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LucíolaFreitasdeMacêdo

1
Primo Levi é autor grandiosa obra ainda pouco difundida no Brasil. Tal
estado de coisas não dispensará uma breve menção à sua biografia. Seus

livros mais conhecidos são aqueles de cunho testemunhal, forjados da


necessidade incontornável de narrar o que se passou no período em que foi
preso e confinado no Complexo de Auschwitz (entre fevereiro de 1944 e
janeiro de 1945).

Escreveu romance, ensaio, conto, poesia, adaptações de seus livros


para o teatro, tradutor e articulista regular do Jornal La Stampa por quase
três décadas. Pese a diversidade e a versatilidade quanto à forma, ao nível
do conteúdo, o campo de concentração - essa “gigantesca máquina
geradora de morte e de corrupção” - foi o motor e eixo principal em torno
do qual sua produção literária veio à luz.

Nascido em Turim, químico de formação, aos 24 anos, o jovem Levi foi


detido pela Milícia Fascista, junto a um grupo de estudantes ligado ao
movimento antifascista “Giustizia e libertá”. Foi enviado, em janeiro de

1944, para o Campo italiano de Fossoli, local onde eram confinadas pessoas
pertencentes a vários agrupamentos não gratos ao governo fascista italiano.
No dia 22 de fevereiro de 1944 foi deportado para o Complexo de Auschwitz.
Com a derrocada alemã, em 27 de janeiro de 1945 o campo é libertado pela
Armada Russa e Levi é enviado para Kantowice, um Campo soviético de
trânsito, localizado na Polônia. Lá conhece o médico Leonardo Debenedetti
e com ele redige, a pedido do comando russo, seu primeiro escrito sobre os
Campos de Concentração: um relatório sobre “A organização higiênico -

1
sanitária do Campo de Monowitz para judeus” 1, recentemente publicado no

Brasil, pela Companhia das Letras. Sua viagem de retorno à Itália, narrada
2
em A trégua (1963), foi um verdadeiro périplo, teve início somente em junho
de 1945 e durou cerca de quatro meses. Em vez de um trajeto retilíneo e
descendente, a rota que o levaria de volta para casa seguiu a direção oposta,
atravessando a Polônia rumo a leste, fazendo uma imensa volta pela Rússia,
até cruzar a Romênia e a Hungria, passando pela Tchecoslováquia, Áustria e
Alemanha.
Ao chegar a Turim, em 19 de outubro de 1945, tomado por uma
necessidade incontrolável de narrar o que se passara nos “Campos da
morte”, escreveu febrilmente seu primeiro testemunho, o mundialmente

conhecido, É isto um homem? 2. Ao mesmo tempo, retomava o seu trabalho


de químico em uma fábrica de vernizes nos arredores de Turim. Havia a
opacidade da abominável experiência que levara Primo Levi à escrita, mas
sua escrita não se prestava a recobrir ou tentar suprimir o que seu incansável
labor com as palavras não conseguiria jamais traduzir em palavras. Fosse o
impossível de dizer, vazio ou cheio, resto ou nada, lacunar ou sem fissuras,
era preciso dar-lhe voz, ainda que não fosse possível explicá-lo.

Levi constituiu para si um “dever de memória”. O que se deu,


simultaneamente, como um risco e uma oportunidade. Com o fim da Guerra
e a derrota da Alemanha, Primo Levi é libertado do Campo de Buna-

Monowitz e, testemunhando, dá-se conta que de que seu testemunho não


se confunde com a descrição exata do que aconteceu. Não é possível

1 LEVI & De Benedetti. Relatório sobre a organização higiênico sanitária do campo de


concentração para judeus de Monowitz. In: AssimfoiAuschwitz:Testemunhos1945-
1986.São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p.11-14.
2 LEVI.Éistoumhomem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
2
recuperar, através dos signos, a forma intacta dos acontecimentos vividos,
nem há como fazer coincidir o tempo do vivido com aquele do revivido,
3
reconstruído pela memória, através da linguagem. Não apenas isso, ele
parece dar-se conta, com a escrita os primeiros poemas, que aquilo que
interrompe, corta, fragmenta, silencia e interpela a narrativa, testemunha
mais que o esforço de uma minuciosa descrição dos fatos.
O testemunho como prática discursiva não poderá jamais se fundar
em um discurso fechado, completo, ou num relato totalizador do
acontecimento traumático.

