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Estética Transcultural

na Universidade Latino-Americana

NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Coordenação geral do projeto CAPES- COFECUB: Prof. Dra. Dinah Guimaraens


“A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana”
PPGAU-UFF HISTÓRICO DO PROJETO CAPES-Cofecub n.752/12.

Organização editorial e coordenação técnica: Dinah Guimaraens -PPGAU-UFF,


Colaboradores: Guilherme Werlang- IACS-UFF, Zeca Ligiero- NEPAA-Unirio e Marina
Vasconcellos Mestre-PPGAU-UFF

Design e Projeto gráfico: Marina Vasconcellos


Revisão:
Janaiara Lima

A s linhas de atuação do projeto CAPES-Cofecub n. 752/12 foram idealizadas de modo a fazer


da universidade latino-americana um locus para práticas investigativas transculturais. Visam essas linhas
desconstruir o procedimento de bloqueio reflexivo e de primitivização das faculdades humanas posto em
prática pela pragmática contemporânea. O principal objetivo do projeto é fomentar o intercâmbio entre o
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo/PPGAU da Escola de Arquitetura e Urbanismo/
EAU da UFF, o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas/PPGAC da UNIRIO e a Université Paris
8 – Saint Denis/UNESCO acerca de práticas investigativas transculturais.
Atingir tal entendimento, alternativa única à perpetuação das hegemonias culturais, é o objetivo
ISBN
geral de uma análise transcultural que lance mão de múltiplas vozes. A ênfase estética aqui presente coincide
com o esforço inicial já feito por uma rede de diferentes universidades latino-americanas para o estabeleci-
mento de Programas de Pós-Graduação e Institutos Transculturais, sob a inspiração do próprio Poulain, in-
tegrante da equipe francesa deste projeto. Esta proposta vem pois se juntar a projetos inovadores já em curso
em países vizinhos ao Brasil, como a Argentina, o Uruguai, o Chile, o Equador, a Venezuela e a Bolívia.

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SUMÁRIO
Introdução

O Desafio da Antropologia Intercultural para uma Estética Transcultural


Jacques Polain 11
Tradução: Daniel Mendes Fernandes

Apresentação

Transculturalidade Estética: Experimentação Pragmática da Arte e da


Arquitetura 17
Dinah Guimaraens

Educação e Cultura na Formação da Cidadania


Carlos Alberto Ribeiro De Xavier 29

Parte I Práticas Transculturais.....................................

Experiência Transcultural no Campus Universitário da UFF: A cons-


trução das Ocas Xinguana, Guarani e a realidade dos indíos urbanos
Dinah Guimaraens e Marina Vasconcellos 31

Escola Xamânica: Arte e Transculturalidade na Amazônia Ocidental


Guilherme Werlang 41

Instituto Tamoio, Povos Originários e Aldeia Maracanã


Carlos Tukano 45

Antes Ocas de Palha, Hoje, Teias de Concreto


Carol Potiguara 49

Parte II Ensaios: Poética e Estética.............................

Antonin Artaud: o Homem-Teatro vindo do Alhures


Bruno Cany 61
Tradução: Guilherme Werlang

Museu, Poesia e Patrimônio Imaterial em Alphonsus de Guimaraens


Lucas Guimaraens 70

De que Corpo se Trata no Niilismo Europeu e no Niilismo Brasileiro?


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Charles Feitosa 86 O Museu do Índio Americano e a Transculturalidade


(PPGAC/UNIRIO) 160
Rosane Maria Rocha de Carvalho
A Exploração da Arte Africana Primitiva sobre a Economia Neoliberal
Transcultural 75 O Museu Vivo e o Patrimônio Imaterial
Eyene Mba 169
Tradução:Daniel Mendes Fernandes Jack Lohman

Perfomando “Dona Mariana, Princesa Turca, Cabocla Curandeira, O Comitê do Tratado das Primeiras Nações Maa-Nulth
Arara Cantadeira 80 173
Zeca Ligiéro Angela Wesley

Musicologia e Transculturação 97 MAMIWATA: Dança em Deslocamento


Tiago de Oliveira Pinto 179
Denise Mancebo Zenicola
A Antropologia Intercultural para a Transculturalidade de Gêneros 111
Irma Medoux Interpretações Ticuna sobre a Iconografia das Máscaras Rituais
Tradução:Daniel Mendes Fernandes 185
Priscila Faulhaber

Parte III Comunicações................................... Temas Transversais e Cultura Afro-Brasileira e Indígena


193
Norma Lima
Um caso em Transculturalidade: Brasil e a Arte-Ethos do Continente
Afro-Atlântico
118
George Nelson Preston

Arte Pública: Educação em Escolas Públicas de Nova York


123
Liza Papi

A Transculturalidade como Desafio Epistêmico


130
Evandro Vieira Ouriques

Surrealismo Literário e Etnográfico:Um Diálogo Transcultural


142
Augusto Cavalcanti

O Museu Nacional Latino do Smithsonian


155
Luis R. Cancel
Tradução: Daneil Mendes Fernandes

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APRESENTAÇÃO Professor Jacques Poulain


Université Paris 8 - Saint Denis
Cátedra UNESCO de Filosofia da Cultura e Instituições

O Desafio da Antropologia Intercultural para uma Estética


Transcultural
Jacques Poulain

O desafio de uma antropologia do diálogo: a configuração


das figuras da felicidade

A antropologia do diálogo explorou as origens da arte e da cultura retraçan-


do a dinâmica da comunicação, a qual constitui a base de qualquer experiência. Nascido
um ano mais cedo e desprovido de correlações hereditárias com o ambiente, o aborto
crônico – que é o homem – vive inicialmente um hiato entre seus aparelhos sensoriais
e motores. Ele não consegue se agarrar a um estímulo para ativar um programa motor
tal como fazem os animais bem formados e nascidos no tempo certo. Dessa forma, o ser
humano teve de se prender a uma linguagem, fazendo o mundo falar, para aí encontrar
a felicidade ligada à escuta intrauterina da voz da mãe. O movimento de emissão e re-
cepção dos sons permite que ele se prenda a realidades e goze delas encontrando o que
lhe interessa. No entanto, o uso dos olhos, das mãos e de todos os órgãos de seu corpo só
foi possível quando projetou, pelo uso dos olhos, esse movimento de emissão e recepção
próprio à linguagem, conferindo às suas percepções visuais um valor igualmente gratifi-
cante que ele confere aos sons que ele recebe e pelos quais ele se imagina receber a fala
do próprio mundo. Essa propriedade do uso dialógico da linguagem foi descoberta pelo
linguista W. von Humboldt em 1836 e por ele chamada de “prosopopeia”. A antropo-
logia filosófica da linguagem de A. Gehlen mostrou, no século 20, que essa prosopopeia
não se restringia à linguagem, mas que também se transferia para o uso de todos os
aparelhos sensoriais e motores: a visão, o tato, a manipulação das coisas e a locomoção
são vividos como projeções e recepções de sensações que são vividas como gratificações
tão gratificantes quanto os sons e que podem ser registradas pela memória como tais e,
portanto, reproduzidas como tais.
Distinta das experiências motoras e perceptivas quotidianas, a experiência da arte en-
contra sua dinâmica específica na busca sistemática de todas as experiências do mundo,
de nós mesmos e dos outros que nos falam gratificando com voz de mãe, isto é, nos
respondendo de maneira necessariamente favorável. Também, ela se descobriu inicial-
mente como tal na experiência do sagrado. Porque a experiência de escutar o mundo que
fazemos falar não é apenas gratificante: ela nos permite acessar a realidade do mundo e
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as diversas realidades que ele contém como realidades que nos gratificam em razão da realidade delas. Por- acessar o nosso próprio, dando-nos a oportunidade de, ao mesmo tempo, identificar as expectativas de respostas
tanto, a experiência de diálogo com o mundo também é cognitiva: ela nos permite reconhecer as realidades favoráveis nas quais nós nos reconheçamos e atender a essas expectativas, seja realizando-as, encarnando-as e
como tais, tão gratificantes e satisfatórias quanto, sob o ponto de vista hedônico, a realidade do mundo. Em encontrando nelas o nosso destino julgando que elas sejam as tais. Porque esse acordo de julgamento e de felici-
sua evolução filogenética, o ser humano se apoiou nessa dupla realidade de resposta gratificante do sagrado e dade com o mundo, com o outro e com nós mesmos é o nosso destino; destino que faz do acordo dialógico, do
de reconhecimento desse sagrado como realidade última para se orientar e se descobrir, pouco a pouco, em si acordo de julgamento artístico ou do acordo de cultura uma realidade na qual somente gozamos da felicidade
mesmo, a realidade que ele deseja ser e na qual ele pode gozar de si mesmo ao alcançar sua própria realidade, que encontramos nesse acordo quando nele reconhecemos a nossa própria realidade. Longe de ser uma obra do
a sua própria realização e, por conseguinte, a sua própria felicidade. acaso, somente gozamos dela como tal quando a reconhecemos como sendo a realização presente do esforço de
Assim, a própria especificidade da arte surgiu como tal ao se reconhecer como produtora das figuras toda a nossa vida passada.
da felicidade, sem as quais o ser humano não podia viver e sem as quais não poderia encontrar sentido em sua
vida. No entanto, a autonomia dessa experiência se impôs com a rejeição do sagrado e dos mitos religiosos O espaço dialógico e intercultural e sua neutralização museal
operada pelo Iluminismo, pois ela se manifestou como tal durante a Renascença e, em seguida, a Moderni-
dade como lugar de reconhecimento de sua própria verdade, como lugar de verdade do que é o ser humano. A busca por figuras da felicidade se expressa hoje no diálogo intercultural, na experiência de pro-
Porém, no Romantismo alemão descobriu-se que a dinâmica dialógica da arte não era somente a da arte, ou curar gozar das formas de vida culturais estrangeiras como se elas fossem também as nossas e conseguir ter
seja, ela determinava também a dinâmica da vida mental e social humana tanto quanto a dinâmica de sua sucesso nesse intento. A antropologia do diálogo nos permite que as reconheçamos aprendendo a discernir
imaginação. A imaginação produtiva permaneceu sendo um mistério de tal maneira que foi reduzida a uma as formas culturais de vida e de arte, ausentes na nossa própria cultura e que ainda nos impedem de acessar a
imaginação visual ou pictórica. Ao descobrirmos que a imaginação humana é comunicacional ou dialógica nossa própria. Ela nos conduz a uma concepção da memória das culturas que revoluciona profundamente a
não somente trouxemos à tona que a renovação da vida mental não era redutível a esse fluxo de serialização nossa relação com as “musas”, a nossa relação com a memória das figuras da felicidade, artísticas ou culturais,
sequencial – tal como parece ser para a consciência que tomou consciência disso –, mas também permitimos que tivemos por hábito chamar de “museu”. Porque a função deste último é permitir que nos apropriemos
compreender que o diálogo consigo mesmo – que para Platão já era a alma – dava a lei de renovação da de tudo o que nas culturas do mundo atende às nossas expectativas e relançá-las aos moldes da imaginação
consciência e que sua criação das figuras de felicidade guiava a escolha das formas de vida nas quais o ser hu- dialógica que age em nós. Ela nos faz participar de uma estética transcultural das percepções e das concepções
mano pode se reconhecer se reconhecendo feliz que é feliz por deleitar-se com uma obra de arte. Porém, esse do mundo que possa determinar o horizonte cosmopolita das memórias e das expectativas de todos.
diálogo consigo mesmo não é puro prazer de si na invenção de suas formas de vida: o ser humano somente Hoje, o diálogo intercultural é uma necessidade porque ele se impõe como a única maneira de poder
alcança seu destino quando julga se ele é realmente ou não essas formas de vida e felicidade das quais goza superar o que se apresenta como a guerra das culturas. A globalização promovida pelo neoliberalismo não
ao reconhecer que elas atendem às suas expectativas de felicidade. Ele deve julgar se ele é realmente ou não consegue nos fazer reconhecer a cultura econômica do nosso comércio como destino cultural, necessário
essas formas de rearmonização verbal e mental consigo mesmo, com o outro e com o mundo que ele teve de e suficiente da humanidade. Ela também refuta o imaginário coletivo e sua busca cultural de sentido na
imaginar que o era para conseguir imaginá-las, dar-lhes existência e dar a sua própria existência nelas. memória das tradições como se estas constituíssem os últimos refúgios de sentido e verdade de cada um.
Porque a criatividade do pensamento e da imaginação não mais pode ser pensada com base no modelo Cada cultura imita, nesse refluxo, a caça globalizada aos monopólios que caracteriza o comércio de direitos,
do “gênio”, isto é, de uma natureza inconsciente que dá suas regras à arte, como ainda afirmava Kant. Ela é de deveres e de bens no capitalismo avançado, num capitalismo que visa à maximização da fruição dos bens
ativada pelo reconhecimento e/ou julgamento da forma de vida em que vivemos, segundo o qual tal forma não respeitando a liberdade autárcica de cada um. Na caça à verdade, cada cultura afirma o valor e a verdade de
mais nos satisfaz; que ela está numa posição tal que nos encontramos distantes da nossa percepção de mundo sua própria cultura como se as outras nada valessem. Nesse contexto, o diálogo intercultural surge como
e de nossas expectativas: ela não acontece de maneira mágica como um evento que bastaria aguardar da forma uma necessidade, mas, com bastante frequência, ele se contenta em promover uma busca pela compreensão
que Heidegger aguardava o “último deus”. Ela depende desse sentimento de insatisfação que torna insuportáveis recíproca das culturas e prescrever o respeito pela cultura do outro como se essa cultura fosse uma pessoa
para nós uma ou outra forma de vida, um ou outro mundo, uma ou outra conduta de nós mesmos ou do outro. jurídica, em que bastaria reconhecer sua existência para reconhecê-la como tal.
Ela depende do julgamento que distingue no sentimento de infelicidade o sentimento de sofrimento, o que A partir do momento em que a fala cultural do outro é responsável por uma memória de felicidade
produz a insatisfação e o sentimento de não mais poder ser essa forma ou nela se reconhecer. A criatividade do e de expectativas de um reconhecimento universal das verdades presentes nessa memória, o respeito de sua
imaginário dialógico com nós mesmos e do diálogo artístico com o mundo necessita do reconhecimento de um fala não pode continuar sendo puramente formal, arbitrário e moral. Nós estamos empenhados em julgar,
julgamento negativo de realidade e de verdade sobre a felicidade que, inicialmente no passado, uma ou outra queiramos ou não, se essas verdades e felicidades, pelas quais a cultura do outro é responsável, criam condição
forma de vida nos havia proporcionado. Essa criatividade ativa a busca pela nova forma de vida, pela nova obra para nós como para ele de alcance do nosso destino, isto é, a nossa própria humanidade. Tanto a compreen-
ou pelo novo comportamento que atenda realmente às nossas próprias expectativas ou às do outro e que nos são das culturas quanto a obrigação de respeitá-las relativizam as culturas como patrimônios acidentalmente
permita, a nós mesmos e ao outro, que nos reconheçamos nessa forma como sendo nossa realidade comum. A adquiridos por grupos mais ou menos grandes e poderosos. Essa compreensão as considera como bolhas
dinâmica do julgamento que dá vida à criatividade da criação artística, tal como a da nossa vida mental e social, fechadas em si mesmas, que vivem apenas de consenso e rituais tribais, suficientes para proteger os indivíduos
é o que permite que essa busca por figuras de felicidade – própria à arte e à nossa própria vida – chegue em contra ataques de outras culturas e outros grupos. Na globalização do comércio de mercadorias e no comér-
algum lugar. Essa dinâmica é o que constitui a cultura, isto é, o conjunto de atitudes, estados de alma, ações, cio especulativo de ações da bolsa investidas pelos acionistas nas multinacionais, que constituem o horizonte
julgamentos, o que nos possibilita fazer da nossa vida uma cultura que chegue ao seu destino e nos permita dessas bolhas e desses refúgios culturais, as culturas surgem como experimentações de formas de vida que são
confirmadas ou anuladas pelo apoio consensual das comunidades que as trazem. Elas são, portanto, privadas
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de suas capacidades de expressar para todos o destino cultural universal de todos. Além disso, a compreensão dade artística qualificada de especialidade do “gênio”, tão misteriosa quanto a ocorrência do mundo cujo
recíproca que visa a produzir um diálogo intercultural unicamente preocupado em superar seus antagonis- caráter sublime é reconhecido precisamente como o que está além de todas as nossas expectativas e revela-se,
mos, obrigando cada um a respeitá-las formalmente, constitui a pior injustiça à qual essas culturas poderiam portanto, incomensurável em sua grandeza, infinidade e reprodução perpétua. E ela é tão misteriosa quanto
ser submetidas, uma vez que delas são retiradas de antemão a possibilidade de serem uma forma de felicidade o que atribuímos ao ser humano como sendo a propriedade que o distingue dos outros seres vivos: sua pro-
e de verdade para todos, uma forma de vida universal. Na verdade, são subtraídas delas mesmas o julgamento priedade de ser pensante.
pelo qual e ao qual seus portadores aderem, reconhecendo a figura de felicidade e de verdade que é a única a É assim que inventamos um mundo estético separado do que nos motiva a nele viver e percebê-lo; um
lhes permitir ser o que eles julgam dever ser. mundo separado do movimento pelo qual fazemos falar por meio de percepções auditivas, visuais, locomo-
Essa despotencialização radical das culturas é acompanhada de uma despotencialização da arte e do toras, táteis e de manipulação. Damos a esse mundo o horizonte de uma espécie de prosopopeia visual onde
julgamento estético. Desde a modernidade, o julgamento estético parece revelar a forma como a criatividade reunimos as percepções, as obras culturais, as formas de vida institucionais nos museus como se bastasse
artística é forma de vida. Esse julgamento oferece um modelo de sensibilização e realização da razão como pendurá-las à altura dos olhos para evitar ter de compreendê-las, nos compreendermos nelas e julgá-las como
faculdade de desejo superior. A arte aí supostamente apresenta a figuração do desejo e da felicidade que sendo ou não a nossa própria realidade. Imitamos assim as ciências humanas que nunca antes nos apresen-
chama irresistivelmente para si a identificação dos indivíduos que a produzem e nela reconhecem a beleza do taram tantas formas de vida, mas que são incapazes de nos fazer reconhecer as formas de vida nas quais nós
único fato de que essa figuração antecipa a satisfação que eles não podem deixar de desejar obter. A recepção nos reconheçamos como nós apresentando a nossa verdade, a nossa real humanidade.
dessa figura tanto pelo artista quanto pelos outros espectadores deve se impor sozinha, sem desvio de con- Mas esse mundo não pode mais ser reduzido à simples felicidade do olho senão no mundo em que vivemos,
ceito, simplesmente porque ela foi recebida e compreendida de forma gratificante, independentemente da pois ao suprimirmos do “museu” a musa que deu vida à reunião desses resultados suspensos, suprimimos a
sua instanciação na realidade ou na ação. nossa capacidade e a do mundo de falar. Novamente, reduzir o museu ao simples ato de pendurar coisas bo-
A transformação experimental e pragmática dessa cultura artística reside na maneira pela qual buscamos nos nitas à altura dos olhos depende da redução da vida do espírito a uma metáfora da visão, a uma teoria descri-
apropriarmos dessa criatividade, experimentando-a seguindo o modelo da experimentação científica. Como tiva do que nós produzimos como estética transcultural. O reconhecimento da dinâmica de diálogo interno
essa transformação pragmática da cultura da arte prolonga pura e simplesmente a transformação que foi de- tanto na percepção como na ação de criação artística não saberia, portanto, visar à construção de um museu
senvolvida pelos tempos modernos, sua neutralização exige a remoção dos limites desse modelo, que foram intelectual reduzido a esse museu do olho, à pura e simples descrição da existência do mundo transcultural.
herdados de uma filosofia da consciência. É essa própria experiência de produção e de recepção da figuração
artística que é vinculada hoje, como objeto de experiência e apropriação direta dos efeitos dessa experiência, O mundo-museu enquanto espaço de uma estética transcultural
às diferentes transformações pragmáticas da arte tal como se verifica com evidência através da evolução exem-
plar da pintura contemporânea, do impressionismo e do cubismo até a arte dita abstrata. Essa transformação Somente damos vida aos museus quando os inserimos no que o diálogo intercultural produziu
pode ser lida como uma adaptação do meio de figuração estética que visa ao prazer estético: a obra de arte é como museu universal: o próprio mundo. O mundo, todos os dias, relança a nossa caça às musas, recorre ao
bela se e somente se ela permitir gozar da experiência estética pelo simples fato de que nós a programamos reconhecimento da invenção das figuras de felicidade, incluindo a infelicidade, que afeta algumas culturas,
como tal, a percebemos como tal, e temos consciência de a perceber realmente como tal. nos faz sofrer com a falta. O mundo arranca essas figuras de felicidade do puro e simples deleite do belo
De igual maneira, a relação com a felicidade reduzida, como felicidade comum, na relação de sua reinserindo-as na percepção e na antecipação imaginativa das figuras da humanidade nas quais a pressão de
visibilização nas relações de justiça se encontra reduzida na arte do belo, quando neutralizamos seu valor cul- uma infelicidade universal nos incita a nos reconhecermos. A emergência da alterglobalização, à qual tanto
tural colecionando seus diversos resultados visíveis num museu vazio de todas as musas que lhe davam vida. contribuíram os encontros de Porto Alegre, é indissociável da crítica ao neoliberalismo feita pelos melhores
A relação de visibilização das figuras da felicidade e do seu prazer no julgamento estético é frequentemente economistas, tais como Joseph Stiglitz, e da formação dos Briks, que reuniram os países emergentes recente-
reduzida nos museus à sua pura recepção visual e aos esforços de compreensão hermenêutica do sentido do mente em Durban: esses fenômenos testemunham reinvestimento das expectativas de felicidade comum
qual seriam todos depositários e o qual seria necessário decodificar sem que se tenha as chaves para essa de- numa justiça social cosmopolita. O mundo como lugar de interação das figuras de felicidade que ele obriga
codificação. A dinâmica cultural da arte, da pesquisa e da apresentação das figuras de felicidade que norteiam a inventar e realizar se constrói assim como espaço de uma estética transcultural.
o diálogo de descoberta do mundo, do outro, e de si mesmo é pura e simplesmente neutralizada. Assim, os Não é necessário passar para o campo da geopolítica liberal ou antiliberal para notar a velocidade
patrimônios culturais surgem como incomensuráveis culturais: eles são respeitados e preservados como tais, com que televisão propaga as infelicidades ligadas ao desprezo às mulheres verificadas em algumas culturas.
como monumentos visíveis de incompreensibilidade para seus visitantes, como monumentos imemoriais, A dependência das mulheres em relação aos homens nos países mulçumanos, nos países que instituíram uma
descarregados de sua memória viva. poligamia que as humilha ou ainda nos países em que se multiplicam os estupros não somente despertou o
Essa neutralização é derivada da redução do prazer estético ao da percepção visual ou pictórica e apoio daquelas que há séculos lutam pela igualdade cívica e civil das mulheres e dos homens, não somente
da redução do uso da linguagem em seu uso descritivo e científico. Através dela, todo imaginário é pensado incentivou essas mulheres a se juntarem em associações multinacionais para a defesa de seus direitos, como
sob o modelo do imaginário visual e pictórico. Como o sentimento de deleite do belo natural ou artístico também obrigou a reconhecer os fundamentos antropológicos dessa igualdade: estabelecer a paridade de uso
é reduzido ao de uma surpresa reservada pelo mundo ou pela sensibilidade criadora, seus resultados são do julgamento confiado aos dois sexos em razão de seu uso comum da linguagem, e isto, quaisquer que sejam
supostamente, desde Kant e sua Crítica do Julgamento, universalizáveis como tais para todos, sem que seus idiomas. O reconhecimento do que inspira essas descobertas é tão importante quanto a que inspira o
saibamos porquê. Eles proporcionam uma gratificação estética tão misteriosa quanto o mistério da criativi- tratamento dos conflitos civilizacionais entre a Europa e as Américas. A publicação dos 34 volumes da ética
que reuniram a colaboração de intelectuais e universitários espanhóis, brasileiros, sul-americanos e mexica-
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nos é, nesse sentido, exemplar: ela quebra as correntes do passado de escravidão dos negros e dos homicídios infalivelmente de si mesma.
de índios sem contestar suas consequências ainda em vigor, mas transforma a análise do passado em exigên- Portanto, não é magicamente que nós nos livramos do “horror econômico”, assim chamado por
cias de justiça e felicidade social, em motivações de emancipação intelectual para o futuro. Viviane Forrester, contentando-se em denunciá-lo ou descrever sua lógica. Ainda é preciso conseguir intro-
Essas exigências de emancipação do julgamento em relação ao passado não nos isenta de promover duzir no seu desenvolvimento o que ele exclui de antemão, a intervenção de um julgamento de objetividade.
as exigências impostas pelo tempo presente. Não é menos urgente fazer esquecer, de uma vez por todas, as Este não tem somente que descrever os fatos do empobrecimento produzido, por exemplo, pelo investi-
falsas figuras da felicidade que invadiram o mundo sob a aparência das promessas de salvação populistas, mento de capital nos países de terceiro mundo, sua retirada arbitrária em boa hora, seguido de uma cura
nacional-socialistas ou soviéticas, no século 20, ou sob a aparência da economia de mercado liberal ou da de estabilização econômica imposta pelo Banco Mundial e pelo FMI com a ajuda da aplicação da receita
especulação gangrenosa do comércio de capitais. Há muito que a opinião pública internacional manifesta do Consenso de Washington: “liberalização da economia, seguida de privatização das empresas públicas,
recusa categórica em relação à injustiça secretada por essas falsas promessas, mas somos forçados a reconhecer seguida de austeridade imposta para reembolsar as dívidas”, é preciso poder inventar e julgar as intervenções
que as prescrições morais que acompanham essa recusa revelam-se incapazes de conter os efeitos. A utiliza- políticas, econômicas e industriais necessárias nos diferentes jogos do mercado para trazê-los de volta à razão,
ção dos museus de estilo clássico foi invocada, por exemplo, em Berlim, no Museu do Holocausto ou em quer dizer, ao exercício de um julgamento objetivo de equidade e a um exercício de julgamento partilhado
Caen, no Memorial da Segunda Guerra Mundial para superar essas catástrofes, mas há muito tempo esses por todos os parceiros sociais implicados, também analisado por Joseph Stiglitz em seu ensaio Globalização:
monumentos de memória revelaram-se insuficientes para impedirem a recaída nos excessos da barbárie que Como Dar Certo. Apenas se conseguirmos fazer funcionar o julgamento feito por todos sobre a estetização
denunciam. A percepção generalizada das infelicidades presentes exige que a antropologia intercultural nos econômica do mundo é que teremos uma chance de mandar o neoliberalismo para o calabouço de um mu-
dê acesso a esse esquecimento necessário retraçando a parasitagem das fontes de comunicação pelos mercados seu capaz de tornar visíveis suas extravagâncias passadas e fazê-lo esquecer-se.
que as fez surgir como únicas vias possíveis do progresso da humanidade rumo ao seu destino.
A confiança na equidade inerente ao mercado, à qual convidava Adam Smith, vinha, como se bem
sabe, da dinâmica da comunicação que exige que os interlocutores respeitem, em suas trocas, as relações de
reciprocidade que vivenciam no diálogo em seus acordos e desacordos. A parasitagem dessas relações é con-
cebida de forma muito incompleta quando a alegada justiça inerente ao mercado é feita sob “a mão invisível”
do mercado. Ela deriva de um engodo mais profundo. Como fenômeno de secularização da salvação, ela her-
da, tal como revelado por Max Weber, as expectativas de retribuição do sagrado, análogas às que inspiravam
os candidatos protestantes à predestinação para a salvação. Porém, ainda mais profundamente, esse engodo
é depositário das chamadas e respostas de felicidade inerentes ao uso das emissões de sons e suas recepções
na medida em que a emissão-recepção de sons gratifica infalivelmente a si mesma, em si mesma, pois aquele
que o emite – a criança que balbucia – não pode distinguir o som ouvido do som emitido quando o projeta
para o mundo e o consome num mesmo movimento. É essa a dinâmica de uma chamada de felicidade que
gratifica simultânea e infalivelmente a si mesma, que se projeta na relação de trocas do mercado para fazer
ter a experiência como uma figura de felicidade que satisfaz infalivelmente a si mesma de forma imparcial.
É como relação indefectível de encarnação da justiça que essa relação faz gozar de si mesma como relação
que somente incentiva a se tornar mais intensa e garantida ao reinvestir os lucros no capital da empresa. Essa
relação de justiça na troca do mercado não é simplesmente análoga à relação de diálogo e concebida sob o
modelo desta; ela é a relação do próprio diálogo o qual supostamente se aplica infalivelmente ao comércio de
riquezas e, em seguida, ao comércio de ações, à troca das operações do trabalho contra sua retribuição salarial
da maneira pela qual já se aplica ao comércio econômico das riquezas. É como gratificação comunicacio-
nal que não tem mais a necessidade de passar pelos meandros de um conceito senão o julgamento estético
kantiano, quer lembre o deleite estético kantiano, quer inspire também a experimentação contemporânea
da arte tal como inspira a experimentação pragmática do consenso democrático. É como tal que ele próprio
se experimenta na especulação financeira sobre as ações das empresas, nas especulações sobre o comércio
bancário dos capitais bem como nesta que aborda as moedas nacionais dos Estados-nações ou na que pro-
lifera em ações imobiliárias. Garantidas por essa consciência de justificabilidade inerente à essa relação de
comunicação dos indivíduos e dos grupos com o mundo social, essa estetização econômica do mundo social
está, antes de tudo, acima das leis. Quer seja bem-sucedida ou malsucedida, ela é, antes de tudo, gratificada
e feliz, uma vez que ela é apenas uma prova da liberdade autárcica por si mesma, que se dedica assim a gozar
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Transculturalidade Estética: Experimentação Pragmática


