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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE POS GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DISCIPLINA SOCIEDADES INDÍGENAS

Acadêmica: Valesca Daiana Both Ames


Professor ministrante: Sérgio Baptista da Silva

Introdução

Busco, neste trabalho, articular reflexões teóricas e observações etnográficas junto aos
guarani-mbyá. A ênfase recai sobre os objetos agenciados pelos membros deste coletivo
indígena nas suas relações com os jurua1.
Conforme Pradella (2009), os Guarani são povos falantes da família linguística Tupi-
Guarani, que se dividem em sete parcialidades: Kaiowá, Mbyá, Nhandeva, Ava-Xiriguano,
Guarayo, Izoceno, Tapieté, sendo que no Brasil habitam as três primeiras. Estima-se que
existam de 5000 a 6000 Mbyá no território brasileiro, habitando as regiões Sul e Sudeste.
No Rio Grande do Sul, na região da Grande Porto Alegre, os Guarani habitam quatro
tekoá (aldeias): Anhentenguá, Pindó Poty, Jataí’ty, Pindó Miri (PRADELLA, 2009). No
contexto de minha “caminhada etnográfica”, visitei duas das referidas tekoá: Jataí’ty, Pindó
Miri. A primeira localiza-se entre os municípios de Porto Alegre e Viamão, no bairro
Cantagalo, a segunda encontra-se ao Sul de Viamão, nas proximidades do Parque Estadual de
Itapuã.
As minhas visitas às tekoá refletiram envolvimentos e práticas muito distintas. A
primeira visita ocorreu em 15 de abril de 2015, no contexto de um evento organizado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por meio de uma articulação entre o
Museu, a CAF, o Instituto de Estudos Avançados (ILEA), a rede Abya Yala e a comunidade
guarani mbyá, especialmente o cacique Vherá Poty Benites da Silva. A segunda visita, em 21
de junho, na mesma aldeia, dois meses depois, foi fruto de uma relação de
amizade/aprendizado estabelecida com Vherá Poty, em suas aulas de língua guarani, que eu
venho acompanhando desde abril do referido ano. Ademais, acompanhei a realização do
Jeguatá, o “caminhar Guarani”, na tekoá Jataí’ty, em 9 de maio.

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Termo guarani utilizado para se referir à população não indígena, de descendência europeia.
Além das visitas às aldeias, também acompanhei os Guarani em contextos
universitários: em sala de aula, enquanto aluna de Vherá Poty, cacique da tekoá Pindó Miri;
no ILEA e no Museu da UFRGS, quando escutei falas de Vherá Poty.
Embora possua alguns apontamentos relacionados a essas vivências, eles ainda são
insatisfatórios para que se produza uma boa descrição etnográfica. Assim, optei por realizar
primeiramente uma discussão teórica a respeito dos conceitos de pessoa, corpo e parentesco,
tal como são significados pelos coletivos indígenas, com base em teorias etnográficas,
especialmente aquelas inspiradas no perspectivismo ameríndio formulado por Viveiros de
Castro. Em um segundo momento, narro minha primeira experiência de vivência na aldeia de
Pindó Miri, enfatizando as práticas e os objetos que foram agenciados na relação com os
juruá. A narrativa é contada igualmente por meio de fotografias gentilmente disponibilizadas
pelo fotógrafo da UFRGS, Ramon Moser2.

Apontamentos acerca da cosmologia indígena

Falar de objetos, corpo, arte e território, para os coletivos ameríndios, implica


