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Primo Levi é autor grandiosa obra ainda pouco difundida no Brasil. Tal
estado de coisas não dispensará uma breve menção à sua biografia. Seus
1944, para o Campo italiano de Fossoli, local onde eram confinadas pessoas
pertencentes a vários agrupamentos não gratos ao governo fascista italiano.
No dia 22 de fevereiro de 1944 foi deportado para o Complexo de Auschwitz.
Com a derrocada alemã, em 27 de janeiro de 1945 o campo é libertado pela
Armada Russa e Levi é enviado para Kantowice, um Campo soviético de
trânsito, localizado na Polônia. Lá conhece o médico Leonardo Debenedetti
e com ele redige, a pedido do comando russo, seu primeiro escrito sobre os
Campos de Concentração: um relatório sobre “A organização higiênico -
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sanitária do Campo de Monowitz para judeus” 1, recentemente publicado no
Brasil, pela Companhia das Letras. Sua viagem de retorno à Itália, narrada
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em A trégua (1963), foi um verdadeiro périplo, teve início somente em junho
de 1945 e durou cerca de quatro meses. Em vez de um trajeto retilíneo e
descendente, a rota que o levaria de volta para casa seguiu a direção oposta,
atravessando a Polônia rumo a leste, fazendo uma imensa volta pela Rússia,
até cruzar a Romênia e a Hungria, passando pela Tchecoslováquia, Áustria e
Alemanha.
Ao chegar a Turim, em 19 de outubro de 1945, tomado por uma
necessidade incontrolável de narrar o que se passara nos “Campos da
morte”, escreveu febrilmente seu primeiro testemunho, o mundialmente
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Através do labor implicado na tentativa de nomear as marcas do
horror, Levi constitui contornos de linguagem para o inominável, ainda que
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nesse exercício, se depare com o que extrapola a narrativa, evidenciando o
choque entre linguagem e o impronunciável, com seu resíduo inassimilável.
O testemunho é justamente isso que se forja nesse espaço entre a narrativa
e aquilo que a ultrapassa.
3
Belpoliti, 2010.
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configurariam como mundos paralelos: a vida cotidiana e o lugar extremo e
extraterritorial do Lager4.
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A imbricada conexão entre estes mundos é trazida à luz por meio da
invenção de múltiplas engenhocas., que contém invariavelmente um
princípio de irracionalidade, um ponto cego, havendo sempre no horizonte
a possibilidade iminente de que suas potencialidades criadoras se revertam
e passem a funcionar de modo avassaladoramente destruidor. Através delas
e por seus meios, a vida dita normal pode ser repentina, imediata e
inexplicavelmente revirada em experiência concentracionária5. Desse modo,
parodia os progressos da ciência e sua maquinaria e a burocracia, tanto os
que se prestaram ao funcionamento burocrático dos Campos de
Concentração Nazistas, quanto aqueles dos quais nos servimos na vida
cotidiana.
Levi convoca o leitor, com sagacidade, a apreciar e a rir das situações
embaraçosas vividas pelos personagens de seus contos, tais como o drama
do sujeito que adquire um duplicador tridimensional, o Mimete, e,
duplicando sua mulher, se vê obrigado a duplicar-se a si próprio.
Ou ainda, através das situações tragicômicas forjadas a partir das
engenhocas criadas por sua fértil fantasia, tais como o Versificador, feito
para compor poesias; o Calomero, para medir a beleza; o Psicofante, leitor
do caráter das pessoas; o Torec, mais viciante que qualquer droga, já que,
além de reproduzir fielmente, disponibilizará as mais radicais experiências e
4
Belpoliti, 2002b, p. 131-141.
5
Belpolitiapud Dias, 2005, p. 17.
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NATCA. Há ainda os mnemagogos, feitos para evocar a memória através dos
odores; a versamina, substância capaz de transformar dor em prazer; entre
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outras invenções hilariantes.
No irônico conto “Para o bem”, publicado em Viziodiforma, por uma
político, com seu fino humor e sua mordaz ironia, além de um veio
declaradamente freudiano. Narrar era preciso, pois a linguagem lhe vinha
como o único recurso capaz de fragmentar a petrificação do horror, de
incidir sobre a paralização da vida psíquica. Levi acreditava, com Freud, que
ao nível da história da humanidade, o que era rechaçado, silenciado,
apagado, ou seja, o que não fosse minimamente perlaboradoe o que não
pudesse ser recordado, se repetiria cega e necessariamente, pois na
impossibilidade de recordar, tende-se a atuar e a repetir.
“Se não de fato, pelo menos como intenção e concepção o livro já nasceu
nos dias do campo... daí seu caráter fragmentário: seus capítulos foram
escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O trabalho de
ligação e fusão foi planejado posteriormente”.
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O primeiro livro de Primo Levi, é, de acordo com Marco Belpoliti, um dos
curadores de sua obra, muito mais que um testemunho, é uma obra de clara
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inspiração literária, cujos modelos se encontram na tradição literária italiana
e nos grandes escritores europeus do século XIX. Trata-se de um livro
incomum, pois tem suas raízes fincadas tanto em fontes orais, quanto
escritas, para as quais Levi não se esforça em dar uma forma épica, como
acontecerá em A trégua, em que narra sua viagem de retorno à Itália.
Também não é possível enquadrá-lo no hall das autobiografias. Ao mesmo
tempo em que escreve febrilmente pequenas peças narrativas, no mesmo
período põe-se a escrever uma série de poemas, que participam da
elaboração da narrativa. Ainda no mesmo período, escreve o conto
fantástico, Osmnemagogos (suscitadores da memória).
