Você está na página 1de 122

PARA UMA ETNOGRAFIA DO PROCESSO DE

COMPOSIÇÃO MUSICAL

Música no filme documentário

Mathilde Martins
Aveiro
Junho 2020
Índice
Resumo..............................................................................................................................2

Para uma etnografia do processo de composição musical................................................3

Anexos.............................................................................................................................55

Transcrição da conversa informal e da entrevista..................................................................55


Língua original: Francês....................................................................................................................56
Tradução para português....................................................................................................................71

Caderno de Campo.................................................................................................................85

Autoetnografia coletiva........................................................................................................105

Etnografia Sequencial..........................................................................................................109

1
Resumo
O presente trabalho apresenta uma etnografia realizada nos primeiros seis meses
do ano de 2020 na cidade de Aveiro, Portugal. É um trabalho individual que apresenta,
no entanto, alguns excertos referentes a etnografias coletivas que se desenvolveram pela
colaboração entre outros alunos do departamento de música de ensino superior do
DECA, Universidade de Aveiro. Relativamente a esta colaboração, refere-se em comum
o facto de trabalharem, com maior ou menor proximidade, na mesma classe da
disciplina de Laboratório de Etnografia e na mesma área de estudo musical: composição
musical.
Este trabalho etnográfico está principalmente relacionado com dois aspetos
provenientes do projeto da realização de um documentário: a investigação do género
cinematográfico documental e o processo de composição musical para a realização da
sua banda sonora. Mais, também são apresentadas algumas considerações relativas ao
contexto em que foi realizada a pesquisa, sendo que esta foi efetuada num período de
confinamento, devido a pandemia do COVID 19.
Estão presentes no trabalho diferentes tipos de documentos: apontamentos
provenientes de um caderno de campo desenvolvido ao longo destes meses, alguns
excertos de etnografias coletivas realizadas no contexto que foi anteriormente
explicado, dados recolhidos ao longo das investigações de bibliografia sobre o tema e
outros associados, referência e citação de excertos de uma entrevista, fotografias e
documentos anexos e, na qual todos estes elementos se encaixam, a etnografia
individual.

Palavras chaves: Etnografia; Música; Composição; Documentário; Banda


sonora; Acusmático; Criação.

2
Para uma etnografia do processo de composição musical
Música no documentário

A realização da seguinte etnografia enquadra-se num contexto pouco comum aos


outros trabalhos que desenvolvi ao longo da minha vida. As primeiras aulas
relacionadas com a disciplina de Laboratório de Etnografia, disciplina relativa a
realização desta etnografia individual, aconteceram da forma mais esperada: aulas
físicas com a presencia de alunos e professores. O mês de Fevereiro apresentou-se como
um mês positivo para a evolução do meu trabalho, com a ida quotidiana ao estúdio de
som, que permitiu um desenvolvimento rápida do meu trabalho de música
eletroacústica. No entanto, as notícias continuavam a referir o surto do vírus do
COVID-19, nome da doença que resulta das palavras “Corona”, “Vírus”, “Doença” e
“2019”, na China. Encontra-se no site da SNS24, uma explicação do que é o COVID-
19: “COVID-19 é o nome, atribuído pela Organização Mundial da Saúde, à doença
provocada pelo novo coronavírus SARS-COV-2, que pode causar infeção respiratória
grave como a pneumonia. Este vírus foi identificado pela primeira vez em humanos, no
final de 2019, na cidade chinesa de Wuhan, província de Hubei, tendo sido confirmados
casos em outros países.”. O SNS24 ainda indica que “O período de contágio (tempo
decorrido entre a exposição ao vírus e o aparecimento de sintomas) é atualmente
considerado de 14 dias. A transmissão por pessoas assintomáticas (sem sintomas) ainda
está a ser investigada.”1.

Decidi hoje deixar de ir estudar na Universidade. A pandemia já está muito


presente em Espanha e não tarde a chegar em Portugal. Planeio continuar os
meus estudos em casa por uns tempos.
Caderno de Campo, Mathilde Martins, 28/02/2020

Portugal confirmou o primeiro caso de Covid-19 na segunda feira 2 de Março,


na cidade do Porto. Não saberíamos na altura, mas a nossa vida e o nosso quotidiano
estavam prestes a mudar, e a mudar de uma forma radical. Os nossos países vizinhos
como a Itália, França e Espanha encontraram-se rapidamente num estado grave em
que o confinamento e o estado de emergência teve que ser proferido. A declaração

1
https://www.sns24.gov.pt/tema/doencas-infecciosas/covid-19/ consultado dia 01/06/2020

3
do estado de emergência consiste na suspensão de alguns direitos, com a finalidade
de adotar medidas para a saúde pública.
“-Confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde;
-Estabelecimento de cercas sanitárias;
-Interdição das deslocações e da permanência na via pública injustificadas;
-Requisição de serviços e utilização de bens móveis e imóveis de unidades de
prestação de cuidados de saúde, de estabelecimentos comerciais e industriais, de
empresas e outras unidades produtivas;
-Imposição da abertura, laboração e funcionamento de empresas,
estabelecimentos e meios de produção;
-Encerramento ou limitação às atividades de empresas, estabelecimentos e meios
de produção;
-Imposição a colaboradores de entidades públicas ou privadas de se
apresentarem ao serviço e, se necessário, passarem a desempenhar as suas
funções em local diverso, em entidade diversa e em condições e horários de
trabalho diversos dos que correspondem ao vínculo;
-Suspensão do direito à greve;
-Controlos transfronteiriços;
-Limitação ou proibição de realização de reuniões ou manifestações que, pelo
número envolvido, potenciem a transmissão do novo Coronavírus;
-Limitação ou proibição de realização de celebrações de cariz religioso e de
outros eventos de culto que impliquem uma aglomeração de pessoas;
-Proibição de resistir às ordens emanadas pelas autoridades públicas
competentes.”2

O primeiro estado de emergência em Portugal devido ao COVID-19 foi


declarado no dia 18 de março de 2020, “através do Decreto do Presidente da República
n.º 14-A/2020, de 18 de março.”, sendo que “o estado de emergência foi decretado por
15 dias, iniciando-se às 0:00 horas de 19 de março e terminando às 23:59 do dia 2 de
abril de 2020. Contudo, a declaração do estado de emergência foi renovada duas vezes.
Primeiro, entre as 0:00 horas do dia 3 de abril e as 23:59 horas do dia 17 de abril de

2
https://covid19estamoson.gov.pt/estado-de-emergencia-nacional/o-que-e/ consultado o 01/06/20

4
2020. Segundo, entre as 0:00 horas do dia 18 de abril e as 23:59 do dia 2 de maio de
2020.”3 (República Portuguesa

Figura 1- Fotografia tirada no 18/05/20: Declaração do estado de


emergência com Marcelo Rebelo;

Destas medidas, algumas tiveram um


impacto direto na vida dos estudantes, pelo que
se destacam duas: o confinamento e a
limitação/proibição de reuniões.
O confinamento constrangeu a impossibilidade de parecença nas aulas e obrigou
os estudantes a assumirem uma posição de estudo diferente que antes da obrigação do
confinamento: o trabalho individual em casa, com os meios reduzidos ao que é
disponibilizado online ou em biblioteca privada, a investigação em campo impedida ou
limitada e a frequência de aulas online interativas.

Encontramo-nos neste dia 6 de abril de 2020 numa reunião em


videoconferência com objetivo de redigir um artigo auto etnográfico coletivo
relativo a semana do dia 30 de março a 4 de abril de 2020. Nós, sujeitos desta
auto etnografia, identificamo-nos como estudantes de mestrado em música no
ramo de composição da Universidade de Aveiro. É de referir que este texto é
desenvolvido para a disciplina de Laboratório de Etnografia.
É relevante mencionar o motivo que nos impede de nos encontrar
presencialmente, pois o desenvolvimento deste trabalho está condicionado
pelo nosso confinamento devido à doença a nível mundial do Covid-19.
Etnografia Coletiva Compositores4

Este aspeto é importante de referir porque teve um impacto direto na realização


desta etnografia e na realização de todo o meu trabalho prático do meu segundo
semestre do primeiro ano de mestrado em composição.

3
https://covid19estamoson.gov.pt/estado-de-emergencia-nacional/o-que-e/ consultado dia 01/06/20
4
Ana Rita Rainho, Lucas Cequeira, Mathilde Martins: 06/04/2020

5
Compositora e criadora amadora em outras áreas artísticas, este período de
confinamento mostrou-se um momento complexo ao nível da gestão do tempo e da
regularidade de trabalho.
É importante referenciar que eu não estou habituada a trabalhar em
casa e que foi uma crise sanitária que mo obrigou. Isto não tem facilitado
nada os meus estudos, em nenhuma área. Não estando habituada a tal, a
minha concentração é menos concisa. Distraio-me mais e tenho menos
motivação em trabalhar. Por isso, tenho tido leituras menos regulares, um
trabalho prático relativo aos trabalhos escritos das disciplinas do mestrado
mais aglomerado em alguns dias e esquecidos noutros. Na área da
composição, tem acontecido o mesmo. Assim, nesta quarta-feira, a
composição da minha obra não me despertou atenção. Isso seria bastante
criticado por muitos dos meus professores, que repetem muitas vezes que um
compositor deve escrever todos dias, nem que seja por uns compassos.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 18/05/2020.

O confinamento teve um grande impacto nos meus estudos. O mesmo aconteceu


com imensos estudantes em Portugal e nos outros países tocados pela epidemia. De
referir, por exemplo, alguns comentários de estudantes partilhados numa etnografia
sequencial realizada na semana do 24 de Março de 2020: “Enfim, o Covid-19 está a ser
uma experiencia dolorosa e espero que não percamos mais artistas pois a arte ainda
precisa deles, para que possam compor obras musicais, pintar belas telas e fazer
belíssimas histórias de quadradinhos sobre como nós os artistas e a sociedade no geral
conseguimos vencer este vírus diabólico. Até um dia Covid-19.” (Timóteo Cuche);
“Embora estejam a ser dias de sol e com temperatura agradável, que convidam a sair e
aproveitar este tempo, não o posso fazer. Esta pandemia obriga-me a ficar recolhida em
casa, à espera de melhores dias. Estar em casa, para mim, é descansar do trabalho que
faço lá fora, na universidade. Não é, por isso, fácil trabalhar em casa; é um esforço
contínuo, um obrigar-me a fazer os meus deveres enquanto estudante.” (Ana Rita
Rainho); “Começo o dia com a leitura habitual da meditação matinal com o título
“Caminho para a Sabedoria”. O teor do texto de hoje é sobre a espera. Temos que saber
esperar. Como esperar o covid 19 passar? Estou a duas semanas em quarentena
domiciliar, isolada.” (Margarida Lázaro França Caetano); “É agora meio-dia, quando
recebo uma triste notícia de mais duas pessoas do nosso mundo da música que
faleceram. Mais dois músicos esta semana que perderam a vida na luta contra este

6
inimigo invisível!” (Maria João Ribeiro); “Este é um tempo em que experimentamos
novas formas de existir, novas formas de fazer todas as outras coisas que fazíamos,
porém à distância.” (Orlando Fernão).

Encontramo-nos, hoje (31 de março de 2020), por videoconferência


para uma aula de Laboratório de Etnografia, pela plataforma ZOOM. (...)
Assim, fomos desafiados a pensar colaborativamente sobre a música do
século XXI, tendo em conta as nossas experiências tanto intérpretes como
espetadores, dado que a situação para os artistas se mostra crítica.
Etnografia Coletiva Turma Laboratório de Etnografia.
Encontramo-nos perante tempos novos. Tempos que remetem a quotidianos
novos e diferentes. As nossas vidas encontram-se “suspensas”. Emoções às quais não
estávamos habituados começaram a acompanhar-nos no quotidiano: medo, dúvida,
suspeita, impaciência e estas emoções têm uma grande influencia no que pensamos e no
que fazemos.

Figura 2- Fotografia tirada no 01/04/20: Exemplo de um tipo de adaptação do estudo em período de confinamento

A obrigatoriedade de começar a obedecer a novas regras surgiu e esta grande


mudança não vai ser esquecida de um dia para o outro. Tudo o que aprendemos neste
período trágico da História vai permanecer nas nossas mentes e na nossa história por
muitos anos.
Esta mudança, à qual estamos confrontados, também permitiu vivenciar
momentos diferentes. Enquanto estudante, senti-me confrontada com uma necessidade
de maior independência e postura mais autónoma e os momentos de trabalho com
outros colegas apresentaram-se mais valorizados.

Esta videoconferência foi enriquecedora para nós, já que, além da


partilha de informação e de novo conhecimento que fomos adquirindo ao
longo da semana, também realizámos audições das obras em questão (...)
Nesta reunião percebemos pontos em comum nos nossos diários no caderno

7
de campo individual da respetiva semana. O principal ponto em comum é,
além de sermos os três compositores, a pesquisa bibliográfica para o projeto
artístico.
Através da pesquisa bibliográfica, descobrimos textos que achámos
muito interessantes e que provavelmente terão muita influência no nosso
trabalho final (...) A partilha dos nossos temas de projeto também foi
importante, uma vez que através das nossas opiniões e conselhos, permitiu
uma consequente melhoria do nosso trabalho.
Etnografia Coletiva Compositores5

Na prática, o confinamento prejudicou imenso o meu trabalho relativamente á


composição musical. Sendo as idas á Universidade de Aveiro, universidade que
frequento, proibidas até o fim do estado de emergência e ainda condicionadas, o meu
trabalho de música eletroacústica apresentou-se sem qualquer desenvolvimento. A
impossibilidade de poder trabalhar num estúdio impediu o avanço da obra.
Realizei a minha comunicação com os docentes principalmente via email. Estando
estes sobrecarregados, a comunicação não foi facilitada. O artigo de jornal Covid-19:
Professores estão a ficar exaustos, alertam sindicatos 6 indica que “Os professores estão
a ficar exaustos, após mais de uma semana de aulas à distância devido à Covid-19, em
que tiveram de adaptar formas de ensinar e até comprar equipamentos e licenças para
aplicações, alertaram sindicatos e diretores escolares” e que “Os professores tiveram de
reinventar formas de ensinar e, para muitos, as plataformas digitais eram um terreno
desconhecido.” (Lusa, 2020).

5
Ana Rita Rainho, Lucas Cequeira, Mathilde Martins: 06/04/2020
6
https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-03-25-Covid-19-Professores-estao-a-ficar-exaustos-
alertam-sindicatos Consultado dia 01/05/2020

8
Figura 3- Fotografia tirada 19/05/20: Aula interativa de Laboratório de Etnografia

O primeiro semestre de 2020 é então uma época complexa e trágica na qual todos
tiveram que mudar o seu quotidiano e adaptar-se da melhor forma possível.
A maioria das aulas ocorreram presencialmente até o mês de março e implicaram a
assiduidade a aulas interativas até o final do semestre. O mesmo aconteceu com a
disciplina de Laboratório de Etnografia.
As aprendizagens relativas às redações de género etnográfico desenvolveram-se
então através de duas formas: as aulas de Laboratório de Etnografia e a pesquisa e
investigação de bibliografia sobre o tema.
No dia 15 de Fevereiro, a professora Rosário Pestana propôs um exercício à classe
de LE7 deste ano 2020. O exercício consistia num primeiro contacto com a redação
etnográfica ao ir por um pequeno período a um espaço da Universidade de Aveiro
realizar uma observação e escrever a sua descrição. Este primeiro contacto com a
redação etnográfica foi realizado de uma forma muito intuitiva, sem eu ter tido alguma
referência ou conhecimento das normas que este género textual tinha que seguir.

10 minutos no bar

Com a cabeça apoiada nas mãos, vejo-a a suspirar. Uma vez. Duas.
Levanta-se e sai. Pareceu-me impaciente. Impaciente por estar à
espera de alguma coisa até se fartar, ou então por alguma coisa
estragar o seu momento de deleite na mesa do bar, com o seu chá
(Pela cor, de camomila presumo eu) para o que devia ser uma breve
pausa no seu dia de estudante universitária. Saiu aborrecida e

7
Laboratório de Etnografia

9
irrequieta por alguma coisa, isso tenho a certeza. Algo estragou o seu
momento de descanso.
Passou rapidamente por mim, esflorando-me com o seu lenço. Senti a
textura deste no meu braço e pareceu-me, ao seu toque, ser de lã. Saiu
da minha vista deixando voar no ar um perfume quente e floral por
alguns segundos. Esta essência pareceu-me ficar-lhe bem: a doçura
das flores e o toque quente que não passa despercebido.
Um grupo de três raparigas, que devem ser estudantes em música por
causa das caixas de instrumentos que duas delas carregam às costas,
ficaram na mesa que antes foi foco da minha atenção. Sentaram-se,
rindo muito. Parecem alegres. Não consigo ouvir o que estão a dizer
nem do que estão a rir, mas a alegria delas é muito contagiante. Uma
delas, de cabelo preto encaracolado, vestida com uma camisola
branca, chama-me atenção. Ela também está a sorrir, mas o seu sorriso
é diferente das duas outras. Transmite uma sensação diferente.
Aparenta-se preocupada, cansada ou mesmo algo melancólica. Ela
sorri a alguém: um rapaz sentado numa mesa mais a frente. O seu
sorriso mudou e pareceu mais ingenuamente feliz por uns segundos. O
rapaz acenou-a com a mão retribuindo-lhe o sorriso antes de outro
rapaz sentar-se ao seu lado, animado e a falar alto. A porta bateu atrás
de mim. Sinto uma grande corrente de ar frio passar, fazendo voar o
meu cabelo. Outro rapaz segue o seu caminho, passando ao meu lado,
deixando atrás dele um rasto de cheiro a cigarro húmido. Os rapazes
que antes referi começam a rir-se a olhar para ele, e este senta-se junto
a eles com um ar muito despreocupado. A sua postura descontraída
emana logo que tem muita confiança em si mesmo.
O tempo mudou subitamente: as nuvens abriram-se rapidamente
deixando uns raios de sol iluminarem a sala. Que agradável sensação!
Ao mesmo tempo, o cheiro quente e reconfortante de pasteis saídos do
forno chegou aos meus sentidos. Sinto uma vontade repentina de me
levantar para ir buscar uns destes bolos quentinhos, mas eu estou num
momento de observação. Além disso a quantidade de açúcar nestes
deliciosos pasteis só me irá prejudicar. A tentação é muito forte!
O tempo está a esgotar-se: os meus supostos 10 minutos de
observação já são 15. Suspiro.
Mathilde Martins, 15/02/2020

10
Como antes referi, pouco faltou depois desta aula para a Universidade fechar e a
aulas presenciais deixarem de acontecer.
Deparei-me com várias leituras de etnografia nas aulas de LE, sendo de referir duas
delas: Living Autoethnography: Connecting Life and Research e Moving: From
Performance to Performative- Ethnography and Back Again.
A obra Living Autoethnography: Connecting Life and Research, de Faith Wambura
Ngunjiri, KathyAnn C. Hernandez e Heewon Chang, permitiu-me perceber o conceito
de etnografia e da auto etnografia.

Autoethnography is a qualitative research method that utilizes data about self


and its context to gain an understanding of the connectivity between self and
others within the same context. This research method is distinctive from
others in three ways: it is qualitative, selffocused, and contextconscious. irst,
autoethnography is a qualitative research method (Chang, 2007; Denzin,
2006; Ellis, 2004; Ellis & Bochner, 2000). As a research method,
autoethnography takes a systematic approach to data collection, analysis, and
interpretation about self and social phenomena involving self.

Ngunjiri/Hernandez/Chang, 2010, p.2

Os autores explicam de maneira muito simples no que consiste: “The researcher is at


the center of the investigation as a “subject” (the researcher who performs the
investigation) and an “object” (a/the participant who is investigated).”(
Ngunjiri/Hernandez/Chang, 2010, p.2), considerando que os auto etnógrafos prestam
diferentes níveis de atenção à narração/descrição e análise/interpretação de dados
autobiográficos e que a etnografia não é uma prática inocente.
O autores ainda referem que: “Autoethnographers explore a wide range of
experiences, some purely personal and others in relation with/to other participants of
research projects.” (Ngunjiri/Hernandez/Chang, 2010, p.4) e que vários auto etnógrafos
têm explorado a sua própria identidade e o seu desenvolvimento em contextos
socioculturais e outros em relação à realização de pesquisas no campo.
Do ponto de vista técnico, os autores explicam que foram também utilizados
métodos etnográficos de recolha, análise de dados e reflexão, sendo que a análise
implica um primeiro trabalho exploratório, uma codificação aberta e desenvolvimento
dos temas. (Ngunjiri/Hernandez/Chang, 2010, p.6)

11
A obra Moving: From Performance to Performative- Ethnography and Back Again
foi escrita por Deborah Wong. Deborah Wong é etnomusicóloga e especialista na
música da Tailândia e da América asiática. É diplomada de mestrado e doutoramento
(1991) da Universidade de Michigan, onde trabalhou com o etnomusicólogo Judith
Becker. A autora apresentou muitos trabalhos sobre a relação entre etnomusicologia e
etnografia.

Na obra e Moving: From Performance to Performative- Ethnography and Back


Again, a autora explica também que os problemas relativos a etnografia não são novos e
não mudaram.

Surely, we have learned from the disciplinary upheaval of the 1970s-90s.


Haven’t we changed our research methodologies and writing techniques?
Can’t we move on to more pressing things at this point? The problems with
ethnography aren’t new and haven’t changed: they include the false binary of
the insider/outsider, colonial baggage, and the empiricism still lurking behind
a solidly humanistic anthropology and ethnomusicology.
Wong, 1997, p.76.