compreender outras relações e significados, diversos daqueles eurocentricamente
referenciados. Mais do que diferentes definições, essas categorias estão imersas em uma
sociocosmologia que não separa ontologicamente natureza e cultura, sujeito e objeto,
sociedade e indivíduo, humanos e não humanos, corpo e espírito, animalidade e humanidade,
entre outros (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).
Entre as noções centrais para se compreender a cosmologia e a organização social dos
coletivos ameríndios estão a de “pessoa” e “corporalidade”. O corpo é considerado
instrumento que articula significados sociais e cosmológicos, ou seja, em torno de sua
fabricação, decoração e destruição se constroem as mitologias, as cerimônias e a organização
social. No entanto, o corpo não é concebido como uma entidade individual, e não termina em
seus limites físicos. Além disso, é destotalizado no sentido em que são projetados valores
sociais a algumas de suas partes ou órgãos, e mesmo às suas “extensões”, como sangue,
sêmen e “calor corporal”. Ainda, o corpo é considerado um ponto que articula a oposição
entre o individual e o coletivo, o social e o natural, enquanto uma totalização singular do
cosmos (SEEGER, DA MATTA, VIVEIROS DE CASTRO, 1979). A não existência de uma

2
Optei por narrar a minha primeira visita à aldeia porque Vherá Poty, na segunda visita, enfatizou que estávamos
enquanto suas alunas “e não para pesquisar”, além disso, quando o indaguei sobre a possibilidade de realizar
apontamentos (diários de campo) sobre nossas aulas, ele disse que naquele espaço não teria nenhum
inconveniente.
separação, para os coletivos ameríndios, entre a parte e o todo, o indivíduo (corpo) e a
sociedade (grupo), nos remete a uma nova definição do conceito de pessoa, inspirada em Roy
Wagner e Marylin Strathern.
Roy Wagner propõe o conceito de “pessoa fractal”, como alternativa às categorias
euroreferenciadas de “sociedade” e “indivíduo”. Nas palavras do autor: “Uma pessoa fractal
nunca é uma unidade em relação a um agregado, ou um agregado em relação a uma unidade,
mas sempre uma entidade cujas relações estão integralmente implicadas” (WAGNER, 1991,
p. 03). Para ilustrar o que conceitualmente estamos sugerindo, retomamos o exemplo
wagneriano sobre a nominação Daribi. A nominação serviria como um meio para ordenar,
exprimir e conceitualizar a existência, as relações sociais, fixando um ponto de referência para
orientar a prática. Dizer o nome de alguém significa referenciar concomitantemente a pessoa e
seu grupo, ou seja, aqueles com os quais ela “é congruente”. Significa, portanto, mobilizar
uma instância que é tanto menos quanto mais do que aquele que é nomeado, pois implica
referenciar uma de suas relações possíveis (nome) ao mesmo tempo em que esta remete a uma
instância mais geral (outros seres ou objetos que compartilham o mesmo nome) (WAGNER,
1991).
A não separação entre sociedade e indivíduo, proposta por Roy Wagner e embasada
etnograficamente em seu estudo junto aos povos Daribi, é retomada por Marylin Strathern
para pensar um contexto “ocidental” e “moderno”, provocando uma aproximação entre o que
poderíamos previamente considerar como distintas cosmologias e ontologias. Mais
especificamente, Strathern sugere que, na Londres do início do século XX, retratada por meio
de uma de suas escolas de educação infantil, tínhamos uma concepção totalizante de pessoa,
considerada como um agregado específico de um coletivo – de relações sociais, educativas e
alimentares. Assim, Strathern sugere que talvez “nós” não estejamos tão distantes dos
“outros” (STRATHERN, 2006).
Ainda, o conceito de pessoa, seguindo a teoria etnográfica de Viveiros de Castro junto
aos coletivos ameríndios, pode ser estendido para outros seres que habitam o cosmos,
humanos e não humanos (especialmente animais, mas também plantas e minerais). A
condição de pessoa não é, portanto, dada ou limitada pelo corpo. Este último estabelece uma
demarcação, diferenciação, entre os seres, enquanto a condição de pessoa, ou humanidade,
seria a categoria universal. Essa concepção, denominada multinaturalista, seria oposta à visão
multiculturalista ocidental que pressupõe um corpo universal (natureza/objeto) e múltiplas
subjetividades (cultura/sujeito) (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).
Desta forma, para os coletivos ameríndios, o corpo seria uma espécie de roupagem a
esconder uma condição humana, compartilhada por diferentes animais e visível somente para
aqueles da mesma espécie ou pelo xamã. Os animais, para eles mesmos, são humanos, e veem
o mundo por meio das mesmas categorias e valores que os humanos: caça, pesca, guerra,