O livro é recusado pela editora Einaudi em 1947, com o argumento de
que o momento não era propício para a publicação daquele gênero de livros.
Com o apoio da rede de ex-combtentes da qual fazia parte, Levi não desiste.
Retoma o manuscrito e o retrabalha tendo em mãos as observações que
recebeu da Einaudi ao recusar sua publicação. Modifica alguns aspectos de
seu estilo, ajusta seu vocabulário, retoca inúmeras citações de Dante
Aliguieri feitas de memória..., até o aceite por uma pequena editora, a De
Silva, cujo diretor além de um homem de letras foi trabalhou intensamente
nos movimentos de resistência contra o fascismo. Isso tudo pra dizer que os
primeiros leitores de Levi não pertenciam ao meio literário. Somente uma
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Inglaterra e nos estados Unidos; na Alemanha, em 1960; na França, em
1961; e na Holanda, em 1963. A primeira tradução e edição em espanhol
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saiu pela editora catalã El Aleph, somente em 1987.
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ele imensa gratidão, mas o concomitante sentimento de suspeita jamais o
abandonara.
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Quanto à publicação e repercussão da obra de Primo Levi no Brasil. É
sabido que a sua obra teve que esperar quatro décadas para começar a ser
publicada em nosso país, o que significou, levando em consideração a sua
tradução e difusão em outros países, uma publicação tardia. O primeiro livro
a romper tal barreira foi Éistoumhomem?que saiu em 1988, pela editora
Rocco. Na sequência vieram, ao longo das décadas seguintes, por diferentes
editoras,a publicação de alguns de seus livros mais difundidos em outros
países. Somente após o fim da Ditadura Militar teria havido algum
movimento e interesse em relação à publicação das obras de Primo Levi no
Brasil. A entrada de Levi no difícil mercado editorial brasileiro, cujas
especificidades mereceriam um acurado exame, deu-se principalmente em
função da ampliação de perspectiva propiciada por sua obra, ao conduzir
suas reflexões para além do universo concentracionário propriamente dito.
O “dever de memória” foi também o que levou Primo nos anos 1970-
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LEVI, P. Osafogadoseossobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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manifestar publicamente, em numerosas ocasiões, em suas falas, ensaios e
artigos para jornais.
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Embora com o fim da guerra a máquina de extermínio nazista tenha
sido desmantelada, Levi advertira já em seu primeiro testemunho: quando a
7
Ibidem.
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Sul, notadamente na Argentina, seu destino preferido, mas também no
Paraguai, Bolívia, Chile e Brasil, países onde vigoravam regimes ditatoriais. 8
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O último ensaio escrito por Primo Levi e publicado no jornal Lastampa,
em janeiro de 1987, poucos meses antes de sua queda no vazio do vão de
seu apartamento – o qual muitos, desde o Instituto Médico Legal, até a
mídia, consagraram à causa de um suicídio –, chama-se sugestivamente “Il
buconerodeAuschwitz ”. Nesse artigo, o escritor responde duramente às
teorias revisionistas alemãs e francesas de então, em suas insistentes
tentativas de banalizar e até negar os horrores e a real dimensão do
massacre nazista.
Para Ernesto Ferrero, não seria lícito interpretar e forçar dados a fim
de classificar a queda que levara a vida de Primo Levi de suicídio. Seria
desejável que a “nebulosa de explicações” mantenha-se como tal, sob o
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GUTERMAN, M. Nazistasentrenós.São Paulo: Contexto, 2016. Entre os mais notórios, Walter
Rauff, o inventor das câmaras de gás; Klaus Barbie, o açougueiro de Lion; Joseph Menguele, o
anjo da Morte; Franz Stangl, comandante de Treblinka, Gustav Wagner, a besta de Sobibor; e
Adolf Eichman, o burocrata do Holocausto
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Ferrero 2007, p. 125. 11
extrair conclusões definitivas, é possível apenas afirmar: houve uma queda.
Foi fatal.
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Primo Levi suicidou-se? Jamais poderemos afirmar ou negar. Não
houve testemunhas diretas. Levi não deixou nenhuma carta ou mensagem
aos seus parentes. O ato, o salto, a queda, que o levaram à morte,
permanecem ainda hoje como um enigma.
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Sob o monótono horror da lama
Nasce um dia a mais de dor”. 13
Companheiro fatigado, vejo o seu coração
Leio seus olhos companheiro ferido.
No âmago do peito faminto há frio e nada
Rompeu-se por dentro o último valor.
Companheiro cinzento antes homem forte
Uma mulher caminhava a seu lado
Companheiro vazio que já não tem nome,
Um deserto que já não tem pranto
Tão miserável que já não sente dor
Tão cansado que já não se espanta
Homem apagado, antes homem forte:
Se lá estivéssemos
Lá em cima no doce mundo sob o sol,
Como nos encararíamos, frente a frente?
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Quanto é o pó que se pousa
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Sob o tecido nervoso de uma vida?
Pó que não tem peso nem som
Nem cor nem fim: vela e nega,
Oblitera, esconde, paralisa;
Não mata, mas apaga,
Não está morto, mas esmaecido.
Abriga velhos sabores de milênios
Prenhes de danos por vir,
Minúscula crisálida à espera
De quebrar-se, descompor-se, degradar-se:
Confusa e indefinida emboscada
Pronta para o ataque final,
Impotências que se tornam potências
Ao disparo de um mudo sinal.
Abriga germes diversos,
Meio adormecidos crescendo em ideias
Cada qual denso de um universo
Imprevisto, novo, estranho, belo.
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