A autora ainda acrescenta que a etnomusicologia luta com a relevância da


antropologia porque não existe uma teoria suficientemente importante entre as pesquisas
participativas e o tipo de etnografia que é realizado. Assim, Deborah Wong refere a
necessidade de praticar consistentemente uma etnografia crítica e de concentrar-se na
criação de etnografia performativa, reconhecendo a Auto etnografia como método.
A abordagem de Deborah Wong consiste em encontrar formas de ser eficaz para os
leitores e ainda se satisfazer enquanto etnomusicologista e interprete de taiko, sendo que
o seu objetivo é transmitir a forma como a vibração e efeitos críticos do taiko refletem o
próprio processo de dizer, testemunhar e criticar culturalmente. Ela refere: "Can't tell
you about taiko in Southern California without telling you how and why I'm telling you
about it, and I can't reflect on ethnography without doing it" (Wong, 1997, p.76).
Apresenta então novas perspetivas para o trabalho de campo em etnomusicologia.
Na página 79 da obra, a autora explica:” When written, i tis deeply informed by the
praxis and poetic of writing. When filmed, it is informed by the lessons of a critical
visual culture. It always pushes at the genre conventions implicit to this medium: the

12
parameters and limits of ethnography, documentary, and so on, become an attendant
question in the endeavor itself.” (Wong, 1997, p.79).
A autora refere que a etnografia performativa desencadeia uma série de respostas
discursivas que a etnografia também deveria. É ainda seu objetivo adulterar as práticas
etnográficas dos etnomusicólogos. Estas considerações e questões que Deborah Wong
transmite na sua obra permitiram-me ter uma noção da importância da etnografia
performativa e perceber que o género da etnografia, ou auto etnografia, são géneros que
ainda se apresentam em desenvolvimento e evolução. A autora ainda explica: “As post-
1980s ethnografers, ethnomusicologist know that experience is importante, but they also
intuit that the epistomalogical problem of reflecting music in another medium besides
music involves multiple translative shifts.” (Wong, 1997, p.81).
A autora refere que o ato de criar uma etnografia envolve o etnógrafo como que um
“estranho” perante o sujeito.
The ethnographer is always an outsider. Creating of even a close family
member would presumably entail crafting a new relationship beyond that of
daughter or sister. When I devoted the final chapter of my last book to my
father’s engagement with music (2004), I wrote as a daughter/ethnographer.
That chapter attends to the richness of family memory and thus can be read as
a memoir, but I also focused on the complex links between people, music
race, intent, and cultural work.
Wong, 1997, p.82

Após reflexão, a etnografia que venho aqui apresentar é então uma auto
etnografia que neste caso não envolve estas problemáticas, ainda que a escrita
autobiográfica continue a ter um interesse etnográfico.
A autora explica que aprender a fazer música é uma extensão de investigação de
observação enquanto participante, mas uma etnografia sobre a performance envolve
mais que isso, sendo que é importante fazer mais do que descrever o que se observa. É,
de facto, preciso observar o desempenho como agente social e adaptar a sua análise às
ideologias culturais, económicas e políticas, analisar os efeitos, as subjetividades, a
audiência e o performer e, depois de tudo, apresentar uma reflexão consistente.

13
Performative ethnography isn’t a disintegration of ethnography into question
upon open-ended question. It may fracture a given moment into mirrored
possibilities, but I am not using it to shut down the necessity of arrivals pints,
Rather I have tried to demonstrate the contingency of certain moments.
Wong, 1997, p.87

Figura 4- Fotografia tirada o 30/05/20: Digitalização da obra estudada;

Referi a questão da redação etnográfica com um propósito próprio. De facto, as


aprendizagens que fui adquirindo sobre este tema ao longo das aulas da disciplina de
Laboratório de Etnografia e a partir das minhas pesquisas permitiram-me entender a
importância deste género literário (neste caso). Pessoalmente, considero um assunto que
continua em aberto e que necessita uma maior e mais consistente pesquisa e análise para
poder assumir uma posição sobre o mesmo.
O que foi referido até então consiste numa contextualização que permite
perceber as circunstâncias em que a etnografia foi realizada. Expus então alguns aspetos
e uma descrição do contexto da redação da presente etnografia e, de seguida, abordei o
tema relativo ao género textual que segue o próprio trabalho.
O tema principal do trabalho está relacionado com o meu projeto de mestrado e
o que foi explicado até agora assume um caráter “introdutivo”. Proponho-me então à
realização de um documentário em duas versões: documentário na sua forma completa
(audiovisual) e documentário unicamente acusmático (áudio).
Considero de grande importância conhecer a história e características do
documentário. A leitura de bibliografia sobre o tema permitiu-me descobrir importantes
artistas criadores de documentários de referência e permitiu-me compreender, de uma
forma muito mais esclarecida, as técnicas e estratégias seguidas por eles mesmos. Esta
pesquisa facultou-me então novas ferramentas para a criação da obra.

14
Desde muito pequena tenho o hábito, incitada pelos meus pais, a visualizar
documentários, sendo estes tematicamente relacionados com a natureza e com o mundo
animal, principalmente. Um dos documentários que vi, pelos meus sete anos, e que
ainda me causa muita emoção ao ver é o filme/documentário Microcosmos (1996), em
particular. É um documentário sobre a vida dos insetos, de Claude Nuridsany e Marie
Pérennou, produzido por Jacques Perrin.
A banda sonora foi realizada por Bruno Coulais e reúne sons reais, sons criados e a
composição musical gravada de uma orquestra sinfónica. No mês de Abril, realizei a
observação deste documentário e a análise das estratégias usadas pelos seus criadores de
imagem e som e, além de continuar a sentir admiração por esta obra cinematográfica,
fiquei estupefacta e surpresa com as suas características.
Do ponto de vista musical, a obra consiste numa sinfonia de imagens e sons sem
voz, sendo que estes expressam-se por eles mesmos. Este documentário é uma grande
fonte de inspiração para o desenvolvimento do meu projeto artístico de mestrado, e
apresenta-se de grande influência para mim.
Já a realização de um documentário necessita um grande controlo técnico das várias
e diversas áreas artísticas, sendo neste caso o vídeo, o áudio e o conhecimento do tema.
Este filme documentário do Microcosmos é um muito bom exemplo da dominação
técnica destes elementos. A observação e análise do seu conteúdo foi muito motivadora
e, ao mesmo tempo, muito desafiante, mesmo consciente das dificuldades que sabia
com que me iria deparar, ao longo do processo criativo.
Discuti pela primeira vez a ideia de realizar um documentário como projeto de
mestrado em música em Março 2020 com a minha família, após visualizar os
documentários La culture et la récolte des châtaignes 8(2016), une tradition ancestrale e
Du Léman à la Méditerranée, un périple incroyable de 600 km à travers les
Alpes9(2017), ambos documentários da Radio Télévision Suisse.
O documentário Du Léman à la Méditerranée, un périple incroyable de 600 km à
travers les Alpes foi realizado Pierre-antoine Hiroz et Benoît Aymon (imagem e som) e
a montagem foi a cargo de Catherine Kala.

A pied, du Léman à la Méditerranée? Sur le papier et à la louche, ça donne le


vertige: grosso modo 600 kilomètres de marche à travers quatre parcs

8
https://www.youtube.com/watch?v=Ke0F5slHMFk consultado dia 19 de março 2020
9
https://www.youtube.com/watch?v=d7BRog1BBLA&t=91s consultado dia 20 de março 2020

15
naturels, pour un dénivelé positif qui correspond à trois fois la hauteur de
l'Everest! Une marche de cinq semaines à travers les Alpes, ponctuées de
rencontres lumineuses et de paysages à couper le souffle.10 11

O documentário La culture et la récolte des châtaignes foi realizado por Raphaëlle


Aellig (Imagem: Patrick Mounoud; Som: Marianne Roussy; Montagem: Valerie Weyer;
Ilustração sonora: Ariane de Montmollin; Mixagem: Edgard Biondina).

L’automne est la saison de la récolte des châtaignes au Tessin comme


dans certaines régions des Grisons ou en valais. Une tradition qui ravive un
mode de vie passé ou ces arbres multi centenaires jouaient un rôle capital.
Puis, la vie moderne a fait oublier ces arbres majestueux et généreux.
Aujourd’hui, toujours vivants, les châtaigniers contemplent le monde
moderne et questionnent ce que l’homme moderne a oublié… 12 13

Figura 5- Imagem do documentário La culture et la récolte des châtaignes, 1'00

Ambos são documentários muito intensos emocionalmente, quer pelas imagens,


quer pela banda sonora, e foram estes que impulsionaram o início das minhas pesquisas

10
Tradução: A pé, do Lago de Genebra ao Mediterrâneo? No papel e na concha, deixa-nos tontos: cerca
de 600 quilómetros de caminhada por quatro parques naturais, para um gradiente positivo que
corresponde a três vezes a altura do Everest! Uma caminhada de cinco semanas pelos Alpes, pontuada por
encontros luminosos e paisagens deslumbrantes
11
Descrição do documentário no canal Youtube Passe-moi les jumelles.
12
Tradução: Outono é a estação da colheita de castanhas em Tessin como em algumas áreas dos Grisons
ou em Valais. Uma tradição que reaviva um modo de vida passado onde estas árvores multimilionárias
desempenharam um papel crucial. Então, a vida moderna fez esquecer estas árvores majestosas e
generosas. Hoje, ainda vivos, os castanheiros contemplam o mundo moderno e questionam o que o
homem moderno esqueceu...
13
Descrição do documentário no canal Youtube Passe-moi les jumelles.

16
e investigação sobre o filme documental e sobre a música dentro do género do cinema
documentário.
O documentário La culture et la récolte des châtaignes é um
documentário fascinante, não de um ponto de vista informativo sendo que a
informação dada sobre o tema é muito restrita e simplificada, mas de um
ponto de vista artístico. Tanta emoção ressenti ao longo dos seus 26 minutos!
As imagens eram maravilhosas mostrando a natureza sobe os seus melhores
ângulos. Muito próxima de mim, vi uma natureza elegante e intensa, provida
de um grande significado. É exatamente isso que quero transmitir na minha
obra.
Caderno de Campo, Mathilde Martins, 05/05/2020

O documentário é um género cinematográfico independente e oposto ao cinema


fictício. Este género determina-se por documentário, por ser um filme que se baseia
precisamente em documentos para descrever uma determinada realidade ou organizá-lo
de acordo com a mesma conveniência. É diferente do género da ficção, pelo que
geralmente tem um objetivo de tipo informativo- o assunto toca numa realidade e não
uma história imaginária ou adaptada (Ikomb, 2012). Para a realização de um
documentário é efetivamente possível fazer reconstituições de certos factos ou
elementos que estão em falta. Neste caso, o termo associado a esta técnica no
documentário determina-se de "configuração", enquanto na ficção, é referido enquanto
encenação.
A minha leitura do documento Petite note sur le film documentaire (2012), que
consite numa síntese de apresentação do género cinematográfico do documentário por
Albain Michel Ikomb, permitiu-me perceber bastantes aspetos importantes como, por
exemplo, a existência de vários tipos de documentários: O filme etnológico consiste
num documentário cujo tema é uma tribo, uma etnia, uma população, uma civilização.
A abordagem é concretizada de forma científica e apresenta um claro propósito relativo
a infirmação. O sujeito é tratado metodicamente, com respeito, levando o tempo que for
necessário para que o resultado do estudo seja consistente (Ikomb, 2012). São de referir
R. Flaherty e cineastas como Jean Rouch; o filme etnográfico tem o mesmo propósito
que o filme etnológico, mas, neste caso, não existe uma abordagem real do estudo
científico. O período de filmagem é relativamente curto, sendo que o documentário
etnográfico costuma apresentar cerca de 15 minutos de conteúdo; o documentário
humanista trata problemas ou situações vividas por certas populações ou uma categoria

17
social. Valoriza estas populações, enfatizando as dificuldades que enfrentam e as
soluções que colocam em prática para resolver os seus problemas (Ikomb, 2012);o
documentário propagandista é filme partidário e ideológico; O docudrama: ou "docu
- ficção" é um documentário escrito e dirigido como uma ficção mas que continua a
manter todo o seu valor informativo; o ensaio cinematográfico é definido como uma
abordagem introspetiva, uma experiência cujo propósito é medir o próprio pensamento
que está exposto à opinião pública. São de referir cineastas como Michael Moore e
Alain Resnais; O autor Albain Michel Ikomb descreve o filme de viagem/descoberta
como uma “Sorte de recueil ou symphonie d’images issues de voyages effectués le plus
souvent dans les contrées éloignées. On le classe dans la catégorie «film de
découverte». Il peut avoir une vertu géographique ou une valeur touristique”14( Ikomb,
2012).
O livro Introdução ao Documentário, de Bill Nichols. Nichols é cineasta e
crítico de cinema com especialização no estudo e teoria de documentários. Segundo
Nichols, existe ainda outra forma de classificar as diferentes tipologias de
documentários:
-Modo Poético (Nichols, 2010, p.138): o modo poético salienta o visual, qualidades
tonais ou rítmicas, passagens descritivas e organização formal. De certa forma poderia
ser considerada de cinema experimental sendo que a narração é feita pelas imagens e
pela banda sonora.
-Modo Expositivo (Nichols, 2010, p.142): o modo expositivo focaliza-se no comentário
verbal e no argumento. O documentário retrate algum acontecimento, referindo os fatos
e apresentando argumentos em coincidência com a narrativa.
-Modo Observativo (Nichols, 2010, p.146): Este modo apresenta o quotidiano, de
qualquer seja o sujeito, com o meio a uma observação discreta.
- Modo Participativo (Nichols, 2010, p.153): Este mostra a interação do cineasta com o
tema. Constitui-se principalmente por entrevistas e imagens de arquivo para analisar
temas históricas.
- Modo Reflexivo (Nichols, 2010, p.162): João Leite, autor do artigo Quais são os tipos
de documentários (2019) explica que este modo “chama atenção para as hipóteses e

14
Tradução: Uma espécie de coleção ou sinfonia de imagens de viagens feitas mais frequentemente em
áreas remotas. É classificado como um "filme de descoberta". Pode ter uma virtude geográfica ou um
valor turístico.

18
convenções que regem o cinema documentário. Aguça a nossa consciência da
construção da representação da realidade feita pelo filme.”15
-Modo Performático (Nichols, 2010, p.169): Recusa o conceito de objetividade e
mostra-se a favor de lembranças e afetos. Este género está muito relacionado à
abordagem introspetiva do ensaio cinematográfico. São muitas vezes obras
experimentais e vanguardistas.
Relativamente a estes diferentes tipos de documentários, dois mostram-se
próximos do que procuro fazer na obra relativa ao meu projeto de mestrado: o ensaio
cinematográfico e o filme viagem.
O ensaio cinematográfico permite apresentar uma abordagem introspetiva do
conteúdo temático e da poética textual que desejo ter presente na minha obra e o filme
viagem apresenta a noção do valor turístico, associada à “sinfonia de imagens”, de
natureza do espaço objeto das filmagens.
A fase de escrita e o material documental são essências para a realização do
documentário. Um documentário segue geralmente a estrutura: introdução,
desenvolvimento, conclusão. A escolha do tema e do restante material temático de
forma hierárquica é realizada antes do começo da escrita do conteúdo cronológico do
documentário.
Albain Michel Ikomb refere, entre outros, que o documentário é muito exigente,
sendo que este implica uma exploração profunda do sujeito, investigação de
documentação e investigações no terreno, exatidão das informações que se pretender
transmitir.

Figura 6- Tópicos de conceção de um documentário, Albain Michel Ikomb, 2012, p.3

A conceção de um documentário implica a definição do tema, a investigação e


pesquisa sobre este mesmo, trabalho em campo, organização do material. Ainda é

15
https://www.avmakers.com.br/blog/quais-sao-os-tipos-de-documentario/ consultado dia 04/06/20

19
preciso escolher e selecionar o material do produto final, a escrita do texto (voz off- não
é obrigatória), a realização das filmagens e gravações e a montagem. A realização da
banda som pode esta ser feita de diferentes formas:
•Symphonie d’images et sons sans voix off: elle a le mérite de laisser les
images et son s’exprimer d’eux-mêmes (cas du film micro cosmos)
• Le commentaire off précède les images: le texte parle de quelque chose, et
on la voit par la suite. Psychologiquement, cette forme de narration prépare et
anticipe la compréhension : le spectateur reçoit une information par le texte et
attend de la cerner
par l’image qui arrive peu après. L’effet psychologique est positif s’il n’y a
pas um grand écart temporel entre la voix et l’arrivée de l’image.
• On parle de quelque chose en même temps qu’on la montre : c’est le
principe de la redondance. Il permet de mémoriser rapidement l’information
transmise.
• Les images précèdent la voix off. Cette technique narrative peut présenter
l’inconvénient de perturber
l’attention du spectateur qui risque de perdre le fil du commentaire car le
référent image lui semble lointain; ce qui l’oblige à faire des efforts en
essayant de se rappeler les images dont parle le texte.
Ikomb,2012

O autor propõe então 4 tipologias de estratégia na banda sonora do documentário,


sendo estas o som e a imagem sem voz off de comentário, na qual a voz antecede as
imagens, a voz fala sobre a imagem e a imagem antecede a voz.
No caso da minha obra do projeto de tese de mestrado, tenciono optar pela
primeira estratégia para a banda sonora: o som e a imagem sem comentário e voz off, ou
seja, filmagens da natureza e banda sonora (acusmática, eletroacústica e instrumental).
A minha ideia inicial era mesmo realizar um documentário comum teor informativo
elevado e científico e acabei por considerar a transmissão de informação ser feita de
forma mais subentendida e subliminar pela visualização das imagens e audição da banda
sonora, relativamente como no filme Microcosmos. Quando sugeri este tema de projeto
de mestrado a minha professora de composição, e orientadora, Isabel Soveral,
concordou com a escolha desta temática, transmitiu-me sobre a extrema importância da
banda sonora no produto final. A obra tem como objetivo passar o valor informativo
adquirido pela observação e sensação, um valor informativo introspetivo e próprio às
minhas vivencias.

20
A leitura da tese de Guillaume Campion, que descobri no repositório Papyrus da
Universidade de Montreal16., foi a minha principal fonte para a descoberta de
informação relativamente ao género cinematográfico do documentário: La musique
acousmatique et le documentaire- vers um art sonore informatif (Campion, 2015).
A leitura desta tese, a meados do mês de abril de 2020, esteve relacionada com
as minhas pesquisas para o meu projeto de tese de mestrado e esta leitura mostrou-se
muito benéfica para a realização do meu trabalho.

Na tese La musique acousmatique et le documentaire- vers um art sonore


informatif (Campion, 2015), o autor aborda então as origens do género documentário.
Aqui é referido que John Grierson, realizador e produtor de origem escocesa, é o
“fundador” do termo “cinema documentário”. Guillaume Campion também refere várias
vezes o trabalho de Guy Gauthier, autor que apresenta muitos trabalhos sobre o género
do cinema documentário e que se mostra fundamental na investigação do tema.

Porque a entrevista tem um lugar fundamental no desenvolvimento de um


documentário, o autor da tese realiza uma apresentação e uma explicação na qual refere,
principalmente, os seus primórdios com Michael Moore. Percebemos que a entrevista
foi importante para a criação da obra Littorale17 e autor refere que “Dans Littorale, j’ai
retenu l’interview comme principal dispositif documentaire.”18 (Campion, 2015, p.16).

Numa secção seguinte, o autor fala sobre o SEL, Le Sensory Ethnography Lab,
um laboratório que eu desconhecia, mas que se mostra muito interessante. O próprio
SEL indentifica-se como “(…) an experimental laboratory at Harvard University that
promotes innovative combinations of aesthetics and ethnography19.”. A ideologia das
criações deste grupo está diretamente ligada com a questão da autenticidade e da
imersão sonora e sensorial pela banda sonora, que recorre principalmente a música
acusmática. As obras do SEL foram uma das maiores influencias para a criação da obra
Littorale de Guilllaume Campion.

A tese La musique acousmatique et le documentaire- vers um art sonore


informatif (Campion, 2015), foi realizada pelo compositor Guillaume Campion como

16
Respetivo link: https://papyrus.bib.umontreal.ca/xmlui/handle/1866/14096
17
Obra relacionada com a tese
18
Tradução: “Em Littorale, usei a entrevista como principal ferramenta documental.”

19
http://sel.fas.harvard.edu/ - Consultado dia 28 de abril de 2020

21
trabalho final de tese de mestrado em música, no ramo de composição, na Universidade
de Montreal em 2015.

Ce mémoire rend compte de la création du « documentaire acousmatique » Littorale, une œuvre


musicale à visée informative, élaborée au moyen de prises de son in situ, d’extraits d’archives sonores et
des témoignages de sept informateurs. En tissant des liens entre les deux disciplines médiatiques que sont
la composition acousmatique et le documentaire, l’œuvre retrace l’histoire d’un impressionnant corpus de
chants folkloriques récoltés en 1918 par l’ethnologue Marius Barbeau, dans les villages côtiers de Sainte-
Anne-des-Monts et Tourelle, Haute-Gaspésie. La démarche de composition s’élabore ainsi en trois axes
communicants: la mise en lumière de liens préexistants mais sous-exploités entre le documentaire et
l’acousmatique, la recherche de terrain entourant le répertoire de chansons et sa résurgence dans la
population actuelle de la Haute-Gaspésie, ainsi que la composition des trois mouvements musicaux
constituant Littorale. À travers l’investigation d’enjeux identitaires qui découlent de la redécouverte du
répertoire et la mise en lumière de certains flous historiques qui y sont reliés, cet alliage de deux genres
médiatiques vise l’émergence d’une démarche compositionnelle informative et socialement pertinente. 20

Campion, 2015, p.1

A leitura desta tese foi fascinante pela variedade de informações que tratava. Do
documentário a paisagem sonora e da investigação ao trabalho em campo, o compositor
tratou dos assuntos que me diziam respeito.

Assim, percebi que o trabalho está relacionado à composição do documentário


acusmático Littorale. Do ponto de vista técnico, o autor explica à partida que os meios e
materiais usados para a composição da obra devem-se a “(...) de prises de son in situ,

20
Tradução: “Esta tese relata a criação do "documentário acusmático" de Littorale, uma obra musical para
fins informativos, desenvolvida por meio da tomada de som in situ, excertos de arquivos sonoros e
depoimentos de sete informadores. Ao tecer laços entre as duas disciplinas mediáticas da composição
acusmática e do documentário, o trabalho mostra a história de um impressionante conjunto de canções
folclóricas coletadas em 1918 pelo etnólogo Marius Barbeau, nas aldeias costeiras de Sainte- Anne-des-
Monts e Tourelle, Haute-Gaspésie. O processo de composição é assim desenvolvido em três eixos de
comunicação: destacando os vínculos preexistentes, porém pouco explorados, entre documentário e o
acusmático, pesquisa de campo em torno do repertório de canções e seu ressurgimento na população atual
da Haute-Gaspésie, bem como a composição dos três movimentos musicais que constituem o litoral. Por
meio da investigação de questões de identidade que surgem da redescoberta do repertório e do destaque
de algumas bobagens históricas relacionadas a ela, essa combinação de dois gêneros de mídia visa o
surgimento de uma abordagem composicional informativa e socialmente relevante.”

22
21
d’extraits d’archives sonores et des témoignages de sept informateurs.” (Campion
2015). Isto é então a fundação na qual se desenvolve a obra.

Guillaume Campion inicia a tese com uma contextualização teórica da história


da música acusmática, referindo compositores como Luc Ferrari, Pierre Henry e Pierre
Schaeffer, e compositores do Quebec como Åke Parmerud, Truax e Westerkamp. O
compositor que se apresenta o mais influente no seu trabalho, e que também é o mais
referido ao longo da tese, é Pierre Schaeffer. Efetivamente, o compositor segue uma
ideologia musical semelhante e refere concordar com a seguinte citação de Schaeffer:
“Tous ces bruits sont identifiables. Sitôt entendus, ils évoquent le verre, la cloche, le
bois, le gong, le fer.… je tourne le dos à la musique.”22 (Citado por Campion, 2005:
Schaeffer)

Como Guillaume Campion foi o próprio criador do documentário na integra,


apresenta na sua tese uma investigação dos géneros e técnicas documentárias23.