espíritos, xamanismo, grupos baseados no parentesco, etc. Porém, “as coisas que eles veem
são outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é
um cadáver podre, para nós é mandioca pubando; o que vemos como um barreiro lamacento,
para as antas é uma grande casa cerimonial” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 379). Essa
diversidade de pontos de vista estaria relacionada ao corpo – não o corpo biológico, mas o
corpo considerado a partir de suas diferentes capacidades e “maneiras de ser” (o pode comer,
como se movimenta, onde vive, etc.).
A condição de humanidade estaria relacionada à capacidade de agência, de ponto de
vista, possível a distintas espécies (com diferentes corpos): “dizer que os animais e espíritos
são gente é dizer que são pessoas; é atribuir aos não-humanos as capacidades de
intencionalidade consciente e agência que facultam a ocupação da posição enunciativa de
sujeito” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 372). Essas capacidades estão situadas na alma
ou espírito compartilhado pelos humanos e não-humanos. A constituição universal dada pela
alma, e a singularidade dos corpos, fazem com que os sujeitos ameríndios estejam em uma
posição dividida entre o Eu e o Outro, humano e não humano.
A universalidade da condição humana entre as diferentes espécies engendra a
necessidade de se “particularizar um corpo ainda demasiado genérico”, produzindo-o e
diferenciando-o de outros corpos, por meio do uso de plumas, grafismos e máscaras, ou
mesmo pelo processo de constituição do parentesco. Esta necessidade relaciona-se aos perigos
de ter a alma “capturada” pelos não humanos (animais, mortos ou espíritos) que buscam
impor seu ponto de vista na relação. Entender o não humano enquanto humano desumaniza o
sujeito e o transforma em presa – em animal. Assim, o encontro com o Outro sempre é
perigoso: “nunca se pode estar certo sobre qual é o ponto de vista dominante, isto é, que
mundo está em vigor quando se interage com outrem. Tudo é perigoso; sobretudo quando
tudo é gente, e nós talvez não sejamos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 397).
Para ilustrar os perigos desse encontro com a alteridade, retomamos a etnografia
realizada por Tânia Lima junto ao povo tupi, Juruna. Lima observa o desenvolvimento da
noção de ponto de vista no momento de caça aos porcos do mato. O acontecimento – os
Juruna vão caçar porcos do mato – é duplo. Para os porcos (que se veem como humanos) é
um momento de guerra e captura de estrangeiros; enquanto para os humanos é caça. Essa
duplicidade do acontecimento encerra uma dupla interpretação, relacionada tanto ao ponto de
vista do Eu quanto do Outro. Assim: 1) “os caçadores perseguem uma caça que se concebe
como guerreiros; 2) os guerreiros se defrontam com afins potenciais que agem como
inimigos” (LIMA, 1996, p. 37).
A duplicidade do acontecimento reflete a condição polarizada de caçadores e porcos,
entre corpo e alma. O ponto de vista dos porcos pode se impor sobre a alma dos humanos, que
não possui consciência de si mesma enquanto sujeito. A alma, para os humanos, é o que
escapa e pode ser capturado pelos animais ou inimigos, produzindo doença ou mesmo a
morte. Enquanto para os porcos, é sua condição corporal animal que lhes escapa. Essa
duplicidade faz com que a alma dos humanos seja visível aos porcos, enquanto o corpo dos
porcos é visível aos humanos. Estes últimos devem, portanto, reduzir a interpretação dos
porcos a uma mentira, evitar deixar-se tomar por seu ponto de vista. O que escapa ao Eu é
visível ao Outro e, por isso, perigoso (LIMA, 1996).
A humanidade é uma posição, um ponto de vista, pelo qual se está todo o tempo
lutando, dada a condição “fissurada” dos sujeitos ameríndios, situados entre o corpo e a alma,
o humano e o não humano. Nas palavras de Viveiros de Castro (2002, p. 444): “uma pessoa
viva não é um indivíduo, mas uma singularidade dividual de corpo e alma, um ‘divíduo’
internamente constituído pela polaridade eu/outro, consanguíneo/afim”; poderíamos
acrescentar: uma pessoa fractal. A estabilização, mesmo que parcial, da condição humana,
pode ser alcançada por meio de uma produção e transformação corporal, relacionada aos
processos de constituição do parentesco, por exemplo.
A constituição do parentesco, segundo a teoria etnográfica de Viveiros de Castro junto
aos coletivos ameríndios, se desenvolve sobre um fundo de afinidades potenciais, exteriores
ao grupo consanguíneo (onde estão os inimigos, os mortos, os cognatos distantes e os não-
cognatos). O exterior (não afins/outro) engloba e constitui o interior (afins, parentes), sendo a