da Arte e da Arquitetura

DINAH GUIMARAENS
Prof. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense, Coordenadora CAPES-Cofecub n. 752/12.

“A universidade se universaliza necessariamente dentro de um horizonte


de experimentação do homem pela comunicação, ao se reconhecer como forma
dada de toda comunicação (...) de seu ser teórico através de um processo de
experimentação dela mesma que é submetido a este julgamento de verdade”.
(Poulain, 1998)

Em eventos realizados, entre 2012 e 2015, no bojo do projeto de pesquisa


“A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana”, na Universidade de Par-
is 8-Saint-Denis, na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO, integrados pelos professores Dinah Guimaraens,
Guilherme Werlang, Charles Feitosa, Zeca Ligiéro e Tiago de Oliveira Pinto do lado
brasileiro, e Jacques Poulain, Bruno Cany, Irma Medoux, Plínio Prado Junior e Phillipe
Tancelin do lado francês, tivemos a oportunidade de discutir questões sobre a reformu-
lação ético-política do pensamento da imagem, passando à experimentação pragmática
da arte e da estética expressa em uma filosofia transcultural conceituada por Jacques
Poulain.
A tese apresentada pelo Professor Bruno Cany, durante estes eventos, foi que a
modernidade do pensamento-artista é o pensamento visual como crítica à sociedade do
espetáculo, totalmente comunicacional e consumista. A imagem poética tem a vanta-
gem de não ser prisioneira da esfera técnica e o pensamento-artista não reduz o pensa-
mento ao conceito e à lógica, na medida em que este emprega a polissemia, os símbolos
e as narrativas para criar a linguagem artística. Enfatiza Cany a relevância da pintura
metafísica de Giorgio de Chirico, ao destacar a reversão da música à imagem. A pintura
metafísica é, então, contemporânea da pintura pura ao recusar os limites da metáfora
musical.
O pensamento visual, que vê além da presença do visível, apreende a presença
ausente do invisível. E ao articular o ver-tocar-à-distância à palavra-matéria-sonora, a
imagem poética literária detém um considerável poder-aglomerante de objetivação para
criar o “teatro da mente”. A poesia é um universal indeterminado, afirma ainda Bruno
Cany. O que é comum tanto para o artista-filósofo clássico (Platão e Nietzsche) quanto
para o filósofo-artista moderno (De Chirico e Artaud), é o teatro da mente do pensa-
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