No capítulo “Le paysage sonore et le documentaire naturaliste” 24 (Campion,


2015, p.28), o autor refere com muito destaque Murray Schafer, que será, na entrevista
realizada, o motivo de uma pergunta.

Este capítulo é muito importante, sendo que a análise de Schafer, compositor


canadiano, está muito bem dissertada. Aqui, é evocada a questão de que a paisagem
sonora pode realmente ser um campo de estudo acústico e que os sons podem ser
categorizados em três principais tópicos: “les tonalités, les signaux et les empreintes ou
archétypes sonores”25 (Citado por Campion, 2015, p. 29: Ibid., p. 23-24). Além disto,
Schafer associa a tonalidade a elementos naturais, como é exemplo o vento, o mar, os
pássaros, entre outros. Este é um tópico de grande pertinência, e com o qual concordo e

21
Tradução: “(...) tomada de som in situ, excertos de arquivos sonoros e depoimentos de sete
informadores.”

22
Tradução: “Todos estes sons são identificáveis...sendo que evocam o vidro, o sino, a madeira, o ferro...
torno costa a música.”
23
Investigation des genres et techniques documentaires (Campion, 2015, p.5)
24
Tradução: “A paisagem sonora e o documentário naturalista”

25
Tradução: “Tons, sinais e pegadas ou arquétipos sonoros”

23
me identifico com a visão do autor. A leitura deste capítulo deixou-me bastante
interessada e curiosa em investigar mais este tema, assim como trabalhá-lo na prática.

O autor desenvolve depois também mais temas relacionados26.

Numa segunda parte da tese, intitulada Chants de tradition orale en Haute-


Gaspésie: visées documentaires27 é justificada a escolha do tema do documentário e
apresentado o conteúdo, que consiste na recolha de gravações de canções folclóricas do
Canadá recolhidas por Barbeau e de testemunhos da terra de Haute-Gaspésie.

Pour les fins de cette étude, j’avais en effet commandé une trentaine
d’enregistrements de chansons auprès du MCH et de la Library of Congress de
Washington, qui me permirent de constater la richesse du répertoire et de mieux
comprendre l’excitation de Barbeau lors de sa découverte. 28

Campion, 2015, p. 44

A pesquisa no terreno, tema do ponto 2.2, é de igual importância para a criação


da obra. As gravações foram realizadas na Haute-Gaspésie pelo compositor e os
testemunhos são dos mesmos locais.

Depois de apresentar as pesquisas e investigar o trabalho de Barbeau, identifica-


se uma terceira parte da tese sobre a composição da parte musical do documentário.

Pessoalmente, esta é a parte de maior importância porque está diretamente


relacionada com o meu projeto de composição do próximo ano e, por isto, sinto também
uma maior proximidade intelectual entre mim e o autor nesta parte.

No geral, considero que a tese está muito bem redigida e muito interessante, mas
saliento, particularmente, esta terceira parte é que mais me cativou. O autor menciona as
estratégias para a realização do documentário que seguiu. Esta mostrou-se muito

26
Sendo estes os capítulos: Luc Ferrari et la musique anecdotique, Le paysage sonore fait musique, Yves
Daoust: de la musique acousmatique au regard documentaire,en passant par l’impressionnisme?.
27

Tradução: Cantos de tradição oral em Haute-Gaspésie

28
Tradução: “Para os fins deste estudo, eu tinha encomendado trinta gravações de músicas do MCH e da
Biblioteca do Congresso em Washington, o que me permitiu ver a riqueza do repertório e entender melhor
a empolgamento de Barbeau. perante a sua descoberta.”

24
organizada e metódica, sendo que o processo de criação se deve a muita investigação e
cuidados técnicos.

É interessante referir que Guillaume Campion assumiu uma posição


“transparente” (Campion, 2015, p. 65) enquanto criador do documentário. De facto, não
assume lugar como narrador: “(...) j’ai fait le choix de ne pas mettre en scène ma propre
présence dans la trame documentaire de Littorale (...)”29 (Campion, 2015, p.65). Assim,
o autor optou por recolher os testemunhos e usar excertos ao longo do documentário,
como meio de narração. Para isto, foram também solicitadas a voz de 7 testemunhos,
todos residentes da Haute-Gaspésie, e com domínio do tema do folclore e da história
local. O autor refere, de uma forma humilde, que foi precisa a participação em aulas de
método jornalístico para poder desenvolver um campo de perguntas mais pertinentes.

Depois de abordar a estratégia criativa do enredo do documentário, o autor foca


um ponto que me é muito importante: “Le territoire en tant qu’acteur” 30 (Campion,
2015, p.76).

Este tema é importante porque a ideia do meu projeto lhe está relacionado. De
facto, tenciono realizar um documentário, mais curto e menos ambiocioso que Littorale,
com base de filmagens da natureza de Portugal (Espaço ainda não definido).

Comme je l’ai expliqué à plusieurs reprises dans la première section de ce


mémoire, le territoire et l’environnement sonore de la Haute-Gaspésie revêtent une
importance particulière dans ma démarche, autant d’un point de vue documentaire que
musical. Dans leur aspect documentaire, ils permettent de dessiner le contour de la région et
de donner un cadre spatial à la pièce, en plus de s’imposer comme une métaphore du
paradoxe identitaire soulevé tout au long de l’œuvre. 31

Campion, 2015, p. 77

29
Tradução: “(...) fiz a escolha de não encenar minha própria presença no tecido documental de Littorale
(...)”
30
Tradução: “O território como ator”
31
Tradução: “Como já o expliquei várias vezes na primeira seção desta tese, o território e o ambiente
sonoro da Haute-Gaspésie são de particular importância na minha abordagem, tanto do ponto de vista
documental quanto musical. No aspeto documental, possibilitam traçar o contorno da região e dar uma
estrutura espacial à peça, além de se constituir em uma metáfora do paradoxo identitário levantado ao
longo da obra.”

25
Campion explica que a terra de Haute-Gaspésie e o seu meio ambiente são a
fundação da parte musical da obra. Analogicamente, é possível considerá-la como o que
ator principal. Já a paisagem é, de facto, representada de forma sonora e Guilllaume
Campion apresenta a explicação da sua estratégia composicional no capítulo seguinte.

Seguindo a questão da autenticidade defendida pelo SEL, e tendo como referência


o pensamento composicional de Murray Schafer e as técnicas de composição musical de
compositores como Pierre Schaeffer, Guillaume Campion criou uma obra emocionante e
que deixa o ouvinte numa imersão sonora profunda que o faz viajar até as terras canadenses
em questão. A voz dos narradores, testemunhos escolhidos pelo autor, conhecedores da
história da Haute-Gaspésie e homens que experimentaram ligação sensorial direta com o
meio ambiente e a natureza desta terra costeira, guiam a nossa mente para uns tempos
remotos. As gravações de cantos folclóricos, apuradas pelo compositor, soam sob forma de
eco á referencia de um passado longínquo.

Mathilde Martins, Excerto do caderno de Campo, 28/04/2020

Assim termina a tese de Guillaume Campion. E, além de aprender mais sobre o


mundo da música acusmática e o género do cinema documental, “entrei” na mente do
compositor de Littorale, viajando através das suas palavras para uma Haute-Gaspésie
mental e por tempos passados distantes.

Após a leitura da tese, entrei em contacto com o seu autor e perguntei-lhe se


podia ser sujeito de uma entrevista minha. Depois de mais comunicação, este mesmo
aceitou responder a umas questões por escrito e considero que este foi um dos meus
melhores momentos de investigação académica nestes primeiros meses do ano 2020.

A comunicação foi toda realizada em francês, língua original do compositor, mas


realizei depois uma transcrição e tradução para português.

(Questões e respetivas respostas: Tradução para português)


“1- Antes de chegar à composição de Littorale, pode falar-me mais
sobre a sua experiência como compositor e criador, e as razões da sua ligação
à música acusmática?

2- Refere várias vezes o trabalho de Murray Schafer. É um


compositor influente na sua carreira?

3- Menciona na sua tese la musique acousmatique et le


documentaire- vers um art sonore informatif, que a composição de Littorale

26
foi impulsionada pelo evento ex-voto. Houve fatores mais inspiradores para a
composição deste trabalho? Na verdade, sinto que aparenta ter uma forte
ligação emocional com a terra de Haute Gaspésie.

4- Natureza, testemunhos e repertório musical... sente maior


afinidade com um deles? A ligação e a coesão entre estes foram difíceis?

5- Qual foi a sua estratégia para a composição musical de Littorale?


Foi pensada a partir do enredo do documentário?

6- Há alternância entre os planos sonoros da composição acusmática


e da entrevista dos testemunhos. Como foi pensado? Pode explicar a
importância do prelúdio musical original e dos dois momentos finais
compostos pelos últimos 4 minutos finais do documentário?

7- Do ponto de vista técnico, qual foi o seu processo de composição


musical?

8- Qual é o resultado da criação de Littorale?

9- Quais são os seus planos futuros para a sua carreira? Pode falar-
nos do Project Archipel e da sua colaboração com Guillaume Côté?

1- Antes de chegar à composição do Littorale, pode falar-me mais


sobre a sua experiência como compositor e criador, e as razões da sua ligação
à música acusmática?

Tenho uma formação em guitarra clássica e instrumental. Interessei-


me pela música eletroacústica depois dos meus estudos de colégio (o nível de
colégio no Quebec é pouco antes do nível universitário), desejando continuar
a minha carreira na música enquanto explorava territórios outros que a
música instrumental. Então iniciei um curso na Universidade de Montreal em
composição eletroacústica, mas não sabia muito sobre este universo, exceto
para o grande essencial da música concreta como Schaeffer e Henry e
algumas obras de compositores do Quebec como Robert Normandeau e
Marcelle Deschênes. Foi a partir daí, descobrindo, entre outras coisas, Grains
of Voices de 'Eke Parmerud' e o trabalho de outros compositores que fizeram
uso particular do som e da paisagem sonora, como Luc Ferrari, Barry Truax,
Hildegard Westerkamp, para citar apenas alguns, que comecei a desenvolver
uma verdadeira ligação a esta prática musical. A ideia de tocar na dupla
identidade percetiva do fenómeno sonoro, tanto referencial como acusmático,
atraiu-me muito e constitui ainda uma base da minha prática como
compositor e artista sonoro. Vejo-o como uma forma de pensar e ouvir o

27
mundo que está num lugar privilegiado, na fronteira entre a imaginação
musical e a observação da realidade.

2- Refere várias vezes o trabalho de Murray Schafer. É um


compositor influente na sua carreira?

A influência de Murray Schafer na minha prática deve-se


principalmente ao seu livro The Tuning of the World. Como muitos outros
criadores que partilham o interesse pelo som real, é para mim uma escrita
fundadora, à qual muitas vezes volto. Há chaves e referências essenciais para
ouvir o mundo e a expressão artística que pode resultar dele, para além do
surgimento do conceito de ecologia sonora, que na minha opinião é da maior
importância ainda hoje. Tendo crescido numa região costeira, rodeada pela
natureza entre o rio Saint-Laurent et les monts Chic-Chocs, atribuo grande
importância à preservação da natureza e ao lugar que ocupa (ou deve ocupar)
na experiência humana, pelo que a filosofia de Murray Schafer de ouvir o
mundo atrai-me enormemente, tanto como criador a nível cidadão.

3- Menciona na sua memória la musique acousmatique et le


documentaire- vers um art sonore informatif, que a composição de Littorale
foi impulsionada pelo evento ex-voto. Houve fatores mais inspiradores para a
composição deste trabalho? Na verdade, sinto que aparenta ter uma forte
ligação emocional com a terra de Haute Gaspésie.

A Haute-Gaspésie é a minha terra natal, e apesar de viver em


Montreal por vários anos, ainda é o lugar no mundo onde estou mais
plenamente em casa. As suas paisagens, os seus sons, os seus cheiros, os seus
habitantes, ainda moldam a minha visão do mundo e a minha maneira de o
apreender. No entanto, trata-se de uma região historicamente marcada pelo
êxodo dos jovens e alguma pobreza face ao declínio das profissões
tradicionais nos sectores da pesca e da silvicultura. Quando cresci lá, o
sentimento de pertença não era evidente para muitos jovens da minha
geração, que sonhavam com o momento em que podiam deixar a região para
ir em frente à escola e viver as suas vidas noutro lugar. Penso que as coisas
estão a melhorar hoje, uma vez que vejo um regresso gradual dos jovens e
um maior sentimento de orgulho, e penso que isso resulta, em grande parte,
dos esforços de revitalização e desenvolvimento que têm sido feitos nas
últimas décadas. O programa Ex-Voto, criado em 2009 para contar a história

28
da região, já acabou, na minha opinião. Foi lá que ouvi pela primeira vez
sobre a passagem do antropólogo Marius Barbeau na Alta Galiza no verão de
1918. Soube-se que Barbeau tinha pousado na área em busca de canções e
contos tradicionais, equipado com um gravador de rolos de cera, e que se
tinha acumulado na aldeia de Tourelle - que nem sempre teve uma reputação
muito boa na região - um número significativo de canções folclóricas da
velha França, um repertório que aparentemente se tinha perdido noutros
lugares. Já, durante a minha infância e adolescência lá passadas, nunca tinha
ouvido falar de tal repertório, muito menos de alguém que cantava canções
assim. A minha curiosidade foi, portanto, despertada e eu queria saber mais
sobre estas canções, especialmente porque a informação de que o povo de
Tourelle tinha "salvo" este antigo repertório do esquecimento começava a
nevar na população. Pela minha parte, pareceu-me incongruente que esta
história não seria mais conhecida se fosse mesmo o caso.

Foi aqui que começou o projeto de Littorale, com a ideia de lançar


luz sobre este repertório e as circunstâncias reais da sua preservação, através
de um projeto de som híbrido, misturando música acusmática, arquivos
sonoros e entrevistas documentais. Iniciei a investigação em 2011, a partir de
uma comissão de trabalho recebida do festival Novellum em Toulouse,
através de uma competição universitária, sobre o tema Lost in translation.
Apresentei a peça "étude Litorale", que abordou a perda de memória em
frente ao repertório de Tourelle com algumas entrevistas e excertos dos
escritos de Barbeau. Sentindo que só tinha tocado no assunto, continuei no
ano seguinte iniciando um projeto de mestrado inteiramente dedicado ao
assunto. Portanto, sim, essencialmente, o impulso por trás de Littorale vem
tanto do meu apego à região, do desejo de mostrar as suas paisagens, o seu
povo e a sua história, mas também encontrar um pano de fundo da verdade
numa história que parecia um pouco sobrevalorizada e exagerada, por detrás
de uma nobre intenção de trazer de volta um pouco de orgulho para o povo
da região.

4- Natureza, testemunhos e repertório musical... sente afinidade


maior com um deles? A ligação e a coesão entre eles foram difíceis?

Acredito que o que me interessa no final são experiências humanas, e


acho, na mistura destes três elementos, uma forma de dizer que se adequa à
minha sensibilidade e às minhas afinidades artísticas. Dependendo do
projeto, um ou outro destes três elementos pode ocupar mais espaço, mas
acho que também não tenho uma afinidade particular em relação a nenhum

29
dos dois, também me sinto à vontade na música, no documentário ou na
paisagem sonora, apesar da minha primeira ligação estar ao mundo da
música. O que foi mais difícil no caso de Littorale, que foi a minha primeira
experiência de compor estes três elementos, foi dar tanto espaço à música
como aos testemunhos, e vice-versa. Queria que a música se tornasse uma
personagem, com uma mensagem documental da mesma forma que os
entrevistados, e que os testemunhos se encaixassem perfeitamente na
partitura musical, ao ponto de fazerem parte da própria música. Queria evitar
que fosse um documentário de som com uma música de acompanhamento
atrás, em suma. É a paisagem sonora gaspesiana e os arquivos de Barbeau
que têm servido de ligação entre os dois, de forma a ritmo e orientar as
escolhas de composição e a composição do quadro documental.

5- Qual foi a sua estratégia para a composição musical de Littorale?


Foi concebido a partir do enredo do documentário?

Inicialmente, tinha um plano abrangente, que se reflete


sumariamente na forma final da obra, nomeadamente uma primeira parte que
trata da história da região e do repertório, que daria mais aos arquivos e à
paisagem sonora natural - que parecia mais adequada para evocar uma época
antiga - e uma segunda parte que aborda a atual redescoberta do repertório,
dando para ouvir uma paisagem sonora e gravações sonoras mais obviamente
contemporâneas. Conceptualmente, a própria música teve de ser inspirada
nas canções do repertório e na paisagem sonora gaspesiana. Na verdade,
muito mais do que apenas inspirar-se nele, todo o material sonoro de
Littorale provém destes dois elementos, excluindo entrevistas. Todas as
gravações sonoras foram feitas em Haute-Gaspésie e todas as transformações
sonoras foram feitas a partir destes sons, gravações de arquivo e as vozes dos
entrevistados. Não foi utilizado nenhum som retirado de fora da área ou
qualquer som de síntese. Foi uma estratégia desenvolvida para ancorar a
partitura musical o mais profundamente possível no contexto e no tema. A
partir daí, de acordo com a minha visão inicial, a música tornou-se uma
personagem por si só, com um passado e uma história, e tornou-se possível
fazê-la interagir mais concretamente com os testemunhos. É claro que foram
feitos vários ajustamentos a esta estratégia ao longo da composição, mas
fiquei com a limitação de utilizar apenas gravações sonoras de Haute-
Gaspésie e excluir completamente a síntese de som - embora alguns sons
sejam transformados ao ponto de poderem ser confundidos com síntese,
preciso admitir.

30
Para responder mais especificamente à segunda parte da pergunta,
portanto, o enredo documental não veio em primeiro lugar, mas eu já tinha
um plano bastante sólido e eu sabia do que ia falar antes mesmo de compor,
então inevitavelmente, tingiu a composição musical do início ao fim. No
entanto, na verdade, a primeira sequência sonora que eu fiz para o projeto foi
o prelúdio, que é estritamente musical. Posteriormente, foi acrescentada a
edição de entrevistas, que foi construída de forma bastante cronológica, uma
parte de cada vez, ao mesmo tempo que a música. Como explico mais tarde,
soube logo no que ia terminar a peça, mas ainda assim compus o final em
último. Segui o plano que me tinha dado, em suma, com alguns ajustes pelo
caminho.

6- Existe alternância dos planos sonoros entre a sua composição


acusmática e a entrevista dos testemunhos. Como foi o pensado? Pode
explicar a importância do prelúdio musical original e os dois momentos
compostos pelos últimos 4 minutos do documentário?

O prelúdio não fazia parte do plano original no início do projeto, que


eu vi simplesmente em duas partes. No entanto, a ideia chegou ao fim, por
duas razões. Por um lado, tive de testar os meus materiais de som, testar o
potencial musical das minhas gravações sonoras e gravações em rolos de cera
Barbeau, antes de começar a composição do projeto. Foi, portanto, uma
forma de gerar material musical e pensar em diferentes possibilidades de
transformações e tratamentos sonoros que seriam reinjectados mais tarde no
resto da obra. Por outro lado, a investigação documental e etnomusicológica,
em relação ao repertório de canções, levou-me muito tempo no início do
projeto. Sendo sobretudo um compositor, queria que estes dois aspetos
fossem conduzidos com seriedade e rigor. Por isso, conduzi pesquisas deste
lado, tomando diferentes cursos e seminários fora da Faculdade de Música,
informando-me sobre as diferentes práticas documentais. Conduzi também
uma investigação bastante séria sobre a proveniência do repertório recolhido
em Tourelle e a persistência destas canções noutros pontos do mundo
francófono, a fim de poder dar a informação certa na peça. A este respeito, o
prelúdio foi, por conseguinte, uma forma de iniciar a composição do projeto
ao mesmo tempo que as fases de investigação estavam a decorrer para
preparar a criação do quadro documental. Também percebi muito
rapidamente que era uma forma de ancorar o projeto no universo musical,
apesar da sua natureza documental, usando uma forma específica da música

31
desde a era barroca, que permitia abrir a bola com uma secção puramente
musical.

Relativamente aos últimos quatro minutos de trabalho, trata-se de um


excerto quase completo dos últimos minutos de uma entrevista com a
Madame Micheline Pelletier, então presidente da Câmara de Sainte-Anne-
des-Monts-Tourelle. A Sra. Pelletier faleceu, infelizmente, levada por um
cancro que já estava a combater na altura. Esta entrevista foi um momento
fulcral no meu projeto, o que me fez perceber que, para além do
documentário ou da investigação antropológica, era sobretudo uma busca de
identidade, em primeiro lugar pessoal, mas também coletiva. O zelo desta
mulher em defender o seu canto do país e restaurar o valor das suas raízes
deixou uma marca duradoura na região. Nessa altura, compreendi toda a
reflexão e boa vontade por detrás da reavaliação do repertório de Tourelle,
apesar de alguns exageros, e pareceu-me que todas as minhas investigações e
reflexões até agora estavam finalmente a convergir sobre esta questão que ela
levantou à sua maneira, ao mesmo tempo que lhe dava uma resposta: quem
somos nós hoje coletivamente, e em que bases queremos construir o nosso
futuro? Em retrospetiva, a sua intervenção final em Littorale pode parecer
tingida de um certo patriotismo, mas creio que estas são, em última análise,
questões universais e que o âmbito da sua mensagem e do seu compromisso
com a comunidade vai muito além das considerações patrióticas. De qualquer
forma, ficou claro para mim, após a entrevista, que foi nestas palavras que
Littorale acabaria, e tendo descoberto o propósito e a mensagem subjacente,
o resto da moldura documental reuniu-se facilmente.

Musicalmente, há de facto um regresso de vários elementos


presentes no prelúdio e noutros locais da obra, de modo a convergir para um
sentimento de realização, uma forma de fechar o ciclo que eu queria bastante
brilhante e positivo, com uma abertura sobre o futuro. A voz do cantor que
ouvimos no final é a de Gilbert Marin, com a música "Lisette, faz-me um
bouquet", o primeiro de cerca de 700 que Barbeau gravou durante a sua
passagem em 1918. Fala disso de uma forma muito bonita nos seus escritos,
dizendo que foi a partir deste momento que tinha amado Gaspésia, que tinha
encontrado a sua voz, bonita e atormentada; Então foi novamente uma
maneira de fechar o laço com um extrato carregado de sentido, numa
encenação sonora que evoca para mim um pôr-do-sol à beira-mar, o velho
pescador a remendar as suas redes enquanto canta a sua canção.

7- Do ponto de vista técnico, qual foi o seu processo de composição


musical?

32
Usei diferentes microfones e tomadas de som, incluindo uma tomada
dupla em MS, uma tomada binaural "artesanal" com dois microfones omnis
ligados aos meus auscultadores, e também muitas tomadas de som usando
hidrofones. Os diferentes tratamentos foram feitos a partir de ferramentas
bastante tradicionais, incluindo as Ferramentas GRM e um patch Max MSP
que eu desenhei para personalizar para obter diferentes movimentos e
arquétipos inspirados na natureza gaspesiana, como ondas e vento nas
montanhas, aplicando-os a diferentes materiais. Para além disso, todo o
trabalho de edição e composição foi feito nas Ferramentas Pro. Geralmente
prefiro a economia dos meios quando se trata de compor. Tento manter uma
visão clara, mantendo-me sintonizado com o que o som leva a dizer, em vez
de recorrer à proeza tecnológica desta ou daquela ferramenta.