Um dos principais recursos utilizados por Levi em sua escrita, nesse


trabalho de forjar bordas para o impossível de representar, foi a escrita
breve, por fragmentos, que se caracteriza por uma
montagem/desmontagem de micro peças narrativas;por uma ausência de
cronologia; e por atos de fala, ao invés vez de explicações causais que, muito
frequentemente, acabam por incorrer ou na obscenidade, ou num
entendimento fechado. O leitor não encontrará um fio narrativo contínuo,
mas o suceder de episódios cuja força expressiva máxima dá-se a ver através
dos pormenores, tais como na descrição feita por Levi das mães ao preparar
os filhos e as provisões para a viagem, a da cena das roupinhas penduradas
no arame farpado ao alvorecer, ou a cena da banda de música (p.27-28).
Isso permite que o narrador mostre mais que explique, acionando

através dos pormenores um poderoso mecanismo metonímico no qual cada


detalhe, cada fragmento, diz de sua positividade intrínseca evocando não o
sentido fechado, causal, explicativo, mas uma centelha de sentido, que
remete à lacuna, à incompletude.

3
Através do labor implicado na tentativa de nomear as marcas do
horror, Levi constitui contornos de linguagem para o inominável, ainda que
4
nesse exercício, se depare com o que extrapola a narrativa, evidenciando o
choque entre linguagem e o impronunciável, com seu resíduo inassimilável.
O testemunho é justamente isso que se forja nesse espaço entre a narrativa
e aquilo que a ultrapassa.

Levi dissecará magistralmente com sua pena a concepção de mundo


que tornou factível a máquina nazista, de múltiplas formas, em poesia,
conto, romance e ensaio. Tal concepção de mundo, presente no cotidiano
da vida dos povos e das nações de forma esporádica e não coordenada, é a
matéria-prima de seus contos fantásticos, “armadilhas morais”, ou “escritos
de invenção”, como se comprazia em nomeá-los.

Também nos contos Levi constitui uma narrativa breve a partir de


pequenos detalhes, de pontos em torno dos quais as histórias se condensam
e se expandem3.
Com a sátira científica, convida o leitor a transferir-se para um futuro
próximo, cada vez mais impulsionado pelo progresso tecnológico, palco de
experimentos inquietantes, onde atuam máquinas tão extraordinárias
quanto imprevisíveis e caprichosas. Temas como a realidade virtual e a
clonagem humana, ainda embrionários naqueles tempos, são recorrentes
nos contos fantásticos de Levi.
Ele havia declarado mais de uma vez que entre o Lager e suas
invenções existiam pontos de conexão e quiasmas. Suas armadilhas morais
forjam uma passagem entre esses dois mundos, que só aparentemente se

3
Belpoliti, 2010.

4
configurariam como mundos paralelos: a vida cotidiana e o lugar extremo e
extraterritorial do Lager4.
5
A imbricada conexão entre estes mundos é trazida à luz por meio da
invenção de múltiplas engenhocas., que contém invariavelmente um
princípio de irracionalidade, um ponto cego, havendo sempre no horizonte
a possibilidade iminente de que suas potencialidades criadoras se revertam
e passem a funcionar de modo avassaladoramente destruidor. Através delas
e por seus meios, a vida dita normal pode ser repentina, imediata e
inexplicavelmente revirada em experiência concentracionária5. Desse modo,
parodia os progressos da ciência e sua maquinaria e a burocracia, tanto os
que se prestaram ao funcionamento burocrático dos Campos de
Concentração Nazistas, quanto aqueles dos quais nos servimos na vida
cotidiana.
Levi convoca o leitor, com sagacidade, a apreciar e a rir das situações
embaraçosas vividas pelos personagens de seus contos, tais como o drama
do sujeito que adquire um duplicador tridimensional, o Mimete, e,
duplicando sua mulher, se vê obrigado a duplicar-se a si próprio.
Ou ainda, através das situações tragicômicas forjadas a partir das
engenhocas criadas por sua fértil fantasia, tais como o Versificador, feito
para compor poesias; o Calomero, para medir a beleza; o Psicofante, leitor
do caráter das pessoas; o Torec, mais viciante que qualquer droga, já que,
além de reproduzir fielmente, disponibilizará as mais radicais experiências e