mento visual através da etnopoética, além dessas criações (De Chirico, Artaud) que se verificam constituir por que as mudanças na vida social e cultural na América Latina levaram alguns países a buscar identidades
um universal antropológico. Pensar a poesia ao nível mundial e no contexto de uma antropologia filosófica nativas e africanas, embora seus métodos de ensino não houvessem seguido tal tendência nos currículos
comporta, portanto, a criação poética em sua finalidade ético-política. mantendo, ao contrário, uma base essencialmente eurocêntrica. O objetivo do NEPAA, nos últimos 15 anos
consiste, portanto, no processo de ensino e aprendizagem do teatro com a análise da história das escolas de
Poética Ético-Política Filosófica em Música, Literatura e Teatro teatro no Brasil, tendo como base a Escola de Arte Dramática (Escola de Teatro) da UNIRIO.
Como educador, a pergunta feita por Ligiéro é esta: “Por que, apesar do conhecimento brasileiro
Em sua crítica literária, Charles Feitosa estabelece um diálogo filosófico sobre a transculturalidade haver sido estabelecido em torno de três grupos étnicos: índios, europeus e africanos, as escolas (e as univer-
da cultura brasileira, tendo como inspiração a música dos Titãs para se referir às supostas formas brasileiras de sidades) foram criadas simplesmente tomando como base uma dessas três tradições?” Tal conhecimento se
niilismo. Música e literatura são vasos comunicantes na cultura brasileira niilista, como revelado no poema adéqua a nossa tradição e muda através da história do Brasil com as lutas de artistas e professores quanto às
“Não-Nada” que foi inspirado pelo “Nonada” inventado pelo escritor Guimarães Rosa. O termo “Nonada”, crescentes exigências do poder público. Ligiéro acredita que um bom exemplo dessas mudanças educativo-
que abre o Grande Sertão (Diadorim, na versão francesa), é de extrema importância para o significado do culturais reside na luta entre os métodos tradicionais do teatro burguês e outros tipos de teatro experimental,
romance e se tornou apenas “nada” na tradução inglesa. Curt Meyer Clason, famoso tradutor da edição em circunstâncias idênticas à significação dos restos de pequenas tradições africanas e indígenas americanas.
alemã, considera este termo intraduzível, um dos “oito mil neologismos de Rosa” e, assim, o transformou A lógica eurocêntrica partilhada pelo sistema escolar brasileiro vem sendo então criticada pelo
em quatro palavras, em uma frase principal composta por quatro sílabas para tentar manter o impacto: “Hat NEPAA por representar um modelo das pretensões hegemônicas estatais brasileiras no domínio cultural e
sich auf nichts”, onde “Nonada” é o que não importa e que, literalmente, não tem nada nele. Feitosa não está educacional. A propósito, três formas de erro escolástico foram destacadas por Bourdieu (1997), os quais
sugerindo, em seu texto, que Rosa é um niilista, mas pelo contrário, emprega a apropriação de um de seus criam uma escola autômata como produto da constituição (e do próprio esquecimento) das restrições do
“brasileirismos” como uma espécie de emblema para a pergunta: existe um niilismo à brasileira? meio acadêmico com sua finalidade de conhecimento, onde a ciência estabelece o fim da ética (da lei e da
Na apresentação do livro de Phillipe Tancelin Quando o Caminho Retorna à Luta (Poesia e Filosofia) política) e da estética enquanto áreas de atuação a serem incorporadas aos campos de dissociação da filosofia.
(2005), Jacques Poulain pretende remeter “a palavra às suas fontes: uma poética filosófica de resistência” ao fa- Discorre Bourdieu, ainda, sobre o etnocentrismo escolástico que anula a especificidade da lógica prática,
lar sobre o Centro Internacional de Criação de Espaços Poéticos (CICEP), coordenado pelo próprio Tancelin quando se deve reenviá-la de volta à lógica escolástica onde a alteridade radical, a não-existência e o não-valor
e que trata do encontro da poesia com as outras artes. Poulain sublinha ali os aforismos poéticos e filosóficos do bárbaro como vulgar - como salientado na noção kantiana de “gosto bárbaro”-, acaba conduzindo a um
que capturam o espírito intransigente das linhas de resistência desenhadas com ardor, mas com paciência, ao “bárbaro interior”.
longo de 35 anos de experimentação poética e teatral, engendradas juntamente com Geneviève Clancy. A lógica da globalização parece se afirmar, opondo-se a um “gosto bárbaro”, a partir de um consenso
De forma a alcançar uma visão filosófica sobre a única realidade que o homem pode viver no contexto de igualdade cultural universal. Na realidade, a desigualdade cosmopolita entre as culturas, orquestrada pela
deste mundo, - onde a intolerância, sob a denominação de liberalismo imposta pela lei da selva no mundo globalização, depende da reivindicação hegemônica à verdade. Jacques Poulain destaca a primitivização das
político produz seu oposto: a monopolização e a privatização frenética sob a denominação enganosa de global- diversas culturas, onde a identificação com o consenso cultural reproduz a identificação dinâmica das socie-
ização -, Jacques Poulain opõe o hedonismo poético e a alegria do consumo da verdade poética, anexando-os dades arcaicas à palavra dos deuses. A maior injustiça social gerada pela globalização parece produzir o maior
ao exercício do reconhecimento da crítica próprio do julgamento filosófico. O CICEP representa então, para bem, a emancipação intelectual e cultural forçada de povos e indivíduos no que diz respeito às suas condições
Poulain, uma utopia política que só expõe a dinâmica do discurso que anima, na medida em que anima materiais de existência e sua disposição para o consumo. O resultado deste aparente consenso de igualdade
todo o mundo na dinâmica do diálogo de compartilhamento da verdade. Aos aforismos poéticos de Tancelin da globalização cultural representa a auto-falsificação da antropologia liberal na globalização, simbolizando a
junta ele reflexões filosóficas sobre as experimentações da pragmática artística através das quais buscou, na incapacidade das democracias nas chamadas culturas avançadas de justificar a fundação de seu poder sócio-
verdade, restaurar em cada um a capacidade de perceber esta realidade como realidade insuperável. político sobre um conhecimento antropológico universalizado. (Poulain, 2001)
Para obter tal resultado, devem-se unir os mais fortes prazeres poéticos numa crítica implacável,
removendo o transe autista e substituindo seu próprio transe pelo transe da verdade poética. Jacques Poulain Lógica da Globalização e Abordagem Transcultural Universitária
destaca que o transe autista da pragmática artística cria performances de “autismo chamânico” como ex-
pressão do fracasso da democracia liberal, o que, portanto, faz com que cada autista possa se dedicar a negar, Na sequência da reivindicação ilegítima de consenso cultural sublinhada por Poulain contra os afro-
para si mesmo, o poder criativo e crítico de seu próprio discurso em seu próprio pensamento, não desfru- brasileiros e os nativos americanos, Zeca Ligiéro acrescenta críticas à hegemonia européia nos conteúdos dos
tando de si mesmo a não ser nessa mesma negação. A transculturalidade estética proposta pelo CICEP, com currículos da universidade brasileira. Se esta experimentação humana cognitiva no diálogo intercultural pode
a reunião da poesia às outras artes, simboliza uma “estética do coletivo” com a criação coletiva a partir dos muito bem acompanhar a experimentação sócio-política defendida pela generalização do capitalismo, a ex-
anos 70 que ilustra este “estar junto”, que é o seu fruto. A imagem deve nos fazer refletir, finalmente, sobre periência de consenso cultural não pode magicamente superar a guerra cultural desencadeada pela consciência
os desejos íntimos daquilo que Brecht chamou de Teatro, remetendo a uma nova compreensão e ao desejo da injustiça econômica e social. (Poulain, in op. cit. p. 20). Desta forma, a identidade europeia no mercado
de apreensão sensível do significado de “viver junto dos homens”, como sugere Poulain. mundial, as multinacionais e as democracias deliberativas simplesmente reproduzem a postulação republi-
Zeca Ligiéro foi o criador, em 1998, do NEPAA (Núcleo de Estudos das Performances Afro-Amerín- cana de igualdade civil e são também incapazes de estabelecer uma igualdade transcultural de julgamento na
dias), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO, com o objetivo principal de entender república cosmopolita do diálogo.
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Se uma abordagem transcultural universitária opõe ao comparativismo com a cultura europeia a ne- mesmos e no diálogo com os outros constitui a própria hermenêutica filosófica.
cessidade de uma transdisciplinaridade acadêmica, Tiago de Oliveira Pinto mostra que a audição representou A linguagem responde a uma utilização comunicacional, na medida em que aumenta a verdade como
o último dos cinco sentidos, em grau de importância, para os habitantes europeus que queriam experimentar fenomenologia da comunicação e que representa a conversa livre, a qual é a projeção da força transcendental
algo do universo sensorial tropical. Quando voltaram eles para seus países de origem, os viajantes da Europa do diálogo no mundo e na vida social. Esta força transcendental é aquela que Kant esperava da demonstração
nos trópicos trouxeram com eles curiosos objetos, imagens e desenhos, - e, mais tarde, fotografias - de regiões filosófica. A sabedoria pragmática de Richard Rorty instituiu uma antropologia da comunicação como lugar
distantes, ao lado de relatos de locais fantásticos, cheiros, gostos e até mesmo equipamentos que ofereciam de solidariedade para estabelecer que a verdade que emerge do debate livre representa tanto a solidariedade
novas experiências táteis, mas nunca seus respectivos sons. Em vez disso, para se concretizar de fato uma in- quanto a norma imanente à prática social da comunicação. A filosofia deve, assim, abandonar o mito da ver-
venção tecnológica era necessário preservar elementos do universo “ex-acústico”, como no caso do fonógrafo dade que emerge do confronto de duas esferas do conhecimento - a ordem do discurso e a ordem dos fatos
de Edison, de 1877. - para alcançar uma concepção interdiscursiva e dialógica (Poulain e Medoux, 2012).
A tecnologia europeia foi desenvolvida até o ponto de poder dar conta da gravação contemporânea Se o personagem dialógico pós-moderno não é solipsista, sua lógica não é a da dialética, mas aquela
dos componentes musicais de sons dos índios norte-americanos. A intervenção de Guilherme Werlang fala da multiplicidade, porque a pluralidade pronominalizada do personagem pós-moderno é aquela de um
sobre os indígenas amazônicos Marubo, com um breve relato de Ivãpa (Vicente) sobre o mito-canto Saiti- pensamento que dialoga consigo mesmo (Cany, 2008, p. 8). Logrando talvez inspirar uma reflexão crítica
Mokanawa Wenía, - literalmente “O surgimento dos povos tóxico-amargos”-, revelando que foi este ritual sobre o Brasil contemporâneo, Medoux (2011) reflete sobre o ressurgimento do pensamento crítico na África
feito sem o contexto de um festival real, mas sim com a intenção deliberada de salvá-lo. O pesquisador pós-moderna, com destaque para as questões de gênero entre homens e mulheres, onde tudo se passa como
sentou-se em uma tapo-cabana perto da shovo-maloca, na comunidade Marubo de Vida Nova, no Alto Rio se os sintomas de falibilidade do modernismo que afetam a África deveriam ser lidos como um abandono da
Ituí, no Vale do Rio Javari, na Amazônia ocidental, em um quente meio-dia de abril de 1998. razão. Na verdade, a diferenciação entre as tradições africanas e o fracasso de sua adaptação à modernidade,
A conclusão da pesquisa é que o tom e a duração são códigos homólogos que dividem as células denominada modernização, foi inspirada pelas ciências humanas neoliberais que pregaram uma paridade
musicais em frases e aquelas frases formam lacunas nas melodias e ritmos sucessivos no tempo, estabelecendo civil e cívica de gênero e acabaram por estabelecer um processo de diáspora interna que pode ser lido como
espacialmente estruturas concêntricas e diádicas no caso de Mokanawa Wenía. Embora nem todos Saiti se- uma nova apartheid entre homens e mulheres na África.
jam estruturas diádicas, essa função de estruturação das características de tonalidade e a duração de todas as Os problemas de corrupção de seus líderes, o combate e a proliferação do etnocídio, a fome e a
canções-mitos, do mesmo modo que as palavras que correspondem a essas notas musicais e aos intervalos nos AIDS tribal, paralelos à especulação financeira que a Europa enfrenta, do mesmo modo que a América do
quais pulsam as frases são sempre estruturadas em células compostas por versos de linhas verbais em sucessão, Norte e a América do Sul acabam produzindo pobres e excluídos nos chamados países ricos. Esta divisão
através do qual a história mítica é contada poeticamente, com o uso de rimas e estrofes paralelas. entre as elites e as massas acompanha os efeitos da globalização econômica, a qual é conduzida como um
Sobre o significado simbólico e filosófico da poesia Saiti, o índio filósofo-artista-sul-americano não experimento neoliberal contemporâneo do ser humano (Poulain, 1998). Como Lyotard sugeriu, o homem
é meramente um criador de conceitos, mas, sobretudo o criador da linguagem que traz à tona este pensa- pós-moderno deveria ter um novo vocabulário para recontar, em termos históricos, a história do mundo,
mento mítico, bem como o criador da forma singular pelo qual o pensamento mítico organiza as palavras. abandonando uma perspectiva narrativa pragmática que legitimou uma história universal e que acabou por
Bruno Cany, no prefácio do livro Que Pintura?, de Lyotard (2008), afirma que a literatura constitui o topo aniquilar as diferenças culturais, promovendo em seu lugar um sujeito moderno cínico.
desta filosofia da solidão, que desde Kierkegaard e Nietzsche, foi capaz de traçar os trilhos da arte literária. Inspirando-se em Lyotard se pode falar de pequenas histórias de afro-brasileiros e americanos nati-
A perspectiva musical, apresentada por Cany na pintura, é transcultural e simboliza “o amor de solilóquio vos no Brasil e refletir sobre a África como um modelo político colonial semelhante e um espelho social pós-
do pensamento e da expressão, este desejo infinito da discussão com outras pessoas que Lyotard nomeou Le moderno. Na África, como no Brasil, os grupos locais são negados pelos modos de legitimação das culturas
Différend” (Cany, in op. cit., p. 7) e que aparece no mito-canto Marubo. Como o mito-canto Mokanawa particulares que pretendem conduzir as comunidades “selvagens” a se transformarem em uma sociedade de
Wenía que é polifônico, o pensamento do artista não se refugia na abstração conceitual, mas sim assume seu cidadãos. O indígena surge, então, como o não-sujeito da era colonial que designa o “autócne” como qual-
fraseado – sua sinuosidade sintática - e seu dispositivo dialógico duplo: os personagens interagem uns com quer coisa que possa ser aceita na sociedade africana (Mbembe, 1988). O princípio autoritário impresso hoje
os outros e o próprio leitor pode, então, interagir com o autor. pelo Estado em sua empresa de modernização da sociedade africana gera ações e formas de conhecimento, a
Na arte da polifonia, como na arte da fuga do pensamento, se junta o domínio da polifonia e do fim de se fazer representar como titular do monopólio da verdade (Fogou, 2011).
contraponto, como salientou Cany. Na polifonia, seja com duas ou mais vozes, os papéis de entrevistador e A resposta adequada da África pós-moderna reside em estabelecer um diálogo crítico com as comu-
entrevistado se modificam, deslizam e se invertem tantas vezes quantas sejam necessárias para a implantação nidades não africanas compostas por europeus, americanos ou habitantes do Oriente Médio e do Extremo
da composição. Já no contraponto, na medida em que os papéis dialéticos desaparecem, o questionador é Oriente. É através da experiência da cegueira, da instrumentalização e da manipulação do alegado consenso
menos propulsor que questionador de suas próprias questões, em contraponto aos padrões do respondente democrático que os colonos partilham sobre a modernidade que sua própria objetividade será garantida.
(Cany, in op. cit., p. 7). Heidegger considerava a linguagem como casa do ser e o Dasein (ser aí) como um Neste diálogo crítico, resta aos universitários analisar as comunidades da diáspora na América do Norte e na
pastor do ser. Pretendia ele estabelecer uma estrutura autocompreensível e pré-compreensível do Dasein, a América do Sul sem cair na impotência e em certa consciência trágica de sua decadência, nem se sentirem
partir da qual este ser aí se identifica com sua verdade de enunciação e de ser pensante. A comunicação per- incapazes de nada nelas poder alterar. Tanto no Brasil quanto na África pode-se, finalmente abandonar, em
mite reconhecer uma realidade comum e uma verdade do sujeito da enunciação que representam também uma perspectiva pós-moderna, formas obsoletas de pensar a democracia e o progresso como uma falha do
aquelas de seu ouvinte. Essa natureza comum do diálogo que os interlocutores assumem no diálogo com eles destino (Medoux, 2011).
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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toda faculdade criadora das artes plásticas no século XX, em um “horizonte de neutralização generalizada da
Cultura da Forma e Estéticas de Percepção da Imagem e do Ser psique, como gênese da neutralização da criatividade pictórica e estética”? (Poulain, 2002, p. 21).
A transição do mundo real, nas artes visuais, decorre do papel fundamental desempenhado pela
A experimentação transcultural se dá através da relação entre a imagem e o ser enquanto estru- atividade criadora do olho como órgão que estabelece um espaço comum para a arquitetura, a escultura e a
tura social no espaço-tempo, definindo diferentes práticas artísticas como arquitetura, artes visuais, pintura, pintura artística. O essencial entre as três artes da arquitetura, escultura e pintura encontra-se no elemento
escultura, literatura, música, dança e teatro / performance. Dinah Guimaraens trata da especificidade da que Hildebrand chama de impressões “arquitetônicas” e que representa a confluência da verticalidade, da
arquitetura baseada na imagética, devendo-se conceituar suas formulações teóricas (apresentações orais) em horizontalidade e da profundidade como lei geral que constitui o espaço de composição. Sobre a percepção
termos de suas configurações espaciais (expressões plásticas ou visuais) para pensar o objeto da arquitetura visual, pode-se estabelecer uma conexão com o mundo para responder à pergunta: o que é (re) apresentado
como um todo e sua apreciação na dimensão artística. A concepção do projeto arquitetônico se refere a uma pela imagem (real ou imaginária)? (Cany, 2008, p. 47-48). A resposta clássica é que o plano da consciên-
atividade onde a notação gráfica aparece como um modo de discurso, ou seja, o discurso de um estilo poé- cia gráfica é que formaliza e a resposta tradicional afirma que é o plano do inconsciente que se materializa
tico que simboliza um dos quatro níveis de precisão propostos por Aristóteles: poética, retórica, dialética e (Bachelard, 1979), enquanto a resposta filosófica diz que é o nível de consciência abstrata que conceitua. A
analítica. conclusão de Cany é que a visão que pensa, ou o pensamento que vê e pode, assim, enxergar para além da
Caracteriza-se tal discurso poético como sendo parte da imagem onde o gosto de hábitos convencio- presença do visível.
nais se afirma como forma de ser que deve ser aceita como verdadeira temporariamente, ocasionando desta A imagem poética é a palavra como imagem do assombro invisível (Cany, in op. cit., p. 49). Se o
maneira a suspensão da descrença sobre a realidade imagética. A arquitetura de um Museu Vivo implantada cinema iniciou uma revolução antropológica e civilizacional, a imagem poética tem a vantagem de não estar
como protótipo bioclimático no Campus da Praia Vermelha/UFF em 2014 é, então, experimentada em sua presa na esfera técnica. Atualmente nos encontramos em uma inevitável encruzilhada, onde a máquina é
dimensão estética e construída em sua dimensão funcional e tecnológica. Vista como um todo a arquitetura tratada como um anátema a uma situação de desumanidade e de ruptura com qualquer tipo de projeto ético.
é um ambiente onde as relações sociais se tornam possíveis e se espacializam e o pensamento visual adota ali A reação à idade maquínica de maneira a recomeçar novamente, não apenas a partir de uma territorialidade
conceitos de uma imaginação interativa e de uma concepção figural para reiterar sua rejeição a qualquer di- primitiva ou de um modo de pensamento “animista”, somente torna-se posível se consideramos que a inter-
cotomia entre a concepção do projeto e a gravação da imagem figurativa. Em outras palavras, a notação gráfica face maquínica não existe enquanto eliminação da alma anima, humana ou animal, mas sob uma ordem de
empregada para desenhar diagramas e croquis é entendida como sendo fundamental para a concepção do proto-subjetividade que permite que se imprima uma função de coerência na máquina, tanto em relação a
projeto (Arnheim, 1995). O projeto do Museu Vivo almeja alcançar uma lógica dialógica ao mesclar técnicas ela mesma quanto em uma relação de alteridade com o ser humano (Guattari, 1993).
construtivas tradicionais artesanais e conceitos projetuais digitais, estabelecendo uma prática colaborativa en- Se nosso horizonte ético-político não é outro que a crítica da sociedade do espetáculo, do todo
tre indígenas Guarani, do Alto Xingu (Kamayurá, Aweti e Yawalapiti) e da Aldeia Maracanã/RJ com o corpo comunicativo e consumista (Cany, 2012) pode-se, então, detectar um viés ético e político na representação
docente, técnico e discente da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. do espaço-cinema e das artes visuais, onde as imagens neossequenciais assumem tanto a forma de imagens
Da mesma forma, uma maloca em estilo indígena tradicional, contando com as devidas adaptações estáticas como a de imagens em movimento (desenhos, fotografias, stills de filmes, pinturas de pop arte,
para o aperfeiçoamento do ensino médio, abriga hoje a Escola Transcultural SHAKO MAI no Alto Javari, hiperrealismo de um lado, e imagens em movimento e televisão de outro). A questão aqui é: “há tantos
Amazonas, construída, entre 2013 e 2015, em um local de fácil acesso às treze comunidades Marubo do Rio estatutos de imagem quanto proliferam as imagens no mercado?” Daí a dificuldade do discurso crítico se
Ituí, na Aldeia de Vida Nova, que dispõe também de uma pequena pista de pouso. Foi esta proposta por basear apenas em obras-primas da arte, com seus valores universais que podem representar uma espécie de
Guilherme Werlang visando fortalecer o conhecimento cultural indígena a ponto de permiti-lo vigorar em evolucionismo pictórico (Schneiter, 1981, p. 3).
contextos urbanos. Tendo como intenção capacitar os povos indígenas a representarem a si mesmos, mesmo
após deixarem a floresta, o projeto assume que a possibilidade de prosseguir nos estudos e o acesso à univer- Arquitetura Incomensurável e Neoecletismo Pós-Moderno
sidade representam um apoio eficiente para a autosustentabilidade indígena, pois assim representantes dos
seus interesses receberão formação educacional. A arquitetura moderna de Oscar Niemeyer incorpora posturas barrocas ao funcionalismo de Le Cor-
Presume-se que a transculturalidade estética inclua desde propostas de experimentações universitárias busier. A presença de uma corrente de influência barroca luso-brasileira na obra de Niemeyer é caracterizada
como estas até um diálogo entre os campos artísticos. pelo uso de elementos de linhas curvas e de forma livre (Underwood, 1992), tal como ocorre com a colunata
Jacques Poulain fala sobre a existência de uma cultura da forma nas artes visuais e estéticas de percepção, ao do Palácio da Alvorada (1956-1958), em Brasília. Estas colunas foram inspiradas em redes estendidas ou em
interpretar a famosa frase de Leonardo da Vinci: “Nós não pintamos com a mão, mas com a cabeça” (Poulain, velas de barcos e se tornaram ícones do poder político federal, tendo seus elementos construtivos caído no
2002, p. 7), no prefácio do livro de Adolf Hildebrand. Hildebrand é um teórico de arte e escultor alemão gosto popular e sido copiados em fôrmas de gesso, dispostos maciçamente como decoração nas fachadas das
que ilustra a teoria filosófica de Poulain (2001) sobre a dinâmica da comunicação e a harmonização do som, casas das classes trabalhadoras em todo o país.
com base na ideia do nascimento da psicologia da forma e do renascimento da antropologia herderiana da Outros elementos absorvidos das obras estéticas e funcionais de Le Corbusier por Niemeyer foram o telhado
linguagem. A antropobiologia de A. Gehlen e F. Kainz mostra que a dinâmica da recusa em se deixar falar esta- plano e o telhado “borboleta” (teto em “v”, com uma calha central, onde a água da chuva é drenada), de-
belece as formas denominadas de impressionistas, as quais são criticadas por Hildebrand. Será que tais formas rivadas da estética das máquinas-de-morar modernistas (Guimaraens & Cavalcanti, 2006). O pós-modernis-
impressionistas poderiam chegar, em caso extremo, a destruir a faculdade estética da percepção e, desta forma, mo foi definido como uma continuidade / ruptura com a modernidade (Jameson, 2004). Baudelaire (2010)
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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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fala da transitoriedade do mundo moderno com foco no papel de espectador, enquanto Marshall Berman Rem Koolhaus e pelo OMA-Office for Metropolitan Architecture (Jameson, in op. cit., p. 201-202).
(1986) define o ser moderno como pertencendo a um ambiente de aventura, poder, crescimento, alegria,
autotransformação e transformação das coisas ao redor, mas que ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o Conclusão: Paisagens Urbanas de Giogio de Chirico
que temos, tudo o que sabemos e tudo o que somos.
O arquiteto pós-moderno voltou a viver um novo ecletismo típico do século XIX, com as correntes As paisagens urbanas foram desenhadas por obras arquitetônicas que representam o teatro desde os
de retorno ao historicismo que revivem o passado e olham para trás para zombar da alta tecnologia. Este tempos antigos. Vitruvius descreve três cenários correspondentes a cenas de teatro urbano: o trágico, o cômi-
é o esteticismo extremo da desconstrução como tentativa de dar autonomia ao repertório moderno, com a co e o satírico. Estes ambientes são modelos paradigmáticos da Renascença, onde dramas foram organizados
desmaterialização da arquitetura formal. Tal neoecletismo pode ser um prenúncio de um novo discurso que diariamente em áreas urbanas e rurais. Os espaços urbanos projetados por Alberti estabelecem ligações com
inclui a arquitetura em toda a sua complexidade, liberando seu apego estético e representando, então, outra um teatro imaginário, onde foram realizadas cenas cômicas nas ruas, em curvas sinuosas, enquanto as cenas
grande narrativa como foi aquela do movimento moderno. Constituiria então o moderno - e, portanto, trágicas foram feitas em cidades nobres de plano normal, contando com a limpeza de ruas pavimentadas com
também o pós-moderno -, uma ruptura com todos os elementos estéticos acima apontados? fachadas de altura idêntica e constante (Schulz, 2008, p. 79-81).
A consciência pós-moderna pode se juntar à grande aventura da nova tradição moderna, apagando O teatro-enunciação de Beckett e o teatro-absoluto de Artaud, onde a história se torna teatro e o
as barreiras entre os últimos motivos estéticos e não-estéticos. A questão aqui é se a produção artística pode mito se torna história (Guattari, 2012, p. 183), fala sobre uma nova territorialidade enquanto código de
voltar sua transmissão para uma atividade estética desinteressada, ao contrário da vanguarda modernista produção final da territorialidade e da vontade de poder, possibilitada pela produção de sinais de efeito de re-
inventada pelos surrealistas, a qual acarretou tal distância da arte que acabou conduzindo à deterioração incidência no sentido linearizado, onde o signo linguístico recuperou o inapropriado. O audiovisual é, assim,
artística e à política dos intelectuais. Este retorno às concepções clássicas de beleza representa uma volta à a normalização e a consumação do fantasmático. Ao contrário da fantasmática dos meios de comunicação
estética modernista, tal como foi definido por Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna (2010:1863). audiovisuais, a pintura metafísica (1909-1919) de Giorgio de Chirico é contemporânea à pintura pura de
A operação crítica aqui descrita representa, então, a separação entre o novo e o presente, indicando Paul Klee, pintor-músico que explora os limites da metáfora musical, para finalmente recusá-la. De Chirico
o primeiro verdadeiro momento de modernidade para Baudelaire. O poeta-crítico descreve a arte moderna afirma que a crítica antropológica do estilo musical de pensar é o que desenvolve o seu próprio modelo de
real que combina a realidade fugaz do momento histórico com certo grau de compromisso com o mundo visualidade. A pintura metafísica constrói imagens de um ritmo além do visível e uma lógica de vida univer-
eterno e imutável de forma, assumindo assim o poder de extrair a transição eterna. Com a delineação desta sal, incorporando um retorno ao classicismo mesclado ao modernismo surrealista.
desconexão entre o presente e o novo, podem-se demarcar os estágios de decomposição de um modernismo De Chirico lança um novo pensamento crítico ao modelo antropológico visual da modernidade,
inautêntico, não comprometido com o moderno clássico, enquanto a modernidade de Baudelaire é uma re- com a busca de um modelo semiótico onde ocorre a solução simbólica para o seu imaginário poético e
alização de certa presença do antes dentro do mundo e de um futuro que quer reinstalar o valor desacreditado metafísico. Constrói ele esta imagética pela negação da unidade do tempo, superando a velha antinomia da
do progresso burguês na estética. pintura moderna com a pintura de cidades metafísicas da Itália e das arcadas reminiscentes da arquitetura
Baudelaire (2010) conceitua o pensamento moderno baseado na imagética ao afirmar que é o pensa- clássica (Chalumeau, 2009). Pela revelação da pintura metafísica, de Chirico descobre a essência da arte pura
mento abstrato que se desenvolve filosoficamente. Já a metáfora surrealista indica uma maneira diferente de inspirada pelo uso da faculdade transcendental da sensibilidade, onde o exercício do puro poder de sentir é
pensar, contendo um retrovisor, um pensamento e uma visão da metáfora como imagem do pensamento ab- desfrutado a partir desse privilégio da fruição estética, como descreveu Kant (Bourdieu, 2007, p. 89-90).
strato (Cany, 2012). O encontrado (trouvé) na obra do arquiteto contemporâneo surrealista norte-americano Tal fruição estética resulta de dois elementos: o primeiro refere-se à autonomia do campo artístico, livre de
Frank O. Gehry revela um novo método de projeto em arquitetura inspirado no método crítico-paranóico restrições econômicas e políticas, a qual é guiada pelos padrões da arte pela arte; e o segundo trata da ocupa-
de Salvador Dalí, que pode trazer à tona aspectos irracionais através de um procedimento técnico e criativo ção do espectador no mundo social, no qual as posições em que o fornecimento de disposição pura é capaz
razoável. de dar livre curso ao puro prazer (ou a estética) são estabelecidas principalmente pela família e pela educação
A maioria das obras de Gehry começa com uma escrita automática dos croquis para realizar esboços escolástica. Então, para transpor sua percepção metafísica na composição de um espaço visual, o pintor vai
rápidos e livres, obtidos através da intuição e modelados em modelos formais. Os conceitos formais e es- tentar combinar o classicismo da arquitetura antiga com a audaciosa modernidade futurista dos primeiros
paciais da arquitetura pós-moderna, inspirados pelo surrealismo, pelo high-tech e pelo desconstrutivismo, anos do século XX.
ilustram uma correspondência expressiva alegórica ou simbólica, deixando-nos com o sabor de uma espécie A ideia da obra de arte como enigma impossível de ser resolvido está presente no projeto de arte
de nova natureza dessas formas não-específicas de caráter antinatural-corbuseanas. metafísica de Chirico. A inquietante luz da noite é propícia para a revelação das paisagens de aspecto metafísi-
Os edifícios projetados com essas premissas conduzem, espacial e esteticamente, a uma espécie de co que de repente as coisas podem assumir enquanto os personagens humanos assumem a forma de modelos
metamorfose das categorias do modelo modernista formal, através da incorporação da dualidade do seu inte- e de assemblages cubistas (Chalumeau, in op. cit.). Se a vanguarda modernista pode ser representada pela
rior e do seu exterior. A forma dessa arquitetura “incomensurável”, incorporada ao sentido formal pelo pro- inspiração surrealista e metafísica do pintor de Chirico, que combina elementos clássicos e modernos para
saico de sua forma incomum, nega os grandes projetos de Le Corbusier sobre a relação expressiva da plástica criar uma nova estética, pode-se considerar aqui o caso da Universidade no seio de um diálogo transcultural.
obtida entre as linhas de paredes interiores e exteriores, abandonando sua rigidez e flexibilidade para suportar O Rio de Janeiro denomina de escolas de samba suas instituições de carnaval. Assim, será possível
novas funções que combinam esteticamente as realidades do plano aberto a partir do interior dos edifícios. que as academias de ensino possam aprender algo de novo com as escolas de samba cariocas? Valorizando sua
Tal incomensurabilidade ocorre, por exemplo, na Biblioteca da França, em Paris, projetada pelo arquiteto identidade social e trabalhando com novas audiências, a fim de estabelecer uma compreensão madura entre
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seus participantes e para se renovar esteticamente, as escolas de samba no Brasil expressam a criatividade que Paz e Terra, 2006.
parece estar faltando na educação universitária tradicional (Pinto & Silva, 1997). O Parangolé (composto GUIMARAENS, Dinah (org.) Museu de Arte e Origens: Mapa das Culturas Vivas Guaranis. Rio de Janeiro:
por vestidos, tops, banners ou bandeiras) foi criado por Hélio Oiticica para ser usado pelos dançarinos da Contracapa, 2003.
favela da Mangueira. Constitui, portanto, uma forma de antiarte que visa iniciar uma nova visão de como JAMESON, Fredric. Espaço e Imagem: Teorias do Pós-Moderno e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Editora
os seres humanos e a arte podem ser integrados, causando a morte do espectador e o nascimento do partici- UFRJ, 2004.
pante. LYOTARD, Jean-François. Que peindre? ADAMI, ARAKAWA, BUREN. Préface de Bruno CANY. Paris:
No Parangolé, o samba é o motor e a ação da necessidade ontológica, onde a roupagem está em Hermann Éditeurs, 2008.
contraste com o relógio que fala do tempo da máquina e da produção. Como, então, a Universidade pode “Judicieux dans le Différend” in DERRIDA, J.; DESCOMBES, V.; KORTIAN,
escapar da postura aristocrática de um conhecimento hegemônico e acadêmico e desfrutar de um dialogismo G.; LACOUE-LABARTHE, P. ; LYOTARD, J. ; NANCY, J.L. La Faculté de Juger. Paris : Colloque de Ce-
transcultural entre os diferentes níveis sócioculturais de funcionários e alunos, e entre diferentes grupos étni- risy, Les Éditions de Minuit, 1985.
cos e de gênero? MBEMBE, Selon A. Afriques indociles. Christianisme, pouvoir et État en société postcoloniale. Paris: Kar-
Em resposta a esta questão, Cany (2012) sugere que se: “Pense a poesia como parte de uma antro- thala, 1988.
pologia filosófica e um propósito ético-político”. Se o pensamento poético pode nos permitir superar uma MEDOUX, Irma. “La résurgence de la pensée critique dans l’Afrique postmoderne » in CANY, Bruno (di-
caricatura universal menos ocidentalizada que estrutura o conhecimento escolástico de modelo europeu, rection). L’Afrique Postmoderne. Paris: L’Harmattan, 2011.
a Universidade deve estar aberta para a alteridade, abandonando uma ótica civilizacional (Nietzsche), em SILVA, Jorge Ferreira & PINTO, Fátima Cunha Ferreira. “E Se as Escolas Aprendessem com as Escolas de
favor de uma ótica transcultural (Artaud). Assim, a resposta para a Universidade, bem como para a arte, é o Samba?”. Rio de Janeiro: CESGRANRIO, Aval. Pol. Pub. Educ. Rio de Janeiro, v. 5, n. 16, p. 347-352
pensamento visual através da etnopoesia enquanto universal antropológico. 1997.
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Musicalidade Marubo, Musicologia Amazônica: tempo histórico e temporalidade mítica. São Paulo: Revista de Ministros da Educação e da Cultura.
USP, 2008, pp. 77:34–67.

