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São Paulo no cinema:
expansão da cidade-máquina, corrosão da cidade-arquipélago 1
por Jsmail Xavier

A paisagem do cinema brasileiro dos anos 90-2000, em a "conquista do púbico". A atenção ao mercado engend ra uma
sua vertente sério-dramática, destacou um tipo d e situação em dramaturgia mais convencional, uma representação controlada
que a engrenagem do mundo ultrapassa o personagem e este do descontrole, mas há casos de um ci nema que dialoga com
se vê em lida com uma situação que não consegue controlar, os gêneros sesn deixar de atingir níveis mais complexos de
defin indo impu lsos mal conduzidos de vingança regressiva, articulação entre a experiência subjetiva e a composição do
na chave do ressentimento, ou gerando um perfil d e reação mu ndo que cerca o personagem. O Invasor é um bom exemplo
que o torna exemplo contundente de uma crise de valores dessa interação mais complexa entre o olha r do protagonista e
tratada em cada filme de forma disti nta. Há casos cm que a o olhar externo do narrador que vê mais do que ele, mas não
crise do sujeito encontra as atenuantes da comédia - como em quer dele se afastar, fazendo o espcctador parti lhar de sua
Redentor, de C láudio Torres, ou O Hon1cn1 que Copiava, d e experiência-limite.
Jorge Furtado - e temos uma saída irônica em q ue a O fi lme de Brant se insere n uma constelação de filmes
perve rsidade do desfec ho funciona como um espel ho da sugestiva na relação com o espaço da cidade, e nele vou me
situação gera l. E há casos em <1uc tal crise se encaminha para deter porque traz elementos de enredo que estimu lam um cotejo
um percu rso de dissolução do sujeito sem apelos, como cm entre a imagem que oferece da cidade contemporânea e aquela
Estorvo, d e Ruy Guerra, Rua 6, Sem Número, de João Batista que o cinema dos anos 60 produziu. lá havia a experiência
de Andrade, e O Invasor, de Beto Brant. Aqui, o espaço urbano identificada com o descnvolvimentismo e o crescimento
se revela zona de alto risco, universo de sombras em que económico; hoje, temos os impasses da dívida pública, a relativa
prevalece a exploração da crise de u m protagomsta marcado estagnação e a hegem on ia do capitalismo financeiro. A
pela im potência. Trata-se de um hon1em comum que, comparação entre as imagens correlatas a dois m omen tos do
ult rapassando um cerco limiar, vê seu mundo en trar em país permite discutir o Brasil a partir de São Paulo, pois temos
colapso, não raro por força de um envolvimen to di reto com a u ma relação de simetria e, dentro dela, de diferença entre O
violência e, no limite, com o crime organizado. Invasor e o filme Siio Paulo S/ A, de Luis Sérgio Person, de
Estorvo, de Ruy Guerra, adapta o livro de Ch ico Buarque 1965, un1 clássico daquele período. O contraste entre essas
e se faz a representação mais radical, do ponto de vista estético duas conju ntu ras históricas, embora não expl ique tudo, ajuda
e existencial, da deriva do sujeito num espaço u rbano tornado a en tender porque, num caso, a busca de um estilo realista
labirinto e habitado por uma ga leria de figuras grotescas. O produziu a n1etáfora da cidade-máquina que tem como
filme incorpora a crise na sua forma, como o fazia o cinema referência o p rocesso de acelerada expansão industrial do país
moderno. Compõe uma experiência d e desconforto que n ão no final dos anos 50. E porque, no caso do filme de Bra nt, o
tesn sido própria à produção con temporânea, preocupada com cineasta adere a um estilo mais afinado cosn a tradição do

1 Versão n1odificada de du:is con1un1caçõc.\ feitas. u111a no colóquio Rcp«scnt.içôcs da MC'lrópolt:: Brosi/.1:rn11ç:1, org::lrtiz.ado ptlo Ccn1to de Es1udos da
Mctr61>0lc e pelo Dep:ir1.1n1cn10 <lc Cincn1a, Rádio e lV da ECA·USP, c1n 0 1 e 02 de sc1cn1bro de 2004. outra no Colóquio Brésíl: L:1 Montéc dcs l'arorduxes,
<>rg4lll l1.óldo JX'IO Centro Ccorgcs l'ornpidou dentro <lo /;e.{tiv;i/ cl'Autóm11c :i 1111r1.t, c1n 28 e 29 de outubro de 200S.