sensações vividas por outras pessoas; ou a novíssima geladeira feita para


hibernação de seres humanos; e todos os tipos de máquinas de última
geração colocadas no mercado italiano pela multinacional americana

4
Belpoliti, 2002b, p. 131-141.
5
Belpolitiapud Dias, 2005, p. 17.
5
NATCA. Há ainda os mnemagogos, feitos para evocar a memória através dos
odores; a versamina, substância capaz de transformar dor em prazer; entre
6
outras invenções hilariantes.
No irônico conto “Para o bem”, publicado em Viziodiforma, por uma

ação humana e com o objetivo de otimizar seu funcionamento, a rede


telefônica italiana ganhará vida própria e passará a funcionar de forma
autônoma, colocando dois assinantes em comunicação sem que nenhum
dos dois tivesse feito a ligação, intrometendo-se e dando-lhes conselhos não
solicitados sobre os mais variados assuntos, inclusive os mais íntimos e
reservados, encorajando os tímidos, desmentindo os mentirosos, ou
interrompendo sem aviso prévio as comunicações quando julgava o
conteúdo inoportuno.
O “dever de memória” conjugava, portanto, um viés eminentemente

político, com seu fino humor e sua mordaz ironia, além de um veio
declaradamente freudiano. Narrar era preciso, pois a linguagem lhe vinha
como o único recurso capaz de fragmentar a petrificação do horror, de
incidir sobre a paralização da vida psíquica. Levi acreditava, com Freud, que
ao nível da história da humanidade, o que era rechaçado, silenciado,
apagado, ou seja, o que não fosse minimamente perlaboradoe o que não
pudesse ser recordado, se repetiria cega e necessariamente, pois na
impossibilidade de recordar, tende-se a atuar e a repetir.

“Se não de fato, pelo menos como intenção e concepção o livro já nasceu
nos dias do campo... daí seu caráter fragmentário: seus capítulos foram
escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O trabalho de
ligação e fusão foi planejado posteriormente”.

6
O primeiro livro de Primo Levi, é, de acordo com Marco Belpoliti, um dos
curadores de sua obra, muito mais que um testemunho, é uma obra de clara
7
inspiração literária, cujos modelos se encontram na tradição literária italiana
e nos grandes escritores europeus do século XIX. Trata-se de um livro
incomum, pois tem suas raízes fincadas tanto em fontes orais, quanto
escritas, para as quais Levi não se esforça em dar uma forma épica, como
acontecerá em A trégua, em que narra sua viagem de retorno à Itália.
Também não é possível enquadrá-lo no hall das autobiografias. Ao mesmo
tempo em que escreve febrilmente pequenas peças narrativas, no mesmo
período põe-se a escrever uma série de poemas, que participam da
elaboração da narrativa. Ainda no mesmo período, escreve o conto
fantástico, Osmnemagogos (suscitadores da memória).
O livro é recusado pela editora Einaudi em 1947, com o argumento de
que o momento não era propício para a publicação daquele gênero de livros.
Com o apoio da rede de ex-combtentes da qual fazia parte, Levi não desiste.
Retoma o manuscrito e o retrabalha tendo em mãos as observações que
recebeu da Einaudi ao recusar sua publicação. Modifica alguns aspectos de
seu estilo, ajusta seu vocabulário, retoca inúmeras citações de Dante
Aliguieri feitas de memória..., até o aceite por uma pequena editora, a De
Silva, cujo diretor além de um homem de letras foi trabalhou intensamente
nos movimentos de resistência contra o fascismo. Isso tudo pra dizer que os
primeiros leitores de Levi não pertenciam ao meio literário. Somente uma