A relação entre educação e cultura é estreita nas ações de formação da ci-


dadania. A partir destas é possível integrar as manifestações intelectuais e artísticas nas
práticas pedagógicas de ensino formal e informal. Neste contexto, a correção da fratura
entre as formulações e o planejamento das políticas relacionadas as duas áreas deve ser
o foco de ações articuladoras das diversas instâncias e esferas da administração pública.
O autor pretende oferecer subsídios para o entendimento das condições atuais
para o processo de planejamento de ações culturais relacionados aos programas voltados
para a Educação Básica e para a formação de professores nas universidades. Pretende
delinear também como pode Brasília ser considerada uma cidade educadora, nos termos
da declaração da UNESCO; procura mostrar como Lucio Costa já pensava uma cidade
capaz de abrigar a capital da República e ao mesmo tempo educar a nova população
composta de cidadãos vindos de todas as regiões do país e do exterior, ainda inspirar a
ocupação ordenada e o desenvolvimento do norte e do centro oeste do Brasil, até então
com baixa densidade populacional.

Antecedentes
Para o melhor entendimento de Brasília como cidade educadora, podemos imagi-
nar três itinerários educativos destinados a orientação de turistas, professores e alunos ou
outros visitantes. Os programas Mais Educação e de Educação Integral do Ministério da
Educação já incluem três desses itinerários educativos para os professores que participam
de Seminários que vem se realizando na Capital Federal, Em Brasília, com a colaboração
do GDF, da UnB e do Ministério da Cultura, visando a compreensão do Plano de Lúcio
Costa, do projeto educacional de Anísio Teixeira e da nova Universidade imaginada por
Darcy Ribeiro. São eles:
a) Anísio Teixeira e os caminhos da Escola Classe/Escola Parque;
b) Lucio Costa: a escala monumental e a escala gregária do Plano Piloto;
c) Darcy Ribeiro e o inovador projeto da Universidade de Brasília.
Antes de falar mais detidamente de Brasília, é preciso, porém, alinhar algumas
considerações sobre a educação no Brasil. Nos três primeiros séculos da colonização
não há muito que dizer sobre escola pública, uma vez que tivemos apenas as escolas
dos jesuítas destinadas à catequese dos índios e à educação de poucos, especialmente a
preparação para a vida religiosa.
Claro que é muito importante a pedagogia dos jesuítas, grandes figuras a desta-
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car, especialmente Padre Manoel da Nóbrega, o Padre José de Anchieta e o Padre Antônio Vieira. Mas não residencial e a bucólica no Plano de Lúcio para conceber o sistema educacional. A vida dentro da cidade. As
existia a escola pública como já era conhecida em outros países. escolas nas superquadras.
No período do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, inaugurado com a chegada de D. Maria Esse sistema escolar fez com que a população das unidades de vizinhança (o conjunto de cada quatro
I, D. João VI, toda a família Real e parte da corte portuguesa que aportaram no Brasil em 1808, começaram superquadras) tivesse à disposição um jardim de infância e uma escola classe em cada quadra e uma escola
as mudanças e as fundações do que o Brasil passaria a ser. No campo educacional, alguma coisa pode ser parque em cada unidade do conjunto. Em um mesmo espaço livre para o ir e vir à pé, das crianças, dos pais
anotada. e dos professores podiam circular à vontade entre as unidades escolares, a Biblioteca Demonstrativa, o Posto
Em uma parada na Bahia em fevereiro de 1808, D.João VI criou uma Escola de Medicina, hoje incor- de Saúde, o clube de vizinhança, os espaços de lazer e recreação das quadras e ainda a Igrejinha de Fátima,
porada à UFBA; no Rio criou uma Escola de Cirurgia. Mais tarde, recebeu da Missão Artística Francesa que também a primeira construída. Esse modelo criado para uma população de cerca de até 20.000 habitantes, foi
trouxe nomes importantes no campo das artes; em 1827 foram criadas as faculdades de direito de Olinda, implantado como modelo do Plano Piloto, a ser repetido em cada unidade de vizinhança, o que não ocorreu.
em Pernambuco e a do Largo de S.Francisco, em São Paulo; Em 1834 surgiu o pioneiro Atheneu Norte - Darcy Ribeiro em um texto que publicou como segunda carta de Pero Vaz Caminha, em 21 de abril
Rio-grandense em Natal; a 2 de dezembro de 1837, no período da Regência, portanto, em homenagem ao de 1960, disse o seguinte sobre o projeto de Anísio Teixeira:
Imperador, na data de seu aniversário surgiu o Colégio Pedro II, permanente referência do ensino. Essas são “Os burocratas infantes, com menos de sete anos, terão dentro das quadras arremedos de escoli-
as principais escolas surgidas no Brasil no período, mas ainda não se podia falar de escola pública em âmbito nhas para brincar com o tio Augusto Rodrigues. Os mais crescidinhos, a um passo da casa, quatro horas
nacional. estudarão e mais quatro folgarão, atravessada uma alameda, numa escola-oficina-gandaia inventada por
Durante o segundo Reinado a educação flutuava entre o modelo tradicional e secular do ensino Anísio Teixeira para fabricar gente que melhor suporte e sustente o progresso do Brasil. Aos mais taludos,
católico e o ensino leigo sob a influência do ecletismo, do liberalismo e, finalmente, do positivismo. Perdeu- capazes de atravessar a rua dos loucos, prometem uma escola-escada, pela qual cada um há de subir segundo
se muito tempo mais aplicado na experimentação do que no estabelecimento de um sistema público de o peso de seu talento.”
ensino. “Devo dizer, Senhor, que a meu pesar, tudo isto, como o mais, são augúrios de homens de muita fé.”,
A República surgiu em meio às ideias positivistas e eram muitas as promessas sobre a educação, mas acrescenta Darcy Ribeiro.
até 1930 este assunto permaneceu no Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em um setor denominado Para os itinerários educativos de Brasília, inicialmente descrevemos os caminhos da Escola Classe/
Departamento de Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Esta situação por si só explica como a educação Escola Parque de Anísio Teixeira dentro da escala residencial e bucólica; depois, voltamos a comentar a pro-
foi relegada durante a República Velha, onde as oligarquias do acordo café com leite, entre Minas Gerais e posta de itinerários educativos de Brasília, desta vez para apresentar outras duas dimensões do Plano Piloto
São Paulo se revezavam no poder. Ao povo se oferecia apenas a instrução pública das primeiras letras. de Lúcio Costa, a escala gregária e a escala monumental.
Precisamos viver uma revolução, a de 30, para que o Governo Provisório de Getúlio Vargas pudesse Apresentar e compreender o plano piloto da capital federal é uma necessidade não só para os profes-
criar nos primeiros dias de sua instalação, finalmente, o Ministério da Educação e da Saúde Pública. Note- sores, alunos, pais e servidores da educação de Brasília, como também um elemento indispensável para todos
se, temos um ministério a cuidar da educação e da saúde pública dos brasileiros há apenas 82 anos. Vários os brasileiros. Brasília entrou para o imaginário do brasileiro nos anos 50 e não saiu mais. Portanto, é preciso
países latino-americanos estavam mais avançados e já funcionavam universidades que o Brasil só veio a criar relembrar Lucio Costa. Relembrar Lúcio Costa é também deixar falar duas grandes personalidades, que
em 1934 em São Paulo e 1935 no Rio de Janeiro as primeiras, reunindo as faculdades préexistentes. embarcaram do trem da utopia do projeto de JK-Lúcio Costa: um entrou em 1957, junto, portanto, com a
Nos primeiros trinta anos de funcionamento do Ministério, no Rio de Janeiro, é digno de nota o execução do Plano Piloto; e um outro entrou em 1960, logo depois de inaugurada a Cidade.
período de 12 anos de Gustavo Capanema, aquele que mais tempo permaneceu Ministro; pois como seu O primeiro foi Anísio Teixeira, convocado em 1957 pelo Ministro Clovis Salgado para desenhar o
legado deixou um sistema nacional centralizado de ensino de boa qualidade, um plano de vanguarda e liberal Plano de Educação e Cultura para a nova Capital. Não demorou muito. Como presidente do INEP, Anísio
para a área da Cultura e, como símbolo de uma época o Palácio que construiu para a sede do MEC, um pode rever o seu próprio projeto de Salvador e orientar o experimento da Escola Julia Kubitschek, cujos
marco da arquitetura modernista no mundo. Na verdade, Capanema fez existir a UNESCO antes mesmo de professores foram preparados na Escola Classe-Escola Parque, que havia criado na Bahia para começarem o
esse organismo ser criado no pós-guerra, pois comandava os programas nacionais da saúde, da educação, da trabalho em Brasília.
ciência e da cultura em um mesmo Ministério, já em 1937. A Escola Júlia Kubitschek foi o lugar onde cresceu o embrião da Escola Classe-Escola Parque de
Brasília surge em 1960 como cidade educadora, como a renovação da esperança para os brasileiros, Brasília e a superquadra 308, o lugar onde se aproveitou o desenho da cidade para rever os conceitos e colocar
especialmente para a educação e a cultura. A cidade foi construída a partir do Plano Piloto de Lúcio Costa, em prática o Plano Humano de Brasília, o projeto utópico de uma sociedade nova, universalista, que disporia
tombada a nível nacional pelo IPHAN e reconhecida mundialmente pela UNESCO como patrimônio da de uma escola pública de qualidade e de uma Universidade que produzisse o novo homem brasileiro.
humanidade. De Anísio Teixeira lembro duas reflexões sobre a educação:
Presidente do INEP, em 1957 Anísio Teixeira trouxe Darcy Ribeiro para promover pesquisas so- 1.“O que chamamos de educação é o esforço para compreender o presente”. Sem compreendê-lo não podem-
ciológicas na educação e criou, a pedido do Ministro Clovis Salgado, “o planejamento do sistema escola os viver. Há presentes incendiados de fermento intelectual e presentes inertes. É que nos primeiros o passado
público de Brasília”, inaugurado em 1960. Era uma evolução do sistema baiano criado por ele das Escolas está vivo no presente e nos entreabre o futuro. Nos outros, depreciamos o presente e quedamos inertes na
Classe/Escolas Parque. Aproveitou e foi influenciado pela nova maneira de morar, que são as superquadras de adoração do passado. Toda verdadeira crise de compreensão é uma crise de compreensão do presente, neste
Lúcio Costa, pela arquitetura de Oscar Niemeyer e pelo paisagismo de Burle Marx, que organizaram a escala sentido de ponto de interseção entre o passado vivo e o futuro que vai nascer. Num desses momentos é que
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nos encontramos. É desse modelo do qual derivam os CIEP - Centros Integrados de Educação Pública (Brizola/Darcy
2.“De mim eu só reconheço um crédito aos que me precederam: Eles sofreram mais do que nós e, por isso, Ribeiro); os CIAC - Centros Integrados de Atenção à Criança (Collor); os CAIC - Centros de Atenção Inte-
tudo lhes deve ser perdoado.” gral à Criança e ao Adolescente (Itamar/Hingel); os CEUs - Centros Educação Unificada (Marta Suplicy) e,
O segundo personagem foi Agostinho da Silva, português exilado desde os anos 50 e já tinha pro- desde abril de 2007 com o PDE - Plano de Desenvolvimento da Educação com o programa Mais Educação
duzido intenso movimento intelectual no Rio, São Paulo, Paraíba e Santa Catarina, estava naquela altura di- que, aliados ao Mais Cultura, Saúde na Escola e vários outros projetos afins, tem por objetivo a universaliza-
rigindo na Universidade Federal da Bahia o Centro de Estudos Afro-Orientais, fundado por ele. Veio ajudar ção gradativa da educação integral.
Darcy e Anísio na organização da Universidade de Brasília.
Para demonstrar a perfeita sintonia de Agostinho com a utopia de Lucio Costa em Brasília, retiro Antecedentes do Programa Mais Educação e Mais Cultura
algumas frases, de seu livro: “Reflexões, Aforismos e Paradoxos:”.
1. “Consiste o progresso no regresso às origens: com a plena memória da viagem.” Em agosto de 2006, o grande artista e intelectual brasileiro Augusto Boal compareceu a uma reunião
2. “Não há liberdade minha se os outros a não têm.” do Ministro da Cultura Gilberto Gil e do Ministro da Educação Fernando Haddad realizada no Rio de
3. “A nossa mente olha o vazio e o faz Espaço.” Janeiro no Palácio Capanema, quando anunciaram a assinatura de mais um Protocolo de Intenções para
4. “Passo a vida fabricando o real.” cooperação entre os dois Ministérios, visando o desenvolvimento de programas conjuntos de arte e cultura
Muito antes da consagração do conceito pela UNESCO, Brasília já nascia uma cidade educadora. nas escolas.
Desde a criação do Ministério da Cultura em 1985 assistimos a vários eventos semelhantes em que a
A Escola Parque da Superquadra 308 Sul em Brasília retórica tentava disfarçar a realidade do ensino público no Brasil marcada pelo empobrecimento do calen-
dário escolar, desde os anos 1970, com o abandono crescente e cotidiano de duas disciplinas obrigatórias: a
O Conjunto representado pelas superquadras 107/307, 108/308, 109/309, 110/310 (tanto os blocos Educação Artística e a Educação Artística.
residenciais quanto os destinados ao comércio local, que Lúcio chamou de “varejo de bairro” nas entrequa- Naquela tarde, Augusto Boal compareceu e pediu para falar em meio ao tumulto de uma solenidade
dras) formam uma unidade de vizinhança e cada uma delas conta com um Clube de Vizinhança, neste caso, que enchia de público o Salão Portinari do majestoso e tradicional edifício-sede do Ministério da Educação
o de nº. 1 de Brasília. Completa-se o conjunto com o Posto de Saúde, a Biblioteca Demonstrativa de Brasília e Saúde Pública inaugurado nos anos 1940. A plateia do artista desta vez era composta de artistas, políticos,
e a Igrejinha de Fátima. Agregou-se, recentemente, ao conjunto a Estação do Metrô da 108 Sul. funcionários públicos, professores e outros trabalhadores da educação para ler seu discurso, do qual destaco:
Concebido o plano arquitetônico e urbanístico que poderíamos chamar de hardware, faltava criar “Anos atrás, existia o MEC, Ministério da Educação e Cultura, que sucedeu ao mais antigo Ministério
o plano humano para Brasília. Como se organizaria o sistema educacional para formar o novo homem da Saúde, Cultura e Educação, onde só faltavam Caça e Pesca Esportes e Turismo, tudo no mesmo saco”.
brasileiro? Qual o programa, o software? Juntos, amalgamados, Educação e Cultura, ao invés de provocarem sinergia, eram comprimidos numa coisa
O encarregado de tal plano foi Anísio Teixeira, que coordenou uma comissão para a criação da UnB e só. Veio a divisão multiplicadora, criaram-se dois Ministérios ao invés de um, mas cada qual trabalhou pelo
para a concepção do sistema educacional na nova Capital, da educação básica à Universidade. seu lado, sem olhar ao lado. Hoje, nossos dois Ministros arquitetam um projeto unificador respeitando a
Ele era também o presidente do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, diversidade de cada um, e nós nos vemos diante de uma nova concepção da Cultura e da Educação. Por que
naquela altura. A comissão que coordenou contava com Darcy Ribeiro, Cyro dos Anjos, Augusto Rodrigues é nova, e por que é importante essa interatividade?
e outras personalidades dentre o que havia de melhor entre os pensadores da educação e da cultura no Brasil. Educar vem do latim Educare, que significa conduzir. Educar significa a transmissão de conhecimen-
Vivia-se um ambiente de liberdade política e desenvolvimento econômico acelerado. tos inquestionáveis ou inquestionados. Significa ensinar o que existe, e que é dado como certo e necessário.
O projeto de Escola Classe/Escola Parque de Brasília é uma evolução daquela que Anísio criara em Pedagogia vem do grego paidagógós, que era o escravo que caminhava com o aluno e o ajudava a encontrar a
Salvador nos anos 1940 quando ele foi o Secretário de Educação da Bahia. Anísio levou professores da pio- escola e o saber. Educação significa a transmissão do saber existente; Pedagogia, a busca de novos saberes.
neira Escola Júlia Kubistcheck, que funcionava na cidade até então e os levou para conhecer a Escola Classe, Essas duas palavras não podem ser dissociadas, porque não podemos aceitar um saber paralítico,
Escola Parque de Salvador, preparando-os para trabalharem na escola do futuro em Brasília. imóvel, nem descobriremos jamais novos saberes sem conhecer os antigos.
O que podemos ver deste modelo: cada quadra conta com uma Escola Classe, jardim de infância e Educação e Pedagogia são duas irmãs que são, ao mesmo tempo, mães e filhas da Cultura. Filhas,
vários espaços de lazer. Os alunos de toda a unidade vizinhança (conjunto de quatro superquadras) frequen- porque a Cultura existe e se manifesta através do saber que ensina, e do saber que busca. Mães, porque através
tam a Escola Classe mais próxima e caminhando vai à Escola Parque da 308 em horários alternados.Implan- delas nasce uma nova Cultura, sempre em trânsito.
tada a escola padrão, era natural que aí se transformasse no principal espaço cultural de Brasília, o teatro da Trânsito para que futuro? Surgem então os conceitos de Ética e Moral. Esta vem do latim mores, que
Escola Parque e o Cine Cultura tornaram-se por mais de 20 anos o principal polo cultural da jovem capital. significa costumes. Qualquer costume, mesmo os mais bárbaros e odiosos, podem fazer parte da Moral de
Aí foram montadas as grandes peças de teatro, musicais e outros espetáculos que passaram pela cidade um lugar e de uma época. A escravidão já foi Moral no Brasil, e os escravos que lutavam por sua liberdade
e aí também se realizaram as grandes reuniões e manifestações políticas, como quando a cidade recebeu em eram chamados de fujões e rebeldes – hoje, sabemos que foram heróis e eram sábios.
reunião de desagravo, o sindicalista Lula que saíra da prisão em 1981; veio de São Paulo acompanhado do Nenhuma Moral social deve ser aceita só porque faz parte dos costumes de um infeliz momento.
jornalista Adáulio Dantas, que também havia sido preso, sendo recebidos à noite, no auditório da Escola Não podemos aceitar o latifúndio e a corrupção, nem a fartura vizinha da fome - males da pátria contra os
Parque, por um grande público. quais temos que lutar.
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Moral refere-se ao passado que sobrevive no presente. Ética, ao presente que se projeta no futuro: Há algum tempo, em um seminário sobre o patrimônio histórico, participei de um debate sobre as
não queremos o Brasil como foi nem como é, mas... como queremos que seja? Qual a ética que nos guia e “cidades históricas mineiras” cujas construções estão em permanente ameaça em tempo de chuvas, eu refor-
justifica nossas vidas? Queremos um Brasil em que todos os brasileiros sejam plenos cidadãos, e não se pode cei o argumento de que todas as cidades são históricas, pois todas têm a própria história para contar.
ser pleno sem os fundamentos da Educação basilar, sem as audácias da Cultura livre, e sem o diálogo entre Assim também são as cidades educadoras, qualquer cidade pode tornar-se educadora. Toda e qualquer
as duas. cidade, pequena ou média, ou mesmo nos bairros ou periferias das grandes cidades e mesmo das megalópoles
A fala de Augusto Boal vinha ao encontro do que se pretendia com o acordo de cooperação que se que já temos no Brasil poderemos reconhecer o território em que se insere a escola ou as escolas de determi-
anunciava naquele dia, conforme consta da Portaria que criou uma Comissão Interministerial encarregada nada localidade, de forma a aproveitar ao máximo todas as possibilidades educativas sem perda de qualidade.
de tratar da indispensável colaboração entre as duas Pastas, para o desenvolvimento de programas de arte e Podemos sempre agir localmente sem deixar de ter uma consciência global dos problemas da modernidade.
cultura nas escolas. As crises da modernidade nos atingem a todos, sejam as questões ecológicas, climáticas, econômicas, sejam
Passaram-se os dias e meses, sem se ver, pelo menos, reunida tal comissão uma única vez; a preocu- as novas problemáticas de mudança da escola e do processo de aprendizagem e de ensinagem. Para mudar a
pação do Minc com sua própria clientela de artistas, intelectuais, escritores, cineastas, animadores culturais escola temos que mudar também a maneira como vemos a cidade, a família, a comunidade e a organização
interessados no financiamento de seus próprios projetos e do MEC em ampliar o tempo e espaços educativos social onde se inserem.
nas escolas bem como discutir com a sociedade seus novos programas, não permitiu que a cooperação de No caso de Brasília temos um caso exemplar, pois essa é a verdadeira intenção de se chamar o plano
concretizasse em ações efetivas de cooperação. Apesar das boas e sinceras intenções de ambos os lados. urbanístico de “Plano Piloto”; de se chamar a concepção da primeira superquadra como “Superquadra
No MinC surgiram diversas ações novas como a implementação dos Pontos de Cultura e outras Modelo” e de se considerar modelar o “Planejamento do Sistema Escolar Público de Brasília” escrito por
atividades que buscavam ampliar a cidadania cultural e no MEC ampliaram-se os horizontes com o desen- Anísio Teixeira em 1957 e implantado em 1960, ao mesmo tempo em que se concluía a construção das pri-
volvimento do programa Mais Educação. Entretanto, ainda não se materializavam as atividades educativas meiras unidades residenciais propostas do ‘Plano Piloto’ de Lúcio Costa. Note-se que ao mesmo tempo em
nas escolas, um pouco porque estas não se abriam seus portões para a entrada do novo; em parte, também, que Oscar Niemeyer absorvia em seus projetos arquitetônicos as ideias de Lúcio Costa, também Burle Marx
porque os animadores culturais não estavam acostumados a saírem de seus espaços ou mesmo não estavam e artistas como Volpi e Athos Bulcão colaboravam com o paisagismo e as obras de arte para desenharem
preparados para atividades educativas. Entretanto, o principal entrave para a ampliação dos espaços educati- as escalas residenciais e bucólicas do mesmo Plano Piloto. Estabelecidos esses parâmetros Anísio Teixeira
vos continuava a ser o tempo de permanência dos estudantes nas escolas. Com um turno apenas, de 3 ou 4 tratou de aproveitar a genial concepção para imaginar o sistema educacional, tomando por base a unidade
horas diárias não é mesmo possível exigir muito mais do que era feito. Foi necessário esperar outro momento, de vizinhança i.e. o conjunto de cada quatro superquadras.
o do lançamento do PDE - Plano de Desenvolvimento da Educação para se conseguir avançar.
O representante japonês que compareceu à Rio + 20 foi apresentado como o Ministro da Educação,
Cultura, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente e Esportes, integração que já havia feito o Ministro Gustavo
Capanema nos seus tempos; ele praticamente inventou a UNESCO antes da UNESCO existir, juntando
em uma só pasta a Educação, a Ciência e a Cultura, com anos de antecedência; sem nos esquecermos de que
o seu Ministério incluía também a Saúde. Partiu de um diagnóstico e indicava equações para os grandes e
ainda atuais problemas nacionais, prioridades nacionais e solução nacional: a Educação e a Saúde Pública.
Mais tarde, em um momento feliz: Brasília; Darcy Ribeiro por um lado e Anísio Teixeira por outro
deram ao Presidente JK e seus utópicos Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Roberto Burle Marx o que podería-
mos chamar de plano humano, era um plano ambicioso para a educação básica e superior; estavam a inventar
o Brasil, como eles mesmos disseram.