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fi/Jn noir norte-americano para figurar a cidade como um outro seu repertório, Carlos poderia ter em sua amante uma
território em que um sentimento de cerco e perseguição não é opção, mas ele nunca esteve à altura. Amargurado, detesta o
delírio e tem como referência a expansão do cri1ne organizado mundo medíocre em que tem sucesso, mas não consegue ir
como padrão de administração das relações de poder em 2000. mais fundo no auto-quest ionamento , canalizando sua
Carlos, o protagonista de São Paulo S/A, e Ivan, de O insatisfação difus• para um mal-humor que culpabiliza o outro
Invasor, são sujeitos à deriva que vivem uma explosão catártica e azeda as relações. Ao longo do filme, suas tensões se agravam,
no final; a crise dos dois envolve a reação a um convite feito chegando a um ponto in suportável quando um gesto de
para partilhar o que, no fundo, têm dificuldade em aceitar. No Luciana o enfurece e precipita tudo.
entanto, é distinto o teor do pacto que lhes é proposto - pacto A cena da ruptura abre o filme que, assim, organiza-se
que é emblemático de cada situação histórica e do imaginário como um ffashback, tendo Carlos como mediador do relato,
de época - e é distinta a forma como se compõe o labirinto. ce ntro da recapitulação de sua vida na cidade, numa
••• combinação de cena e voz over que inclui uma ou outra fala
direta à câmcra. A ccna·cstopim pertence à vida doméstica,
Em São Paulo S/A, Carlos é técnico funcionário de um mas ao longo do filme, e mesmo neste caso da ruptura, h:í o
setor de ponta - indústria automobilística - e está ligado ao espelhamento e referência constante à cidade como a matriz
empresário Arturo Carrari, o imigrante italiano orgulhoso de maior das experiências, como podemos ver na forma como se
ter-se tornado um "capitão da indústria". Este é seu imaginário constrói a abertura. Observamos a cena da ruptura do casa l
como dono de uma fornecedora de autopeças para as com a câmera localizada fora do apartamento, mal ouvindo o
montadoras nlultinacionais, embora o filme mostre a feição que se fala. A visão dos gestos se justapõe à dos prédios refletida
acan hada de sua figura e de seus negócios. Ele é o burguês no vidro que nos separa da cena. Antes 1nesmo da panorâmica
feliz que joga com a corrupção e toca seu negócio, cresce e vai que nos faz sair do apartamento para observar a cidade, esta já
fazendo próspera a família, num espaço doméstico de se foz visível, numa sugestão de que a ação observada, embora
inocência, pois sabe conduzir a separação entre o público e o uma cena da vida privada, tem tudo a ver com o lugar. É a
privado a seu proveito. Carlos, embora cúmplice de Carrari presença do exterior no interior. Um gesto de tipificação: eles
nas trapaças e eficiente no trabalho, vive todo o esquen1a com pertencem a un1a multiplicidade de destinos ou de dramas
um ind efinido mal-estar de quem não se ilude com o desvalor não muito distintos vividos na cidade, tal como sugere a série
implicado no seu papel social, mas não reúne forças para dar de prédios, as o utras coberturas e janelas. O aspecto serial
o salto e mudar de vida. Figura a meio caminho, não se sente desta experiência se reafirma nas imagens que pontuam os
cm casa, gostaria de estar em outro lugar, ser outro. Ressentido, créditos do filme: a vista dos prédios observados da rua, em
é agressivo com as mulheres e tende a desprezar a figura com contre-plongé, para ressaltar a verticalidade, a potência da
quem se relaciona, seja a garota de programa, seja a sua própria cidade em sua versão monu1nental. Ou, ao con trário, a vista
esposa. Quando diante de alguém 1nais complexo no aérea da cidade, para reforçar a sua extensão e unidade dentro
pensamento e na vida, desconcerta-se, incapaz de entender as da qual se movimentam as multidões, como descreve a imagem
angústias da nlulher intelectual com quem ten1 un1 affair. Ela dos passageiros na estação ferroviária e em outros cantos da
é a figu ra-limite da representação do mal-estar em São Paulo cidade, senso de um cole1ivo. Há contrastes, o ed ificio de luxo
S/A, com uma inquietação e uma vu lnerabilidade diante do e as habitações modestas, a arquitetura dos bancos e a favela,
sufoco urbano que, num momento de perda afetiva e depressão, mas tudo parece compor um todo que se conecta e pelo qual
levam-na ao suicídio (seu apartamento na área do centro da as pessoas e veículos circulam.
cidade é o espaço simbólico que o filme explora na criação da É este mesmo principio que veremos atuar no fim,
imagem emblemática da solidão na sociedade anônima). Fora quando se completar o flashback e voltarmos à cena inicial.