categoria genérica, dada, enquanto o parentesco é a relação que deve ser construída, e que
pode ser desfeita. Assim, o exterior (afinidade potencial) e o interior (parentesco) não são
duas dimensões contrapostas, como previam sistemas dravidianos, mas estão em interação
dinâmica, embora assimétrica. A afinidade é exterior, mas igualmente interior ao grupo de
parentesco, pois este se constitui por meio dela (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).
Dessa forma, a afinidade (diferença/alteridade) é o “modo genérico da relação social”,
enquanto a semelhança deve ser produzida, criada corporalmente (VIVEIROS DE CASTRO,
2002). A constituição da identidade por meio do parentesco envolve processos como
comensalidade, compartilhamento de fluidos corporais, atribuição de nomenclaturas e rituais
de transformação corporal. Esses processos envolvem diferentes elementos como os vegetais,
animais e minerais e suas capacidades agentivas. Portanto, mesmo a criação de um corpo mais
“humano” envolve e depende de relações com as alteridades (corporalmente) não humanas.
O trabalho de Florencia Tola junto aos Toba do Chaco Argentino, por exemplo, nos
mostra como a constituição de um corpo comum perpassa o compartilhamento de fluidos ou
extensões corporais (sangue, esperma e leite materno), a atribuição de um mesmo nome e o
calor corporal (que distingue entre humanos e não humanos) (TOLA, 2007). O trabalho
etnográfico de Eglée Lopez com o grupo Jodi, por seu turno, demonstra como o corpo totaliza
uma visão do cosmos, por meio da recriação de um mito primordial, que faz alusão aos
componentes da pessoa (coração, corpo palpável e espírito). Cada etapa da vida (nascimento,
adolescência e morte) expressaria um momento mitológico e é perpassado por múltiplos
rituais de transformação corporal que combinam uso de substâncias animais e vegetais,
perfurações nasais, processos de isolamento e festejos (LÓPEZ, 2006).
A comensalidade igualmente produz semelhança e relações de parentesco, e atua na
estabilização e transformação dos corpos ameríndios, como demonstra o trabalho etnográfico
de MCCallum junto aos Kaxinauá. Segundo MCCallum, as mulheres Kaxinauá, por meio de
visitas a parentes distantes, desfazem ou recriam laços sociais, mediante o compartilhamento
e a qualidade da comida ofertada (MCCALLUM, 2012).
O grafismo é outro instrumento utilizado para a produção e estabilização dos corpos
ameríndios. Mais do que uma representação de entidades, o grafismo age sobre os corpos,
permitindo a comunicação e o afetamento com outros seres, como plantas ou animais. Essa
comunicação se dá por meio da pele, considerada porosa, e que media a relação entre o
interior e o exterior. O grafismo aplicado sobre a pele torna-a ainda mais porosa, permitindo o
contato com outros seres do cosmos e a consequente transformação corporal (LAGROU,
2010).
Segundo a etnografia de Sérgio Baptista da Silva junto aos mbyá-guarani, para esses
coletivos, os objetos (cachimbo, cestos, grafismos) expressam memórias de encontros com
deuses, animais, vegetais e outros seres, estando interligados ao seu sistema mito-
cosmológico. A pintura corporal e os grafismos atuam sobre os corpos, agindo na prevenção e
proteção contra os perigos da sobrenatureza, pois “representam uma aproximação, controlada
socialmente, com o espírito presente nos animais e plantas” (BAPTISTA DA SILVA, 2013,
p. 24). Esta proteção é importante especialmente nos momentos de “margem” (nascimento,
menarca e morte), quando as fronteiras entre a natureza, humanidade e sobrenatureza são
intercambiáveis (BAPTISTA DA SILVA, 2011).
Além do grafismo, os enfeites corporais, como colares e brincos, são importantes para
a formação da pessoa, sendo considerados seus atributos ou componentes corporais. O estudo
etnográfico de Joana Miller junto ao grupo Mamaindê ilustra o que conceitualmente estamos
sugerindo. Segundo a autora, para os Mamaindê, as crianças, em seus primeiros anos de vida,
são consideradas muito frágeis e devem, por isso, se enfeitar com colares de contas pretas
para que não fiquem doentes. Os colares, assim, agem sobre o corpo das pessoas, protegendo-
o e estabelecendo uma conexão com seu grupo de parentes (MILLER, 2007).
Portanto, as relações dos coletivos ameríndios com os objetos, animais e vegetais são
importantes para a continuidade de seus pontos de vista enquanto sujeitos na relação com a
alteridade. Nesse sentido, buscaremos demonstrar quais objetos são agenciados em um
contexto de encontro específico, quando professores, funcionários e alunos da UFRGS
visitaram a aldeia de Pindó Miri.