Brasília: nasce uma cidade educadora

As afinidades eletivas de Lúcio Costa e de Juscelino Kubitscheck ficam evidentes, pois o reconhecido
arquiteto urbanista não queria apenas apresentar um projeto para a nova Capital, queria mesmo era ajudar
Juscelino a realizar o seu sonho e promessa, o projeto utópico de uma nova civilização nascida da Capital da
Esperança, a NOVACAP que influenciou a música, o cinema e a cultura nacional, pois também estava na
cabeça de todos os brasileiros.
Maria Elisa Costa afirma que seu pai Lúcio não apresentou o projeto no concurso da nova capital
para provar alguma teoria ou demonstrar algum novo aspecto da arquitetura moderna, que ele também in-
ventou no Brasil. Não precisava disto. Ele queria muito mais do que apresentar um projeto. “Lúcio era sócio
da utopia JK.”
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Parte I

Práticas Transculturais

Museu Vivo e Patrimônio Imaterial

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Experiência Transcultural no Campus Universitário da


UFF: a construção da Oca Xinguana e a Maloca Guarani

Dinah Papi Guimaraens e Marina Vasconcellos de Carvalho


Prof. Dra. da Universidade Federal Fluminense e Mestre em Arquitetura e Urbanismo PPGAU/UFF.

O s trabalhos iniciados em abril de 2012, da pesquisa CAPES-Cofecub n.