Também passei muito tempo a documentar e a limpar as gravações


centenárias de Marius Barbeau, e grande parte do material musical também é
derivado dos artefactos sonoros obtidos através deste processo (ruídos de
banda, cliques, etc.). Neste sentido, a suite iZotope RX tornou-se também
uma ferramenta de composição para este projeto, como para muitos outros
projetos. Uso-o frequentemente de uma forma um pouco desonesto para
filtrar e extrair material das minhas tomadas de som.

No que diz respeito aos arquivos folclóricos, acrescentaria que as


alturas ouvidas na sala, através de sons filtrados por vezes semelhantes à
onda assobio ou sine, foram inspirados por certos motivos ou modos musicais
encontrados nas canções, como as três primeiras notas da música "Lisette,
fais-moi un bouquet", com o qual toquei para concluir o prelúdio e que são
encontrados de uma forma ou de outra ao longo do trabalho. Isto certamente
não presta homenagem a toda a complexidade das linhas melódicas destas
canções cheias de melismas e babados, mas o seu espectro tonal, no entanto,
paira por toda a sala. As gravações das próprias canções, exceto quando
desconstruídas dentro do quadro acusmático, são apresentadas como
documentos, excertos de arquivo usados para apoiar ou ilustrar o ponto dos
oradores. Tentei durante algum tempo combinar mais de perto as canções
completas e a partitura musical da obra, mas encontrei demasiada rigidez do
material, tanto pela sua qualidade de arquivo como pelos seus complexos
contornos melódicos.

33
8- Qual é o resultado final da criação do Littorale?

Academicamente, Littorale foi um projeto de composição e


investigação académica de três anos. Resultou na criação da peça em si, um
"documentário acusmático" em duas partes precedidas de um prelúdio, bem
como a escrita de uma tese de mestrado que traça o processo de composição.
Seguindo os meus estudos, quis retomar a composição e reorganizar algumas
partes que ainda me deixam insatisfeito, para tentar publicá-la mais
amplamente, mas nunca encontrei o momento certo para me dedicar a ela,
pelo que a peça ainda existe apenas na sua forma "académica". No entanto,
teve uma certa influência pouco depois da sua composição, tendo ganho
alguns prémios e sido transmitida algumas vezes, nomeadamente no festival
Kontakte, no Akademie der Konste, em Berlim.

No entanto, o estudo e a melhoria do repertório folclórico de Haute-


Gaspésie tem continuado para mim desde então, nomeadamente através de
projetos com a Sociedade de História de Haute-Gaspésie e a Cidade de
Sainte-Anne-des-Monts, para os quais o meu colega Guillaume Côté e eu
montámos uma estação de escuta e descobrimos os arquivos de Marius
Barbeau e dos seus colaboradores em Haute-Gaspésie, contendo mais de
1200 documentos áudio, fotográficos e textuais. Também estabelecemos um
trilho sonoro interativo no concelho para destacar o património e as obras em
madeira marinha que são inspiradas nele, que podem ser encontradas por toda
a cidade (para mais detalhes sobre estes projetos:
https://www.tramesaudio.com/barbeau).

9- Quais são os seus planos futuros para a sua carreira? Pode falar-
nos do Project Archipel e da sua colaboração com Guillaume Côté?

Trabalho desde 2015 com o compositor Guillaume Côté, com quem


instalámos o coletivo de elétricos, trabalhando em arte sonora e mediação
cultural. Por um lado, prosseguimos uma abordagem do "documentário
acusmático" (raramente uso este nome, falando em vez de documentário
experimental de som ou documentário de criação sonora, poucas pessoas
familiarizadas com o termo "acousmatic"), na mesma linha que littorale,
através de projetos que afetam geralmente o património, o território ou várias
questões sociais. O primeiro foi o Project Archipel, um documentário de som
multimédia com um trabalho de concerto de 30 minutos, um documentário

34
web e uma aplicação de rota sonora móvel, tudo focado no tema do acesso às
margens do rio na área metropolitana de Montreal
(https://www.tramesaudio.com/archipel). Estamos neste momento a terminar
um documentário de criação sonora sobre o tema da língua francesa nas
escolas secundárias de Montreal, onde a dualidade linguística francês/inglês
historicamente remonta a um longo caminho, uma questão avançada pela
imigração (https://www.tramesaudio.com/confluences). Estamos também a
trabalhar num novo documentário sobre património folclórico gaspesiano,
desta vez explorando mais as reminiscências dos anciãos da região,
descendentes dos cantores de Barbeau, e a abordagem de artistas
contemporâneos que se inspiram no repertório. Somos também muito ativos
na área da educação, realizando uma série de projetos nas escolas desde 2017
para introduzir os jovens na prática da arte sonora
(https://www.tramesaudio.com/carrefour,
https://www.tramesaudio.com/paysages-sonores). Estamos neste momento a
desenvolver uma plataforma educativa para a criação de som online para
jovens dos 10 aos 14 anos, de forma a apresentá-los ao mundo da criação
sonora na escola ou em projetos domésticos (disponíveis em 2021).”

Excerto da entrevista, Mathilde Martins/Guillaume Campion, dia 27/04/20

O objetivo da primeira pergunta apresentada a Guillaume Campion estava


relacionado à minha curiosidade sobre a formação do compositor, como também com a
tentativa de compreensão da sua ligação com a música acusmática. Descobri então que
o compositor teve uma formação de instrumento clássico, em específico o estudo de
guitarra clássica. É verdade que a maior parte dos compositores apresentam um
percurso musical a partir de um contacto e estudo instrumental inicial. Mais, o
compositor informa que foi durante os seus anos de estudo secundário que se interessou
pela composição e, principalmente, pela composição eletroacústica. Isso seguiu-se nos
seus estudos de composição em estudos superiores.

Na parte correspondente à análise da tese, houve referência a nomes como


Schaeffer e Henry, Luc Ferrari e Westerkamp, entre outros. Na primeira resposta,
Guillaume Campion aponta-lhes importância, no sentido que contribuíram para
construção do seu saber mas também para a sua mudança de visão do mundo.

35
J’y vois une façon de réfléchir et entendre le monde qui se trouve à un endroit
privilégié, à la frontière entre l’imaginaire musical et l’observation du réel. 32

Campion, 202033

Sendo Murray Schafer referido várias vezes ao longo da tese, a segunda pergunta
tem como intuito perceber a importância e influência que este apresenta ao compositor.
Em resposta, Guillaume explica a importância que lhe está associado. A leitura da obra
The Tuning of the World é uma obra fundamental para Guillaume Campion sendo que a
descoberta da filosofia34 de Schafer teve uma forte influência na sua vida, tanto de
cidadão como de criador.

A resposta da terceira pergunta foi a que despertou mais atenção. Esta é, de


facto, mais subjetiva e oferece ao entrevistado uma maior liberdade de expressão na
resposta. É nesta resposta que Guillaume Campion exprime a sua forte ligação com a
terra de Haute-Gaspésie. Aqui, identifico-me e partilho a mesma ligação emocional com
Portugal. Tudo isso tão simples de explicar como o fez o entrevistado: “(...) Ses
paysages, ses sons, ses odeurs, ses habitants (...)” 35. Resume-se então a uma experiência
sensorial enquanto ser humano, mas que pode ter um impacto máximo na nossa vida.

Na segunda parte da resposta, Guillaume Campion apresenta os elementos aos


quais se devem a criação do projeto Littorale. Mais que a sua afinidade com a terra
Gaspesiana, o impulso que lançou o compositor na investigação das gravações de
Barbeau, deve-se à curiosidade que foi despertada num evento denominado Ex-voto.
Guillaume refere que desconhecia totalmente o assunto antes do evento. Abaixo, deixo
as palavras de Guillaume Campion explicarem os objetivos implícitos na criação deste
projeto:

Littorale provient à la fois de mon attachement à la région, d’un désir de mettre en


valeur ses paysages, ses gens et son histoire, mais aussi de retrouver un fond de vérité dans
une histoire qui me semblait un peu surfaite et exagérée, derrière une intention noble de
ramener un peu de fierté aux gens de la région.

32
Tradução: “Vejo nele uma maneira de pensar e ouvir o mundo que se encontra num lugar privilegiado,
na fronteira entre a imaginação musical e a observação da realidade.”
33
Excerto da Entrevista a Guillaume Campion (Martins, 2020)
34
Filosofia ligada com respeito da natureza e sua importância na experiência humana.
35
Tradução: “(...) Suas paisagens, seus sons, seus cheiros, seus habitantes (...)”

36
Campion, 202036

Uma das curiosidades ao ouvir a obra Littorale foi saber se o seu autor tinha uma
afinidade maior com os elementos da natureza/testemunhos/música. Assume afinal que
o que o lhe despertou mais interesse foi a “experiência humana”. Uma das tarefas mais
difíceis durante o processo de criação foi, segundo Guillaume Campion, interrelacionar
os três elementos.

Sendo que o meu projeto futuro apresenta semelhanças importantes com o


trabalho realizado em Littorale, a quinta questão tem um objetivo de conteúdo mais
relacionado com técnica. Como o enredo tem uma importância fundamental na criação e
que condiciona diretamente a parte musical de um documentário, o objetivo é perceber
qual tinha sido a estratégia do compositor. Este explica que optou por começar seguindo
uma visão general do enredo. A partir daí, como já foi dito várias vezes, a obra
desenrola-se através da natureza de Haute-Gaspésie, das vozes dos testemunhos e da
recolha das gravações de Barbeau.

Como Guillaume Campion já defendeu a questão da autenticidade, a sua opção


em usar somente sons gravados na região, sendo que ele garante que nenhum som
exterior nem de síntese foram usados, foi fiel a sua ideologia.

O prelúdio musical inicial é um dos momentos musicais que mais valorizei ao


longo da obra. No entanto, o compositor admite, em resposta a questão nº6, que não
tinha sido planeado, na ideia inicial, integrar este prelúdio na obra. Deixou-me
surpreendida o facto da ideia inicial não incluir este segmento musical.

Do ponto de vista mais prático na criação da obra musical, e que, enquanto


compositora, é importância, Guillaume Campion explica, na resposta nº7, ter usado
diferentes tipos de microfones para a gravação de som na natureza.

J’ai utilisé différents micros et prises de son, dont une prise double-MS, une prise
binaurale « artisanale » avec deux micros omnis fixés sur mon casque d’écoute, et
également beaucoup de prises de son à l’aide d’hydrophones. Les différents traitements ont
été faits à partir d’outils assez traditionnels, dont les GRM Tools et un patch Max MSP que
j’ai conçu sur mesure pour obtenir différents mouvements et archétypes inspirés de la

36
Excerto da Entrevista a Guillaume Campion (Martins, 2020)

37
nature gaspésienne, comme les vagues et le vent dans les montagnes, en les appliquant à
différents matériaux.37

Campion, 202038

O compositor refere usar o programa protools para a edição de som. Este é um


programa muito usado no mundo da criação musical, ao qual também recorro
recorrentemente. No entanto, o compositor também cita o programa iZotope RX 39,
programa esteque eu desconhecia.

Observa-se que as canções são apresentadas de forma muito editada e


sintetizadas ao longo da obra. Isso aconteceu, segundo Guillaume, pela falta de
qualidade das gravações das canções folclóricas (que tiveram que ser muito apuradas) e
pela rigidez musical como resultado da apresentação das canções na sua forma integral.

Uma outra curiosidade que apresentei ao investigar o caso da criação do projeto


Littorale de Guillaume Campion foi o impacto que esta teve na sua carreira. De facto,
os anos de trabalhos para a criação deste projeto propulsionaram a criação de um
trabalho de qualidade que alcançou prémios e que impulsionaram outros mais projetos
do mesmo género. O artista refere que o documentário foi apresentado no festival
Kontakte na Academia der Kunste de Berlim. Realizou também mais projetos com a
Sociedade de Haute-Gaspésie. Um dos trabalhos mais importantes e regulares que
Guillaume realiza, com a colaboração de Guillaume Côté, é a relização de percursos
sonoros e estações de escuta para a divulgação de documentos gráficos e sonoros.

A última pergunta vem em seguimento ao que foi agora dito. Guillaume explica
a sua colaboração com Guillaume Côté, que data a partir 2015 e apresenta o seu projeto

37
Tradução: “Usei diferentes microfones e gravações de som, incluindo um soquete duplo MS, um
soquete "tradicional" binaural com dois microfones OMNI fixados em meus fones de ouvido e também
muitas gravações usando hidrofones. Os diferentes tratamentos foram feitos usando ferramentas bastante
tradicionais, incluindo o GRM Tools e um patch Max MSP que eu projetei para obter diferentes
movimentos e arquétipos inspirados na natureza de Gaspé, como ondas e vento no ambiente. montanhas,
aplicando-os a diferentes materiais.”
38
Excerto da Entrevista a Guillaume Campion (Martins, 2020)
39
"O RX permite que eu forneça o produto final mais limpo, economizando entrevistas e som de
localização que, de outra forma, não poderiam ser utilizados". (Eric R. Fischer)
https://www.izotope.com/en/products/rx.html : Consultado dia 28 de abril 2020

38
Project Archipel40. Este projeto consiste na compilação de um documentário sonoro
multimédia (com uma obra de concerto de 30 minutos), de um web documentário, e
uma aplicação móvel de um percurso sonoro da região metropolitana de Montréal.
Guillaume Campion também menciona a criação de um documentário sobre a língua
francesa, Confluence41, e a criação de um novo documentário sobre o património
folclórico da Haute-Gaspésie. O artista informa também que, desde 2017, tem
desenvolvido ativamente trabalhos42 relacionados com educação para a divulgação aos
jovens a prática da arte sonora43. Um dos projetos futuros que Guillaume Campiou
divulgou é a criação de uma plataforma educativa de criação sonora online destinada
aos jovens entre 10 a 14 anos. O compositor informa que estará disponível em 2021.

Guillaume Campion mostrou-se muito acessível e dedicado em responder muito


cuidado às perguntas que lhe sugeri. No espaço de poucos dias, tive as respostas que eu
esperava, e até mais completas do que nas minhas expectativas. É de louvar esta atitude
disponível que Guillaume Campion seguiu. Apesar das diferencias horárias e da
distância que o Portugal e o Canadá apresentam, o compositor teve o cuidado de
comunicar comigo dentro dos prazos que lhe incuti.

Identifiquei-me com o compositor por vários motivos. Sem insistir no facto que
ambos pertencemos ao mundo da arte e especificamente no mundo da música, através
da técnica composicional, Guillaume Campion apresenta muita sensibilidade perante a
natureza e a sua terra natal. Ao longo da tese, ele refere várias vezes elementos como o
mar e o vento. Estes são dois elementos pelos quais também apresento uma ligação
sensorial muito forte. E, como já o referi na síntese da tese no início deste trabalho, a
ligação sensorial que lhe está associada é tão importante que estes elementos naturais,
entre outros, acabam por se tornar o “ator principal” da obra. A Natureza tem, na minha
opinião, um lugar muito importante no processo criativo de muitos artistas. Não sempre
de uma forma direta, mas sob forma de estímulo sensorial despertador de emoções
invocadoras do fenómeno da inspiração. No caso da obra de Guillaume, percebemos
que a natureza foi usada sob várias formas: pela gravação de imagens e de sons de

40
https://www.tramesaudio.com/archipel
41
https://www.tramesaudio.com/confluences
42
https://www.tramesaudio.com/carrefour
43
“Nous sommes également très actifs dans le domaine de l’éducation, menant depuis 2017 une série de
projets dans les écoles pour initier les jeunes à la pratique de l’art sonore” (Campion, 2020)

39
forma consciente, e a partir da sua experimentação sensorial intuitiva (visão, audição,
paladar, olfato e tato).

Esta sensibilidade perante a natureza, comum a muitos seres humanos, é um fator


importante em ambos nossos processos criativos.

Tenho que apontar que o estudo da tese e da obra de Guillaume Campion teve
um impacto muito positivo no meu percurso enquanto compositora. Eu desconhecia a
ideologia de Murray Schafer, e esta, ao despertar a minha curiosidade, acaba por ter um
lugar importante nas minhas investigações futuras. A referência de The Tuning of the
World, de Murray Schafer, feita pelo entrevistado é então uma leitura muito
aconselhável.

O processo de realização do documentário foi então obra de muito tempo, sendo


que foi pensado e realizado ao longo de vários anos. Existe riqueza neste processo. De
facto, o criador investigou. Investigou os primórdios da música acusmática, os seus
seguidores, as ideologias de Schafer, a história do cinema documental e tudo o que a
envolve (como por exemplo as entrevistas), e questões relacionadas com as suas
estratégias estilísticas (investigando a questão da autenticidade com o SEL). Além disto,
o autor realizou também um grande trabalho de campo, investigando a terra sujeita e ao
estudo histórico. Também fez a recolha de centenas gravações de cantos folclóricos
importados de frança para o Canadá, realizadas por Barbeau. A recolha de testemunhos
também foi uma parte importante e que, visivelmente, envolveu emocionalmente o
compositor. Ele mesmo refere, numa resposta da entrevista, que o mais o marcou foi o
contacto humano que vivenciou com os entrevistados.

Por detrás de todo o trabalho realizado, que seja na investigação teórica ou em


campo, pelo trabalho prático requerido pelas gravações, pelo trabalho da montagem e
edição de som, pelo trabalho requerido pela composição musical da obra, percebemos
que a obra de Guillaume Campion cresceu a partir de uma humilde causa: a divulgação
de canções “esquecidas” e a defesa da terra costeira da Haute-Gaspésie tanto pela sua
natureza quanto a sua história.

As emoções experienciadas pelo compositor através da sua proximidade com uma


grandiosa natureza e com o contacto humano com uns habitantes desta mesma terra, foram
transmitidas ao longo da obra. Por minha própria experiência, a audição do documentário
(unicamente sonoro) transportou-me para outro território: o da Haute-Gaspésie. Vejo, nesta
Haute-Gaspésie puramente imaginária e construída a partir de som, ondas ferozes e

40
incontroláveis que rugem ao contacto com os rochedos da costa. Vejo o mar envolver
impetuosamente tudo o que estiver no seu caminho, abraçando as paredes de pedra dos
precipícios. Sinto a humidade salgada do vento que voa, invisível, por cima da água gélida
do mar acompanhando o movimento onduloso das ondas. Vejo a sua força na violente
dança incessável do abanar das árvores da vasta floresta que me rodeia. Sinto-o a arrepiar-
me como se levasse parte da minha alma. Tudo acalma e ouço uma voz. Uma voz
reconfortante. A viagem pela história do passado da Haute-Gaspésie e das canções
folclóricas recolhidas por Barbeau começa.

Excerto do caderno de Campo, 28/04/2020

A obra Littorale é uma viagem maravilhosa e não houve melhor maneira para
entender o pensamento do compositor na criação que a leitura das suas palavras.

Depois deste importante momento de pesquisa e comunicação com Guillaume


Campion Vallée, comecei a planear o meu trabalho em campo. A obra do compositor
deixou-me realmente muito inspirada e motivada, porque serei eu a interveniente e
então criadora de um documentário.

O trabalho prático relativo à realização da obra do meu projeto artístico de mestrado


implica diversas e diferentes tarefas que são a realização de vídeo, gravação de som,
composição musical, investigação teórica e planificação/estruturação do trabalho. Todos
os pontos que referi, menos a investigação teórica e a composição musical, implicam o
envolvimento num trabalho de campo.
A Serra das Talhadas situa-se em Sever do Vouga e ergue a sul do rio. Descobri, ao
longo de caminhadas nesta serra, preciosas riquezas naturais e paisagens muito intensas
que chegam a dar as vistas ao oceano, a existência de impressionantes cascatas, de
vegetação abundante, miradouros a cortar a respiração e espaços que emanam sensações
de magia ou de mistério. Além da riqueza natural desta serra, uma grande carga
magnética acompanha as enormes pedras de granito dos distintos monumentos
megalíticos e de algumas misteriosas gravuras de arte rupestre atlântica, provas da
existência de nossos ancestrais nesta zona. Fiquei logo seduzida pela zona e o objetivo
do meu documentário seria de revelar a beleza e força da natureza deste território e
transmitir parte das emoções e sensações que eu própria testemunhei perante ele.
É de referir o trilho dos Mouros ou Rota dos Megalitismo, espaço no qual
concentrarei o tema do documentário e espaço pelo qual assumo mais afinidade pelas
suas características naturais (Natureza densa, variedade de ambientes e presença de

41
diversos monumentos megalíticos). Este é “um espaço privilegiado para a observação e
interpretação de megalitismo, constituindo um verdadeiro museu arqueológico a céu
aberto.” (Passeios Megalíticos pela Serra das Talhadas, 2015) 44.
A primeira tarefa que me propus ao nível de trabalho em campo foi realizar um
trabalho de reconhecimento da zona. Caminhei umas horas na manhã do dia 23 de maio
de 2020 pelo Trilho dos Mouros, tirando fotografias e gravando alguns vídeos com o
meu telemóvel para ter registo de alguns elementos importantes da zona.

Alguns elementos próprios as épocas da primavera chamaram-me atenção, como


é exemplo o som do escoamento da água de fontes naturais pelas pedras. Este elemento
que registei por vídeo é portante um material que pode “desaparecer” no verão, período
em que vou realizar as filmagens.

Figura 7- Fotografia tirada no 23/05/20: Escoamento da água.

Outros momentos que me despertaram atenção foram, por exemplo, as mudanças de


ambientes de fauna natural.

44
http://montanhasmagicas.pt/pt/o-que-fazer/itinerarios-turisticos/passeios-megaliticos-pela-serra-das-
Figura 8- Fotografia tirada no 23/05/20: Pequeno riacho. Figura 9- Fotografia tirada no 23/05/20: Natureza mais densa.
talhadas/ consultado dia 03/06/20

42
É de referir os monumentos megalíticos da Anta 45 do Poço dos Mouros, Anta da Capela
dos Mouros e a Sepultura do Rei. São muitas as antas ou dólmens, associados ao
significado da preocupação, por parte dos habitantes ancestrais e primitivos da zona, a
vida do além e do respeito pela morte. Foi nestas construções constituídas por grandes
pedras que estes sepultaram os seus chefes.46
A Anta do Poço dos Mouros encontra-se a 620m de altitude é um monumento
arqueológico muito raro em Portugal. Insere-se no género do tumulus47 de tipo cairn48,
apresenta uma altura de 1,6m e encontra-se “escondida” pelo rodeamento por uma
acumulação de pedras e relevos rochosos. Desta, as pesquisas arqueológicas juntaram
vários registos de encontro de pontas de seta, cerâmica e lâminas.