Um dia de vivência na Pindó Miri: práticas e objetos agenciados

Logo que cheguei à aldeia, percebi a realização de um ritual no interior de uma casa
cerimonial, com paredes de madeira e telhado coberto por folhas de palmeira, denominada
opy. A opy pode ser definida como um “ponto de adensamento”, que interliga relações entre
diversos planos (espiritual, terreno) (MACEDO, 2012). Nela, encontravam-se mulheres,
crianças e jovens guarani, que cantavam, dançavam, e fumavam cachimbo (petynguá).
Imagem 1: Ritual na opy
Foto: Ramon Moser

Segundo Macedo (2012), as cerimônias que se desenvolvem no interior da opy têm


como objetivo adquirir a perfeição, a perspectiva de Nhanderu e Nhandexy kuéry. Por isto, a
palavra entoada antes de ingressarmos na casa de cerimônia foi aguyjevete, que, traduzida,
significaria “perfeição/plenitude”. Seguindo com a autora: “conseguir aguyje implica a
produção de um corpo leve, destituído de sua porção carnal, terrena, para que o nhe’e volte a
Nhanderu tetã (a morada de Nhanderu) apenas com os ossos, sem passar pela morte e a
separação de um corpo perecível” (MACEDO, 2012, p. 364). Adquirir um “corpo leve”, ou
melhor, “estar leve", também foram as palavras utilizadas, naquele contexto, por um Guarani,
quando me explicou a necessidade de estar sem meus pertences, como bolsa ou mochila, para
a cerimônia.
Iniciando o ritual, dizíamos, com passos de dança, a palavra aguyjevete para dois
Guarani, que se encontravam no exterior da opy, e que seguravam uma vara rítmica de
madeira (yvyrá’i). A mesma também estava sendo utilizada pelo cacique Vherá Poty, que nos
conduzia no interior da opy, quando saudávamos – com as mãos e pronunciando a referida
palavra – as mulheres e crianças, respectivamente. Assim, um a um dos participantes eram
conduzidos para o interior da opy.