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O i1nportante é que, desde a abertura, haja também destaque é decisivo aqui é a referência ao tempo do relógio, à repetição
para o centro da cidade na perspectiva do pedestre, quando dos ciclos do trabalho cotidiano. O tempo é o pesadelo, tal
vemos Carlos a caminhar depois de abandonar a mulher. como vemos na tradição da cidade-máquina desde o filme
Ele se manifesta cm voz ovcr, e sua narrativa já se mistura Metropolis, de Fritz Lang, que destacava essa tortura do relógio
con1 o som da cidade. O Viaduto do Chá é o espaço simbólico num tom expressionista que não é propriamente a opção de
reiterado no filme, mas haverá muitas cenas no centro corno Person. Siio Pau/o .),/'A, sendo rea lista, não leva o tema da
ponto de encontro - a Praça da República, a Praça do Patriarca robotização ao paroxismo, mas insiste na sensação de
- e como loca l de atividades (o curso de inglês, a fosta de ultrapassamento, na dor do trabalho industrial e sua
rcvei/1011), de modo a configurar um espaço coeso, dotado administração, solo de experiência a contaminar todos os
de energia, expressão da própria dinâmica do país e da cidade. aspectos da vida.
Se o centro é a parte 1nais trabalhada, as outras zonas mais Carlos não encontra compensação na vida doméstica,
ou menos distantes compõem espaços disponíveis para a como em melodramas de final feliz. Depois de u1na
conquista desta nova ordem da industrialização. A periferia convivência morna e convencional, ele explode no momento
mostra a sua face como locus da expansão industria l, como em que Luciana, em segredo, faz uma proposta para Carrari:
quando Ca rrari mostra a Carlos o terreno onde será aplicaria o dinheiro do pai dela na empresa, e isto faria de
construída a 11ova sede da fábrica: vez ou outra há meninos Carlos um sócio do italiano. Luciana, e sua ambição pequeno-
pobres que brincam em amplo espaço vazio, mas há nestes burguesa que Carlos despreza, levam o protagonista à
lugares a promessa da ocupação pelo trabalho e pelas indignação e à ruptura, como gesto reativo, sem projeto. É
' .
maquinas. neste momento que tem lugar a cena que abre o filme e se
O mal-estar de Carlos permeia todas as ações e espaços, repete no linal, com destaque para a fusão da cena do1néstica
mas ganha sua melhor expressão na relação do protagonista com a imagem da cidade, pólos solidários. Na repetição, já
com o universo do trabalho e com a configuração geral de sabemos que o passo seguinte foi a perambulação, a pé, pela
uma experiência que é coletiva e se expressa nas cenas exteriores, cidade. Agora no fina l, se vê que a deriva se desdobra numa
mais do que na esfera dos dramas privados. O seu desconforto fuga em que ele usa um carro roubado, um pequeno delito
chega ao paroxismo no meio do filme, logo antes da decisão que resulta da crise e não leva a lugar nenhum. O tratamento
de casar com Luciana. A cena é emblemática. Seu espaço é o dramático no final é talvez excessivo, na música e nas in1agens
Viaduto do chá, ponto simbólico de confluência. A montagem de Luciana à procura do marido, bem como em passagens em
paralela estabelece a conexão entre a cidade, pessoas na travessia, que se insinua um possível desastre na estrada (o acidente só
e o movimento das engrenagens, numa clássica metáfora que virá a acontecer no filme O /11v.1sor). No entanto, a montage1n
vem trabalhar a idéia do trabalho industrial como cumpre a sua função no desenho de um momento catártico
desumanização. Esta não é apenas a condição do operário sem horizontes. Carlos abandona o carro roubado numa
diante da máquina; é a ordem geral. Tomando a relação homem· estrada e pega carona num caminhão que termina por ter como
máquina como paradigma, a vivência na cidade se afinna como destino a cidade de São Paulo. 'Jâl destino parece tão mais
o ponto central da angústia, se expressa nesse refrão do inexorável quanto 1nenos parece resultar de u1na decisão, como
"reco1neçar,,, "tnil vezes recon1eçar", que Carlos repete, para se insinua cm sua fisionomia resignada que a montagem funde
depois dizer "aceitar", trazendo os exemplos das atividades co1n a vista dos prédios da cidade, tradução visível de uma
comerciais que ele conduz todo dia como, cada um a seu modo, identidade profunda entre Carlos e a sociedade anônima. Tudo
os outros habitantes anônimos, atomizados, da cidade. Eles leva ao retorno da imagem do Viaduto do Chá, agora mais
partilham o espaço público que se vê aí representado como enfática em sua composição dos clássicos rostos na multidão
linha de montagem, movimento maquínico totalizante. O que que sugerem o grande número, mas não u1na comunidade.