O espólio exumado durante os trabalhos arqueológicos,


essencialmente marcado pela presença de micrólitos e de lâminas, contas em
xisto, alguma cerâmica e pontas de seta, aponta a origem deste monumento
para uma fase antiga do megalitismo regional, talvez dos inícios do 4º
milénio A. C. 49

A Anta do Poço dos Mouros é o monumento megalítico o qual acho mais


interessante do ponto de vista estético. Apresenta-se coberto por pedras ao contrário dos
dois outros que estão cobertos com terra. Para além disso, a localização da Anta do
Poço dos Mouros é a mais descoberta pela vegetação e a que se apresenta num terreno
mais rochoso.

45
Monumento megalítico funerário, datados da Idade Neolítica e da Idade do Bronze, caracterizado por
duas ou mais grandes pedras verticais a sustentar uma grande pedra horizontal, formando uma câmara
sepulcral. = DÓLMEN, ORCA https://dicionario.priberam.org/anta consultado no 03-06-2020
46
https://pt.wikiloc.com/trilhas-trekking/rota-do-megalitismo-pr5-sever-do-vouga-2257295 consultado
dia 03/06/20
47
“A pile of earth and stones that was put over a grave (= place where a dead person is buried) in ancient
times” Cambridge Dictionary https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/tumulus consultado
dia 03/06/20
48
“cairn”, do escocês càrn, é uma mamoa ou tumulus.
49
http://montanhasmagicas.pt/pt/o-que-fazer/historia-arte-e-cultura/tesouros-arqueologicos/anta-do-poco-
dos-mouros/ consultado dia 03/06/20

43
Figura 10- Fotografia tirada no 23/05/20: Anta do Poço dos Mouros.

A anta da Sepultura do Rei encontra-se a 700 metros de altitude e apresenta muitas


características particulares que a distinguem da maioria dos outros monumentos
megalíticos de Sever do Vouga.

Ao contrário das grandes sepulturas coletivas do Neolítico, implantadas em


amplas esplanadas, esta é uma sepultura individual inserida numa pequena
plataforma encostada à base de um relevo, representando uma grande
mudança no ritual da morte. O topónimo popular “Sepultura do Rei” vem
reforçar a convicção de que o túmulo terá sido de alguém importante. A
imaginação popular associou-a a um rei. O facto de não terem sido achadas
peças associadas ao enterramento, durante as escavações arqueológicas,
50
dificulta uma atribuição cronológica mais correta à sepultura.

Este monumento é muito particular, pelo que se apresenta fechado com uma
pedra na parte de cima. Esta sepultura encontra-se no lugar mais remoto do percurso do
trilho dos Mouros e é também o mais difícil de encontrar, e encontra-se “escondida”
atrás de um pequeno monte. A sepultura é funda e sugere fortemente o seu significado
associado às práticas fúnebres.

50
http://montanhasmagicas.pt/pt/o-que-fazer/historia-arte-e-cultura/tesouros-arqueologicos/sepultura-do-
rei/ consultado dia 03/06/20

44
Figura 11- Fotografia tirada no 23/05/20: Anta da Sepultura do Rei.

A Anta da Capela dos Mouros foi descoberta no ano 1999. Trata-se de uma anta
constituída por um dólmen “com câmara poligonal alongada tendencialmente
subtrapezoidal, planta pouco comum no Megalitismo do Centro de Portugal” (Câmara
Municipal de Sever do Vouga)51.
Esta é a Anta que se mostrou a mais importante no meu trabalho de campo
relativamente a realização da obra. De facto, eu referi que o meu objetivo é conseguir
realizar um documentário que, “do ponto de vista musical, (...) deixa as imagens e o
som expressarem-se por eles mesmos.”. Aqui refiro-me a dois aspetos que vivenciei no
trabalho em campo e que desejo exprimir no visual e no áudio: Observação e sensação.
A observação está relacionada com a imagem, ou seja, com que eu observei e registei
por meio da filmagem: “sinfonia de imagens” como descrição visual. A sensação, ela, é
resultante das emoções vivenciadas com o contacto direto com o ambiente: banda
sonora como descrição sensorial. Ambas são complementares e constam como material
poético temático. Neste caso, a Anta da Capela dos Mouros é um lugar ao qual associo
uma grande carga emocional que se deva ao espaço em que se encontra e a outro aspeto
mais difícil de explicar, mais íntimo, que poderia determinar como “magnetismo” ou
“energia”. Testemunhei emoções muito intensas neste espaço e será então um momento
importante no documentário.

51
https://www.arqueohoje.com/?page=portfolio&areas=arqueologia_antropologia&id=2 consultado no
03/06/20

45
Figura 12- Fotografia tirada no 23/05/20: Entrada da Figura 13- Fotografia tirada no 23/05/20: Por cima
Capela dos Mouros da câmara da Capela dos Mouros

46
No começo do trabalho relativo a obra do projeto de mestrado, decidi que a
planificação de mais dias para efetuar trabalho em campo e a compra de um material
conveniente para a realização de filmagens de boa qualidade seria organizada para
meados do mês de junho para julho e que trabalho relativo a gravação de som e
filmagens seria atribuído ao mês de julho e agosto, sendo que poderá prolongar-se até
janeiro 2021.

Refiro “Le territoire en tant qu’acteur”52 (Campion, 2015, p.76). Assim, insisto
no facto que os dois espetos que têm que ser trabalhados com o mais cuidado são a
observação e a análise das sensações que lhes são associadas.

A leitura da tese de Guillaume Campion e a reflexão acerca a minha experiência


de trabalho de análise e observação em campo permitiram-me decidir a minha estratégia
composicional para a composição da banda sonora. Esta será realizada a partir da
simbiose de dois componentes sonoros- trabalho acusmático da paisagem sonora e uma
obra musical constituída por música eletrónica e música instrumental gravada. Do ponto
de vista académico, quero expor o meu conhecimento e as minhas capacidades práticas
de criação da melhor maneira a mostrar aptidão e domínio técnico enquanto
compositora, assim optei por trabalhar a banda sonora sob estas diferentes formas.

O trabalho da paisagem sonora é uma área a qual ainda não estou muito
familiarizada e implicou/implica então investigação e experiência prática.

Le terme de paysage sonore, en anglais soundscape, est assez familier et a


gagné en popularité, depuis sa création dans les années 70, au-delà du champ
musical. Du fait même de cette popularité, cette notion se voit souvent
réduite à sa stricte définition, sans prise en compte des implications
problématiques qui la sous-tendent. L’une de ces implications consiste en un
certain rapport à la nature, plus précisément, au son naturel. En effet, les
théories du paysage sonore ont contribué, et c’est là une de leurs
conséquences les plus importantes, à une prise en compte écologique de la
perception sonore. (...)Le field recording, traduit en français par l’expression
générale de prise de son, d’abord simple moyen technique de fixer dans des

52
Tradução: “O território como ator”

47
enregistrements des paysages sonores, devient le medium d’un mouvement
esthétique, plus ou moins lié à l’écologie sonore.53

Nadrigny, 2010

Pauline Nadrigny explica que o termo da paisagem sonora é muitas vezes


simplificado ao significado das suas palavras, mas que na realidade está associado a
uma filosofia muito maior. O conceito de paisagem sonora foi inventado pelo canadiano
Raymond Murray Schafer na década de 1970 e foi explicado no seu livro The
Soundscape, our sonic environment and the tuning of the world, publicado em 1977. A
paisagem sonora determina-se pelo ambiente sonoro (ambiente sónico) e engloba todos
os fenómenos acústicos. Schafer explica que a paisagem sonora é qualquer parte do
ambiente sonoro pretendido como um campo de estudo. A paisagem sonora é então um
ambiente objeto de estudo, mas a paisagem sonora também pode referir-se a formas
mais abstratas como, por exemplo, uma composição musical ou uma montagem de fitas
magnéticas pode ser considerada como uma paisagem sonora. 54
Schafer tenta perceber qual é a relação entre o homem e os sons do seu ambiente,
e o que acontece quando estes sons mudam. Considero que este questionamento é muito
interessante para a realização da minha obra sendo que a realização da banda sonora
esteve diretamente associada à minha relação com o som (entre outros) do meio
ambiente da serra da Talhada.

As emoções que ressenti perante as maravilhosas paisagens da Serra


da Talhada foram muito intensas. Pensei, quando voltei para minha casa,
como poderia transmiti las musicalmente. Não deixei de ouvir o som do

53
O termo soundcap, em inglês, é bastante familiar e tem ganho popularidade, desde a sua criação nos anos 70, para
além do campo musical. Devido a esta popularidade, esta noção é muitas vezes reduzida à sua definição estrita, sem
ter em conta as implicações problemáticas que a subjacentes. Uma destas implicações é uma certa relação com a
natureza, mais precisamente, com o som natural. Com efeito, as teorias da paisagem sonora contribuíram, e esta é
uma das suas consequências mais importantes, para uma consideração ecológica da perceção sonora. (...) A gravação
de campo, traduzida para francês pela expressão geral da gravação sonora, num primeiro meio técnico simples de
fixação em gravações sonoras, torna-se o meio de um movimento estético, mais ou menos relacionado com a ecologia
sonora.
54
Pauline Nadrigny, 2010 http://www.implications-philosophiques.org/langage-et-esthetique/implications-
de-la-perception/paysage-sonore-et-ecologie-acoustique/ consultado dia 03/05/20

48
vento, o som dos pássaros, o som dos grilos... Estes elementos teriam que
estar presentes a obra.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 23/05/20

Assim, na prática, realizei algumas gravações do meio ambiente, no jardim da


minha propriedade, e observei diferentes tipologias de sons naturais: o som dos
elementos como o vento ou a água, o som de elementos da natureza como o som das
ervas ou das árvores, o som dos animais como os pássaros e insetos. Os restantes dos
sons estavam ligados a produção humana: máquinas, automóveis e seres humanos.
Sendo a Serra da Talhada um lugar afastado dos sons produzidos pela sociedade
humana, percebi que não iriam apresentar-se dificuldades para obter um som “puro”
relativamente a um meio ambiente constituído por sons naturais, ao contrário das
gravações que realizei na minha propriedade.

Les sons naturels sont présentés dès les premières pages du livre the
Soundscape. Il s’agit du son des éléments présentés la plupart du temps
comme keynote sounds. Ces sons sont doués d’une valeur archétypique et
symbolique. Voix de la mer, esprit du vent, Schafer décrit les sonorités
naturelles comme ces sons élémentaires, porteurs de représentations
symboliques fortes. En cela, la préservation de ces sons va de paire avec celle
de l’imaginaire de l’homme. Coupant les arbres dans lesquels le vent
s’engouffre, nous abattons aussi les mythes qui se sont constitués et qui
semblent indissociables de notre perception de ces sons.55

Nadrigny, 2010

O trabalho do som é uma tarefa muito delicada e a leitura das obras de Murray
Schaefer apresenta-se como uma ferramenta teórica, e prática, essencial para isso. As
obras The New Soundscape (1968), The Tuning of the World (The Soundscape-1994)

55
Tradução: Os sons naturais são apresentados a partir das primeiras páginas do livro The Soundscape.
Este é o som dos elementos apresentados principalmente como sons principais. Estes sons são dotados de
um valor arquétipo e simbólico. Voz do mar, espírito do vento, Schafer descreve sons naturais como estes
sons elementares, carregando fortes representações simbólicas. Nisto, a preservação destes sons anda de
mãos dadas com a imaginação do homem. Cortando as árvores em que o vento sopra, também reduzimos
os mitos que foram formados e que parecem inseparáveis da nossa perceção destes sons.

49
(1977), A Sound Education: 100 Exercises in Listening and Soundmaking (1992) e Five
Village Soundscapes (1977) são obras que vão orientar o meu processo composicional
da parte musical da banda sonora relacionada com a paisagem sonora. Todos os sons
têm um significado, uma origem, e este significado é que exprimirá na obra o valor
informativo e o valor expressivo desejado.
Percebi ao longo da minha leitura que a obra de Murray Schaefer
The Tuning of the World era uma obra de referência para o compositor
Guillaume Campion e mais eu entrava dentro do assunto, ao ler teses e
artigos sobre a filosofia de Schaefer, mais me identifiquei com ele. Tudo faz
sentido para mim e sei que estas obras vão também serem orbas de referência
para mim, para este projeto e para o futuro.
Caderno de Campo, Mathilde Martins, 01/05/20

(conclusão)

A redação desta etnografia mostrou-se muito importante no meu percurso


enquanto estudante, “investigadora” e criadora sendo que permitiu-me ter uma visão
retrospetiva sobre o trabalho que desenvolvi ao longo deste semestre, embora esta
etnografia aborda somente algumas temáticas que eu tratei ao longo destes seis
primeiros meses de 2020.

O contexto em que foi realizada a etnografia, as relativas e relacionadas


pesquisas e o trabalho em campo não decorreram da forma mais simples e menos
problemática devido ao confinamento relativo a epidemia do COVID19. As aulas e a
realização dos trabalhos implicaram a adoção de uma nova postura de trabalho por
causa das aulas interativas e da pesquisa de bibliografia, limitada às pesquisas online e
às bibliotecas privadas. A maioria da população mostrou-se tocada por estas mudanças
complexas e teve que adaptar-se. No entanto, as medidas tomadas pelo estado e pelos
professores permitiram aos alunos de usufruírem de aulas interativas. Assim, refiro a
aula de Laboratório Etnográfico como a aula que me incitou a investigar o género da
etnografia, o seu conceito e o seu método, e a redigir o seguinte documento. A leitura
da obra Living Autoethnography: Connecting Life and Research permitiu-me entender o
conceito da etnografia e da auto etografia de forma muito clara. Um aspeto interessante
que lhe é relativa também é que explica o seu método de forma simplificada. A obra
Moving: From Performance to Performative- Ethnography and Back Again de Deborah
Wong é uma obra que me fez descobrir o conceito da etnografia performativa e é de

50
referir que, ao contrário do outro texto, ela manciona os problemas atuais do género e
sugere soluções.

A leitura destas obras permitiu ter uma noção do tipo de trabalho que eu estive a
elaborar nesta etnografia e adquirir novos conhecimentos para poder, no futuro, recorrer
novamente a esta tipologia de trabalho de uma forma mais consciente, consistente e
elaborada.

As pesquisas sobre o género cinematográfico do documentário foram muito


interessantes e permitiram-me conseguir decidir e determinar qual tipologia de
documentário eu iria optar para a obra do meu projeto de mestrado. No início das
minhas pesquisas, pensava que o uso de Voz off, comentários e entrevistas era
obrigatório no documentário, mas descobri depois que existem muitas tipologias e
modos de documentários, que vieram ao encontro do que deseja realmente criar.

A paisagem sonora foi um tema que me fascinou e que descobri ao longo da


leitura da tese de Guillaume Campion e da minha comunicação com este mesmo. A tese
despertou-me tanta curiosidade e agrade na sua leitura que implicou a minha entrada em
contacto com o autor. Isso foi um dos pontos mais positivos deste semestre sendo que
aprendi imenso ao ouvir a sua obra Littorale, ao ler a sua tese e ao ter o privilégio dele
responde-me a algumas questões relacionadas com estes mesmos.

O trabalho em campo, ele, apresenta-se ainda muito inconstante, mas é o que


mais me envolve emocionalmente: Gravações e filmagens, descoberta de investigação
do terreno. E foi pelo estar em campo, por encontrar-me perante os elementos da
natureza sonoros e visuais, que consegui ter uma noção do que irei querer transmitir
através do documentário sendo que a banda sonora teria um lugar predominante.

Concluindo, a união de todos os elementos que referi ao longo deste trabalho


impulsionaram um envolvimento da minha parte importante perante a realização do
meu projeto de tese. A redação desta etnografia permitiu ter noção da importância de
todos eles e do impacto e influência que apresentaram na minha evolução. Nada se
encontra finalizado e ainda há muito para fazer, para ler e para descobrir.

51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bettencourt, Ana. Rebelo, Teresa (1988). Monumentos megalíticos da Serra do Arestal.

Campion, Guilllaume (2015). La musique acousmatique et le documentaire Vers un art


sonore informatif.

Campion, Guillaume. Côté, Guillaume (2018). Le « documentaire acousmatique » et


ses moyens de diffusion Un regard sur le projet Archipel.

Faivre, Jérémie (2016). Architecture et Field-recording: la collaboration artistique


comme outil de conception architectural.

Ikomb, Albain Michel (2012). Petite note sur le filme docummentaire.

Nadrigny, pauline (2010). Paysage sonore et écologie acoustique.

Nichols, Bill (2015). Introdução ao documentário (2001).

Ngunjiri, Faith Wambura. Hernandez, KathyAnn. Chang, Heewon (2010). Living


autoethnography: Connecting life and research.

Schafer, Murray (1994). The Tuning of the World / The Soundscape (1977)

Wong, Deborah (1997) moving from performance to performative Ethnography and


Back Again.

52
Webgrafia

Sensory Ethnography Lab. http://sel.fas.harvard.edu/ .


Consultado dia 28/04/20

Fuente, Gonçalo (2020). Covid-19: Professores estão a ficar exaustos, alertam


sindicatos.https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-03-25-Covid-19-
Professores-estao-a-ficar-exaustos-alertam-sindicatos .
Consultado dia 01/05/2020

O que é?Foi declarado o estado de emergência.


https://covid19estamoson.gov.pt/estado-de-emergencia-nacional/o-que-e/ .
Consultado dia 01/06/20

COVID-19. https://www.sns24.gov.pt/tema/doencas-infecciosas/covid-19/ .
Consultado dia 01/06/2020

Rota do Megalitismo (PR5 - Sever do Vouga). https://pt.wikiloc.com/trilhas-


trekking/rota-do-megalitismo-pr5-sever-do-vouga-2257295 .
Consultado dia 03/06/20

Anta. https://dicionario.priberam.org/anta .
Consultado no 03-06-2020

Passeios Megalíticos pela Serra das Talhadas. http://montanhasmagicas.pt/pt/o-que-


fazer/itinerarios-turisticos/passeios-megaliticos-pela-serra-das-talhadas/ .
Consultado dia 03/06/20

Anta da Capela dos Mouros.


https://www.arqueohoje.com/?page=portfolio&areas=arqueologia_antropologia&id=2
Consultado no 03/06/20

53
Sepultura do Rei. http://montanhasmagicas.pt/pt/o-que-fazer/historia-arte-e-
cultura/tesouros-arqueologicos/sepultura-do-rei/ .
Consultado dia 03/06/20

Anta do Poço dos Mouros. http://montanhasmagicas.pt/pt/o-que-fazer/historia-arte-e-


cultura/tesouros-arqueologicos/anta-do-poco-dos-mouros/ .
Consultado dia 03/06/20

Nadrigny, pauline (2010). Du landscape au soundscape. http://www.implications-


philosophiques.org/langage-et-esthetique/implications-de-la-perception/paysage-sonore-
et-ecologie-acoustique/ consultado dia 03/05/20

Leite, João (2019). Quais São Os Tipos De Documentário?.


https://www.avmakers.com.br/blog/quais-sao-os-tipos-de-documentario/ .
Consultado dia 04/06/20

54
Anexos

Transcrição da conversa informal e da entrevista

A conversa informal foi realizada por meio de duas plataformas online, Facebook e
Gmail, nos dias 22 a 28 de Abril de 2020.

55
Língua original: Francês

Mathilde Martins-22 de abril às 11h31, no Facebook:

Bonjour, Êtes-vous l'auteur de ce memoire?


https://papyrus.bib.umontreal.ca/xmlui/handle/1866/14096
Merci!!

Je suis étudiante française en maitrise de musique/composition au Portugal. J'ai lu votre


mémoire et je l'ai trouvée très intéressante et avantageuse pour mon projet de thèse,
l'année prochaine. Mon idée est très proche du travail que vous avez fait avec
"Littorale". Votre mémoire m'a beaucoup plu et inspiré.

Je voudrais savoir s'il est possible que je vous pose quelques questions sur vous, votre
projet et sur votre mémoire pour une des disciplines de ma maitrise.

J'aimerais aussi savoir s'il est possible que je vous cite dans ma thèse.

Si vous acceptez, cela peut-être fait comme vous le préférez: para écrit ( email,
Facebook, whatsapp, etc.) ou par video-conférence ( Skype, whatsapp, etc).

Je vous demanderai juste, et j'en suis désolée, que ceci soit possible avant mardi 28
avril.

Je vous laisse mon email et mon numero whatsapp.


Martins*******@gmail.com / +351 93*******

Merci !

Guillaume Campion- 22 de abril às 19h34, no Facebook:

Bonjour Mathilde!

56
Je suis heureux d'apprendre que mon humble contribution a trouvé écho jusqu'au
Portugal! Il me fera plaisir de répondre à vos questions et d'en apprendre plus sur vos
travaux.

Je déduis que vous n'êtes pas sur Facebook comme vous m'avez écrit à partir d'un autre
compte, aussi vous pouvez m'envoyer vos questions à l'adresse suivante:
Guillaume***********@gmail.com. Si nécessaire nous pourrons nous parler par
vidéo-conférence ensuite.

Si pertinent, deux articles supplémentaires sur un projet réalisé suite à Littorale, dans le
même sillon en quelque sorte:

https://www.cambridge.org/core/journals/organised-sound/article/acousmatic-music-as-
a-medium-for-information-a-case-study-of-
archipel/47F8DF05FFB9B61F21301709B7398A32

https://econtact.ca/18_4/campion-cote_archipel.html

Merci et au plaisir de lire vos questions et d'en apprendre plus sur vos propres travaux!

Guillaume
Acousmatic Music as a Medium for Information: A case study of Archipel | Organised
Sound | Cambridge Core
Acousmatic Music as a Medium for Information: A case study of Archipel - Volume 23
Special Issue - Guillaume Campion, Guillaume Côté
cambridge.org

Mathilde Martins-23 de abril às 23h45, no Gmail:

Bonsoir,
Merci beaucoup pour votre réponse! 

57
En effet, je n'ai pas de compte Facebook et je m'excuse d'avoir oublié de le mentionner.
Merci pour les documents que vous m'avez partagé! Je vais les consulter avant de vous
envoyer mes questions. Mais avant tout j'aimerait me présenter! 

Comme je vous l'ai dit, je suis étudiante en master en composition,


à l'Université d'Aveiro. J'ai 23 ans et je termine ma première année, me préparant pour
mon projet de thèse, mémoire. (https:/www.ua.pt/en/universidade). 
Je suis aussi pianiste, diplômée du conservatoire de musique, et j'ai fait ma licence en
composition dans cette même Université. 
J'ai présenté, au cours de ma licence, des oeuvres musicales en concerts et, de tous,
seuls ceux liés à l'image m'ont vraiment plu. 

Faire un petit documentaire, beaucoup moins ambitieux que le vôtre, est  mon idée pour
mon projet de thèse. La lecture de votre mémoire m'a beaucoup inspiré. Mais j'aborderai
cela avec plus de profondeur demain, accompagné des questions que j'aimerais vous
poser.
Ces questions seront liées principalement au processus de création du « documentaire
acousmatique » Littorale, au contenu de votre mémoire, et de l'impact de ce travail dans
votre carrière. 
Je vous demande aussi s'il est possible l'utilisation de ce matériel dans mes prochaines
études, a présentations á élèves et professeurs ainsi que dans ma thèse sous forme de
citation.

