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A visão dã mulher nã filosofiã e nã

Greciã ãntigã

A notícia histórica que se tem em geral do “status” da mulher na Grécia Antiga não é
das melhores. A visão mais comumente disseminada é a da mulher como uma espécie
de “homem incompleto” e portadora de determinados vícios e fraquezas que a
impediam em geral de ter uma cidadania plena.
Aristóteles, por exemplo, apresenta uma descrição nada lisonjeira da natureza
feminina. Sua função, praticamente isolada, seria a reprodução. Ademais, seria a
mulher marcada pela fraqueza, falta de energia dinâmica, uma espécie de virtualidade
no aguardo das vontades e iniciativa do homem, este sim proativo em relação à
indolente passividade feminina. Aristóteles ainda fala do que chama de “catamenia”,
ou seja, o escoamento da menstruação, porque a mulher não teria calor suficiente em
si ou energia para sequer digerir o próprio alimento, necessitando de uma expulsão
mensal do excesso não aproveitado. Chega a criticar, até mesmo, o formato do
aparelho genital feminino, que seria oculto no baixo ventre, comparando-o a “um vaso
invertido, de bordas úmidas”, que serve para fins de “sucção sobre o objeto que entra
em contato com ele” – em especial o esperma. A fêmea é apenas um material, um
“recipiente”, de modo que a verdadeira “alma” ou “papel ativo” é reservado ao
macho. [1]
Não obstante a estudiosa Anne Cauquelin pretenda apresentar essas manifestações
aristotélicas sobre a mulher, não como uma descrição caracteriológica, mas apenas
anátomo–fisiológica, advogando a tese de que, nessa exposição, tanto homem como
mulher são tomados como “objetos”, e não “sujeitos”, e a função reprodutora da
mulher seria, para o filósofo, motivo de encantamento e admiração, [2] torna-se muito
difícil não entrever uma evidente submissão e secundariedade ao papel feminino.
A evidência dessa subalternidade feminina no pensamento aristotélico se conformará
de maneira bastante escancarada quando ele abordar e desenvolver o tema da Política
e da unidade-base da cidade como sendo a família. Em sua categorização e divisão de
naturezas particulares de cada ser, Aristóteles reserva à mulher um papel claramente
subalterno e condicionado à obediência ao homem. O filósofo aponta que os bárbaros
confundem e igualam a mulher ao escravo e que isso deriva do fato de que ambos
(mulher e escravo), por natureza, não têm “o instinto de mando”. Embora faça uma
diferença e coloque a mulher acima do escravo, segue numa hierarquia de submissão
no seio da família idealizada em “A Política”. Fala, portanto, na “dupla união do
homem com a mulher” e do “senhor com o escravo”. [3] Daí segue para instituir duas
espécies de “autoridade” paralelas, mas semelhantes, no que tange à composição de
uma clara e induvidosa hierarquia. Primeiro a “autoridade do senhor sobre o escravo”,
depois a “autoridade marital”, exercida pelo homem sobre a mulher na família. E se a
família, para Aristóteles, é a unidade básica que conforma a sociedade, então o papel
da mulher nessa mesma sociedade não pode ser de destaque e jamais em pé de
igualdade com os homens em qualquer situação. [4]
Ademais, Aristóteles é extremamente crítico com relação à liberalidade de Platão, no
que tange ao “status” feminino, na República. Para ele, a posição de Platão implicaria
num “comunismo integral entre os homens e as mulheres”, que teria um efeito
destruidor catastrófico sobre a família e, consequentemente, sobre a sociedade. [5]
Mas, nem só de trevas misóginas se compõe o pensamento grego antigo. Sócrates nos
lega ensinamentos que, embora não tenha redigido, foram-nos transmitidos pelas
obras de Platão, seu maior discípulo.
A própria trajetória biográfica de Sócrates já nos aponta a proeminência das mulheres
em sua vida, inclusive intelectual. O historiador Paul Johnson esclarece que a filósofa e
instrutora Diotima de Mantinea foi responsável pela educaçãoe treinamento
intelectual de Sócrates na juventude. Ele a define como “uma mulher sábia”. Segundo
Johnson, “Diotima foi, (...), mais importante na criação do Sócrates que conhecemos
do que qualquer outro ser humano”. Depois disso houve ainda outra mulher de suma
importância na vida do filósofo. [6] Esta foi Aspásia de Mileto. Nas palavras de
Johnson:
“Aspásia era excepcional: altamente literata, mulher de muitas leituras, que se
tornara membro do círculo de Péricles e, cinco anos depois, quando ele se divorciou da
mulher, tornou-se consorte e permaneceu assim até a morte dele. Conhecia bem