752/12 representou uma colaboração técnica coordenada pela Professo-
ra-Doutora Dinah Tereza Papi de Guimaraens, do Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo, da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense com a Université Paris 8-Saint-Denis e a Universidade Federal
do Rio de Janeiro/UNIRIO, e tendo em vista a continuidade dos esforços do 1°
Encontro de Intercâmbio Museológico: Living Cultures Seminar, realizado em julho
de 2010, em Londres, com o apoio do Museum of London, HSBC e UNESCO,
com vistas a delinear diretrizes práticas de cooperação cultural e intercâmbios entre
museus brasileiros e europeus e a conseguinte elaboração de um projeto de um novo
Museu Vivo Indígena e um Canteiro Experimental de Pesquisas Transculturais no
Brasil até o ano de 2016, momento de realização das Olimpíadas. Acordaram alguns
participantes da necessidade de propor a implantação deste projeto em terras brasilei-
ras, desejosos de amplos debates nas áreas museológicas, filosóficas e artísticas, no que
tange ao Patrimônio Imaterial, História e outras disciplinas culturais.
Partindo da concepção de antropologia transcultural da UNESCO baseada na
obra de Jacques Poulain (UNESCO/ Universidade Paris 8-Saint Denis, França), o pro-
jeto procurou analisar a emergência de sujeitos constituintes de determinada cultura
no processo de investigação científica. Longe de ser um objeto de pesquisa em si, as
culturas vivas indígenas em questão e as instituições museológicas passam a ser anali-
sadas numa dinâmica de relação entre múltiplos sujeitos de conhecimento, fazendo
com que neste processo cognitivo possam exercer sua faculdade de julgar a verdade e
reconhecer a humanidade plural que os une.
De acordo com o projeto, materializou-se no Campus da Praia Vermelha/UFF,
através de um Canteiro Experimental, a proposta objetiva de um protótipo de arquite-
tura bioclimática (Maloca) como saber indígena e Museu Vivo. O projeto abrange a
promoção da educação e da inclusão social indígena através da implantação do Mu-
seu Vivo. Representa uma proposta didática e dialógica da Escola de Arquitetura e
Urbanismo-EAU e dialógica, incluindo componentes tradicionais e culturais de uma
Maloca típica, com índios vestidos à caráter, capacitados através de orientação técnica
ministrada por profissionais qualificados. Prevê-se uma grade de eventos contemp-
lando as atividades cotidianas da vida indígena, explicitando-se como é a vida do índio
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diversas práticas culturais e transculturais no Brasil, na América Latina, na África e nos Estados Unidos da
América, levando em conta a valorização do patrimônio imaterial da humanidade. Os aparelhos museológi-
cos funcionam como espaço de perpetuação da memória de um povo e como instrumento de emancipação
e reconhecimento de identidades de países e comunidades. Para isso, o Museu Vivo se baseia no conceito
de Arquitetura Bioclimática seguido e pesquisado por Severiano Mário Porto na Amazônia, entre outros
arquitetos brasileiros, cujo modelo arquitetônico se contrapõe à mundialização respeitando o regionalismo
conceitual, questionando as práticas da arquitetura contemporânea de base tecnológica digital.
Os eixos teóricos desenvolvidos no projeto podem ser assim resumidos:
a) O patrimônio imaterial da humanidade e os aparelhos museológicos como espaço de perpetuação
da memória de um povo e como instrumento de emancipação e reconhecimento de identidades de países e
Maloca Xinguana, 1910 Maloca Guarani, Tekoa Itarypu, Cambo- Maloca tradicional Aldeia Ka-rioca, comunidades, destacando entre estes os ofícios de construção indígenas (malocas), do período colonial aos
inhas| Niterói, RJ, 2011 Aldeia montada para o evento Rio+20 dias de hoje;
|2012
b) A filosofia e a antropologia transcultural como arcabouço intelectual para se fazer um bom diag-
nóstico da realidade da cultura e do Estado na era pós-moderna;
no seu dia a dia, seus costumes e sua visão de mundo. Desta forma, de acordo com o decreto n. 3.551 de c) O conceito de “Museu das Origens” (1978) de Mário Pedrosa, no qual ele enfoca como as “cul-
04/08/2000, este projeto pretende contribuir para o registro de bens de natureza imaterial que constituem turas vivas” representadas por nossas artes indígenas, africanas/afro-brasileiras, populares e de imagens do
patrimônio cultural brasileiro, referindo-se ao “Livro de Registro dos Saberes” no que tange às formas típi- inconsciente, que desaguaram na arte moderna e contemporânea, conclamando desta forma os povos do
cas de construção de moradias indígenas, as quais são representadas, entre outras, pelas Malocas xinguanas, terceiro mundo a assumirem seu papel no palco da contemporaneidade.
amazônicas ou das comunidades costeiras e que continuam, até os dias de hoje, sendo atualizadas por nossas d) O conceito de arquitetura bioclimática e o exemplo desenvolvido por Severiano Mário Porto, na
populações nativas rurais e urbanas. Amazônia, entre outros arquitetos brasileiros.
O caráter inovador do atual projeto reside na atualização de uma “visão de dentro” dos próprios ín- Dentro da ótica pós-moderna de uma filosofia transcultural que o Museu Vivo Indígena pretende
dios sobre a visão “civilizada” dos brancos sobre eles. Ao possibilitar uma vivência sobre saberes e formas de desvendar algumas pistas sobre as questões transculturais que perpassam o presente momento histórico em
construir e habitar dos indígenas brasileiros, assim como divulgar e comercializar os objetos etnográficos e que vivemos, e citando Mário Pedrosa,
“turísticos” de temática nativa enriquece a troca do saber. ...“Em países como os nossos, que não chegam esgotados, ainda que oprimidos e subdesenvolvidos, ao nível
Ao público-alvo do Museu Vivo Indígena, os cerca de 35.000 índios urbanos residentes no Grande da história contemporânea, (...) quando se diz que sua arte é primitiva ou popular vale tanto quanto dizer que é
Rio estarão realizando um processo de feedback crítico em relação à linguagem complexa da sociedade na- futurista”.
cional. Como exemplo citamos o artista acadêmico Vítor Meirelles, que sem nunca haver avistado um único A aparição das vanguardas em países da “periferia” é definida ainda por Pedrosa como uma busca
indígena em sua vida na corte portuguesa e na Europa durante a época colonial, conseguiu reproduzir na desenfreada para alcançar a ultimíssima novidade, tal como ocorre no campo da arte, da arquitetura contem-
obra Primeira Missa no Brasil, os integrantes das tribos Tupinambá, etnia inteiramente dizimada pelos por- porânea e mesmo da morfologia das favelas:
tugueses e cujos sambaquis ocupam atualmente a costa litorânea do estado do Rio de Janeiro. “Na fase histórica em que estamos vivendo, o Terceiro Mundo, para não marginalizar-se de todo, para não
O Museu Vivo Indígena tem como objetivo fortalecer o patrimônio cultural imaterial indígena através derrapar da estrada do contemporâneo, tem que construir seu próprio caminho de desenvolvimento, e forçosamente
da apresentação das danças, rituais, atividades artístico-artesanais e da cura pelas ervas medicinais, inserindo- diferente do que tomou e toma o mundo dos ricos do hemisfério norte. (...) Ele tem que expulsar de seu seio a
se assim, igualmente, no Livro de Registro das Celebrações proposto pelo DPI/IPHAN/MinC. mentalidade “desenvolvimentista” que é a barra em que se apoia o espírito colonialista (...). Os pobres da América
Qual é, então, o papel da universidade frente à mundialização que ameaça, irrevogavelmente, diluir as Latina vivem e convivem com os escombros e os cheiros inconfortáveis do passado. Os ultramodernistas e alguns
diferenças regionais na América Latina? de seus progressos, de molde comumente americano, estão umbilicalmente vinculados a nossas favelas e barriadas.
A fim de estabelecer um diálogo interdisciplinar e intercultural ao longo da América Latina, a Uni- O paradoxo é que estas são as que não mudam, como não mudam a miséria, a fome, a pobreza, choças e ruínas.
versidade Federal Fluminense- UFF, com a cooperação da Universidade Federal do Estado de Rio de Janeiro Mas é por aí que passa o futuro. Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna. (...)
- UNIRIO, encontra-se envolvida em uma proposta inovadora de estética transcultural que já envolve a Entretanto, abaixo da linha do hemisfério saturado de riqueza, de progresso e de cultura, germina a vida. Uma
Argentina, Uruguai, Chile, o Equador, a Venezuela e a Bolívia. Tal projeto foi apresentado por Jacques arte nova começa a brotar.” (Mário Pedrosa, “Discurso aos Tupiniquins ou Nambás”, 1975)
Poulain, titular da cadeira UNESCO de Filosofia da Cultura e das Instituições pela Universidade Paris
8-Saint Denis durante uma visita no Brasil em 2009. De acordo com o próprio Poulain, a universidade visa Esta “arte viva” mencionada por Pedrosa para definir a pujança das culturas indígenas pode ser sim-
permitir o fortalecimento social da cultura no ser humano, favorecendo uma mente crítica que se atualiza bolizada pelo apolíneo e o dionisíaco como manifestações da arte e da vida presentes no pensamento de
através da filosofia, da literatura, das artes plásticas, da arquitetura, da música, da cultura de comunicação Friedrich Wilhelm Nietzsche e apresentados em sua primeira obra, “O nascimento da tragédia: ou helenismo
e da história. Desta forma, os eixos teóricos a serem desenvolvidos pelo Museu Vivo Indígena envolvem as e Pessimismo” (Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus), escrita em 1871. Vilém Flusser,
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no livro “Ficções Filosóficas”, de 1998, apropria-se deste conceito nietzschiano para expressar as características Vivo Indígena no Campus da Praia Vermelha possibilitaria à UFF cumprir sua missão de docência, pesquisa
de uma “arte viva” pós-moderna, caracterizada por “duas revoluções arrasadoras”: a “telemática” e a “biotéc- e extensão universitárias ao possibilitar o acesso de agentes indígenas à educação digital a ser realizada no
nica”. Assim, como falar de “inovação tecnológica” ao tratar das culturas vivas nativas brasileiras na atualidade? PORTAL DE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA/PIT, fomentando a geração de novos empregos e a inclusão
No caso da pertinente discussão sobre uma arquitetura bioclimática ou “verde”, como buscar então inspiração social dos ocupantes da Aldeia Maracanã/RJ e das aldeias Guarani fluminenses, como sugerido:
nas malocas indígenas amazônicas, xinguanas e do litoral do país? a) no treinamento em arquitetura bioclimática e tecnologia digital, procurando estabelecer o inter-
Arquitetos como Severiano Mário Porto “estiveram lá”, in loco, pesquisando as técnicas tradicionais câmbio cultural na forma de construir; Aplicação de técnicas inovadoras para a reforma das casas tradicionais
populares das habitações do Amazonas para criar novos protótipos de uma arquitetura “inteligente” e adequa- indígenas (malocas), com isolamento em resina de poliuretano, a ser aplicado no pau a pique das empenas
da ao clima brasileiro úmido e tórrido, como o uso de amplos telhados de cobertura vegetal que permitem a externas e no sapê das coberturas;
saída do ar quente e o resfriamento térmico do espaço interior. Será que é possível agora, a partir da “revolução b) em oficinas e workshops, destacando técnicas artesanais e tradicionais indígenas, como a cerâmica,
telemática” discutida por Flusser, criar protótipos inovadores de “malocas digitais”? Aliar a tecnologia de ponta a tecelagem, a cestaria, esculturas em madeira; os contos, lendas e mitos; a dança e a música de cunho ritual;
às técnicas construtivas milenares? Estas são as indagações feitas pelo atual projeto, inserido dentro da AGIR c) d) no incentivo à alimentação tradicional indígena através da discussão de técnicas de replantio de
(Agência de Inovação) da PROPPi (Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação) da Universidade espécies naturais da Mata Atlântica e na gastronomia;
Federal Fluminense. Caberá ao IPHAN, por sua vez, colaborar para o mapeamento, a documentação, o apoio e o fomento
Ao refletir sobre a arquitetura milenar de nossas culturas vivas nativas, o projeto propõe oficinas de ao patrimônio cultural imaterial dos grupos indígenas que se encontram dispersos no meio urbano do Grande
“arte viva”, que incluem a criação do Canteiro Experimental de Arquitetura Bioclimática no Campus da Rio, ao possibilitar a estruturação de um espaço acadêmico transcultural agregador, social e culturalmente.
Praia Vermelha da UFF, onde o corpo discente e docente desta Universidade interagiu diretamente com O Museu Vivo Indígena aqui proposto representa um projeto técnico e único de pesquisa, documentação e
indígenas da Aldeia Maracanã (Pataxó, Apurinã, Ful-niô, Tukano, Baré, Tupinambá, Kaingang etc) e, indi- tratamento de informação para a melhoria das condições de continuidade e sustentabilidade dos saberes, mo-
retamente, com representantes dos Guarani que habitam o Tekoa Itarypu em Camboinhas, de forma que se dos de fazer, formas de expressão, festas, rituais, celebrações, lugares e espaços que abrigam práticas culturais
procurou estabelecer as bases do projeto de Museu Vivo Indígena nos moldes de preservação e revitalização coletivas vinculadas às tradições das comunidades indígenas.
das culturas tradicionais recomendados pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio- Os benefícios a serem produzidos a partir a realização do projeto são culturais, com a implantação do
nal)- MinC (Ministério da Cultura) e do ICOM (Conselho Internacional de Museus) da UNESCO. Museu Indígena Vivo, com ênfase na pesquisa e na documentação digital dos saberes construtivos indígenas
O objetivo principal do projeto envolve o corpo discente e docente da UFF e agentes indígenas nele (malocas). Tem como público-alvo os corpos docente e discente da Escola de Arquitetura e Urbanismo (EAU)
envolvidos, que além da promoção da educação e da inclusão social indígena, propõe uma combinação da UFF, as turmas de graduação de Teoria e História da Arquitetura IV do Departamento de Arquitetura-
através de treinamento em arquitetura bioclimática com o conhecimento indígena e o emprego de tecnologia TAR/EAU/UFF e de pós-graduação do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo- PPGAU
digital pelo corpo discente. Já como objetivos didáticos, suscitar um campo de experimentação e de vivências e de Metodologia e Prática de Pesquisa, junto com Seminário de Dissertação de Mestrado do mesmo Pro-
para os conteúdos apresentados em sala de aula; estabelecer um território de interdisciplinaridade tendo grama (PPGAU/UFF). À UFF, junta-se os representantes do corpo docente e discente da Université Paris 8 -
como eixo de indagação as questões relativas à arquitetura bioclimática, às artes visuais e à tecnologia digital Saint Denis, envolvidos no convênio CAPES-Cofecub, da pesquisa “A Estética Transcultural na Universidade
e as aplicações às formas de construção de moradias das culturas indígenas; promover atividades em um ter- Latino-Americana”, que tem como foco a valorização dos saberes construtivos e das celebrações das culturas
ritório de reflexões e vivências que possa fomentar formas de enraizamento contra as modalidades alienantes vivas indígenas que formaram a Aldeia Maracanã/RJ - Pataxó, Apurinã, Ful-niô, Tukano, Baré, Tupinambá,
da cultura atual e fomentar o diálogo das atividades acadêmicas interligando arquitetos, engenheiros, con- Kaingang, atingindo os cerca de 35.000 habitantes índios do Grande Rio diretamente e indiretamente, os
strutores e artistas aos agentes das culturas indígenas, interdisciplinarmente e transculturalmente. cerca de 25 indígenas Guarani que ocupam o Tekoa Itarypu, em Camboinhas/RJ.
O projeto visa tornar acessível a riqueza artesanal, musical e ritual de nossas culturas indígenas, que O Museu Vivo Indígena deriva de uma postura participativa que permite aos índios se tornar mem-
compõem cerca de 500 indígenas Guarani e 35.000 índios de diversas etnias. As tribos existentes em território bros deste museu como curadores, docentes ou até mesmo como construtores. Os benefícios sociais, com a
fluminense realizam artesanato de cestaria e adornos corporais e uma arquitetura de madeira e fibras vegetais. postura transcultural e dialógica do projeto são abrangentes na inclusão indígena na academia, lado a lado
As manifestações rituais merecem ser mais bem divulgadas, nacional e internacionalmente, e comercializadas com o corpo discente e docente.
sob o enfoque da economia criativa da cultura recomendada pelo Ministério da Cultura-MinC. A sugestão As estratégias de ação do programa arquitônico para o Museu Vivo Indígena resultou no projeto de
é uma exposição digital permanente de cultura indígena, onde se enfatise as técnicas construtivas milenares arquitetura da aluna Liza Ferreira de Souza, da EAU/UFF, 2011. O partido do projeto é o diálogo trans-
dos índios sul-americanos e brasileiros. A produção econômico-cultural das comunidades indígenas urbanas cultural baseado na estrutura mítica do universo Guarani, inspirando-se na arquitetura de Severiano Mario
do Grande Rio, devem interligar-se com a “nação” Guarani sul-americana, com os Quechua peruanos, com Porto, na Amazônia, seguindo o pensamento referente à escala humana e a harmonização da edificação com
os Mapuche na Argentina e no Chile e com os índios Pueblo e Navajo Indians dos EUA, entre outros grupos o meio ambiente.
já contatados, fortalecendo a cultura milenar dos índios latino-americanos. Através da Internet, divulgar a
memória viva e a tradição oral indígena, fazendo uso do instrumental da economia de troca existente nessas O Projeto Museu Vivo Indígena
culturas comunitárias.
A implantação de um espaço arquitetônico e a realização das atividades envolvidas em um Museu O Museu Vivo tem como estratégia de ação na parte interna da edificação: espaço para oficinas e
exposições vivas, temporárias e permanentes; um palco para apresentações musicais e de coral; espaço para
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exibição de filmes etnográficos, contos, mitos, lendas e para troca de informações sobre ervas medicinais; e Escola Xamânica: Arte e Transculturalidade na
restaurante com ênfase na gastronomia indígena. Amazônia Ocidental
A parte externa do Museu Vivo Indígena, área reservada para construção de maloca temporária, um
auditório ao ar livre para palestras, debates, seminários e aulas. O paisagismo tem por objetivo contemplar
espécies de vegetação típica indígena como a palmeira Juçara e o plantio de espécies vegetais significativas da
cultura indígena como a mandioca, o milho, a batata doce, a banana e a melancia, vislumbrando um trata-
mento paisagístico inovador com plantas da rica flora brasileira. Guilherme Werlang
Ainda na concepção projetual, a cobertura chamada de “Quatro Estações” é onde acontece a “ex- Universidade Federal Fluminense
posição viva”, com apresentações de música e dança, pintura corporal e artesanato tradicional buscando a
criação de uma linha de produtos artístico e de design de maneira a ampliar o mercado consumidor de bens
artesanais de origem indígena preservando e divulgando a cultura indígena. Lembrando que todas as propos-
tas terão a presença e a ação dos próprios índios nos projetos.
A postura transcultural e dialógica do projeto traz benefícios sociais cumprindo a função de promoção 1 Do um sem o múltiplo
da educação e da inclusão social indígena. Sua implantação através de um canteiro experimental tem por 1.1 O dualismo ameríndio: a falência do Estado.
finalidade interligar a inovação tecnológica com espaços de arquitetura bioclimática. Usando a inspiração
indígena nas artes visuais e no design digital. Em um artigo publicado em fins dos anos de 1990, ([17]), sobre a cosmologia de
Acreditamos permitir a todos os envolvidos no projeto vivenciar atividades criativas e promover re- índios falantes de uma língua tupi, Tânia Stolze Lima, etnóloga brasileira, faz referência
flexões e formas de suscitar um campo de experimentação de vivências para os conteúdos apresentados em a uma assertiva xamânica já famosa entre os Guarani, povos da mesma raiz linguística
sala de aula. Implantar um território de interdisciplinaridade tendo como eixo a indagação sobre as questões tupi, conforme Pierre Clastres:
relativas à arquitetura bioclimática, às artes visuais e à tecnologia digital e a nossa cultura indígena, é como Les choses en leur totalité sont une; et pour nous qui n’avons pas désiré cela, elles
possibilitar desvendar um território inexplorado de reflexões e vivências que fomenta o diálogo sempre tão sont mau-vaises. ([3]:170)
distante de todos esses agentes envolvidos na atividade de projetar, construir e transformar o meioambiente.
Essa assertiva tem uma significação cosmológica, na medida em que esses povos
sustentam que sua existência é irremediavelmente incompleta, trágica, até. Os Guarani
desejam ser seres perfeitos sobre uma Terra imperfeita: sua existência seria um devir
constante, uma jornada constantemente incompleta rumo a um estado inalcançável,
ao longo de suas vidas, de completude, de universalidade mesmo. Esse estado, quer ele
dizer a imperfeição, na vida; mas poderia significar, outrossim, a perfeição, na morte. O
universo dos viventes seria um mundo unívoco, por oposição à ambivalência da morte.
E a univocidade, segundo os Guarani, é má:
[…] que dit la pensée Guarani? Elle dit que l’Un, c’est le Mal. ([3]:171)
BIBLIOGRAFIA
GUIMARAENS, Dinah. Museu de Arte e Origens: Mapa das Culturas Vivas Guaranis. Rio de Janeiro, FAOERJ/Contracapa, 2003. Clastres, entrementes, chama nossa atenção para os perigos do estruturalismo:
LYOTARD, Jean-François. Que peindre? Paris, Hermann Éditeurs, 2008. as inversões automáticas das dicotomias comparativas poderiam nos induzir a pensar
MEDOUX, Irma. Richard Rorty: Un Philosophe Conséquent. Paris, L’Harmattan, 2009. que o pensamento ameríndio rejeita o que o ocidental buscou. Para os Guarani, “a
PORTOCARRERO, José Afonso. Tecnologia Indígena em Mato Grosso. Cuiabá, MT, Entrelinhas, 2010. totalidade”, “a completude” e “a universalidade” não são o contrário da multiplicidade,
POULAIN, Jacques. DE L’Homme: Éléments d’Anthropobiologie Philosophique du Language. Paris, CERF, 2001. como entre os pré-socráticos. De resto, elas não evocariam a reunião de todas as coisas
SOUZA LIMA, Mirian Aiko e OLIVEIRA, Beatriz. Por um regionalismo co-eficiente: a obra de Severiano Mário Porto no Amazonas. São Paulo, apenas, um “todo” maior do que a soma de suas partes; mas, ao invés, evocariam seu
Martins Fontes, 1985. próprio contrário: sua efemeridade, o sinal de sua imperfeição incompleta, corruptível,
WERLANG, Guilherme. Musicalidade Marubo, Musicologia Amazônica: tempo histórico e temporalidade mítica. São Paulo, Revista USP 77, de sua finitude.
2008: 34-67. O mundo do Um, entre os Guarani, segundo Clastres, é o universo da designa-
ção verbal unívoca. A alternativa, contrariamente às conclusões do pensamento oci-
dental, não seria a esfera do Múltiplo; mas, ao contrário, a do Dois. A dualidade seria
a marca da potência, pois abre as possibilidades da ambiguidade, da coexistência do
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humano e do não-humano na mesma existência. Os Marubo sustentam que seu corpo carnal, yora, divide-se em duas metades. São, ambas, não apenas
O Um que a filosofia social ameríndia rejeita, em suma, é o Estado, a Justiça, a Igreja, segundo a dois hemisféricos físicos, mas, ao invés, dois vaká—viz. duas “almas”: a alma do lado direito (mekirí vaká),
interpretação bem conhecida de Clastres, seguindo um velho julgamento dos missionários jesuítas nas terras a alma do lado esquerdo (mechmirí vaká). Essas duas categorias mantêm uma relação analógica com as duas
baixas da América do Sul: que as línguas tupi não tivessem o “r”, o “l”, o “f ” era gramaticalmente coerente entidades mais inclusivas de seu mundo sobre-humano, quer dizer, o espiritual e o animal: os “espíritos” yové
com a noção de que seus falantes não tinham um “Rei”, uma “Lei”, uma “Fé”. e as “sombras” yochiñ. As muitas outras ditas “almas” desses corpos são redutíveis a essas duas categorias, se-
jam às almas “esquerdas”: a alma de suas sombras, dita por eles “nossa alma” (noke yochiñ); a alma “dos olhos”
1.2 A tradicional loucura animista e os bloqueios interculturais. (verõ yochiñ); as almas das excretas (“dos excrementos”, po˜i yochiñ, “da urina”, isõ yochiñ), seja as almas “direi-
tas”: além da alma do lado direito propriamente, a alma do coração “do pensamento e do sopro”, chinã nato:
Os Marubo, povos falantes de uma língua pano, na Amazônia Ocidental, sustentam que a realidade
é, de certo, dual: para cada planta venenosa, há uma planta curativa; para cada agenciamento social, natural alma direita (merikí vaká) => “pensamentos-sopros”(chinã nato) => “espíritos” yové
ou sobrenatural, há um negativo e um positivo; para cada metade má, há uma boa. Custou-me muitos anos
entre eles, no âmbito de minha pesquisa etnológica, para compreender as implicações de seu dualismo, a um “nossa alma” (noke yochiñ)
só tempo anímico e fisiológico, sobre suas relações com o Estado brasileiro.
alma esquerda (mechmirí vaká) => alma “dos olhos”(verõ yochiñ) => “sombras” yochiñ
A prosopopeia ocidental, que atribui subjetividade às instituições governamentais, substantivando,
abstratamente, as posições de poder nas hierarquias dos organogramas burocráticos, é antitética a essa proso- alma “dos excrementos” (poiñ yochiñ)
popeia anatômica indígena. Os brasileiros fetichizamos uma espécie de poder bem personalista à guisa de alma “da urina”(isõ yochiñ)
funções administrativas: o coordenador é “a coordenação”, o diretor é “a direção”—assim como, quando se
trata de obter um reconhecimento oficial da chefia indígena pelas agências governamentais, deve-se chamar o Essas duas categorias anímicas regulam, por exemplo, a lógica do infanticídio, entre os Marubo: que
líder de “liderança”. Os Marubo, ao invés, projetam suas afecções e suas funções cognitivas sobre certas partes os gêmeos não sejam tolerados entre eles, que o segundo irmão gêmeo ou a segunda irmã gêmea sejam mor-
do corpo, projetando sua cognição e suas capacidades afetivas sobre o meio ambiente. O que resulta, nos tos, é sinal de que ele ou ela deve sempre ser “da sombra”, “animal” ou, consequentemente, um agente ligado
encontros entre as representações indígenas e as do Estado, é a mais pura oposição entre uma subjetividade às doenças—um yochiñ—, o que quer dizer que um gêmeo, de cada dois gêmeos que nascem, deveria morrer,
naturalista e sobrenaturalista, a dos indígenas, opondo-se uma objetividade culturalista, a das instituições do ao fim das contas. Essa dualidade, entrementes, não consiste em uma dicotomia de valor moral, mas de um
Estado brasileiro. equilíbrio dinâmico, efêmero, mesmo: a exegese nativa sustenta que a vida não é possível sem ela.
Esse resultado pode ser descrito, também, como a oposição da universalidade impessoal à personifi-
cação do ambiente circunstancial. A projeção da autoridade do mundo dos Brancos a uma esfera inacessível 1.4 A temporalidade dos dualismos: círculos e linhas.
aos Índios serve para manter as abordagens indígenas aos agenciamentos sociais a uma distância que os reduz
De fato, caso se admita que essas duas categorias anímicas, com suas contrapartidas cósmicas, são
à efemeridade: para o mundo ocidental, a ausência do universal quer dizer, a contrario sensu, a presença ex-
referenciáveis ao dualismo musical dos mitos marubo—ou, vice versa, que os cantos-mitos têm significação
clusiva do efêmero. É inadmissível, ao que parece, na estatização dos territórios indígenas, qualquer forma
cosmológica—, elas correspondem a duas moções temporais: a linearidade e a circularidade, a efemeridade e
de dualidade que não seja essa, a reduzir a fugacidade das culturas autóctones aos vestígios do passado pré-
a reiteração, o transitório e a repetição, como veremos mais abaixo.
colombiano, por oposição à homogeneização institucional à qual elas são submetidas.
Embaixo, após alguma informação preliminar, apresento um exemplo concreto: o canto-mito mo-
O que resulta é um isolamento em torno das terras indígenas, como se elas fossem os últimos refú-
kanawa wenia, viz. a “emergência dos povos amargos”, também dito “dos povos selvagens ou venenosos”.
gios para populações sem qualquer contato com os Estados-nação. É certo que elas o são; mas se é verdade
Os mitos marubo, ditos saiti, são cantados, normalmente, por um xamã, em uma festa que porta
que o Vale do Javari, o mais ocidental dos territórios indígenas no Brasil, abriga a maior concentração de
esse mesmo nome, os saiti. Os participantes mais jovens da festa repetem cada verso do saiti, entoado por um
grupos humanos efetivamente isolados das sociedades industriais em todo o mundo, os povos que lá habitam
xamã, ao som de uma célula musical, empregando uma forma de responsório vocal que é seu método de edu-
e já têm contatos com o Ocidente há mais de cento e cinquenta anos têm a responsabilidade de estreitar as
cação coletiva mais tradicional. É o modelo de escola que esses povos querem seguir, quando pensam sobre os
distâncias culturais, para sanar o mal-estar criado pelos desencontros nas relações indígenas com o Estado.
modos de inserção indígena no sistema governamental do Brasil. É certo que o governo não oferece—mesmo
Eu proponho aos leitores deste artigo uma reflexão sobre essas relações no nível das trocas inter-
em seus programas de educação oficiais, bilíngues, oferecidos aos índios—sessões xamânicas durante a noite,
culturais, da assistência médica e sanitária e, sobretudo, da educação que o governo brasileiro oferece aos
com música, com dança, com pinturas corporais e com substâncias alucinógenas. É ausente, sobretudo, o
índios da Amazônia Ocidental. Eu gostaria de explorar as implicações de seu dualismo anímico-fisiológi-
uso de modos de transmissão do conhecimento que possam dar conta de suas qualidades dinâmicas, de suas
co—como uma espécie de loucura animista tradicional, na prática e na performance dos saiti e dos shõti,
moções temporais, irredutíveis à ausência do tempo que caracteriza a eternidade na qual o Ocidente projetou
nos “cantos-mito” e nos “cantos de cura”—, sobre a nova escola xamânica do Vale do Javari, que está em
sua verdade mais universal.
vias de construção entre os Marubo do Alto Rio Ituí.
É essa dinâmica temporal, não obstante, a situação normal onde esses mitos são cantados. É o caso,
1.3 O dualismo marubo: a efemeridade incessante. acima de tudo e normalmente, de mitos de origem, como todos os mitos cantados entre os Marubo: aqui,
um “canto-mito”, um saiti que narra a emergência original dos povos que habitam a floresta mais profunda,
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que sabem utilizar os perigos potenciais dos venenos selvagens—sejam eles vegetais, sejam animais—, o destacável dos corpos indígenas. De fato, assim como o Um ameríndio que Clastres descobriu se opõe ao
“amargor” do ambiente, em seu favor: Dois, não ao Múltiplo, as almas ameríndias, a se julgar desde o seio da cosmologia marubo, são potencial-
mente divisíveis em dois, durante os estados normais de saúde, ao longo a vida, em geral; mas se dividem, em
ato, em dois, apenas nos casos de doença e na morte. Da mesma forma, se o eterno e o impessoal anímico se
opõem ao tempo unilinear, unidirecional e irreversível entre nós, a música marubo realiza essa estrutura dual
como moções temporais, alternativamente lineares ou circulares.
Dessa forma, a cura mítico-musical indígena é tão pragmática como, por seus fundamentos, tem
valor de verdade. As moções temporais dos cantos identificam os estados humanos de saúde ou de doença
com as duas categorias cosmológicas mais importantes do universo marubo, os yochiñ e os yové. O equilíbrio
entre esses dois tipos de entidades nesse universo é decisivo para a saúde humana; mas trata-se de um equilí-
brio dinâmico, porquanto musical.