Je vous envoie les questions demain!


Si vous avez besoin d'informations complémentaires, n'hésitez pas à me contacter.

Merci pour votre disponibilité,ps: je vous prie de bien vouloir m'excuser mon français
qui est un peut oublié !!

Mathilde Martins-24 de abril às 12h58, no Gmail:

-Avant d’en venir à la composition de Littoral, pouvez-vous m’en dire plus sur votre
expérience comme compositeur et créateur, et sur les raisons de votre attachement à la
musique acousmatique?

58
-Vous évoquez plusieurs fois le travail de Murray Schäfer. Est-il un compositeur
influent dans votre parcours?

-Vous mentionnez dans votre mémoire la musique acousmatique et le documentaire-


vers um art sonore informatif, que la composition de Littoral a été impulsionée par le
spectacle événement ex-voto. Y a-t-il eu plus de facteurs d’inspiration pour la
composition de cette oeuvr? En effet, je ressens que vous semblez une forte connexion
emotionelle avec la terre de Haute Gaspésie.

-Nature, témoignages et répertoire musical… Ressentez-vous une plus grande affinité


avec l’un d’entre eux? La liaison et cohésion entre eux a-t-elle été difícil?

-Quelle a été votre stratégie pour la composition musicale de Littoral? A-elle été pensée
à partir du trame documentaire?

-Il existe l’alternance de plans sonores entre votre composition acousmatique et le


témoignage. Comment cela a-t-il été pensé? Pouvez-vous expliquer l’importance du
prélude musical initial et des deux moments composé par les 4 dernière minutes du
documentaire?

-Du point de vue technique, quel a été votre processus de composition musicale?

-Quel est l’aboutissement final de la création de Littoral?

-Quels sont vos plans futurs pour votre carrière? Pouvez-vous nous parler du projet
Archipel et de votre colaboration avec Guillaume Côté?

Merci beaucoup! Et félicitation pour votre travail.


Mathilde Martins-24 de abril às 22h04, no Gmail:

Je viens de remarquer que j'ai écrit le nome de l'oeuvre erroné!!

59
 Veuillez m'excuser! Vous l'aviez pourtant bien expliqué: " La pièce, que j’avais déjà
prévu de nommer Littorale, reçut finalement pour titre Étude littorale, l’ajout du « e »
s’expliquant, outre la transformation en adjectif pour l’étude, par un jeu de mot entre la
désignation du « littoral » gaspésien et une contraction du sujet documenté par l’œuvre,
la « littérature orale ». "

Guillaume Campion-24 de abril às 22h36, no Gmail:

Bonjour Mathilde,

Pas de soucis pour le titre ;)

Je réponds à vos questions au cours de la fin de semaine.

Au plaisir!

Mathilde Martins-27 de abril às 12h18, no Gmail:

Merci!
Si vous avez besoin de quelque chose, n' hésitez pas! 

60
Guillaume Campion-27 de abril às 18h52, no Gmail:

Bonjour Mathilde,

Voici mes réponses à même le message recopié ci-bas, en espérant que cela corresponde
à vos attentes. 

N’hésitez pas si vous avez besoin d’autres précisions, nous pourrons en reparler par
vidéo-conférence si nécessaire.

Au plaisir et bon succès dans vos projets!

1-             Avant d’en venir à la composition de Littoral, pouvez-vous m’en dire plus sur
votre expérience comme compositeur et créateur, et sur les raisons de votre attachement
à la musique acousmatique?

J’ai une formation d’abord instrumentale, en guitare classique. Je me suis intéressé à la


musique électroacoustique suite à mes études collégiales (le niveau collégial au Québec
se situe juste avant le niveau universitaire), désirant poursuivre mon parcours en
musique tout en explorant d’autres territoires que la musique instrumentale. J’ai donc
débuté un cursus à l’Université de Montréal en composition électroacoustique, mais je
ne connaissais pas grand chose à cet univers au départ, hormis les grands
incontournables de la musique concrète comme Schaeffer et Henry et quelques œuvres
de compositeurs québécois comme Robert Normandeau et Marcelle Deschênes. C’est à
partir de là, en découvrant notamment Grains of Voices de Åke Parmerud et le travail
d'autres compositeurs et compositrices faisant particulièrement appel à la prise de son et
au paysage sonore, comme Luc Ferrari, Barry Truax, Hildegard Westerkamp, pour ne
nommer que ceux-là, que j’ai commencé à développer un réel attachement envers cette
pratique musicale. L’idée de jouer sur la double identité perceptive du phénomène
sonore, à la fois référentielle et acousmatique, m’attirait beaucoup et constitue encore un

61
fondement de ma pratique comme compositeur et artiste sonore. J’y vois une façon de
réfléchir et entendre le monde qui se trouve à un endroit privilégié, à la frontière entre
l’imaginaire musical et l’observation du réel.

 
2-             Vous évoquez plusieurs fois le travail de Murray Schäfer. Est-il un
compositeur influent dans votre parcours?

L’influence de Murray Schafer sur ma pratique tient avant tout à son ouvrage The
Tuning of the World. Comme beaucoup d’autres créateurs et créatrices partageant un
intérêt envers le réel sonore, c’est pour moi un écrit fondateur, auquel je reviens
souvent. On y trouve des clés et repères essentiels pour l’écoute du monde et
l’expression artistique qui peut en découler, en plus de l’émergence du concept
d’écologie sonore, qui est à mon avis de la plus haute importance encore aujourd’hui.
Ayant grandi dans une région côtière, entouré de nature entre le fleuve Saint-Laurent et
les monts Chic-Chocs, j’accorde une très grande importance à la préservation de la
nature et à la place  qu’elle occupe (ou devrait occuper) dans l’expérience humaine,
aussi la philosophie d’écoute du monde de Murray Schafer m’interpelle énormément, à
la fois en tant que créateur et citoyen.

 
3-             Vous mentionnez dans votre mémoire la musique acousmatique et le
documentaire- vers um art sonore informatif, que la composition de Littoral a été
impulsionée par le spectacle événement ex-voto. Y a-t-il eu plus de facteurs
d’inspiration pour la composition de cette oeuvr?  En effet, je ressens que vous semblez
une forte connexion emotionelle avec la terre de Haute Gaspésie.

La Haute-Gaspésie est ma terre natale, et bien que j’habite Montréal depuis plusieurs
années, c’est encore aujourd’hui l'endroit dans le monde où je me suis le plus
pleinement chez moi. Ses paysages, ses sons, ses odeurs, ses habitants, façonnent encore
ma vision du monde et ma façon de l’appréhender. Cependant, c’est une région
historiquement marquée par l’exode des jeunes et une certaine pauvreté face au déclin

62
des métiers traditionnels dans les secteurs de la pêche et de la foresterie. À l’époque où
j’y ai grandi, le sentiment d’appartenance n’allait pas de soi pour beaucoup de jeunes de
ma génération, qui rêvaient du moment où ils pourraient quitter la région pour aller faire
des études et mener leur vie ailleurs. J’ai le sentiment que la situation va en s'améliorant
aujourd’hui, puisque je constate chaque fois que j’y reviens un retour progressif des
jeunes et un plus grand sentiment de fierté, et je crois que c’est en grande partie le fruit
d’efforts de revitalisation et de mise en valeur qui ont été déployés dans les dernières
décennies. Le spectacle Ex-Voto, créé en 2009 pour raconter l’histoire de la région, en
fait à mon avis parti. C’est là que j’ai entendu parler pour la première fois du passage de
l’anthropologue Marius Barbeau en Haute-Gaspésie, à l'été 1918. On y apprenait que
Barbeau était débarqué dans la région à la recherche de chansons et contes traditionnels,
équipé d’un enregistreur à rouleau de cire, et qu'il avait amassé dans le village de
Tourelle - qui n’a pas toujours eu très bonne réputation dans la région - un nombre
important de chansons folkloriques provenant de la vieille France, répertoire qui avait
apparemment été perdu ailleurs. Déjà, durant mon enfance et mon adolescence passées
là-bas, je n’avais jamais entendu parler d’un tel répertoire, et encore moins de qui que
ce soit qui chante des chansons du genre. Ma curiosité était donc piquée et j’ai voulu en
savoir plus sur ces chansons, d’autant plus que l’information selon laquelle les gens de
Tourelle auraient « sauvé » ce répertoire ancien de l'oubli commençait à faire boule de
neige dans la population. Pour ma part, il me semblait incongru que cette histoire ne soit
pas davantage connue si c’était bel et bien le cas. 

C’est donc de là qu’est parti le projet de Littorale, dans l’idée de faire la lumière sur ce
répertoire et les circonstances réelles de sa préservation, à travers un projet sonore
hybride, mêlant musique acousmatique, archives sonores et entrevues documentaires.
J’ai commencé la recherche en 2011, à partir d’une commande d’œuvre reçue du
festival Novellum de Toulouse, par le biais d’un concours universitaire, sur le
thème Lost in translation. J’y ai présenté la pièce Étude littorale, qui abordait la perte
de mémoire face au répertoire de Tourelle avec quelques entrevues et extraits d’écrits de
Barbeau. Sentant que je n’avais qu’effleuré le sujet, j’ai poursuivi l’année suivante en
débutant un projet de maîtrise entièrement consacré au sujet. Donc oui, essentiellement,
l’impulsion derrière Littorale provient à la fois de mon attachement à la région, d’un
désir de mettre en valeur ses paysages, ses gens et son histoire, mais aussi de retrouver

63
un fond de vérité dans une histoire qui me semblait un peu surfaite et exagérée, derrière
une intention noble de ramener un peu de fierté aux gens de la région.

 
4-             Nature, témoignages et répertoire musical… Ressentez-vous une plus grande
affinité avec l’un d’entre eux? La liaison et cohésion entre eux a-t-elle été difícil?

Je crois que ce qui m’intéresse au final, ce sont les expériences humaines, et je retrouve
dans le mélange de ces trois éléments une façon de les raconter qui sied bien à ma
sensibilité et à mes affinités artistiques. Tout dépendant du projet, l’un ou l’autre de ces
trois éléments peut prendre plus de place, mais je ne crois pas avoir une affinité plus
particulière envers l’un ou l’autre, je me sens aussi à l’aise en musique, documentaire ou
paysage sonore, malgré mon appartenance première au monde de la musique. Ce qui a
été le plus difficile dans le cas de Littorale, qui était ma première expérience de
composition intégrant ces trois éléments, c’était d’accorder autant de place à la musique
qu’aux témoignages, et vice-versa. Je tenais à ce que la musique devienne un
personnage, doté en quelque sorte d’un message documentaire au même titre que les
personnes interviewées, et que les témoignages s’intègrent en retour parfaitement dans
la trame musicale, jusqu’à faire partie de la musique elle-même. Je voulais éviter qu’il
s’agisse d’un documentaire sonore avec une musique d’accompagnement plaquée
derrière, en somme. Ce sont donc le paysage sonore gaspésien et les archives de
Barbeau qui ont en quelque sorte servi de liant entre les deux, afin de rythmer et guider
les choix de composition et la constitution de la trame documentaire.

 
5-             Quelle a été votre stratégie pour la composition musicale de Littoral? A-elle
été pensée à partir du trame documentaire?

J’avais au départ un plan global, qui se reflète sommairement dans la forme finale de
l’œuvre, à savoir une première partie traitant de l’histoire de la région et du répertoire,
qui donnerait à entendre davantage les archives et le paysage sonore naturel - qui me

64
semblait plus à propos pour évoquer une époque ancienne - et une deuxième partie
abordant la redécouverte actuelle du répertoire, donnant à entendre un paysage sonore et
des prises de son plus manifestement contemporaines. Conceptuellement, la musique
elle-même devait s’inspirer des chansons du répertoire et du paysage sonore gaspésien.
En fait, bien plus que de seulement s’en inspirer, l’entièreté de la matière sonore
de Littorale provient de ces deux éléments, excluant les entrevues. Toutes les prises de
son ont été effectuées en Haute-Gaspésie et toutes les transformations sonores ont été
faites à partir de ces sons, des enregistrements d’archives et des voix des interviewés.
Aucune prise de son extérieure à la région ni aucun son de sythèse n’ont été utilisés.
C’était une stratégie développée pour ancrer le plus profondément possible la trame
musicale dans le contexte et dans le sujet. À partir de là, selon ma vision initiale, la
musique devenait un personnage à part entière, avec un passé et une histoire, et il
devenait possible de la faire interagir plus concrètement avec les témoignages. Bien sûr,
divers ajustements ont été apportés à cette stratégie au fil de la composition, mais je
m’en suis tenu mordicus à la contrainte de départ de n’utiliser que des prises de son de
la Haute-Gaspésie et d’exclure complètement la synthèse sonore - bien que certains sons
soient transformés au point qu’on puisse les confondre avec de la synthèse, il faut bien
l’admettre.

Pour répondre plus spécifiquement à la deuxième partie de la question, donc, la trame


documentaire n’est pas venue en premier, mais j’avais déjà un plan assez solide et je
savais de quoi j’allais parler avant même de composer, donc forcément, cela a teinté la
composition musicale de bout en bout. Il reste que dans les faits, la première séquence
sonore que j’ai mise en place pour le projet était le prélude, qui est strictement musical.
Par la suite s’est ajouté le montage d’entrevues, qui s’est construit assez
chronologiquement, une partie à la fois, en même temps que la musique. Comme je
l’explique plus loin, je savais assez tôt par quoi j’allais finir la pièce, mais j’ai tout de
même composé la fin en dernier. J’ai donc suivi le plan que je m’étais donné, en
somme, avec quelques ajustements en cours de route.

 
6-             Il existe l’alternance de plans sonores entre votre composition acousmatique
et le témoignage. Comment cela a-t-il été pensé? Pouvez-vous expliquer l’importance

65
du prélude musical initial et des deux moments composé par les 4 dernière minutes du
documentaire?

Le prélude ne faisait pas parti du plan de départ, au tout début du projet, que je voyais
simplement en deux parties. L’idée s’est cependant imposée assez rapidement, pour
deux raisons. D’une part, il me fallait mettre à l’épreuve mes matières sonores, tester le
potentiel musical de mes prises de son gaspésiennes et des enregistrements sur rouleaux
de cire de Barbeau, avant d’entreprendre la composition du projet. C’était donc une
façon de générer du matériel musical et de réfléchir à différentes possibilités de
transformations et traitements sonores qui seraient réinjectés par la suite dans le reste de
l’œuvre. D’autre part, la recherche documentaire et ethnomusicologique, en regard du
répertoire de chansons, me prenait beaucoup de temps en début de projet. Étant avant
tout compositeur, je tenais en effet à ce que ces deux aspects soient menés avec sérieux
et rigueur. J’ai donc mené des recherches de ce côté en suivant différents cours et
séminaires en dehors de la Faculté de musique, tout en m’informant sur les différentes
pratiques documentaires. J’ai aussi mené une enquête assez sérieuse sur la provenance
du répertoire récolté à Tourelle et la persistance de ces chansons ailleurs dans la
francophonie, afin d’être en mesure de donner les bonnes informations dans la pièce. À
cet égard, le prélude était donc une façon d’amorcer la composition du projet en même
temps que se déroulait les étapes de recherches préparatoires à la création de la trame
documentaire. J’ai aussi réalisé assez rapidement que c’était une façon d’ancrer le projet
dans l’univers musical, en dépit de sa nature aussi documentaire, en faisant appel à une
forme propre à la musique depuis l’époque baroque, qui permettait d’ouvrir le bal avec
une section purement musicale.

Concernant les quatre dernières minutes de l’œuvre, il s’agit d’un extrait presque
intégral des dernières minutes d’une entrevue avec Madame Micheline Pelletier, à
l’époque mairesse de Sainte-Anne-des-Monts-Tourelle. Madame Pelletier est
aujourd’hui malheureusement décédée, emportée par un cancer qu’elle combattait déjà à
l’époque. Cette entrevue était un moment charnière de mon projet, qui m’a fait prendre
conscience qu’au-delà de l’enquête documentaire ou anthropologique, il s’agissait avant
tout d’une quête identitaire, d’abord personnelle mais aussi collective. L’ardeur de cette
femme à défendre son coin de pays et redonner de la valeur à ses racines a laissé une
empreinte durable dans la région. J’ai compris à ce moment-là toute la pensée et la

66
bonne volonté derrière la revalorisation du répertoire de Tourelle, malgré certaines
exagérations, et il m’a semblé que toutes mes recherches et réflexions jusque-là
convergeaient finalement vers cette question qu’elle soulèvait de sa manière
convaincue, tout en lui donnant réponse : qui sommes-nous collectivement aujourd’hui,
et sur quelles assises voulons-nous bâtir notre futur? En rétrospective, son intervention
finale dans Littorale peut sembler teintée d’un certain patriotisme, mais je crois qu’il
s’agit en définitive de questionnements universels et que la portée de son message et de
son engagement envers la communauté dépassent largement les considérations
patriotiques. Quoiqu’il en soit, il était clair pour moi au sortir de l’entrevue que c’était
sur ces paroles que se terminerait Littorale, et en ayant découvert la finalité et le
message sous jacent, le reste de la trame documentaire s’est mis en place assez
facilement.

Sur le plan musical, il y a en effet un retour de plusieurs éléments présents dans le


prélude et ailleurs dans l’œuvre, de façon à converger vers un sentiment
d’aboutissement, une façon de boucler la boucle que je voulais assez lumineuse et
positive, avec une ouverture sur l'avenir. La voix du chanteur qu’on entend à la toute fin
est celle de Gilbert Marin, avec la chanson « Lisette, faites-moi un bouquet », la toute
première des quelques 700 qu’a enregistrées Barbeau lors de son passage de 1918. Il en
parle de fort belle manière dans ses écrits, disant que c’est à partir de ce moment qu’il
avait aimé la Gaspésie, qu’il avait trouvé sa voix, à la fois belle et tourmentée ; c’était
donc là encore une manière de boucler la boucle avec un extrait chargé de sens, dans
une mise en scène sonore qui évoque pour moi un coucher de soleil au bord de la mer,
le vieux pêcheur rafistolant ses filets en chantant sa chanson.

 
7-             Du point de vue technique, quel a été votre processus de composition
musicale?

J’ai utilisé différents micros et prises de son, dont une prise double-MS, une prise
binaurale « artisanale » avec deux micros omnis fixés sur mon casque d’écoute, et
également beaucoup de prises de son à l’aide d’hydrophones. Les différents traitements
ont été faits à partir d’outils assez traditionnels, dont les GRM Tools et un patch Max

67
MSP que j’ai conçu sur mesure pour obtenir différents mouvements et archétypes
inspirés de la nature gaspésienne, comme les vagues et le vent dans les montagnes, en
les appliquant à différents matériaux. En dehors de cela, l’ensemble du travail de
montage et composition s’est fait dans Pro Tools. Je préfère généralement l’économie
de moyens lorsque vient le temps de composer. J’essaie de m’en tenir à une vision
claire, tout en restant à l’écoute de ce que les prises de son ont à raconter, plutôt que de
recourir aux prouesses technologiques de tel ou tel outil. 

J’ai également passé beaucoup de temps à débruiter et nettoyer les enregistrements


centenaires de Marius Barbeau, et une bonne partie du matériel musical est aussi issu
des artéfacts sonores obtenus à travers ce processus (bruits de bandes, clics, etc). En ce
sens, la suite iZotope RX est donc aussi devenue un outil de composition pour ce projet,
comme pour beaucoup d’autres de mes projets d’ailleurs. Je l’utilise fréquemment de
façon un peu détournée pour filtrer et extraire de la matière de mes prises de son.

Concernant les archives folkloriques, j’ajouterais que les hauteurs entendues dans la
pièce, à travers des sons filtrés se rapprochant parfois du sifflement ou de l’onde
sinusoïdale, ont été inspirés de certains motifs ou modes musicaux qu’on retrouve dans
les chants, comme les trois premières notes de la chanson « Lisette, faites-moi un
bouquet », avec lesquelles j’ai joué pour conclure le prélude et qui se retrouvent sous
une forme ou une autre un peu partout dans l’œuvre. Cela ne parvient certainement pas
à rendre hommage à toute la complexité des lignes mélodiques de ces chants remplis de
mélismes et fioritures, mais leur spectre tonal plane néanmoins un peu partout dans la
pièce. Les enregistrements des chants eux-mêmes, hormis lorsque déconstruits à
l’intérieur de la trame acousmatique, sont présentés plutôt comme des documents, des
extraits d’archives utilisés pour appuyer ou illustrer le propos des intervenants. J’ai tenté
pendant un moment de faire correspondre plus étroitement les chansons intégrales et la
trame musicale de l’œuvre, mais me suis heurté à une trop grande rigidité du matériel, à
la fois par sa qualité d’archive et par ses contours mélodiques complexes.

 
8-             Quel est l’aboutissement final de la création de Littoral?

68
Académiquement, Littorale était un projet de composition et recherche universitaire qui
s’est échelonné sur trois ans. Il a donné lieu à la création de la pièce elle-même, un
« documentaire acousmatique » en deux parties précédées d’un prélude, ainsi qu’à la
rédaction d’un mémoire de maîtrise retraçant le processus de composition. Suite à mes
études, j’ai voulu reprendre la composition et en réarranger certaines parties qui me
laissent encore insatisfait, afin de tenter éventuellement de la publier plus largement,
mais je n’ai jamais trouvé le bon moment pour m’y consacrer, aussi la pièce existe-t-elle
encore seulement dans sa forme « académique ». Elle a tout de même connu un certain
rayonnement peu de temps après sa composition, ayant remporté quelques prix et été
diffusée à quelques reprises, notamment au festival Kontakte à l’Akademie der Künste
de Berlin.

Cependant, l’étude et la mise en valeur du répertoire folklorique de la Haute-Gaspésie


s’est poursuivie pour moi depuis, notamment par des projets menés avec la Société
d’histoire de la Haute-Gaspésie et la Ville de Sainte-Anne-des-Monts, pour lesquelles
mon collègue Guillaume Côté et moi-même avons mis sur pieds une station d’écoute et
découverte des archives de Marius Barbeau et ses collaborateurs en Haute-Gaspésie,
regroupant plus de 1200 documents sonores, photographiques et textuels numérisés.
Nous avons également mis sur pieds un parcours sonore interactif dans la municipalité
afin de mettre en valeur le patrimoine et les œuvres sur bois de mer qui en sont
inspirées, qu’on retrouve un peu partout dans la ville (pour plus de détail sur ces
projets : https://www.tramesaudio.com/barbeau).

 
9-             Quels sont vos plans futurs pour votre carrière? Pouvez-vous nous parler
du projet Archipel et de votre colaboration avec Guillaume Côté?