década após a sua primeira publicação, quando é novamente submetido, e


dessa vez aceito pela editora Einaudi, o livro extrapola o círculo de leitores
formados por ex-combatentes e tem o reconhecimento da crítica. Para essa
segunda edição revê e praticamente reescreve o livro, acrescentando-lhe o
capítulo “Iniciação”. A partir de então, já em 1959, o livro é traduzido na

7
Inglaterra e nos estados Unidos; na Alemanha, em 1960; na França, em
1961; e na Holanda, em 1963. A primeira tradução e edição em espanhol
8
saiu pela editora catalã El Aleph, somente em 1987.

Por ocasião da tradução e publicação de seu livro na Alemanha, diz ter


sido tomado de uma emoção violenta e nova e que isso teve a ver com a
possibilidade de dizer aos alemães o que nele jamais se calara. Mas Levi não
confiava no editor alemão. Escrevera- lhe uma carta “quase insolente”.
Intimava-o a não cortar ou trocar uma só palavra do texto e exigia que
enviasse o srcinal da tradução por partes, capítulo por capítulo, à medida
que o trabalho prosseguisse.
Mas eis a primeira surpresa: junto com o primeiro capítulo, “muito

bem traduzido”, recebera uma comunicação do tradutor “em italiano

perfeito”, apresentando-se. Tinha a mesma idade que Levi. Havia sido

convocado durante a guerra, mas o nazismo o repugnava. Em 1941 simulou


uma doença, foi internado num hospital e conseguiu passar o período da
suposta convalescença estudando literatura italiana na Universidade de
Pádua. Chegou até mesmo, já na Itália, a militar pela frente “ Giustizia e
libertá”, a mesma na qual Levi militara.
Ao ser convidado pelo editor a escrever o prefácio da edição alemã,
hesitou e acabou recusando. Sentiu-se tomado por um embaraço confuso,
por um bloqueio que cortava o fluxo das ideias e da escrita. Escreveu ao

editor dizendo que não se sentia em condições de escrever um prefácio para


seu testemunho e propôs a ele uma solução indireta: antepor ao texto do
livro o trecho de uma carta de agradecimento escrita por ele ao fim da
laboriosa colaboração com seu tradutor, com o qual manteve ao longo do
trabalho uma relação marcada por sentimentos contraditórios. Sentia por

8
ele imensa gratidão, mas o concomitante sentimento de suspeita jamais o
abandonara.
9
Quanto à publicação e repercussão da obra de Primo Levi no Brasil. É
sabido que a sua obra teve que esperar quatro décadas para começar a ser
publicada em nosso país, o que significou, levando em consideração a sua
tradução e difusão em outros países, uma publicação tardia. O primeiro livro
a romper tal barreira foi Éistoumhomem?que saiu em 1988, pela editora
Rocco. Na sequência vieram, ao longo das décadas seguintes, por diferentes
editoras,a publicação de alguns de seus livros mais difundidos em outros
países. Somente após o fim da Ditadura Militar teria havido algum
movimento e interesse em relação à publicação das obras de Primo Levi no
Brasil. A entrada de Levi no difícil mercado editorial brasileiro, cujas
especificidades mereceriam um acurado exame, deu-se principalmente em
função da ampliação de perspectiva propiciada por sua obra, ao conduzir
suas reflexões para além do universo concentracionário propriamente dito.

O “dever de memória” foi também o que levou Primo nos anos 1970-

1980 a retomar febrilmente a temática dos Campos de concentração e


dedicar os últimos anos de sua vida à escrita de um conjunto de ensaios,
talvez os mais pungentes, reunidos em seu último livro publicado em vida,
Osafogadoseossobreviventes 6, que saiu pela editora Einaudi em 1986.