Figura 1: canto-mito mokanawa wenia, o saiti da “emergência dos povos amargos”. 2 O dois e seus múltiplos
2.1 A compulsão epistemológica dos antropólogos.
O dualismo do canto fala por si só: cada uma das duas metades dessa célula sonora, repetida algumas
centenas de vezes ao longo do canto-mito, corresponde a um verso intercambiável com a outra metade; cada Eduardo Viveiros de Castro, em seu artigo sobre o que ele chama de “perspectivismo ameríndio”
metade, por sua vez, é divisível em duas metades menores, cuja correlação define a natureza—seja reiterativa ([20]), chama a atenção de seus leitores para a compulsão epistemológica dos estudos antropológicos: seja na
e circular, seja sucessiva e linear—de cada metade maior. caracterização do animismo por Tylor, seja na comparação entre magia e religião por Frazer, seja no conceito
Esse dualismo, concreto assim—mas, também, semelhante às abstrações cosmológicas dos Maru- sobre o pensamento selvagem descrito por Lévi-Strauss, todos tentaram, sempre, descrever formas cultural-
bo—, é o traço mais original de minha etnografia sobre esses índios. A identidade—a ambiguidade mesmo, mente distintas de compreender a realidade, naturalmente, objetiva do mundo. O etnólogo brasileiro propõe
diria Clastres, desde os Guarani—, entre os cantores e as entidades cantadas é um traço dos mais presentes examinar as cosmologias indígenas no âmbito de uma espécie de relativismo ontológico, quer dizer, de um
na etnografia amazônica (e.g. [16], [1]). Seria bem fácil, pois, confundir toda performance musical indígena ponto-de-vista “perspectivista”: como se o indígena figurasse que o ocidental via o mundo como um ser
desses mitos com a “loucura animista” descrita pelos antropólogos, desde Edward Tylor e James Frazer ([18], humano, de certo, mas o via de um modo totalmente diferente—como se ele visse o mundo como realidade
[5]), até Lévi-Strauss e os pós-estruturalistas ([8], [4], [19]). É certo que, por conta de seu monismo episte- objetiva!
mológico, esses povos foram discriminados, no princípio, depois louvados ([2]); como a cosmologia xamâ- É certo que a perspectiva indígena sobre a visão objetivista do mundo ocidental não seria subjetiva,
nica em geral, entretanto, esse monismo foi um obstáculo nas interações interculturais amazônicas entre os tão simplesmente; mas, tal como a do antropólogo, ela há de ser perspectivista: a condição do conhecimento
indígenas e o Estado, sobretudo no campo da educação. do mundo, universalmente humano, seria a perspectiva—inclusive a dos animais, dos espíritos, etc. Em
compensação, a realidade objetiva em si seria universalmente relativa, de acordo com o corpo da entidade,
1.5 A prosopopeia musical marubo. humana ou não, de onde se toma a perspectiva humana, viz. a cognição universal.

É certo que, na Amazônia Ocidental, o mito e a música fazem falar o mundo: o mundo falado (o 2.2 O perspectivismo e a etnologia ameríndia.
mito) é o mundo escutado (a música). A identificação original entre humanos, animais, plantas e outros
objetos da natureza, entre os Marubo, resulta da capacidade de identificação do canto-mito entre os cantores Daí que, segundo Viveiros de Castro, os humanos, os animais e os espíritos amazônicos são, sem-
e os ouvintes, inclusos, entre ambos, as entidades não-humanas. Sua eficácia é mensurável como capacidade pre, cognitivamente, humanos. Da mesma forma, poder-se-ia dizer que as pessoas amazônicas são sempre
terapêutica dos cantos de cura, as versões individualizadas e funcionais dos cantos-mito. Os cantos de cura antropólogos. É uma forma bem criativa de se ser etnocêntrico, certamente, malgrado seja suspeita de um
operam através de um discurso verbal e musical que descreve as doenças particulares, sem que as etiologias vício de origem: o relativismo ontológico!
façam referência a categorias patológicas universais: a doença é sempre “de alguém”, como costuma ocorrer
entre nós; mas esse “alguém”, entre eles, não é o nome de um cientista que a descobriu, mas o próprio doente. 2.3 O neoanimismo e os dualismos ocidentais.
Daí que esses discursos musicais de cura sejam sempre individuais; mas são funcionais, também,
porque são julgados com respeito a sua eficácia, não a sua coerência como assertiva ontológica. Ou, melhor Que os dualismos ocidentais: o um vs. o múltiplo, consequentemente o objeto vs. o sujeito, a natureza
dizendo, são construídos a partir da sintaxe das assertivas ontológicas feitas nos cantos-mitos, cuja veracidade vs. a cultura, sejam tributários do dualismo cartesiano: o corpo vs. o espírito, tudo isso já é suficiente para que
é apreensível com respeito à percepção xamânica da realidade; mas seu valor semântico é pragmático: como se suspeite de sua subsunção a uma oposição ainda mais cosmológica na história do pensamento ocidental, em
a retórica antiga, eles “têm sucesso” ou “falham” em curar ([14]:8). um sentido mais literal, pitagórico, mesmo: a oposição teológica entre o hiperurânio eterno e o sublunar fugaz.
Essa interpretação estaria correta se as relações entre os cantos de cura e os cantos-mitos fossem pura-
mente formais; se a cura fosse, tão somente, psicológica; se a estrutura anímica ameríndia fosse, em suma,
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2.4 A hipótese antropobiológica e a performance indígena. movimento na arte, em sua origem performativa, está na origem, também, das capacidades linguísticas
de todos os humanos ao longo de seus primeiros anos de vida. O fechamento desse circuito permite, no
Arnold Gehlen e sua hipótese antropobiológica, segundo Jacques Poulain ([14]:14), seriam as guias princípio, a invenção da linguagem pela criança, a partir de seu balbuciar infantil. Depois, há duas alterna-
para a superação do dualismo cartesiano que sustenta os jogos de linguagem e seus estudos, na era industrial tivas: esse circuito pode ou bem se abrir em direção aos outros, como sói ocorrer, para integrar os circuitos
e pós-industrial. Gehlen propôs uma teoria da ação como tautologia entre a intenção e o ato: maiores da comunicação; ou então se fechar mais ainda em si mesmo, resultando na repetição eterna do que
[…] nel concetto di azione è compreso tanto il pensare, il conoscere e il volere dell’uomo, quanto la o desencadeou: a repetição da repetição, o método primitivo da simbolização.
sua fisicità, ma in modo tale che entrambi gli aspetti vengano pensati uno actu come reciprocamente Essa segunda alternativa, menos frequente, é o autismo. O autismo pragmático, segundo Jacques
presupponentisi e inclusi l’uno nell’altro. ([7]:14) Poulain, é a abstração de todo julgamento de verdade da linguagem, rumo à redução de toda comunicação à
realidade psicológica, subjetiva, relativa, socialmente convencional que ela designa ostensivamente como se
Gehlen desenvolve, em seguida, sua crítica ao racionalismo como crítica ao dualismo epistemológico fora ela a própria realidade real, universal. É, em suma, o Um religioso que se torna instituição: o Estado, a
ocidental, tão válido, no mínimo, quanto a indistinção entre o natu-ral e o sobrenatural no mundo pré- Justiça, a Igreja. É essa a doença genérica do homem na era industrial, conforme Gehlen:
científico: […] la primitivisation des relations sociales et intersubjectives, réduites aux circuits de consomma-
[…la] reale efficacia a distanza delle opinione fa parte […] dei reperti magici di una cultura di intel- tion, de sexualité et d’agressivité, dans la perte du sens de la réalité—solidaire de l’expérimentation de toute
lettuali, tanto quanto la credenza che si possa dare stabilità al comportamento umano a partire dalla réalité dans l’imaginaire—et enfin […] le refuge cherché par chacun dans des attitudes hyper-rigides pour
coscienza. ([7]:51; em itálico, no original) maîtriser malgré tout, par la programmation logico-mathématique ou par la planification sociale, les proces-
sus de pensée accompagnant ces explosions affectives, cognitives et motrices. ([14]:14)
É impossível, entrementes, que se suspeite de um “relativismo ontológico” no âmbito dessa antro-
pologia filosófica. Gehlen encontrou, especulativamente, a origem das representações figurativas da arte A incapacidade de bem compreender a natureza individual, artificial da conexão entre os sons emiti-
paleolítica nos ritos de imitação: a estilização dos atos vividos na performance ritual pôde preencher, com os dos e os sons ouvidos está na origem de todas as formas de autismo, inclusive as formas coletivas, como a da
recursos de sua própria codificação, o hiato entre o desejo e a satisfação, criando uma “satisfação de fundo”, pragmática contemporânea. A natureza psicológica, subjetiva, relativa, socialmente convencional da própria
de onde a “estabilização do mundo exterior”, sua durabilidade pré-conceitual ([7]:62–4). Essa ritualiza- linguagem, como criadora de realidades percebidas, se torna a Mãe Natureza, de quem o homem é a criatura.
ção performativa, nas origens da arte humana, formaria os antecedentes do desenvolvimento da linguagem
verbal—que, por sua vez, transformaria os ritos cósmicos em performances com fins singulares ([7]:67). A 3 Sapientia universalis
ciência não estaria jamais longe demais do mesmo método: isolar a experimentação vis-à-vis a realidade para 3.1 A pragmática da totalização do mundo.
construir modelos que explicarão essa mesma realidade.
Gehlen poderia descrever o efeito da canção dos mitos marubo como um resquício da função sim- Poulain sustenta, a partir de Gehlen, que a consciência é a objetificação do prazer de antecipar a
bólica original que os espíritos yové, essas entidades correlatas ao pensamento e à respiração, dão, ao cantar, consumação da resposta ao estímulo que a desencadeia através da palavra. Quando essa consciência adquire
à objetividade visual—considerada enganosa por eles, os Marubo—, dos yochiñ, os “duplos” dos corpos : da a capacidade de se subtrair da experimentação do mundo, torna-se ela obsedada pela repetição do estímulo
sombra, dos olhos, dos excrementos: inicial, voltando a fechar continuamente um circuito de auto-gozo que procura fugir do fracasso. Quando
[…] l’agire entra in rapporto con se stesso ed esprime questo rapporto in se stesso : nella semplice essa consciência, já autista, ao se tornar coletiva, tem pretensões totalizantes, ela arrisca, ou mesmo quer,
scansione ritmica e nell’ipersignificatività si conquista per questa via la capacità simbolica. ([7]:156; em exaurir o mundo de toda possibilidade de subversão, exceto pela doença e pela morte.
itálico, no original) A totalização do mundo é o resultado de uma tentativa de eleger uma pragmática comum como a
única alternativa para explicar a diversidade humana. A tentativa—já autista, por si só—realiza-se em detri-
A repetição circular do canto serve para dar significação imitativa, a figuração do mito, como res- mento do diálogo transcultural. Essa pragmática, na Amazônia, constitui-se no desafio que as cosmologias
posta dos cantores a sua performance musical ([7]:157). As entidades às quais os cantos-mitos dão forma ameríndias rejeitaram desde as primeiras tentativas de consolidar as instituições governamentais entre os
temporal—a respiração-pensamento dos yové, a imagem dos yochiñ—são tentativas para se compreender povos indígenas.
relações de causa e efeito entre fenômenos distantes no espaço: a etiologia das doenças. As relações analógicas
dessas entidades com as almas humanas—a da esquerda, mechmirí vaká, a da direita, mekirí vaká—provêm 3.2 A natureza tautológica das questões da realidade ameríndia.
da aplicação da mesma lógica ao processo de vida e de morte, de saúde e de doença.
Os xamãs marubo, na Amazônia Ocidental, estão sempre prontos a afirmar que o conhecimento das
2.5 O autismo pragmático. etiologias de cada caso patológico é a condição necessária e suficiente para aceder à cura. Os liames entre seus
cantos-mito (saiti) e os cantos de cura (shõti) são formais, em dois sentidos, pelo menos: na forma musical e
A explicação acima é dita “antropobiológica” porque seu modelo de experimentação é o desenvolvi- na forma mítica dos saiti e dos shõti, de ambas as categorias as mais importantes da performance xamânica.
mento do bebê humano. O circuito que isola a explicação do mundo do mundo que ela explica, posto em Os cantos marubo são sempre celulares, quer dizer: constituídos por células sonoras que sempre se
repetem. Cada célula, como a que vimos acima, é cantada reiteradamente como forma de escanção dos ver-
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sos do mito. Há uma célula diferente—o que se chama mané, entre os marubo—, com um motivo musical da violência antissocial sobre o equilíbrio do mundo ([10], [11]).
particular, para cada canto-mito, assim como cada um desses mané corresponde à identidade musical de cada
xamã-curador. Outrossim, tal como os versos narram um mito para cada motivo musical, para cada mané 4.2 A estética como condição de possibilidade do saber xamânico.
particular—nas formas paralelas que reafirmam, em um outro nível poético, a circularidade da repetição mu-
sical—, cada canto de cura, em seu conteúdo verbal, corresponde a um caso de doença, não a uma categoria Overing estabeleceu, também, em um volume publicado com seus alunos e seus associados ([13]),
patológica. O que a medicina científica considera como sintomas de doenças é tratado pelos xamãs como uma relação entre a ética social e uma estética da convivialidade na Amazônia. Em mais do que uma moral
diversas entidades, porquanto a lógica da afecção dessas entidades segue a construção mítica particular feita platônica das sensações, os Marubo e outros povos de sua família linguística, por exemplo, consideram o
sob a medida do doente. “belo” (rao), além de “bom”, também “brilhante”. Os Marubo, além dos cantos que evocam os espíritos e
outras afecções emocionais, utilizam desenhos geométricos em pinturas corporais e em objetos sagrados;
3.3 As representações científicas. folhas e cascas de árvores odoríferas; enquanto bailam por toda a noite para tornar propícias as sessões
xamânicas.
É certo que os médicos também estariam sempre prestes a entrar em acordo com os xamãs, ao dizer
que seu conhecimento etiológico é a condição prévia, a longo prazo, para a cura de todas as doenças; en- 5 Mathesis universalis
tretanto a medicina científica, como toda pragmática baseada na ciência, procura liames causais entre fenô- 5.1 A cosmologia: Pitágoras na Amazônia.
menos mutuamente distantes no espaço através de cadeias de causalidade material entre eles. A medicina
revela-se eficaz através da formulação de questões que demandam respostas quantitativas, mas às quais so- O meio mais seguro de acesso ao mundo dos espíritos, entre os Marubo, malgrado a sinestesia que se
mente o “sim” e o “não” são respostas válidas. Ela ocupa-se, em suma, da tradução de perguntas analógicas, costuma registrar nas culturas xamânicas dessa região ([6]), é através dos sons dos saiti (“cantos-mitos”), dos
metafóricas mesmo, em respostas digitais, às quais responderia a realidade pitagórica, última das coisas. shõti (“cantos de cura”) e de outras formas de música vocal menos comuns (viz. os initi, os cantos dos xamãs
A experimentação científica produz resultados à medida de seus aparatos de mensuração, que requerem stricto sensu: os romeya). Os cantos operam uma dialética entre a linearidade musical (inclusa na circularidade
condições artificiais, numéricas para se aproximar dessa realidade. das células cantadas, cf. supra) e a circularidade das fórmulas poéticas (inclusa, como paralelismo, na lineari-
Os xamãs, por sua vez, não utilizam modelos universais para classificar, nem para curar as doenças: dade da narrativa mítica).
ele criam mitos para cada indivíduo, como se a cura de todas as doenças fosse a de casos psicológicos. Os
liames causais, se os encontra entre personagens míticos criados ad hoc, quer dizer, os sintomas personifica- 5.2 A música, de novo e sempre: o homem é som.
dos e as moções afetivas que os curam: força para a fraqueza, tranquilidade para a tremedeira, frio para a
febre. E ainda assim, em que pese o xamã não possa figurar que seus personagens surrealistas sejam criaturas Os sons humanos, segundo a hipótese antropobiológica adotada por Poulain, é a mônada que an-
mensuráveis, redutíveis a números, ele e o médico são, ambos, criadores de linguagens das quais a medicina tecede os dualismos representacionais do corpo e do espírito humanos, que constituiriam, por sua vez, os
ocidental não pode se beneficiar sem esforço. fundamentos da epistemologia ocidental ([14]:24). A capacidade de coordenar o som emitido ao som ouvido
é função da antecipação da consumação do desejo permitida pelas capacidades linguísticas: a palavra já é o
3.4 O consenso cego. gozo do desejo que ela mesma exprime, pelo próprio fato da expressão verbal do que se deseja. Do mesmo
modo, a linguagem permite a antecipação do gozo do que se deseja ver, assim como de todas as expectativas
O problema da redução de toda causação médica a relações materiais é que ela segue uma formu- sensoriais expressas pela palavra.
lação não somente materialista, mas também objetivista do conhecimento, que imagina que as interações Os cantos de cura marubo não são cantados somente para os doentes. Canta-se, o mais das vezes, so-
linguísticas sejam indicações ostensivas de relações que são independentes da consciência dos parceiros que bre os corpos dos pacientes, normalmente deitados sobre uma rede, mas, como entre outros povos amazôni-
interagem. Seu corolário é, de um lado, a universalização dessa realidade; de outro, a relativização das trocas cos ([16]:85), o paciente sobre o qual se aplica a cura não está consciente do que se passa entre os agentes de-
linguísticas. É evidente que o objetivismo da Natureza-Mãe e o subjetivismo da diversidade cultural são duas sta. Os xamãs, com frequência, cantam juntos, cada qual com um motivo vocal (mané) diferente, tornando
faces de uma mesma moeda. a compreensão do conjunto muito difícil para quem quer que seja. O xamã, além disso, pode cantar sobre
alimentos medicinais, como sobre um prosaico mingau de banana, longe demais daquele a quem o alimento
4 A estética da produção cantado é destinado.
4.1 A ética social ameríndia. O canto, em suma, não se destina à consciência do doente, mas a seu corpo. Ele perfaz um circuito
desde a boca do xamã, através do corpo do paciente, até, de volta, o ouvido do curador. Dentro desse cir-
Em diversos artigos, a antropóloga Joanna Overing defendeu a visão de uma filosofia social da conviv- cuito, compreende-se todo o ambiente, do qual a eficácia da descrição musical—através de sons musicais,
ialidade amazônica (e.g. [12]). Sob o influxo de seus estudos de campo entre os índios das Guianas (Amazô- viz. de modo algum por designação ostensiva—resulta na saúde e na vida da comunidade indígena.
nia Setentrional), Overing elabora a noção de “endogamização da afinidade”, quer dizer: a transformação da
diferença cultural em identidade consanguínea. Os meios dos quais os ameríndios se utilizam para fazê-lo são
muitos: desde a manipulação de termos de parentesco ([9]), até as elaborações cosmológicas sobre os perigos
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6 O xamã como curador universal coisas. Ela oferecerá, aos alunos que frequentam as escolas financiadas pelo governo brasileiro, durante suas
6.1 A transculturalidade ameríndia. férias escolares, os conhecimentos indígenas de maneira mais tradicional. Os professores, assim, poderão
combinar os ensinamentos tradicionais e oficiais mais à vontade. A escola serviria como um internato para
Em junho de 2011, um professor bilíngue e um xamã, Benedito e Robson Marubo, visitaram a os estudantes que estão prontos a obter a qualificação da escola secundária conducente à universidade, en-
Europa, no âmbito de minha estadia como professor visitante no Instituto de Musicologia Weimar-Jena e quanto lhes permite manter e aprofundar seus laços com suas raízes culturais, xamânicas.
com o apoio da instituição sem fins lucrativos Ourchild. De suas apresentações sobre sua cultura xamânica e A educação é, certamente, uma etapa importante rumo à emancipação dos povos autóctones da
sobre os conflitos resultantes das relações interculturais no Vale do Javari, seu local de origem na Amazônia Amazônia. As partes interessadas são sempre os melhores defensores de seus próprios interesses. A sociedade
Ocidental, surgiram projetos sobre a troca dos saberes indígenas e da educação nacional, sobre oficinas de brasileira já oferece as condições necessárias a esse fim; a integração dos alunos indígenas a estruturas esco-
saúde e de educação e sobre uma escola transcultural, onde o conhecimento xamânico poderia se combinar, lares preexistentes, todavia, sói trazer consigo a perda da identidade e das raízes culturais.
de maneira complementar, com os estudos preparatórios para a universidade. A escola em questão, com apoio tanto internacional (a organização alemã Ourchild) quanto do gover-
no brasileiro (Secretaria de Educação do Estado do Amazonas), reforçará a cultura indígena na medida em que
6.2 A saúde transcultural. ela a permitirá prosperar em contextos urbanos. Ela permitirá que os povos indígenas, assim, se representem
autenticamente, mesmo depois de haver deixado a floresta. A escola pressupõe que a oferta de condições para
Os projetos que têm por objeto a saúde têm por objetivo uma combinação de abordagens indígenas se seguir nos estudos e ter acesso à universidade equivale a um apoio eficaz em direção à autonomia indígena,
e acadêmicas à saúde e à educação nas comunidades autóctones do Vale do Javari. Seu território de ação é a uma vez que ela se traduzirá na formação de representantes dos próprios interesses indígenas.
partilha transcultural entre o conhecimento xamânico e o científico, no contexto das ações médicas sobre as
doenças infecciosas e endêmicas locais—como a malária, a tuberculose e, sobretudo, as hepatites virais—,
assim como sobre os currículos oficiais que conduzem à universidade. Esse objetivo geral exige a combinação
de práticas rituais de cura e de educação com a medicação alopática e com os métodos didáticos ocidentais.
Esses projetos realizarão suas metas no âmbito da assistência médica convencional e da educação
formal. Esses contextos permitirão um bom resultado no treinamento de especialistas indígenas em educação
para a saúde e em educação em geral—seja para estabelecer um paradigma de comensurabilidade entre os
xamãs, os médicos e os cientistas, seja para desenvolver uma linguagem adequada para exprimi-lo em termos
comensuráveis.
A metodologia dos projetos inclui, ao lado da assistência médica e da educação formais, oficinas
entre os portadores do saber tradicional indígena, com a participação do pessoal de saúde que se ocupa das
populações locais, em busca da interface entre a ciência e a medicina ocidentais e as concepções xamânicas.
As posições do xamã, do médico e do cientista, do sujeito e do objeto de transmissão do conhecimento se
tornarão intercambiáveis.