Je travaille depuis 2015 avec le compositeur Guillaume Côté, avec qui nous avons mis
sur pieds le collectif Trames, œuvrant en art sonore et médiation culturelle. Nous
poursuivons d’une part une démarche de « documentaire acousmatique » (je n'utilise
désormais que très rarement cette appellation, parlant plutôt de documentaire sonore
expérimental ou documentaire de création sonore, peu de gens étant familier avec le
terme « acousmatique »), dans la même veine que Littorale, à travers des projets

69
touchant généralement le patrimoine, le territoire ou différents enjeux sociaux. Le
premier d’entre eux fût le Projet Archipel, un documentaire sonore multimédia
regroupant une œuvre de concert de 30 minutes, un webdocumentaire et une application
mobile de parcours sonores, tous axés autour du sujet de l’accès aux berges dans la
région métropolitaine de Montréal (https://www.tramesaudio.com/archipel). Nous
terminons actuellement un documentaire de création sonore sur le sujet de la langue
française dans les écoles secondaires de Montréal, où la dualité linguistique
français/anglais remonte historiquement à très loin, enjeu remis de l’avant par
l’immigration (https://www.tramesaudio.com/confluences). Nous planchons aussi sur
un nouveau documentaire au sujet du patrimoine folklorique gaspésien, explorant
davantage cette fois-ci les réminescences des aînés de la région, descendants des
chanteurs de Barbeau, et la démarche d’artistes contemporains qui s’inspirent du
répertoire. Nous sommes également très actifs dans le domaine de l’éducation, menant
depuis 2017 une série de projets dans les écoles pour initier les jeunes à la pratique de
l’art sonore
(https://www.tramesaudio.com/carrefour, https://www.tramesaudio.com/paysages-
sonores). Nous développons d’ailleurs en ce moment une plateforme éducative de
création sonore en ligne à l’intention de jeunes de 10 à 14 ans, afin de leur faire
découvrir l’univers de la création sonore dans le cadre de projets scolaires ou à la
maison (disponible en 2021).

Mathilde Martins-28 de abril às 10h27, no Gmail:

Bonjour !
Merci beaucoup pour votre disponibilité et votre amabilité d'avoir pris le temps de
répondre aux questions avec beaucoup de méticulosité! Merci pour le partage de ce
magnifique projet!
Vos réponses sont captivantes! Je vais les étudier avec plus d'attention!
Je vous écrirais après une plus sérieuse analise de vos mots !

Merci,

70
mes respectueuses salutations,

Mathilde

Tradução para português

Mathilde Martins-22 de abril às 11h31, Facebook:

Bom dia, é o autor desta tese?


https://papyrus.bib.umontreal.ca/xmlui/handle/1866/14096
Obrigado!!

Sou estudante francesa de música/composição em Portugal. Li a sua dissertação e achei-


a muito interessante e benéfica para o meu projeto de tese no próximo ano. A minha
ideia é muito próxima do trabalho que fez com Littorale. Gostei muito da sua tese e
inspirou-me bastante.

Gostaria de saber se posso fazer-lhe algumas perguntas sobre si, o seu projeto e a sua
tese para uma das minhas disciplinas.

Também gostaria de saber se posso citá-lo na minha tese.

Se concordar, isto pode ser feito como preferir: por escrito (e-mail, Facebook, whatsapp,
etc.) ou videoconferencia (Skype, whatsapp, etc.).

Vou pedir-lhe, e lamento, que isto seja possível até terça-feira, 28 de abril.

Deixo o meu e-mail e o meu número do Whatsapp.


Martins*******@gmail.com / 351 93*******

Obrigado!

71
72
Guillaume Campion- 22 de abril às 19h34, Facebook:

Olá Mathilde!

Fico feliz por saber que a minha humilde contribuição ressoou até Portugal! Estou
ansioso por responder às suas perguntas e aprender mais sobre o seu trabalho.

Imagino que não tem conta no Facebook como me escreveu a partir de outra conta. Para
que me possa enviar as suas perguntas, deixo o seguinte endereço:
Guillaume***********@gmail.com.
Se necessário, podemos falar um com o outro por videoconferência depois.

Deixo aqui mais dois artigos sobre um projeto realizado na sequência de Littorale, a
partir da mesmo ideia:

https://www.cambridge.org/core/journals/organised-sound/article/acousmatic-music-as-
a-medium-for-information-a-case-study-of-
archipel/47F8DF05FFB9B61F21301709B7398A32

https://econtact.ca/18_4/campion-cote_archipel.html

Obrigado e aguardo ansiosamente para ler as suas perguntas e aprender mais sobre o seu
próprio trabalho!

Música Acousmatic como meio de informação: um estudo de caso do Arquipélago Som


Organizado (c) Núcleo de Cambridge
Música Acousmatic como meio de informação: Um estudo de caso do Arquipélago -
Volume 23 Especial - Guillaume Campion, Guillaume Côté
cambridge.org

73
Mathilde Martins-23 de abril às 23h45, Gmail:

Boa noite
Muito obrigado pela sua resposta!

Na verdade, não tenho uma conta no Facebook e peço desculpa por me ter esquecido de
o mencionar. Obrigado pelos documentos que partilhou comigo! Vou consultá-los antes
de lhe enviar as minhas perguntas. Mas acima de tudo, gostaria de me apresentar!

Como lhe disse, sou estudante de mestrado em composição na Universidade de Aveiro.


Tenho 23 anos e estou a terminar o meu primeiro ano, a preparar-me para o meu projeto
de tese, a dissertação. (https://www.ua.pt/en/universidade).
Também sou pianista, formada no Conservatório de Música, e fiz a licenciatura em
composição na mesma Universidade.
Durante a licenciatura, apresentei obras da minha autoria em concertos e, de todos, só os
relacionados com a imagem realmente me agradaram.

Fazer um pequeno documentário, muito menos ambicioso que o seu, é a minha ideia
para o meu projeto de tese. Ler a sua tese inspirou-me muito. Mas abordarei esta
questão com mais profundidade amanhã, juntamente com as perguntas que gostaria de
lhe fazer.
Estas questões estarão principalmente relacionadas com o processo de criação do
"documentário acusmático" Littorale, o conteúdo da sua tese e o impacto deste trabalho
na sua carreira.
Pergunto-vos também se é possível utilizar este material nos meus próximos estudos,
que seja em apresentações a alunos e professores, bem como na minha tese sob forma
de uma citação.

Enviarei as perguntas amanhã!


Se precisar de mais informações, por favor contacte-me.

Obrigado pela sua disponibilidade,

Ps: Peço-lhe que desculpe o meu francês que é um pode esquecido!!

74
Mathilde Martins-24 de abril às 12h58, Gmail:

1- Antes de chegar à composição de Littorale, pode falar-me mais sobre a sua


experiência como compositor e criador, e as razões da sua ligação à música acusmática?

2- Refere várias vezes o trabalho de Murray Schafer. É um compositor influente na sua


carreira?

3- Menciona na sua tese la musique acousmatique et le documentaire- vers um art


sonore informatif, que a composição de Littorale foi impulsionada pelo evento ex-voto.
Houve fatores mais inspiradores para a composição deste trabalho? Na verdade, sinto
que aparenta ter uma forte ligação emocional com a terra de Haute Gaspésie.

4- Natureza, testemunhos e repertório musical... sente maior afinidade com um deles? A


ligação e a coesão entre estes foram difíceis?

5- Qual foi a sua estratégia para a composição musical de Littorale? Foi pensada a partir
do enredo do documentário?

6- Há alternância entre os planos sonoros da composição acusmática e da entrevista dos


testemunhos. Como foi pensado? Pode explicar a importância do prelúdio musical
original e dos dois momentos finais compostos pelos últimos 4 minutos do
documentário?

7- Do ponto de vista técnico, qual foi o seu processo de composição musical?

8- Qual é o resultado final da criação de Littorale?

9- Quais são os seus planos futuros para a sua carreira? Pode falar-nos do Project
Archipel e da sua colaboração com Guillaume Côté?

75
Mathilde Martins-24 de abril às 22h04, Gmail:

Acabei de reparar que escrevi o nome da vossa obra de forma errada!

Peço desculpa! Portanto, explicou-o bem: "A peça, que eu já tinha planeado nomear
Littorale, foi finalmente dada o título étude Littorale, a adição do "e" explicando, além
da transformação num adjetivo para o estudo, por um trocadilho entre a designação do
"costeiro56" gaspesiano e uma contração do tema documentado pela obra, a "literatura
oral57".

Guillaume Campion-24 de abril às 22h36, Gmail:

Olá Mathilde,

Sem preocupações com o título;)

Responderei às suas perguntas no fim de semana.

Estou ansioso por isso!

Mathilde Martins-27 de abril às 12:18, Gmail:

Obrigado!
Se precisar de alguma coisa, não hesite!

56
Littoral
57
Littérature orale

76
Guillaume Campion-27 de abril às 18:52, Gmail:

Olá Mathilde,

Aqui estão as minhas respostas da mensagem abaixo, esperando que isto corresponda às
suas expectativas.

Não hesite se precisar de mais detalhes, podemos falar sobre isso por videoconferência,
se necessário.

Prazer e bom sucesso nos seus projetos!

1- Antes de chegar à composição do Littorale, pode falar-me mais sobre a sua


experiência como compositor e criador, e as razões da sua ligação à música acusmática?

Tenho uma formação em guitarra clássica e instrumental. Interessei-me pela música


eletroacústica depois dos meus estudos de colégio (o nível de colégio no Quebec é
pouco antes do nível universitário), desejando continuar a minha carreira na música
enquanto explorava territórios outros que a música instrumental. Então iniciei um curso
na Universidade de Montreal em composição eletroacústica, mas não sabia muito sobre
este universo, exceto para o grande essencial da música concreta como Schaeffer e
Henry e algumas obras de compositores do Quebec como Robert Normandeau e
Marcelle Deschênes. Foi a partir daí, descobrindo, entre outras coisas, Grains of Voices
de 'Eke Parmerud' e o trabalho de outros compositores que fizeram uso particular do
som e da paisagem sonora, como Luc Ferrari, Barry Truax, Hildegard Westerkamp, para
citar apenas alguns, que comecei a desenvolver uma verdadeira ligação a esta prática
musical. A ideia de tocar na dupla identidade percetiva do fenómeno sonoro, tanto
referencial como acusmático, atraiu-me muito e constitui ainda uma base da minha
prática como compositor e artista sonoro. Vejo-o como uma forma de pensar e ouvir o
mundo que está num lugar privilegiado, na fronteira entre a imaginação musical e a
observação da realidade.

2- Refere várias vezes o trabalho de Murray Schafer. É um compositor influente na sua


carreira?

77
A influência de Murray Schafer na minha prática deve-se principalmente ao seu livro
The Tuning of the World. Como muitos outros criadores que partilham o interesse pelo
som real, é para mim uma escrita fundadora, à qual muitas vezes volto. Há chaves e
referências essenciais para ouvir o mundo e a expressão artística que pode resultar dele,
para além do surgimento do conceito de ecologia sonora, que na minha opinião é da
maior importância ainda hoje. Tendo crescido numa região costeira, rodeada pela
natureza entre o rio Saint-Laurent et les monts Chic-Chocs, atribuo grande importância
à preservação da natureza e ao lugar que ocupa (ou deve ocupar) na experiência
humana, pelo que a filosofia de Murray Schafer de ouvir o mundo atrai-me
enormemente, tanto como criador a nível cidadão.

3- Menciona na sua memória la musique acousmatique et le documentaire- vers um art


sonore informatif, que a composição de Littorale foi impulsionada pelo evento ex-voto.
Houve fatores mais inspiradores para a composição deste trabalho? Na verdade, sinto
que aparenta ter uma forte ligação emocional com a terra de Haute Gaspésie.

Haute-Gaspésie é a minha terra natal, e apesar de viver em Montreal por vários anos,
ainda é o lugar no mundo onde estou mais plenamente em casa. As suas paisagens, os
seus sons, os seus cheiros, os seus habitantes, ainda moldam a minha visão do mundo e
a minha maneira de o apreender. No entanto, trata-se de uma região historicamente
marcada pelo êxodo dos jovens e alguma pobreza face ao declínio das profissões
tradicionais nos sectores da pesca e da silvicultura. Quando cresci lá, o sentimento de
pertença não era evidente para muitos jovens da minha geração, que sonhavam com o
momento em que podiam deixar a região para ir em frente à escola e viver as suas vidas
noutro lugar. Penso que as coisas estão a melhorar hoje, uma vez que vejo um regresso
gradual dos jovens e um maior sentimento de orgulho, e penso que isso resulta, em
grande parte, dos esforços de revitalização e desenvolvimento que têm sido feitos nas
últimas décadas. O programa Ex-Voto, criado em 2009 para contar a história da região,
já acabou, na minha opinião. Foi lá que ouvi pela primeira vez sobre a passagem do
antropólogo Marius Barbeau na Alta Galiza no verão de 1918. Soube-se que Barbeau
tinha pousado na área em busca de canções e contos tradicionais, equipado com um
gravador de rolos de cera, e que se tinha acumulado na aldeia de Tourelle - que nem
sempre teve uma reputação muito boa na região - um número significativo de canções

78
folclóricas da velha França, um repertório que aparentemente se tinha perdido noutros
lugares. Já, durante a minha infância e adolescência lá passadas, nunca tinha ouvido
falar de tal repertório, muito menos de alguém que cantava canções assim. A minha
curiosidade foi, portanto, despertada e eu queria saber mais sobre estas canções,
especialmente porque a informação de que o povo de Tourelle tinha "salvo" este antigo
repertório do esquecimento começava a nevar na população. Pela minha parte, pareceu-
me incongruente que esta história não seria mais conhecida se fosse mesmo o caso.
Foi aqui que começou o projeto de Littorale, com a ideia de lançar luz sobre este
repertório e as circunstâncias reais da sua preservação, através de um projeto de som
híbrido, misturando música acusmática, arquivos sonoros e entrevistas documentais.
Iniciei a investigação em 2011, a partir de uma comissão de trabalho recebida do
festival Novellum em Toulouse, através de uma competição universitária, sobre o tema
Lost in translation. Apresentei a peça "étude Litorale", que abordou a perda de memória
em frente ao repertório de Tourelle com algumas entrevistas e excertos dos escritos de
Barbeau. Sentindo que só tinha tocado no assunto, continuei no ano seguinte iniciando
um projeto de mestrado inteiramente dedicado ao assunto. Portanto, sim,
essencialmente, o impulso por trás de Littorale vem tanto do meu apego à região, do
desejo de mostrar as suas paisagens, o seu povo e a sua história, mas também encontrar
um pano de fundo da verdade numa história que parecia um pouco sobrevalorizada e
exagerada, por detrás de uma nobre intenção de trazer de volta um pouco de orgulho
para o povo da região.

4- Natureza, testemunhos e repertório musical... sente afinidade maior com um deles? A


ligação e a coesão entre eles foram difíceis?

Acredito que o que me interessa no final são experiências humanas, e acho, na mistura
destes três elementos, uma forma de dizer que se adequa à minha sensibilidade e às
minhas afinidades artísticas. Dependendo do projeto, um ou outro destes três elementos
pode ocupar mais espaço, mas acho que também não tenho uma afinidade particular em
relação a nenhum dos dois, também me sinto à vontade na música, no documentário ou
na paisagem sonora, apesar da minha primeira ligação estar ao mundo da música. O que
foi mais difícil no caso de Littorale, que foi a minha primeira experiência de compor
estes três elementos, foi dar tanto espaço à música como aos testemunhos, e vice-versa.
Queria que a música se tornasse uma personagem, com uma mensagem documental da

79
mesma forma que os entrevistados, e que os testemunhos se encaixassem perfeitamente
na partitura musical, ao ponto de fazerem parte da própria música. Queria evitar que
fosse um documentário de som com uma música de acompanhamento atrás, em suma. É
a paisagem sonora gaspesiana e os arquivos de Barbeau que têm servido de ligação
entre os dois, de forma a ritmo e orientar as escolhas de composição e a composição do
quadro documental.

5- Qual foi a sua estratégia para a composição musical de Littorale? Foi concebido a
partir do enredo do documentário?

Inicialmente, tinha um plano abrangente, que se reflete sumariamente na forma final da


obra, nomeadamente uma primeira parte que trata da história da região e do repertório,
que daria mais aos arquivos e à paisagem sonora natural - que parecia mais adequada
para evocar uma época antiga - e uma segunda parte que aborda a atual redescoberta do
repertório, dando para ouvir uma paisagem sonora e gravações sonoras mais obviamente
contemporâneas. Conceptualmente, a própria música teve de ser inspirada nas canções
do repertório e na paisagem sonora gaspesiana. Na verdade, muito mais do que apenas
inspirar-se nele, todo o material sonoro de Littorale provém destes dois elementos,
excluindo entrevistas. Todas as gravações sonoras foram feitas em Haute-Gaspésie e
todas as transformações sonoras foram feitas a partir destes sons, gravações de arquivo e
as vozes dos entrevistados. Não foi utilizado nenhum som retirado de fora da área ou
qualquer som de síntese. Foi uma estratégia desenvolvida para ancorar a partitura
musical o mais profundamente possível no contexto e no tema. A partir daí, de acordo
com a minha visão inicial, a música tornou-se uma personagem por si só, com um
passado e uma história, e tornou-se possível fazê-la interagir mais concretamente com
os testemunhos. É claro que foram feitos vários ajustamentos a esta estratégia ao longo
da composição, mas fiquei com a limitação de utilizar apenas gravações sonoras de
Haute-Gaspésie e excluir completamente a síntese de som - embora alguns sons sejam
transformados ao ponto de poderem ser confundidos com síntese, preciso admitir.
Para responder mais especificamente à segunda parte da pergunta, portanto, o enredo
documental não veio em primeiro lugar, mas eu já tinha um plano bastante sólido e eu
sabia do que ia falar antes mesmo de compor, então inevitavelmente, tingiu a
composição musical do início ao fim. No entanto, na verdade, a primeira sequência
sonora que eu fiz para o projeto foi o prelúdio, que é estritamente musical.

80
Posteriormente, foi acrescentada a edição de entrevistas, que foi construída de forma
bastante cronológica, uma parte de cada vez, ao mesmo tempo que a música. Como
explico mais tarde, soube logo no que ia terminar a peça, mas ainda assim compus o
final em último. Segui o plano que me tinha dado, em suma, com alguns ajustes pelo
caminho.

6- Existe alternância dos planos sonoros entre a sua composição acusmática e a


entrevista dos testemunhos. Como foi o pensado? Pode explicar a importância do
prelúdio musical original e os dois momentos compostos pelos últimos 4 minutos do
documentário?

O prelúdio não fazia parte do plano original no início do projeto, que eu vi


simplesmente em duas partes. No entanto, a ideia chegou ao fim, por duas razões. Por
um lado, tive de testar os meus materiais de som, testar o potencial musical das minhas
gravações sonoras e gravações em rolos de cera Barbeau, antes de começar a
composição do projeto. Foi, portanto, uma forma de gerar material musical e pensar em
diferentes possibilidades de transformações e tratamentos sonoros que seriam
reinjectados mais tarde no resto da obra. Por outro lado, a investigação documental e
etnomusicológica, em relação ao repertório de canções, levou-me muito tempo no início
do projeto. Sendo sobretudo um compositor, queria que estes dois aspetos fossem
conduzidos com seriedade e rigor. Por isso, conduzi pesquisas deste lado, tomando
diferentes cursos e seminários fora da Faculdade de Música, informando-me sobre as
diferentes práticas documentais. Conduzi também uma investigação bastante séria sobre
a proveniência do repertório recolhido em Tourelle e a persistência destas canções
noutros pontos do mundo francófono, a fim de poder dar a informação certa na peça. A
este respeito, o prelúdio foi, por conseguinte, uma forma de iniciar a composição do
projeto ao mesmo tempo que as fases de investigação estavam a decorrer para preparar a
criação do quadro documental. Também percebi muito rapidamente que era uma forma
de ancorar o projeto no universo musical, apesar da sua natureza documental, usando
uma forma específica da música desde a era barroca, que permitia abrir a bola com uma
secção puramente musical.
Relativamente aos últimos quatro minutos de trabalho, trata-se de um excerto quase
completo dos últimos minutos de uma entrevista com a Madame Micheline Pelletier,
então presidente da Câmara de Sainte-Anne-des-Monts-Tourelle. A Sra. Pelletier

81
faleceu, infelizmente, levada por um cancro que já estava a combater na altura. Esta
entrevista foi um momento fulcral no meu projeto, o que me fez perceber que, para além
do documentário ou da investigação antropológica, era sobretudo uma busca de
identidade, em primeiro lugar pessoal, mas também coletiva. O zelo desta mulher em
defender o seu canto do país e restaurar o valor das suas raízes deixou uma marca
duradoura na região. Nessa altura, compreendi toda a reflexão e boa vontade por detrás
da reavaliação do repertório de Tourelle, apesar de alguns exageros, e pareceu-me que
todas as minhas investigações e reflexões até agora estavam finalmente a convergir
sobre esta questão que ela levantou à sua maneira, ao mesmo tempo que lhe dava uma
resposta: quem somos nós hoje coletivamente, e em que bases queremos construir o
nosso futuro? Em retrospetiva, a sua intervenção final em Littorale pode parecer tingida
de um certo patriotismo, mas creio que estas são, em última análise, questões universais
e que o âmbito da sua mensagem e do seu compromisso com a comunidade vai muito
além das considerações patrióticas. De qualquer forma, ficou claro para mim, após a
entrevista, que foi nestas palavras que Littorale acabaria, e tendo descoberto o propósito
e a mensagem subjacente, o resto da moldura documental reuniu-se facilmente.

Musicalmente, há de facto um regresso de vários elementos presentes no prelúdio e


noutros locais da obra, de modo a convergir para um sentimento de realização, uma
forma de fechar o ciclo que eu queria bastante brilhante e positivo, com uma abertura
sobre o futuro. A voz do cantor que ouvimos no final é a de Gilbert Marin, com a
música "Lisette, faz-me um bouquet", o primeiro de cerca de 700 que Barbeau gravou
durante a sua passagem em 1918. Fala disso de uma forma muito bonita nos seus
escritos, dizendo que foi a partir deste momento que tinha amado Gaspésia, que tinha
encontrado a sua voz, bonita e atormentada; Então foi novamente uma maneira de
fechar o laço com um extrato carregado de sentido, numa encenação sonora que evoca
para mim um pôr-do-sol à beira-mar, o velho pescador a remendar as suas redes
enquanto canta a sua canção.
7- Do ponto de vista técnico, qual foi o seu processo de composição musical?

Usei diferentes microfones e tomadas de som, incluindo uma tomada dupla em MS,
uma tomada binaural "artesanal" com dois microfones omnis ligados aos meus
auscultadores, e também muitas tomadas de som usando hidrofones. Os diferentes
tratamentos foram feitos a partir de ferramentas bastante tradicionais, incluindo as

82
Ferramentas GRM e um patch Max MSP que eu desenhei para personalizar para obter
diferentes movimentos e arquétipos inspirados na natureza gaspesiana, como ondas e
vento nas montanhas, aplicando-os a diferentes materiais. Para além disso, todo o
trabalho de edição e composição foi feito nas Ferramentas Pro. Geralmente prefiro a
economia dos meios quando se trata de compor. Tento manter uma visão clara,
mantendo-me sintonizado com o que o som leva a dizer, em vez de recorrer à proeza
tecnológica desta ou daquela ferramenta.