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Define-se o homem-série, uma reunião do que são peças de por Gilberto, seu velho amigo e sócio, Ivan aceita participar
uma engrenagem. A industrialização não é o paraíso, é lugar de um complô para matar o outro sócio que é majoritário na
de dores que o tempo da cidade não permite tratar. Mas resta construtora e se opõe a uma trama ilícita envolvendo a esfera
a dimensão de humanidade inibida nesta "1nultidão solitária".' oficial. Como Carrari, de São P~ulo S/A, Gilberto é o sócio
Algo que cada rosto traz como un1 potencial de cidadania, feliz e bem-humorado, exemplar pai de fomilia, mestre na arte
ainda vista corno possível neste filme, pois o desfile final, de adaptação aos novos tempos, sempre mais à vontade do
embora cinzento, mantém o senso de urna parti lha de destino que Ivan na passage111 da pequena corrupção ao crime pesado.
a ser debatida, interrogada à luz do dia, no espaço público nas É ele quem detém a iniciativa e expõe a filosofia do darwinismo
ruas onde o cineasta se põe no nlesrno nível e se mistura com social com que procura legitimar a sua falta de limite: a
a população, assumindo um cOJnpromisso de enfrcntamento sociedade é uma selva. Quanto a você, diz ele, ou é caça ou
dos problemas do mundo do trabalho que o salto econô1nico caçador. A trama do filme virá para confirmar a eficiência de
dos anos Juscclino Kubitscheck deixou intocados. Gilberto no plano prático, motivo da tragédia de um Ivan
••• ainda capaz de algum escrúpulo, embora fraco, hesitante, em
sua resistência que, posteriormente, virá mais do medo do que
Se en1 São Paulo S/A, a relação perifcria<entro é mediada de um senso moral genuíno.
pela indústria cuja lógica se projeta cm toda a cidade, nos Carrari era o universo mesquinho das pequenas
filmes dos anos 90, se dá o contrário. O centro se torna uma corrupções, a vista grossa do Estado às ilegalidades que
estação do interno, campo de concentração dos excluídos - garantiam a sobrevivência do pequeno c1npresário nacional
uma massa j:í em estado de alienação mais radical do que os dentro de um parque industrial liderado pelas multinacionais.
passantes de Luís Sérgio Person. Outros lugares também exibc1n O suborno do fiscal era é um pequeno lance de comédia,
um quadro melancólico de decomposição. O Invasor, em revelador do lado precário do que parecia tão monumental.
particular, retira o velho centro de pauta. Ele é apenas um Ele era cafona, oportun ista, desonesto, mas não um assassino.
ponto de passagem cortado por túneis e viadutos, rasgado Agora, é o crime que se revela a forma eficiente de administrar
pelas avenidas se111 vida, um lugar pelo qual se passa de carro, negócios, ou outras relações humanas. Chegamos a um
se possível em alta velocidade, por cima ou por baixo, sem paraclígma <.ie desumanização mais "baixo", digamos assiJ11,
parti lhar nada com ninguém. A relação com a periferia terá do que o evidenciado pela cidade-máquina. O espaço urbano
outra lógica, e ser:í outra a mediação. Em termos de personagens se torna o terreno da caça e da morte clandestina, solitária,
e situação dramática, o salto de meio século traz um novo como salienta o fina l de O Invasor. Logo no início, os sócios
encontro com empresários. O negócio agora é uma construtora, tê111 que buscar o matador, aquele que sabe fazer o serviço.