6.3 A educação transcultural: uma escola xamânica marubo. Figura 2: a escola xamânica entre os Marubo do Vale do Figura 3: a escola, com Benedito Marubo e seu filho
Javari, em junho de 2014. Shane Pei, em fevereiro de 2015.
Conforme vimos, na Amazônia Ocidental, a educação indígena tradicional ocorre em rituais com
música e dança, ao longo de toda a noite. O Estado brasileiro recomenda e oferece, ainda que precariamente,
a educação bilíngue em algumas aldeias ao longo do dia. Como em outras escolas indígenas no resto do país,
os programas oficiais atendem o direito ao ensino na língua materna também.
Sobre conformarem-se pouco à cultura autóctone, as escolas bilíngues nas aldeias indígenas são in-
suficientes para preparar os estudantes para os exames de admissão à universidade. A Terra Indígena do Vale
do Javari é maior do que a soma dos territórios de diversos países europeus. A educação básica nas aldeias é
fraca, o que significa que os alunos devem percorreu um longo caminho, desde uma idade precoce, de suas Referências:
casas até as escolas da sede municipal brasileira mais próxima. Outrossim, os professores precisam redobrar
seus esforços para atender seja ao ensino tradicional indígena, seja ao trabalho nas escolas bilíngues. [1] Rafael José de Menezes BASTOS. 2013. A Festa da Jaguatirica: uma partitura crítico-interpretativa.
Os Marubo, um dos principais povos indígenas no Vale do Javari, confrontam essa situação difícil Florianópolis: Editora UFSC.
em suas vidas cotidianas. A construção de uma escola transcultural, atualmente em curso, em um local aces- [2] Nurit BIRD-DAVID. 1999. Animism Revisited: personhood, environment, and relational epistemol-
sível para o conjunto das treze aldeias entre os Marubo do Alto Rio Ituí, é uma resposta ao estado atual das
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[5] James FRAZER. 1982 [1911]. The Golden Bough: a study in magic and religion. Ware: Wordsworth.
[6] Angelika GEBHART-SAYER. 1985. The Geometric Designs of the Shipibo-Conibo in Ritual Context. Carlos Tukano
In: Journal of Latin American Lore. 11(2). pp.143–175. Etnia Tukano
[7] Arnold GEHLEN. 1994[1956]. L’Origine dell’Uomo e la Tarda Cultura: tesi e risultati filosofici. Mi-
lano: Il Saggiatore. [Tradução de Urmensch und Spätkultur. Philoso-phische Ergebnisse und Aussagen. Wi-
esbaden: Aula Verlag.]
[8] Claude LÉVI-STRAUSS. 1962. La Pensée Sauvage. Paris: Plon.
[9] Joanna OVERING. 1985a. Today I Shall Call Him ‘Mummy’: multiple worlds and classificatory confu-
sion. In: Joanna OVERING, ed. Reason and Morality. London: Routledge. pp.152–179.
[10] Joanna OVERING. 1985b. There Is No End of Evil: the guilty innocents and their fallible god. In:
David PARKIN, ed. The Anthropology of Evil. London: Blackwell.
N asce o primeiro movimento indígena multiétnico do século XXI, na era
contemporânea, na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 2006. Com o in-
[11] Joanna OVERING. 1986. Images of cannibalism, death and domination in a “non violent” society. In: tuito de lutar e buscar nossos direitos, que estão escritos na Constituição de 1988, no
Journal de la Société des Américanistes. Tome 72. pp.133–156. que diz respeito à educação, saúde, demarcação de nossas terras, entre outras, e que,
[12] Joanna OVERING. 2003. In Praise of the Everyday: trust and the art of social living in an Amazonian muitas vezes, não são cumpridas pelos estados e pela União. Lutamos para desconstruir
community. In: Ethnos. Vol. 68:3. a imagem esteriotipada do Índio Brasileiro.
[13] Joanna OVERING & Alan PASSES, eds. 2000. The Anthropology of Love and Anger: an esthetics of O Marechal Cândido Mariano Rondom criou o SPI (Serviço de Proteção ao
conviviality in native Amazonia. London: Routledge. Índio) em 1910, tendo funcionado em diferentes formatos até 1967, quando se tornou
[14] Jacques POULAIN. 1991. L’Âge Pragmatique ou l’Expérimentation Totale. Paris: L’Harmattan. a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). O Professor e antropólogo Darcy Ribeiro
[15] Jacques POULAIN. 2001. De l’Homme: éléments d’anthropobiologie philosophique du langage. criou o Museu do Índio em 1953, todos com o sentido de defender os povos indígenas
Paris: Les Éditions du Cerf. brasileiros, bem como seus saberes e patrimônios.
[16] Anthony SEEGER. 1987. Why Suyá Sing: a musical anthropology of an Amazonian people. Cam- Com a chegada dos europeus em 1500, os povos indígenas que aqui habitavam
bridge: Cambridge University Press. 17 vivenciaram uma realidade de extinção e etnocídio, levando gigantes nações indígenas
[17] Tânia STOLZE LIMA. 1999. The Two and Its Many: reflections on perspectivism in a Tupi cosmology. de diversas etnias deste continente a desaparecerem para sempre.
In: Ethnos 64(1). pp.107–131. Com o intuito de resgatar e melhorar culturalmente a imagem dos povos
[18] Edward Burnett TYLOR. 1958[1871]. Primitive Culture: researches into the development of mythol- originários buscamos o caminho do diálogo em espaços de negociação com os gover-
ogy, philosophy, religion, language, art and custom. New York: Harper & Row. nos federal, estadual e municipal, e ONGS que tratam de questões indígenas. Ironi-
[19] Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. 1986. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. camente o europeu quando aqui chegou denominou os povos que aqui estavam, de
[20] Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. 1998. Cosmological Deixis and Amerindian Perspectivism. In: ÍNDIOS, associando-os a povos selvagens, atrasados, um obstáculo ao progresso. Há
Journal of the Royal Anthropological Institute 4(3). pp.469–488. outros esteriótipos e termos utilizados para fazer referência ao Índio Brasileiro, por
exemplo, o uso do termo “programa de índio”, “ índio quer apito”. Até os dias atuais,
os povos indígenas carregam estes esteriótipos sobre suas culturas e modos de vida.
O Instuito TAMOIO dos povos originários deu origem à Aldeia Maracanã,
que foi criada para debater e propor avanços sobre as diversas questões que afetam os
povos indígenas. Este encontro produziu uma série de debates e reflexões sobre os fatos
que acontecem nas diversas aldeias de todo o Brasil, e sobretudo dos temas relaciona-
dos aos recursos naturais, conhecimentos tradicionais e patrimônio material e imaterial
pertecentes aos povos indígenas brasileiros. O debate acerca da demarcação das terras
indígenas foi a todo momento problematizado pelo grupo da Aldeia Maracanã . Houve
reflexão sobre a estrutura do Estado Brasileiro e suas instituições e a exclusão do índio
nas estruturas e instituições do Estado e da Sociedade Nacional.
Quando o índio e suas comunidades estam se relacionando com os não indíge-
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nas, eles percebem que o índio não é muito ativo, não tem voz nas discussões, por isso a pauta do movimento da vida na cidade.
indígena Aldeia Maracanã foi no sentido de questionar sua atuação social fora do âmbito das aldeias, pro- Eis aqui agora uma nova realidade indígena descrita por alguns observadores e estudiosos da socie-
vocando a mudança desta imagem e revindicando seus direitos e mais participação social. O indígena, hoje, dade, que me leva a acreditar que o índio urbano poderá ser elemento determinante nas soluções dos prob-
quer saber quais são os seus direitos e deveres, isto é, está revindicando o direito de ser um cidadão brasileiro. lemas indígenas, vistos em sua totalidade. O exemplo do índio Juruna, embora de forma um tanto reduzida,
Quando ocupamos o antigo prédio do Museu do Índio, em 20 de outubro de 2006, ele estava ensinou que é possível um percurso com prevalência política, que gere uma consciência cultural e tribal
abandonado pela União há três décadas, desde 1977, quando houve a mudança do Museu para o bairro de própria, uma consciência étnica para si. A razão crítica de uma “nova” perspectiva interétnica que desejo ver.
Botafogo. Permanecemos no antigo prédio do Museu do Índio até 22 de março de 2013, quando fomos Também houve consenso social com relação às agressões sofridas pelos povos indígenas das Améri-
retirados pelo governo do Estado do Rio de Janeiro através da força policial. cas. Permanece, todavia, a pergunta: “Como estão os índios, hoje em dia, em particular os do Brasil”?
Neste espaço de tempo e anos que ali permanecemos, pudemos divulgar nossos rituais, cantos, Darcy Ribeiro conclamava satisfeito que os índios do Brasil iriam sobreviver. Recordo-me da Con-
danças, grafismos, exposição de artesanato, fazer palestras sobre nossas culturas, convivências, etc. E, deste ferência dos Índios, na Aldeia Karioca, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, por ocasião do evento ECO92,
modo, conseguimos falar de nós, sem intermediários. Revelar o que somos, e não ser lembrado somente no em Maio de 1992, na qual a percepção foi de otimismo do percurso indígena no Brasil.
calendário escolar, no dia 19 de abril , “ O Dia do ÍNDIO ”. Um comitê intertribal cuidaria diretamente dos interesses das nações indígenas. Infelizmente a pro-
Tivemos boas parcerias, como as universidades UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), posta não vingou e não saiu do papel. Culpa dos índios, omissão do governo e dos grupos de apoio à causa
UFF (Universidade Federal Fluminense), UFRJ (Universiade Federal do Rio de Janeiro), FAETEC (Facul- indígena, sem falar dos interesses econômicos e de quem quer tirar o índio das Aldeias. Enfim, criou-se uma
dade de Ensino Tecnológico), Fundição Progresso, Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação- SEPE situação grave de abandono que faz com que os índios ainda sejam tratados de forma caritativa e assistencial,
-RJ, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação- CNTE, Fundação Darcy Ribeiro- FUNDAR, sem proporcionar a tão sonhada autonomia indígena. Não se ouve o termo depreciativo: “índio quer apito”,
Defensoria Pública da União- DPU e muitos outros. mas por sua vez o Brasil não pode se dar ao luxo de esquecê-lo, sob pena de perder a sua identidade em todos
Para mostrar a realidade dos povos originários neste século XXI a face escondida do verdadeiro índio os sentidos, seja político, seja religioso e até de perspectivas futuras. Então o melhor pedido de perdão é uma
brasileiro que durante cinco séculos e meio vem vivendo como refém de sua própria história, um simples ação sinergética para valer... isto é, devolver ao índio a possibilidade de criar as condições para voltar e a ter
personagem e não como um ator principal de sua história, vivendo na discriminação e sob preconceitos im- suas opiniões próprias.
postos pela “sociedade civilizada ”. Indígenas que deixaram suas aldeias e origens pelas mais diversas razões Com esta minha visão política indígena ingressei nesta jornada de luta da Aldeia Maracanã, e con-
e que vivem na cidade são considerados ÍNDIOS URBANOS, caracterizados sem sua própria identidade e tinuarei lutando para que os governos nos ouçam mais. Os povos indígenas não podem se calar.
sujeitos, como qualquer cidadão urbano, à sanções penais. Ao longo dos tempos, centenas e dezenas de anos De outubro de 2006 até março de 2013, um coletivo de várias etnias indígenas vieram a formar a
têm se discutido sobre a questão indígena em conferências, congressos, eventos e até agora não se chegou ao chamada Aldeia Maracanã, ocupando e animando com vida o antigo Museu do Índio no Maracanã, a fim
denominador comum para soluções práticas. de que neste espaço fosse criado um Centro Cultural Indígena com o apoio do poder público. O processo
A pergunta surge: Hoje, quem fala em nome do ÍNDIO ? oficial de criação do futuro Centro Cultural Indígena do Maracanã deu grandes passos entre 2013 e 2014,
Até hoje sofremos agressões em todos os sentidos, principalmente moral e fisicamente, como por em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro.
exemplo, o estupro de mulheres, invasões de nossas terras, e não temos defesa de estrutura jurídica própria, Em julho de 2012, o governo do Estado do Rio de Janeiro comprou a propriedade da União e
não temos poderes jurídicos. Índio que vive em áreas urbanas tem que ser reconhecido pela sua própria declarou sua intenção de demolir o prédio para permitir a reconfiguração do entorno do Maracanã, fa-
identidade, este é o papel do Governo Federal através de seus órgãos como o Ministério da Justiça e Direitos zendo parte das obras para a Copa do Mundo de 2014. No final de 2012, vozes se manifestaram contra
Humanos. a demolição do antigo prédio do Museu do Índio, que há um século e meio carrega a memória dos povos
No Brasil, atualmente, a população indígena é de aproximadamente 896.000 habitantes entre as indígenas do Brasil.
reservas e áreas urbanas, segundo a estatística de 2010 do IBGE , que por sinal é um número muito reduzido Ali se transformou no maior local de movimentos sociais, jamais visto na questão indígena na cidade
em um país tão grande. do Rio, mobilizando todos os movimentos e classes sociais, independente de cor e raça, crença e religiosa. O
Há mais de trinta anos que venho defendendo que é significativa a presença indígena em áreas ur- Brasil e o mundo assistiram a tudo isto através da imprensa nacional e internacional.
banas. Na minha reserva indígena, nós de Pari Cachoeria, Yauaretê, Taracuã e a sede do município de São No dia 22 de março de 2013, fomos expulsos, à força, após várias reuniões, diálogos e propostas
Gabriel da Cachoeira, do estado do Amazonas, fomos doutrinados pela Igreja Católica, pela Ordem dos que foram em vão. O governo foi irredutível, e o tempo tinha se esgotado. A Defensoria Pública da União (
Missionários Religiosos Salesianos. Isto Isto representa metade da população indígena vivendo nas cidades. DPU) acompanhou todas as negociações nos últimos meses ou até último momento da expulsão.
Chego a tal conclusão pela análise do “internato indígena”, implementado no passado pelos religiosos sale- No final de julho de 2013, após a violenta expulsão dos índios pela polícia no dia 22.03.2013, acio-
sianos e jesuítas. nado pelas manifestações populares que tomaram as ruas de todo o país em junho de 2013, o governador
O internato possui, sem dúvida, os seus méritos, que aqui não enumero, todavia por esperar uma do Estado do Rio de Janeiro recuou em sua intenção de demolir o prédio e reabriu o diálogo com o coletivo
diminuição da distância estrutural que separa o mundo tribal da sociedade nacional. Atuou como fator de Aldeia Maracanã e e, através da Secretária Estadual de Cultura Adriana Rattes, criou uma mesa de nego-
estímulo, quando não era a própria expulsão, no processo de migração para a cidade. A organização semiur- ciação que resultou em medidas positivas de dialogar com os indígenas e os apoiadores da causa, tendo em
bana dos núcleos educacionais já permitiam aos índios participarem das pautas culturais mais significativas vista que o Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas seja instalado no antigo prédio e o mesmo
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restaurado. Em setembro de 2013, o INEPAC, Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, anunciou o tom- Antes Ocas de Palha, Hoje Teias de Concreto
bamento do prédio, fato que foi publicado em Diário Oficial , na mesma época, a prefeitura da cidade do Rio
de Janeiro anunciou o tombamento do prédio pelo próprio Instituto Rio Patrimônio da Humanidade. Em
dezembro do mesmo ano, foi publicado no Diário Oficial o decreto de afetação já tombado pelo INEPAC,
para a futura criação de um Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas (universidades indígenas).
Em março de 2014, foi fundado e criada a Associação Indígena Aldeia Maracanã (AIAM) e o Centro Carolina Camargo de Jesus
de Referência da Cultura Viva dos Povos Indígenas, com Estatuto e eleição de sua diretoria, podendo repre- Graduada em História, Universidade Federal Fluminense/UFF.
sentar legalmente as questões indígenas no estado e no país. Etnia Potiguara
Vale lembrar que a “ocupação” indígena teve seu início no dia 20.10.2006, com 35 representantes
de 13 etnias indígenas: Pataxó, Krahô,Guajajara, Krikati, Tukano, Apurinã, Xavante, Tikuna, Mayuruna,
Tabajara, Karajá, Guarani e Potiguara que ocuparam o casarão que outrora abrigou a sede do Museu do
Índio. A ideia da ocupação surgiu no I Encontro dos Tamoios, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro

O
(UERJ), que foi uma reunião de representantes de várias etnias com o objetivo de discutir as questões a eles
relacionadas. Ouro admirado nos afrescos das inúmeras Igrejas existentes na América
Muitos já divulgaram suas culturas em escolas, palestras e em feiras de artesanato. O fato de o antigo Portuguesa, foi encontrado em terras nativas . Portugueses cobiçosos, ou peris como
prédio do Museu do Índio ficar ao lado do Estádio do Maracanã, tendo em vista os grandes eventos interna- eram chamados pelos índios, adentraram o litoral baiano e extraíram a preciosidade
cionais na cidade do Rio de Janeiro como a Copa do Mundo- 2014 e as Olimpíadas de 2016, pode-se imagi- do minério brasileiro. Ao retornar para Europa, a Coroa Portuguesa logo encomen-
nar o tamanho do problema, até hoje não solucionado totalmente, gerando conflitos no decorrer do tempo. dam aos artistas e artesãos da corte para traduzir em beleza e requinte na arquitetura
Atualmente, os indígenas continuam reivindicando o restauro e a revitalização do espaço e que o Governo das Igrejas, Palácios e utensílios domésticos.
do Estado tome as devidas providências, como prometeu. Até agora o restauro do prédio não iniciou. Na Arquitetura Colonial observamos a convivência entre o português e o índi-
Muitos movimentos aderiram à causa da Aldeia Maracanã e compactuam na luta das causas indígenas no gena, o cristão e pagão, o concreto e o sapê, o ouro e a madeira, azulejos e sopapos. Dois
país. mundos, duas culturas, duas formas, que no aprendizado da colonização ergueram juntas
as inúmeras construções brasileiras.
Neste trabalho queremos compreender como convivem este bocadinho de Tupi
com o outro, bocadinho de São Sebastião.
Quando vejo a cidade do Rio, cheia de contornos cosmopolitas, elevados,
portos, pontes, viadutos, preenchido de sentidos urbanos e civilizatórios, encontro
uma cidade, que como tantas outras, simplesmente cresceu beira de um rio.
Estamos iniciando o encontro com a história da cidade do Rio de Janeiro pela
perspectiva do século XVI, a partir das fontes oriundas dos relatos dos viajantes, cronis-
tas e missionários que por aqui passaram e deixaram muitas contribuições para a histo-
riografia criar as imagens do momento da chegada ao litoral da América colonial. No
meio das teias de concreto encontrei um rio de ocas de palhas e descobri que este pas-
sado colonial está soterrado pelos silêncios e endurecido pelo rigoroso concreto.
São duas cenas que surgem , o que pertence ao campo do primitivo/indígena
e o que pertence ao universo contemporâneo do mestiço/urbano. Foi massacrado
a memória dos ancestrais originários desta terra, vivendo apenas como imagem de
Carlos Tukano: um passado colonial , ou ganhando atuação histórica quando escolhido como peça de
Nasceu na aldeia de Pari–Cachoeira no município de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas, é natural da
acervo dos museus nacionais .
etnia TUKANO. Vem lutando e acompanhando o movimento indígena há três décadas . Trabalhou em projetos que
beneficiam e direcionam para a articulação política, sócio – cultural e tradicional das etnias residentes e em domicílio na Ora, como as duas imagens, do Rio Colonial e do Rio Contemporâneo con-
calha do Rio Tiquié da comunidade de Pari – Cachoeria, terra indígena do Alto do Rio Negro, junto às instituições públi- vivem na memória da apoteótica cidade cheias de encantos mil.
cas federais, estaduais, municipais, bem como as instituições particulares , nacionais e internacionais. Há vinte anos no Elas se opõem, dialogam entre si, disputam os lugares da memória oficial e da memória
Rio de Janeiro, um dos fundadores da Aldeia Maracanã. Hoje Cacique da Aldeia Maracanã e presidente da Associação real, uma imagem distorce a outra .São questões que brotam nas entrelinhas deste teci-
Indígena Aldeia Maracanã (AIAM). do orgânico urbano que esta aí montado para todos desfrutarem, cheios de destroços e
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