Temos nesse período um retorno de teses revisionistas e negacionistas na


Europa, que se obstinavam em construir uma verdade de conveniência,
reduzindo as dimensões, quando não, negando as atrocidades cometidas
pelo Terceiro Reich. Esse movimento o afetou imensamente, e o levou a se

6
LEVI, P. Osafogadoseossobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

9
manifestar publicamente, em numerosas ocasiões, em suas falas, ensaios e
artigos para jornais.
10
Embora com o fim da guerra a máquina de extermínio nazista tenha
sido desmantelada, Levi advertira já em seu primeiro testemunho: quando a

convicção de que cada estrangeiro é um inimigo torna-se uma infecção


latente e, de esporádica, passa a constituir um sistema de pensamento,
tornando-se um dogma não enunciado, encontra-se ali, como último elo da
cadeia, o Campo de Extermínio7. Basta olharmos com atenção o que se passa
no mundo atualmente, desde as diferentes situações que ameaçam a
estabilidade e viabilidade do Estado Democrático de Direito pelos quatro
cantos do mundo, ao êxodo de milhões de palestinos no último ano, para
constatarmos que tal assertiva é dotada de inquietante atualidade.
O movimento de apagamento da memória e dos vestígios do genocídio
levado a cabo pelo nazismo, sempre esteve no horizonte da história, desde
os primeiros anos do após guerra: se por um lado o chamado processo de
“desnazificação” da Alemanha, por meio do qual os criminosos de guerra

eram capturados, processados e julgados, corria a passos lentos, por outro,


a fuga em massa da cúpula do Terceiro Reich encontrou, no rechaço norte-
americano à chamada “ameaça comunista” e com o incremento da guerra -

fria, um terreno fértil para a formação de uma rede internacional de fuga de


nazistas para a América do Sul, a chamada ratline (linha dos ratos). Não
foram poucos os carrascos que vieram reconstruir suas vidas na América do

7
Ibidem.

10
Sul, notadamente na Argentina, seu destino preferido, mas também no
Paraguai, Bolívia, Chile e Brasil, países onde vigoravam regimes ditatoriais. 8
11
O último ensaio escrito por Primo Levi e publicado no jornal Lastampa,
em janeiro de 1987, poucos meses antes de sua queda no vazio do vão de
seu apartamento – o qual muitos, desde o Instituto Médico Legal, até a
mídia, consagraram à causa de um suicídio –, chama-se sugestivamente “Il
buconerodeAuschwitz ”. Nesse artigo, o escritor responde duramente às
teorias revisionistas alemãs e francesas de então, em suas insistentes
tentativas de banalizar e até negar os horrores e a real dimensão do
massacre nazista.

Para Ernesto Ferrero, não seria lícito interpretar e forçar dados a fim
de classificar a queda que levara a vida de Primo Levi de suicídio. Seria
desejável que a “nebulosa de explicações” mantenha-se como tal, sob o

risco de incorrer-se em interpretações selvagens, ou pior, de interpretar a


obra do escritor à luz de dito fim, rastreando, por meio de uma tese pré-
fixada, os sinais e mensagens mais ou menos cifradas que a teriam
anunciado9. Seria simplista conjurar conclusões definitivas e nexos causais
estreitos entre a condição do escritor no momento de sua morte e a
experiência do Campo, quatro décadas antes. Se houve uma relação,
certamente não terá sido tão simples nem tão direta.

Diante da insuficiência dos dados, e sob o risco de incorrer-se no


equívoco biográfico, uma vez que a biografia de modo algum autoriza a

8
GUTERMAN, M. Nazistasentrenós.São Paulo: Contexto, 2016. Entre os mais notórios, Walter
Rauff, o inventor das câmaras de gás; Klaus Barbie, o açougueiro de Lion; Joseph Menguele, o
anjo da Morte; Franz Stangl, comandante de Treblinka, Gustav Wagner, a besta de Sobibor; e
Adolf Eichman, o burocrata do Holocausto
9
Ferrero 2007, p. 125. 11
extrair conclusões definitivas, é possível apenas afirmar: houve uma queda.
Foi fatal.
12
Primo Levi suicidou-se? Jamais poderemos afirmar ou negar. Não
houve testemunhas diretas. Levi não deixou nenhuma carta ou mensagem
aos seus parentes. O ato, o salto, a queda, que o levaram à morte,
permanecem ainda hoje como um enigma.