não uma fábrica. Passamos a um setor cujos interesses têm Este é apresentado aqui como uma espécie de fera em sua
muito a ver com a história das grandes cidades brasileiras e jaula cujos limites são transpostos pelos empresários, tal como
sua deterioração, focos de especulações financeiras e da sugerido pelo enquadramento básico do primeiro plano do
ocupação ilegal do solo só possível cm função de uma relação filme. Lá está a imagem que destaca a grade que separa o foco
promiscua com o poder. do olhar (o matador no espaço o!T, fora da nossa vista) e as
Ivan, o protagonista, é o sócio minoritário, como um figuras dos dois sócios que se aprox ima111 da c âmera,
Carlos que teria saído da posição de técnico cúmplice, bem produzindo a conotação apontada acima pela forma como
pago, e aceito a co-responsabilidade lá rejeitada. Conduzido eles expressam o seu mal-estar. Em seguida, a duração do plano-

' Lenlbto attui c.l clássico dt David Ricsnlan, A Mu/rid;io .Solit'ária (São Paulo, Pttspccciva, 1971).

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seqüência que dá conta de toda a conversa aumenta a tensão decaído, do qual ele só consegue enxerga r os sinais grotescos
da cena, reforç.a o sentido de a1neaça e poder contido neste da decomposição moral - sim, porque o eixo da questão de
olhar que intimida os contratantes, que os controla porque Ivan é moral. E sua crise se espelha numa galeria de personagens
está no seu território onde valem outras regras, embora sejam e de espaços compostos a partir de um cód igo expressionista,
eles que vêm trazer o dinheiro. O que permanece invisível gótico, como se esta dimensão moral precisasse de correlações
assusta Ivan, que já mostra seu olhar esbugalhado de fascínio visíveis sinalizadoras do Mal, fantasmagoria que se concentra
e de medo. Diante da pressão de Anísio - este é o seu nome - na figura de Anísio. O código realista de São Paulo S/A é
para que Ivan saia da mudez atônita, a "senha da segurança" substituido pela tradição que, do expressionismo alemão, se
trazida pela voz de Gilberto é: "ele também está pagando". O estendeu ao film noir, mas há aí um suplemento trazido pelos
desconforto dos sócios e a inexistência do contra-campo que códigos de uma outra gestualidade. a do matador. Este que foi
daria corpo à voz do matador criam uma aura de mistério procurado no terreno em que é soberano, para cumprir uma
explorada ao longo do filme. mesmo quando ele se tornar tarefa do lado de cá do muro e voltar à periferia. No entanto,
visível. Neste momento, vale o efeito do rosto pétreo de Ivan: em vez de sumir, ele vem, inesperadamente, invadir o dia-a-
ele já contempla a morte no que está no espaço off, como que dia da empresa e dos negócios. E seu gesto evidencia a
. . . contaminação reciproca desses mundos ilhados por uma
a mtenonza.
Quando os dois sócios atravessam a cidade após o fronteira simbólica, vem superar a dicotomia entre centro e
encontro, o que se destaca é a passagem pelo túnel, alguns periferia vista como um código espacial que significa a
planos do carro a passar por avenidas sem vida aparente. separação entre ordem e desordem, lei e crime, civilização e
Gilberto quer comemorar - "bem-vindo ao lado podre da vida", barbárie. Aqui, em termos de figuração, há um "código
ele diz. E revela seus outros negócios a Ivan, que tem o seu comum" a unir os dois pólos, de modo que o interesse
momento de perda da inocência (Carlos nunca foi inocente e, empresarial ganha uma feição metafisica de envolvimento com
por isso mesmo, não queria ser sócio de Carrari; forma de o Mal, numa iconografia que confere ao agente eficaz da
equilibrar sua consciência moral). "vontade de poder" uma dimensão diabólica.'
