 8.842 -, que assegura seus
direitos. O Estatuto do Idoso foi um grande passo para a melhoria da
qualidade de vida desses. Mas, ainda se faz necessária a implantação de
mais políticas públicas que proporcionem e assegurem seus direitos
para que o desrespeito a classe idosa não se agrave. Pois, a população
idosa contribuiu efetivamente para a construção da nossa nação e não
pode ser desconsiderada.

Minayo (2004) classifica os maus-tratos e a violência contra os idosos


em maus-tratos físicos, psicológicos, abuso financeiro ou material,
abuso sexual, negligência, abandono, dentre outros. Ou seja, o abuso
ao idoso pode ir além de um maltrato físico ou verbal. O abandono,
Marcas do tempo

também é caracterizado como violência ao idoso.

Todos esses fatores são preocupantes num país onde, cada dia, o
número de idosos de aumenta. Coibir essas qualificações de maus-
tratos irá trazer qualidade de vida a esses que formaram a nação em
que hoje vivemos.

A cada entrevista pude perceber que apesar de todas as marcas tristes


deixadas pelo abandono e preconceito, Dionéa, Manoel e Margarida
não perderam a ternura e doçura que envolvem seus olhares. Refleti a
cada ida e pesquisa sobre como poder reverter o quadro relacionado ao
idoso. Vi que, além de ir mais vezes levar sorrisos a eles, compartilhar
suas histórias era a melhor maneira de convencer a todos que existem
seres humanos nos abrigos e não objetos os quais podemos jogar fora
quando não queremos mais. Me emocionava junto com eles e viajei em
cada ano contado. Fiquei envolvida e deixei de ter um olhar meramente
52 narrativo. O importante é ter a consciência que todos um dia chegarão
a velhice e, também, vão precisar de cuidados e atenção.

Diante do exposto, faz-se necessário refletir sobre a importância dos


idosos para a sociedade, bem como sobre o tratamento dos demais a
essa parcela da população. A conscientização, um a um, pregando uma
maior atenção e valorização aos que vivem a terceira idade, mas que já
contribuíram em grandes proporções para o crescimento do país e na
formação do que somos e vivemos hoje, é um grande passo. Afinal de
contas, esperar por políticas públicas voltadas à causa não é uma boa
idéia quando se pensa que a solução precisa ser encontrada o quanto
antes.
Denúncias de
maus-tratos

53

Disque denúncia
0800 716 996
Conselhos de idosos
Conselhos Estadual e Municipal (71) 3115-8350
Ministério Público
Promotoria de Justiça e Cidadania (71) 3324-6424
Referências
Bibliográficas

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ARAÚJO, Ubiratan de Castro. Salvador Era Assim – memórias da


cidade – V. 1. 1999.

BORGES, Jafé. Salvador Era Assim – memórias da cidade – V. 2.


2001.

MINAYO, M. C. S. Violência contra Idosos: O Avesso do Respeito à


experiência e à sabedoria. Secretaria de Direitos Humanos, 2004.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Salvador – Transformações e


permanências (1549-1949). Ed UESC. Ilhésus, 2002.

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