Sua poesia, ele mesmo já havia declarado, é visceral e imprevisível.


Tem um quê de invasão viral. No conto Afugitiva,escreve: “Compor uma
poesia digna de ser lida e recordada, é um dom do destino: acontece a
poucas pessoas, fora de toda regra e vontade, e mesmo a essas poucas
pessoas ocorre poucas vezes na vida. Isso talvez seja um bem; se o fenômeno
fosse mais frequente, seríamos afogados por mensagens poéticas, nossas e
alheias, em prejuízo de todos”10.
A experiência de Levi com a poesia, é marcada pelo exercício de sua
escrita “noturna”e “visceral”, aquela pela qual se sente ultrapassado, cuja
voz a ressoar é voz do Es, do inconsciente.
Para terminar, recitarei poemas escolhidos de Primo Levi, o primeiro,
escrito no calor de seu retorno para Turim, os seguintes, nos anos oitenta,
momento em que escrevia “Os afogados e os sobreviventes”, último livro

publicado por Levi em vida.

Pés vergados em terra maldita


Longa fila nas manhãs cinzentas
Fumega a Buna de mil caminhos,
Um dia como todos ou outros nos espera.
A soar suas terríveis sirenes ao amanhecer:
“Multidão de faces opacas,
10
Levi, 2005a, p. 447.

12
Sob o monótono horror da lama
Nasce um dia a mais de dor”. 13
Companheiro fatigado, vejo o seu coração
Leio seus olhos companheiro ferido.
No âmago do peito faminto há frio e nada
Rompeu-se por dentro o último valor.
Companheiro cinzento antes homem forte
Uma mulher caminhava a seu lado
Companheiro vazio que já não tem nome,
Um deserto que já não tem pranto
Tão miserável que já não sente dor
Tão cansado que já não se espanta
Homem apagado, antes homem forte:
Se lá estivéssemos
Lá em cima no doce mundo sob o sol,
Como nos encararíamos, frente a frente?

Mudas vozes desde sempre


De outrora ou de súbito apagadas;
Se tens orelhas, escutas ainda o eco.
Vozes roucas que não sabem falar,
Vozes que falam e nada mais sabem dizer,
Vozes que acreditam dizer
Vozes que dizem e não se fazem entender:
Coros e címbalos a contrabandear
Sentido na mensagem sem sentido,
Puro rumor a simular
Que o silêncio não seja silêncio.
Eu vos digo companheiros de folia:
Embriagados como eu, de palavras,
Palavras-espada e palavras-veneno
Palavras-chave e palavras-ardil,
Palavras-sal, máscara e nepente.
Silencioso é o lugar para onde vamos
Ou surdo. É o limbo dos surdos e dos sós.
A última etapa é preciso percorrer surdo,
A última etapa é preciso percorrer só.

13
Quanto é o pó que se pousa
14
Sob o tecido nervoso de uma vida?
Pó que não tem peso nem som
Nem cor nem fim: vela e nega,
Oblitera, esconde, paralisa;
Não mata, mas apaga,
Não está morto, mas esmaecido.
Abriga velhos sabores de milênios
Prenhes de danos por vir,
Minúscula crisálida à espera
De quebrar-se, descompor-se, degradar-se:
Confusa e indefinida emboscada
Pronta para o ataque final,
Impotências que se tornam potências
Ao disparo de um mudo sinal.
Abriga germes diversos,
Meio adormecidos crescendo em ideias
Cada qual denso de um universo
Imprevisto, novo, estranho, belo.

Por isso respeita e teme,


Esse manto cinzento e sem forma
Contém o mal e o bem,
O perigo, e muitas coisas escritas

14

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