Transposta a fronteira, Ivan passa a viver um cotidiano A mediação gótica na composição das imagens se ajusta
aflito, cada vez mais temeroso das implicações desse gesto que, à dimensão territorial do filme, voltado para pensar o problema
reticente, praticou como uma anomalia a ser esquecida. O contemporâneo a partir do espaço como projeção de um
sócio-líder, no entanto, vai demonstrar que tal nledida é parte sistema político e moral em crise. Anísio, a figura da sombra,
de um sistema, um estilo de gerir empresas e de administrar deve se manifestar de corpo presente no território da
investigações policiais com o qual o protagonista terá de ajustar construtora para que se revele o que está implicado neste
contas. Não pode "cair fora": sabe demais. território: ele é uma explicitação, não uma invasão. O agente
No início, são parcos os elementos para que se entenda executor do crime, de outra classe, em geral mantido à distância,
esta passagem ao crime por parte de Ivan. A estratégia do atravessa a barreira e se insi nua no mundo dos ricos: invade
filme é não trabalhar em chave realista; por isto não explora não só a empresa, mas também a casa e a família; seduz a
com maior cuidado as motivações. Vale o registro de que forma herdeira, a fi lha do sócio majoritário que ele mesmo, Anísio,
o momento é vivido por Ivan como sujeito cuja experiência é executou cumprindo o contrato. A periferia vem ao centro,
tomada como mediação para que se desenhe um mundo para dar corpo à verdade deste, em geral envolta em esquemas

1
Nesta referência a A1'\ísio con10 a figura do Mal. no estilo gó1ico, cheio de i1nplicaçõts, tomo co1no i11spiraçào a análise d;i ptrsot1agen1 feita por túcia Nagib
cm capítulo do seu livro, A Utopi.1 no Cinen1a Brasileiro: 1na1rizcs, nos1.1lgi.3, di.stopia~ a ser publiQdO pela editora Cos.ac&Naify c1n 2006.

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abstraros, complexos, invisíveis. Vejamos a forma como se dá inviabilizado. O multado é esta heterogeneidade, a mistura
este tornar visível. de "sobrado" e de "barraco de favela", uma espécie de imagem
A invasão dos escritórios da cmp~sa se d.i dentro de condensada e mu lticolonda da cidade - de onde estão excluídos
um ~uema rnvcrossímil. Ao contrário do que acontece na os bolsões do luxo e da homogeneidade ajardinada. Há
entrada dos cmpmános em seu território, Anis10 galga o vitalidade, mesmo e1n solo tão esburacado como o que vemos;
terreno sem cerunónia, deixando um rastro de medo no olhar mas o cantor de rap fala cm cotidiano dificil, dccepção,
dos que deveriam obrigá-lo a identificar-se e barrar sua entrada. promessa e "enrolação" (dos poderes); alude a pivetes metidos
A feição quase mágica desta entrada ganha uma conotação com d roga, a dinheiro sujo, ao povo inibido, à humilhação e
pop por força de o urra invasão concomitante: a da música a uma repetida deccpção.
que antes entrara para poncuar a cena do crime, o trauma da Uma seqüência noturna com pletará o quad ro e
descoberca do cadáver do dono da empresa, um rock agressivo, consolidará a conqu ista, quando Anísio e M arina fazem sexo
hcavy 1ncrnl, q ue repete o refrão: bem-vindo ao pcsac.lclo da no carro, depois de uma cena no bar que destaca o estilo de
realidade; "cu, você, a vadia, ninguém presra". Estabelece-se conversa e a citação, impressa na roupa de um jovem, daquilo
então que o "lado podre da vida" é a "realidade", e a naru~'ª que seria o estereótipo associado ao território: podemos ler
desta é o pesaddo. Motivo porque não é o caso de construir nas costas "terror na periferia". Marina aprende os novos
imagem e som dentro do código ~lista tradicional. Valem as códigos e se insere na iconografia dark dos novos parceiros.
tinturas góricas, estas mesmas que os jovens incorporam cm Esta é feita de um 1magin.ino cm que as forças da vida cotidiana
sua iconografia e sonoridade a título de provocação, grito de se transmutam cm movimentos de grande amplitude, entidades
protesto. E que Anísio incorpora de fornta mais sinistra, porque como o Bem e o Mal, cm que tudo se pensa fora da escala
sc1npre a sério, crispado, ressentido. A atmosfera ~ó é atenuada humana, como se aí neste campo de luta a força do gesto e da
por um efouo pop válido para o público brasileiro porque o atitude dependesse desta 111corporação de um sopro divino ou
ator - cstrcanre neste filme - é um dos líderes dos Titiis, nome demoníaco.