Sócrates, tendo o acompanhado em suas peregrinações por toda Atenas e, suponho
eu, tendo sido ‘examinada’ por ele. Sócrates tinha em alto conceito o intelecto dela e
suas conquistas literárias; quando recebeu o pedido dos pais de um rapaz para que
recomendasse um mestre para ensiná-lo retórica, ele mencionou Aspásia. Isso causou
surpresa, mas o conselho foi aceito e provou-se verdadeiro”. [7]
Essas duas mulheres tiveram comprovadamente grande influência positiva na
formação do pensamento de Sócrates, de modo que ele defendia que a mulher
deveria ter um papel muito ampliado na sociedade de Atenas. O filósofo dava especial
importância ao fato de que as mulheres deveriam ter acesso a uma educação “tão
completa quanto os homens”. Pensava que essa elevação das mulheres ao mesmo
“status” dos homens na sociedade não era um favor, mas sim uma manifestação de
Justiça. Isso porque, para Sócrates, não havia diferença entre capacidades intelectuais
em geral entre homens e mulheres. Estas últimas deveriam, portanto, como já acima
frisado, ter acesso amplo à formação e educação, bem como “ocupar posições de
responsabilidade na sociedade”. A única limitação vislumbrada por Sócrates, ao menos
como regra, era a desigualdade de força física. Não obstante, nada impediria, segundo
seu pensamento, que aprendessem a cavalgar e inclusive fossem treinadas como
guerreiras, se assim o quisessem e tivessem vocação. Seu desiderato era “um sistema
que permitisse às mulheres desenvolver suas mentes e habilidades e perceber seu
potencial”. Não via impedimentos para que ocupassem postos de comando, mas,
também, por outro lado, jamais descambou para essa espécie hoje bastante comum,
de feminismo opressor, que quer obrigar a mulher a ser uma espécie de
“homenzinho”. Sócrates advogava uma liberdade para que as mulheres escolhessem
sua vocação e, se esta fosse a de cuidar do lar, dos filhos e do marido, tudo bem, nada
a opor. A verdade é que o filósofo confiava nas mulheres, acreditava em seu potencial
para guiar as próprias vidas e fazer as próprias escolhas, sem tutela masculina ou
feminina. [8]
Percebe-se, pelo acima exposto, que Sócrates estava não somente à frente de seu
tempo, mas, até mesmo, sustentava um pensamento que confere à mulher uma
dignidade maior do que a atribuída por muitos feministas da atualidade, os quais
supostamente defendem os Direitos da Mulher, mas pretendem rotular pessoas e
impor certos padrões, ainda que isso não seja do interesse das próprias mulheres em
cada caso concreto.
O pensamento avançado de Sócrates para sua época e até mesmo para hoje, tendo
em conta seu equilíbrio, é muito bem descrito a todos nós por Platão em “A
República” no diálogo com Glauco:
“Sócrates – Consequentemente, meu amigo, não há nenhuma atividade no que
concerne à administração da cidade que seja própria da mulher enquanto mulher ou
do homem enquanto homem; ao contrário, as aptidões naturais estão igualmente
distribuídas pelos dois sexos e é próprio da natureza que a mulher, assim como o
homem, participe em todas as atividades, ainda que em todas seja mais fraca que o
homem.
Glauco – Perfeitamente.
Sócrates – Concederemos, então, todas as atividades aos homens e nenhuma às
mulheres?
Glauco – Como fazer isso?
Sócrates – Mas existem mulheres que têm uma disposição inata para a medicina ou
para a música e outras que não têm.
Glauco – Com certeza.
Sócrates – E não existem as que possuem uma disposição inata para a ginástica e para
a guerra e outras que não apreciam nem a guerra e nem a ginástica?
Glauco – Creio que sim.
Sócrates – Muito bem! Não existem mulheres que amam e outras que odeiam a
sabedoria? Não existem algumas que são ardorosas e outras sem ardor?
Glauco – Sim, existem.
Sócrates – Logo, existem mulheres que são aptas para a guerra e outras que não são.
Ora, não escolhemos homens dessa natureza para torná-los nossos guerreiros?
Glauco – Sim, escolhemos.
Sócrates – Portanto, a mulher e o homem possuem a mesma natureza no que
concerne à sua aptidão para proteger a cidade, sem esquecer que a mulher é mais
fraca e o homem mais forte". [9]
Claramente o pensamento socrático é uma luz sobre a condição das mulheres na
filosofia da Grécia Antiga. Luz esta que pode perfeitamente clarear os caminhos da
contemporaneidade, inclusive, com vantagens sobre concepções ditas “modernas” e
“garantistas” em relação às mulheres, mas que, na verdade, as sujeitam a limites
heterônomos impostos por uma masculinização forçada em uma versão radicalizada
de um feminismo militante.

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