Imagem 2: ritual na opy


Foto: Ramon Moser
O canto era entoado por um conjunto de crianças, divididas entre meninas e meninos,
que, conforme Macedo (2012), são denominados xondária e xondáro, respectivamente. Seus
corpos estavam enfeitados/protegidos com colares e grafismos. O ritmo da dança variava
entre eles:

O passo dos xondáro é caracterizado pela alternância na marcação do ritmo com o


pé direito e o esquerdo, enquanto o passo das xondária se faz movimentando um dos
pés ligeiramente para frente e de volta ao lugar, alternando com o outro pé o mesmo
movimento em menor intensidade, como um contratempo (MACEDO, 2012, p.
365).

O passo das crianças era acompanhado pelos demais participantes, jurua. Todos,
então, dançavam no interior da opy. Além do canto propriamente dito, a música era composta
pelo som de instrumentos musicais, como violão e chocalhos (mbaraká), tocados pelos
xondáro.
Além do violão, do mbaraká, da yvyrá’i, dos colares e grafismos, o petynguá também
foi bastante utilizado no interior da opy. Segundo Marques (2009), o petynguá é um artefato
simbólico, que constitui a pessoa Guarani, e que media a relação destas com Nhãnderú, por
meio da fumaça: “a fumaça, a formadora do mundo, é aquela que constrói corpos mbyá. O
cachimbo (re)produz a névoa primeira que Nhãnderú produziu para fazer todas as coisas, para
criar o mundo. Isso quer dizer que, ao fumar se está (re)fazendo a ação criadora de Nhãnderú”
(MARQUES, 2009, p. 34).
Após a realização do ritual, quando todos já se encontravam no interior da casa de
cerimônia, Vherá Poty agradeceu a visita e destacou que ali estavam presentes representantes
da FUNAI, do Ministério Público Federal, do Museu da UFRGS, da CAF, professores das
aldeias, bem como lideranças de outras aldeias indígenas, entre eles, kaingang. Seguiu-se a
realização de danças, uma das quais é denominada tangará, performadas tanto por indígenas
quanto por não indígenas, conforme imagens abaixo:
Imagens 3 e 4: Danças Guarani
Fotos: Ramon Moser

Depois da realização das danças, almoçamos, com a alimentação sendo


complementada por mbojapé, um pão produzido com água, farinha de trigo e sal, preparado
diretamente na brasa. Após o almoço, que se estendeu por cerca de duas horas, fomos
conduzidos até o espaço em que aconteceriam brincadeiras e jogos.
A primeira brincadeira, conduzida por Vherá Poty, consistiu em carregar toras de
madeira correndo, o que demandou grande esforço por parte dos participantes, a seguir
pulamos “salto em altura”, igualmente desafiador. A imagem 5 ilustra o acontecimento que
encerrou as atividades de vivência na aldeia:

Imagem 5: salto em altura


Foto: Ramon Moser

Concluindo, podemos compreender as atividades realizadas no período de visita dos


juruá à tekoá – ritual com danças, cantos, brincadeiras, comensalidade – e os objetos
agenciados – violão, mbaraká (chocalho), yvyrá’i (vara de madeira), petynguá (cachimbo),
colares e grafismos – como maneiras de se relacionar e o mesmo tempo manter seus pontos de
vista na relação com a alteridade, já que, “os brancos são fonte de grande preocupação por
parte dos Guarani”, pois sua proximidade “implica uma série de dificuldades e problemas”,
pois possuem outro “modo de ser”, considerado perigoso (PRADELLA, 2009, p. 111-112).
Referências

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“objetos” e “recursos naturais”. In Revista de Arqueologia, SAB, v. 26, n. 1, 2013.

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PERSPECTIVAS DE UMA ANTROPOLOGIA DA VIDA DIÁRIA. Rev. bras. C. Soc.,
São Paulo, v. 13, n. 38, Oct. 1998 . Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
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