de banda q ue projeta sua ironia na co1nposição da personagem. A "invas5o" de Anisio divide o filme cm duas partes: a
Esta constelação de efeitos se ajusta muito bem ;\ forma da primei ra linear e marcada pela estrita lógica do complô, com
sedução exercida por Anísio junto a Marina, a moça que vive, a narrat iva avançando nos termos clássicos de causa e efeito,
a seu modo, esta experiência de deriva, fascinada por este tipo veloz, dramática. Quando ele ganha a cena, há uma bifurcação:
feio e carismático, que transmite segurança e poder, preenche constrói-se o paralelismo dentro do qual a questão do espaço
o espaço e se faz seu professor. - e seu repartimento na cidade - ganham força, impõem sua
H~. portanto, um primeiro movimento de ocupação, hegemonia. De um lado, ~ o passeio e a culru ra hip hop, a
em que o matador se apresenta para ampliar a sua veia gíria de Anís10, a voz do rappcr Sabotage e sua presença
prestattva, como se fosse uma companhia de segurança a serviço carismática. A trilha sonora traz outro ponto de vista e trabalha
da construtora. E há um segundo, quando ele conquisra a o estranhamento mútuo dos dois mundos. A nossa 6cursão,
moça, vai à sua casa, lhe dá presentes e a leva para um passeio com o guia turístico seguro e competenre, interrompe o Auxo
na Zona Sul, no seu terrirório, episódio que dá morivo para narrativo (tempo) e dá ênfase à exploração do espaço. Vale a
que o filme mude seu rcgistro e nos traga a imagem da periferia feição crua do documentário, e a emergência de outras vozes
tal como construída numa linguagem que combina a que parecem ser as ma is pertinentes como forma ajustada no
montagem do video-clip com o olhar do documentário. Ta l teor da experiência posta cm foco ao longo do filme. Do outro,
imagem é a da heterogeneidade, reunião do precário - do seguindo em caminho paralelo, está o drama de Ivan que vai
inacabado, porque muito pobre - e do que quer ser di;t into entendendo a enrascada cm que se meteu, e oscila entre o
mas j:í está em ruínas, projeto de um bairro de classe média pânico e a reação agressiva. Ele compra um revólver, como se

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isto o fizesse mais seguro no confronto com Gilberto, e acaba recolhe tais conotações cm seu corpo, em sua desorientação,
assumindo a figura do perseguido. Abandona a sua casa. em seu desespero de pequeno homem só contrn o mundo, um
Assume o al1iiir com uma garota de programa que conheceu indivíduo contra que1n até a càmera parece conspirar em sua
na boate de Gilberto. Ela cumpre a função da fe1nme làtale, proximidade persecutória a flagrar sua vulnerabil idade.
agente duplo a espion:í-lo, numa estratégia montada pelo sócio. A quem recorrer depois de tanta agitação e medo? Erro
Quando ele descobre o esque1na, se desequilibra de vez. De derradeiro, o Ivan sem rumo vai à polícia. Confessa e denuncia.
forma quase invisível, são dissolvidos todos os laços. Ivan resta Como no início, tudo se vê a partir do 1nesmo ângulo, com
sem vínculo, dcstcrritorializado. Antes, era a crise moral, agora seu rosto em primeiro p lano, sem contra-campo, sem a
é o medo. O lado podre da vida (ou da cidade) mostra que ele, definição do interlocutor (em última instiincia, somos nós,
afinal, é a figura alheia, um invasor às avessas cujo resíduo de pois ele olha direto para a câmera). Ele quer passar uma
consciência moral o foz pagar alto preço. Sua deambulação borracha no delito cometido, refazer a identidade do
reforça o senso de um espaço urbano cm que há vazios engenheiro bom chefe de família. Quer sair do pesadelo "da
estranhos, ameaçadores, entre as ilhas de espaço familiar, onde realidade". Abre o jogo como quem fala com um agente do
ele pensa se sentir seguro. O que emerge é a paisagem agressiva, Estado e da lei confiável, como se estivesse em uma dessas
grotesca em sua corrosão do ambiente, sinal de novo ciclo da supostas ilhas de civilidade. Mas saberemos, na seqüência
reconstrução interminável da cidade. O momento final de segu inte, que Ivan se entregou, de foto, ao esquema de seu
catarse, quando Ivan, tal como Carlos em São Paulo S/ A, sócio, pois entrou em território policial controlado por um
assume o volante do carro para uma fuga às cegas, agora mais cúmplice de Gilberto no aparelho repressivo. No desespero,
ajustada ao toque 11oir de toda a trama, condensa muito bem Ivan acaba por encontrar a imagem de sua alienação nesta
a nova fisionomia da cidade, nas zonas planas em que se "toca do lobo" em que, ao contrário de um Carlos perdido na
rasgaram bairros populares para fazer passar avenidas, criando multidão cm pleno centro da cidade, ele vive o seu colapso na
ruínas precoces e extensões desertas. solidão, ilhado, a coroar a nova metáfora da cidad e como
A figura de Ivan na direção do carro se alterna com território de caça, onde o problema não é se diluir na série, na
planos subjetivos em que se desenha a sua visão perturbada, robotização, mas ser literalmente aniquilado. E Ivan o será,
uma crescente perda do controle. A montagem prepara o clima não por Anísio, o que estava no espaço ofl, invisível, na cena
para a cena da colisão com outro carro de onde saem dois de abertura, mas por todo un1 esquema complexo que constitui
indivíduos pobres que a fúria de Ivan despreza, ofende, gerando o ponto de escuta desta confissão medrosa ao final, um ponto
un1a situação de conílito que ele resolve sacando a arma. que permanece fora da vista e para o qual Ivan projeta um
Dissolvido o que ele supõe como ameaça (em verdade, foi ele olhar de bicho acuado - curiosa sin1etria face à abertura, onde
a maior ameaça), a solidão no espaço vazio da avenida repõe vimos os mesmos olhos em sua primeira escala do terror.
os tennos 1nais fu ndos de sua deriva: a tensão se resolve na O espaço da corrida final de Ivan expõe uma paisagem
desabalada corrida que define mecanicamente o seu rumo, até grotesca - o asfa lto e os barracos da favela arruinada. Revela-se
que a energia se esgote. Novamente, o som heavy vem dar aí, nesta justaposição, a face visível de uma dinâmica de
expressão e, ao 1nesn10 te1npo, COJnentar a <.:risc cnc;irnada em interesses que atropela populações, sem integrá-las, 1nontando
Ivan. Enquanto a música fala do capitalismo "aqui suicida" e a cidade arquipélago, ou cidade de muros, como também se
reitera que "a bomba vai explodir", a travessia do protagonista usa dizer, com suas ilhas de instável civilidade e territórios

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A expressão "'cidade de 111uros'' é refcrtncia cenlral no livro de Teresa Pires Caldeira, Cid;1cle de Muros: crin1t, .segrq::;1çJo e cidadõ111ia e1n 5.ão J~1u/o (São P:iulo,
Editora 34/ EOUSP, 2000).

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I' FI LA

onde se explicita a ausência do Estado, da let, da cidadania.• Em seu corpo a corpo com es12 experiência de deriva e
Digo "se explicita" porque existe nessa scparaçlo dos territórios violência, O J11vJsor ganha destaque dentro da constelação
um pressuposto que o filme quer desconstruir: o de que são de filmes que temauzam a dissolução dos valores num
mundos estanq ues, não conectados, a não ser cm lances contexto em que não há valores ou projetos para além da
ocasionais, na figura do incidente, do assalto. O Invasor quer roleta das finanças e das thrcas de sobrevivência . Um mundo
sugerir um o utro elo mais sistemático neste jogo de poderes e social onde a constante é a reposição de estados de beligerância
estrntagcmas, e niio apenas con trastar zonas pobres e zorrns e de mando pessoal, esses que são típicos aos territórios onde,
ricas, demarcar o território da nação legal cm oposição ao da no Brasil pré-m od erno, valia a lei da fomil ia e, no pó;-
vida subte rrânea. Quer expor o que assegura a relação eficaz moderno, vale a lei da quadrilha . O que, cm alguns casos, dá
entre cont ra tantes e contratados, o bom fl uxo dos negócios. no mesmo.

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