Também passei muito tempo a documentar e a limpar as gravações centenárias de


Marius Barbeau, e grande parte do material musical também é derivado dos artefactos
sonoros obtidos através deste processo (ruídos de banda, cliques, etc.). Neste sentido, a
suite iZotope RX tornou-se também uma ferramenta de composição para este projeto,
como para muitos outros projetos. Uso-o frequentemente de uma forma um pouco
desonesto para filtrar e extrair material das minhas tomadas de som.

No que diz respeito aos arquivos folclóricos, acrescentaria que as alturas ouvidas na
sala, através de sons filtrados por vezes semelhantes à onda assobio ou sine, foram
inspirados por certos motivos ou modos musicais encontrados nas canções, como as três
primeiras notas da música "Lisette, fais-moi un bouquet", com o qual toquei para
concluir o prelúdio e que são encontrados de uma forma ou de outra ao longo do
trabalho. Isto certamente não presta homenagem a toda a complexidade das linhas
melódicas destas canções cheias de melismas e babados, mas o seu espectro tonal, no
entanto, paira por toda a sala. As gravações das próprias canções, exceto quando
desconstruídas dentro do quadro acusmático, são apresentadas como documentos,
excertos de arquivo usados para apoiar ou ilustrar o ponto dos oradores. Tentei durante
algum tempo combinar mais de perto as canções completas e a partitura musical da
obra, mas encontrei demasiada rigidez do material, tanto pela sua qualidade de arquivo
como pelos seus complexos contornos melódicos.

8- Qual é o resultado final da criação do Littorale?

Academicamente, Littorale foi um projeto de composição e investigação académica de


três anos. Resultou na criação da peça em si, um "documentário acusmático" em duas
partes precedidas de um prelúdio, bem como a escrita de uma tese de mestrado que traça

83
o processo de composição. Seguindo os meus estudos, quis retomar a composição e
reorganizar algumas partes que ainda me deixam insatisfeito, para tentar publicá-la mais
amplamente, mas nunca encontrei o momento certo para me dedicar a ela, pelo que a
peça ainda existe apenas na sua forma "académica". No entanto, teve uma certa
influência pouco depois da sua composição, tendo ganho alguns prémios e sido
transmitida algumas vezes, nomeadamente no festival Kontakte, no Akademie der
Konste, em Berlim.

No entanto, o estudo e a melhoria do repertório folclórico de Haute-Gaspésie tem


continuado para mim desde então, nomeadamente através de projetos com a Sociedade
de História de Haute-Gaspésie e a Cidade de Sainte-Anne-des-Monts, para os quais o
meu colega Guillaume Côté e eu montámos uma estação de escuta e descobrimos os
arquivos de Marius Barbeau e dos seus colaboradores em Haute-Gaspésie, contendo
mais de 1200 documentos áudio, fotográficos e textuais. Também estabelecemos um
trilho sonoro interativo no concelho para destacar o património e as obras em madeira
marinha que são inspiradas nele, que podem ser encontradas por toda a cidade (para
mais detalhes sobre estes projetos: https://www.tramesaudio.com/barbeau).

9- Quais são os seus planos futuros para a sua carreira? Pode falar-nos do Project
Archipel e da sua colaboração com Guillaume Côté?

Trabalho desde 2015 com o compositor Guillaume Côté, com quem instalámos o
coletivo de elétricos, trabalhando em arte sonora e mediação cultural. Por um lado,
prosseguimos uma abordagem do "documentário acusmático" (raramente uso este
nome, falando em vez de documentário experimental de som ou documentário de
criação sonora, poucas pessoas familiarizadas com o termo "acousmatic"), na mesma
linha que littorale, através de projetos que afetam geralmente o património, o território
ou várias questões sociais. O primeiro foi o Project Archipel, um documentário de som
multimédia com um trabalho de concerto de 30 minutos, um documentário web e uma
aplicação de rota sonora móvel, tudo focado no tema do acesso às margens do rio na
área metropolitana de Montreal (https://www.tramesaudio.com/archipel). Estamos neste
momento a terminar um documentário de criação sonora sobre o tema da língua
francesa nas escolas secundárias de Montreal, onde a dualidade linguística
francês/inglês historicamente remonta a um longo caminho, uma questão avançada pela

84
imigração (https://www.tramesaudio.com/confluences). Estamos também a trabalhar
num novo documentário sobre património folclórico gaspesiano, desta vez explorando
mais as reminiscências dos anciãos da região, descendentes dos cantores de Barbeau, e a
abordagem de artistas contemporâneos que se inspiram no repertório. Somos também
muito ativos na área da educação, realizando uma série de projetos nas escolas desde
2017 para introduzir os jovens na prática da arte sonora
(https://www.tramesaudio.com/carrefour, https://www.tramesaudio.com/paysages-
sonores). Estamos neste momento a desenvolver uma plataforma educativa para a
criação de som online para jovens dos 10 aos 14 anos, de forma a apresentá-los ao
mundo da criação sonora na escola ou em projetos domésticos (disponíveis em 2021).

Mathilde Martins-28 de abril às 10h27, Gmail:

Olá!
Muito obrigado pela sua disponibilidade e bondade por ter tirado tempo para responder
a perguntas com grande meticulosidade! Obrigado por partilhar este projeto
maravilhoso!
As suas respostas são cativantes! Vou estudá-los com mais cuidado!
Escrever-lhe-ei depois de uma análise mais séria das suas palavras!

Obrigado,

minhas saudações respeitosas,

85
Caderno de Campo

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 28/02/2020

Decidi hoje de deixar de ir estudar na Universidade. A pandemia já está muito presente


em Espanha e não tarde a chegar em Portugal. Planeio continuar os meus estudos em
casa por uns tempos.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 10/03/2020

Iniciei hoje o meu caderno de campo. Relaciono um pouco o seu conceito a um diário,
mas que trata de assuntos menos íntimos. Revelo sentir algum medo em realizar este
caderno de campo sendo que foi algo que nunca fiz. Já tentei ao longo da minha
infância redigir uns diários, mas o resultado nunca foi consistente. No entanto, sei que
este caderno de campo será uma ferramenta essencial para o meu percurso e pra a
redação da minha etnografia do final de semestre.
Sendo assim, começo a redigir:

A minha aula de composição permitiu-me confirmar o tema do meu trabalho de análise:


a citação musical. Ainda sei pouco sobre o assunto, mas a minha professora sugeriu-me
a leitura da tese do professore de composição Evgueni Zoudilkine Evolução da
linguagem musical e especificidades das técnicas na música orquestral de Jorge
Peixinho. É uma tese interessante que aborda aspetos muito específicos relativamente a
citação musical na obra do compositor, mas esta leitura terá mais importância numa fase
posterior de pesquisa sendo que tenciono perceber primeiramente o conceito da citação
musical e os seus aspetos mais gerais.

86
Caderno de Campo, Mathilde Martins, 11/03/2020

Concentrei o meu trabalho neste dia no trabalho de uma miniatura de música eletrónica
que compus o mês passado. A miniatura tem uma duração de dois minutos e reúne sons
que gravei na estação de comboio de aveiro. Efetuei hoje um trabalho de montagem de
som e correção de alturas.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 13/03/2020

Propus-me hoje um trabalho muito interessante: musicar um vídeo que um aluno do


curso de música também teve que musicar.
Este vídeo mostra filmagens a preto e branco do porto em 1938. É um vídeo muito
bonito e rico. Decidi trabalhar o projeto com o meu colega. Optamos por ser ele a dirigir
e a tomar as decisões estéticas e eu a realizar a montagem sonora, sendo que eu tenho
mais experiência nesta área.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 16/03/2020

Nesta tarde, sentei-me ao escritório com o intuito de escrever mais música para o meu
projeto de composição deste primeiro ano de mestrado.
Apesar de ter começado a escrever sem nenhuma ideia musical concreta, a não ser de
respeitar a duração da música de 2 minutos, mesma duração das outras miniaturas do
ciclo, a escrita apresentou-se muito fluída e rápida. Não foi preciso pensar muito, só
abstrair-se de outros pensamentos e concentrar-se na composição e dos aspetos técnicos
da sua escrita.
O que compus foi então uma miniatura de música eletrónica, fixa, alternando com o uso
de 2 programas de edição e usando sons que tinha gravado em janeiro no estúdio som.
Fiquei satisfeita com o resultado, mas ressenti que, como me tem acontecido com todas
as outras miniaturas do ciclo, a obra é demasiada curta. Isso causa-me um grande
desconforto e desagrado, mas foi o que me comprometi a fazer este ano. Senti-me
frustrada por não me sentir concretizada com a composição desta obra mas, como
dizem-me as pessoas mais próximas, é só melhorá-la até gostar!

87
Caderno de Campo, Mathilde Martins, 17/03/2020

Não muito motivada para compor, optei por ouvir com atenção as minhas primeiras 6
miniaturas.
Ao longo da audição, deparei-me com bastantes aspetos, positivos e negativos.
Confirmei que as indicações que a minha professora de composição me tinha sugerido
para corrigir a minha primeira miniatura, e que ainda não tinha seguido, tinham toda a
lógica. Achei surpreendente eu não ter corrigido nada desde da última aula, há cerca de
um mês e dei-me por grata de o ter aponte no meu caderno.

O problema da duração das miniaturas permaneceu. Além disso, comecei a questionar-


me se o tema da obra era o mais adequado. De facto, o tema que escolhi, que
corresponde muito bem musicalmente, condiciona a realização da parte visual do
concerto. Tenho então pensado em alternativas: o concerto poderia ser apenas música e
luz, ou música com projeção de uma imagem por cada miniatura, por exemplo.
Uma coisa que reparei, ao longo deste mestrado, é que o processo composicional se
apresenta mais lento. Coloco muitas vezes o meu trabalho em questão, duvido muitas
vezes se estou a seguir o bom caminho, tendo um olhar muito crítico sobre o meu
trabalho. Estes pensamentos têm dificultado a minha tarefa enquanto compositora.
Lembro-me da minha professora de composição ter referido várias vezes que o
mestrado é um processo de autoconhecimento enquanto compositor. Digo-o agora, a
escrita natural e inconsciente é muito mais prazerosa.
Depois deste momento de reflexão, levantei-me e fui me sentar ao piano. Aí, deixei que
tudo fosse mais simples e improvisei num tema muito melodioso. Fez-me bem.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 18/03/2020

É importante referenciar que eu não estou habituada a trabalhar em casa e que foi uma
crise sanitária que mo obrigou. Isto não tem facilitado nada os meus estudos, em
nenhuma área. Não estando habituada a tal, a minha concentração é menos concisa.
Distraio-me mais e tenho menos motivação em trabalhar. Por isso, tenho tido leituras
menos regulares, um trabalho prático relativo aos trabalhos escritos das disciplinas do
mestrado mais aglomerado em alguns dias e esquecidos noutros. Na área da

88
composição, tem acontecido o mesmo. Assim, nesta quarta-feira, a composição da
minha obra não me despertou atenção. Isso seria bastante criticado por muitos dos meus
professores, que repetem muitas vezes que um compositor deve escrever todos dias,
nem que seja por uns compassos.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 19/03/2020

Ponho mesmo em questão o tema do meu trabalho. O meu objetivo inicial era fazer um
vídeo que acompanhasse a música. O tema da obra é sobre o cientista que descobriu
plutão. Como vou eu realizar filmagens relacionadas com isso? É impossível. A não ser
que eu esqueça a ideia de fazer as filmagens.
No entanto, sempre que ouço as miniaturas, vejo algo completamente diferente na
minha cabeça: Vejo-a, a caminhar numa floresta, de vestido branco, de diferentes
pontos de vista. Esta é a imagem que sempre me vem a cabeça quando ouço a primeira
miniatura. E aí sinto grande confusão. Será isto material para o meu projeto final, da
minha tese? Será material para este ano. Tudo uma grande desordem nas minhas ideias.
Se encontrar tema relacionado com a tal mulher de branco, farei este mês ou o próximo
as filmagens.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 20/03/2020

Como ainda não o referi, a obra que eu estou a escrever é para eletrónica fixa, vídeo e
luz, e instrumento solista. Tenho sempre a ideia que, neste tipo de obras, de concertos
multimédia, qualquer instrumento pode tocar a parte solista. Imagino e quero que seja
perfeitamente possível ser interpretado por qualquer instrumento. Neste caso, uma
amiga minha que está a fazer mestrado em música pediu para eu escrever para o seu
instrumento: eufónio.
Assim, hoje escrevi a parte instrumental de duas das miniaturas. Achei a partitura final
muito simplista e planeio corrigi-la mais para frente.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 23/03/2020

89
Sendo que tinha aula de composição neste dia, concentrei-me em organizar todo o
material do meu projeto de maneira a ser fácil de apresentá-lo a minha professora. O
título da minha obra deixou me outra vez algo exasperada por sentir que “algo não bate
certo”. Porém, eu sei que não falta muito para eu ficar esclarecida neste aspeto.
Além disso, revi a minha literatura. Li algumas passagens de documentos e livros para
reacender a minha memória. Constatei que me falta ainda bibliografia sobre o tema do
“processo criativo” enquanto artista, mais especificamente músico. Procurarei mais nos
próximos dias.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 26/03/2020

Descobri que Steven Halpern, músico e compositor de música new age, era inicialmente
trompetista jazz/rock com formação clássica. Descontente com a música moderna dos
anos 70 existente, optou por seguir um caminho diferente: começou a fazer música,
inspirado em antigas tradições. O autor James Singleton descreve a música de Halpern
como “construída sobre as antigas tradições da música como a medicina dos tibetanos,
gregos e egípcios, e assente com um rigoroso apoio à pesquisa académica” (Singleton,
2012).
Considero o aspeto de ter decidido seguir um caminho musical distinto ao inicial muito
interessante. Já o Arvo Part tinha renunciado, pelos anos 60, a composição serialista.
Olho estas mudanças arrojadas, muitas vezes, como o impulso para o sucesso e
concretização, enquanto artista.
O estilo musical pelo qual o compositor optou vai além da área da música: medicina,
meditação, relaxamento, entre outras áreas relacionadas com a musicoterapia. O
compositor parece ter presente o conceito de que “Our cells are pre-wired to shift into
these higher order functions – this is part of what I seek to do through my music.”
(Halpern).

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 30/03/2020

Esta segunda feira foi um dia extenso. Sendo o dia da entrega da recensão de
metodologias de investigação, concentrei-me neste trabalho ao longo do dia. Porém, ao

90
ter também aula de composição com a professora Isabel Soveral, tive que preparar me
para apresentar uma síntese do trabalho que foi desenvolvido nesta semana.
O meu trabalho para metodologias focou-se na leitura do trabalho final, correções de
erros e lapsos, e, principalmente, na redação da bibliografia que eu tinha deixado para o
fim.
A aula de composição foi interessante. A conversa focou-se num ponto de reflexão
importante para o criador de arte. Este ponto é a “consciência”. Um erro de notação na
minha partitura mostrou que eu não tinha consciência de um aspeto do ponto de visto de
análise composicional. A maneira como se escrevem as coisas mostra o nosso
conhecimento, consciência, experiência, entre outros. Neste caso, o erro de notação
musical mostrava uma falta de noção analítica da minha própria obra. No final, a
professora relembrou na mesma que o valor mais importante é a “criatividade”.
Mandei em fim de tarde a minha recensão crítica sobre a pragmática do gosto e senti-me
muito satisfeita e confiante com o resultado final do trabalho. Agora espero o feedback
e uma avaliação positiva desde mesmo.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 31/03/2020

Depois da aula de etnografia, passei o resto do dia a fazer pesquisa de bibliografia para
o meu trabalho de análise. O que foi pedido pela professora foi de escolher um
aspeto/problemática de uma obra ou de um compositor e apresentá-lo e analisá-lo a
partir de investigação de bibliografia e análise pessoal.
Assim, o tema que eu escolhi foi “A citação na música: O recurso estilístico do caso da
citação de Godowsky - transcrição de Isaac Albéniz do Tango em ré no primeiro
andamento da sinfonia 1 de John Corigliano”. O título é muito extenso na minha
opinião, mas terei tempo mais para frente para deixá-lo melhor.
Não foi preciso muito tempo de reflexão para escolher este tema. De facto, além de
apreciar o trabalho deste compositor (principalmente da sua banda sonora do filme The
Red Violin) o momento que escolhi analisar é um momento/excerto musical que me
chamou a atenção e despertou-me muita curiosidade e admiração desde da minha
primeira audição da obra. O momento ao qual me refiro é um momento em que o
compositor optou por inserir uma melodia estranha a obra via o meio musical da
intertextualidade. De facto, a transcrição de Godowsky do tango em ré de Albeniz é

91
tocada por um piano, fora do palco, enquanto as cordas da orquestra tocam harmonias
dissonantes no registo agudo, de uma forma lenta e doce que cria um ambiente
intemporal, celestial e misterioso.
A primeira tarefa que me propus neste dia, foi de investigar o termo de “citação”. Aí
surgiram-me as primeiras dúvidas. De facto, existem termos de intertextualidades que
podem ser confundidos. Os termos que se denunciaram a mim foram: citação, colagem,
empréstimo, fragmento, galimatias, entre outros. O simples termo pelo qual quero
designar a técnica usada pelo compositor já se mostra questionável. O trabalho não se
apresenta simples !

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 01/04/2020

Apesar das dúvidas que mencionei sobre o termo associada a técnica composicional em
questão, dediquei hoje as minhas pesquisas á procura de informação sobre o compositor
John Corigliano.
Apesar de sere um compositor contemporâneo, a informação sobre a sua biografia
mostrou-se generosa e a carga de trabalho diminui. No entanto, a informação que é
apresentada, que seja em sites ou em teses, é muito repetida. Mas, felizmente, não se
apresenta como um problema para o meu trabalho de análise, sendo que o seu foco está
no desenvolvimento discussão de aspetos específicos da parte analítica da obra e
Aprendi então que o compositor nasceu num berço rodeado de música. O pai era um
conceituado violonista e a sua mãe uma pianista e professora de piano. Esteve então
desde de sempre emergido pelo mundo da música. A sua vida passou através de aulas de
música, contactos com pessoas influentes no mundo da arte, e passou de empregos em
estação de rádios, ensino, como compositor para música de filme ou residente em
grandes escolas... Muitas das suas obras foram frutas de encomendas.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 02/04/2020

Outro dia dedicado a pesquisas para o trabalho de análise desde segundo semestre do
primeiro ano de mestrado!

92
Não existe muito material sobre a primeira sinfonia de John Corigliano... Isso não vai
facilitar o trabalho. Encontrei três teses interessantes que se referem a tal obra. No geral,
tenho informação sobre a contextualização da sua composição.
A obra foi composta pelo compositor em homenagem a vários amigos que faleceram
por causa do vírus do VIH, Vírus da imunodeficiência humana. A tristeza e a revolta de
John Corigliano por estas vidas roubadas por esta doença, são exprimidas ao longo da
obra e a minha compreensão desta mesmo deu um grande salto. De facto, considero que
o andamento mais tocado pelas emoções do compositor é mesmo o primeiro andamento,
o que estou a investigar. Vejo a violência da sua primeira parte como a revolta sentida
pela injustiça da morte. O segundo momento, especificamente o em que se enquadro o
momento e excerto que é o assunto do meu trabalho, está ligado com melancolia e a
relembrança. Este momento muito intenso e profundo transporte nos para um mundo
impalpável, imaterial, místico, transcendente de uma mente magoada e nostálgica: a do
compositor. O nome deste primeiro andamento é então descodificado: Apologue: Of
Rage and Remembrance.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 04/04/2020

Dia marcado pela visualização de um filme denominado “Memória roubada”


(Forgotten) de Jang-Hang-jun.

When his abducted brother returns seemingly a different man with no


memory of the past 19 days, Jin-seok chases after the truth behind the
kidnapping.

(https://www.imdb.com/title/tt7057496/?ref_=ttrel_rel_tt)

Passei cerca de 2h30 a procura de informação sobre o compositor. Infelizmente, não


encontrei os resultados desejados.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 13/04/2020

93
Sendo que a data de entrega do trabalho de metodologias aproxima-se, marcada para dia
20 de abril, dediquei-lhe as minhas pesquisas do dia.
Apesar de só descobrir que o que tinha feito ao longo do dia não era o que tinha sido
pedido, desenvolvi um trabalho importante que permitiu ter melhor noção dos meus
planos para a tese. O meu tema ficou mais definido ao escrever a introdução do trabalho
final de metodologias de investigação. Este trabalho consista numa proposta de projeto
de tese e está dividida em várias partes: introdução, estado da arte, problemática,
metodologia, calendário e bibliografia58. Foi a falar, mais tarde, com uma colega minha
que percebi que o trabalho pedido consistia somente na realização da parte relativo ao
“estado da arte”. Além disso, reparei numa indicação que a professora tinha dado que
avisava par fazer a parte da introdução em último. Apesar de ter trabalho tudo ao
contrário neste dia 13 de abril, encontrei um rumo para a realização da minha obra par
ao próximo ano.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 14/04/2020

Concentrei-me na realização do trabalho todo o dia. Achei o trabalho demorado, mas, ao


mesmo tempo, satisfatório. Eu nunca tinha realizado um trabalho de pesquisa tão
complexo ao longo da minha escolaridade. A pesquisa de bibliografia foi sempre algo
que deixei em segundo plano e só referia na última parte dos trabalhos. Admito que é a
primeira vez que cito dentro e fora do corpo de texto e que uso notas de rodapé. Mas
acontece que é uma muito boa experiência e estou contente por isso. Digo mesmo que,
penso pela primeira vez da minha vida, não estou muito preocupada com a avaliação do
trabalho porque sinto que aprendi muito e sinto uma espécie de orgulho pelo trabalho
que realizei. Isso é uma sensação muito positiva!

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 15/04/2020

O trabalho avança devagar, pelo menos muito mais devagar que os outros trabalhos que
realizei ao longo da minha escolaridade. A pesquisa de bibliografia é demorada e vasta
e tenho dificuldades em organizar-me. No entanto, a riqueza dos escritos dos autores
maravilha-me. A quantidade de teses, artigos e livros disponíveis online deixam-me,
58
Não confirmo a veracidade deste sumário tanto pelo seu conteúdo tanto pela ordem que apresentei.

94
apesar de algo assustada, fascinada. Eu ainda não o referi, mas o tema da minha
pesquisa para o trabalho de “estado da arte” está relacionado com o pensamento
artístico e processo criativo. Esta investigação é essencial para um compositor. Acabei o
dia com pouco texto e o prazo de entrega do trabalho que está perigosamente a
aproximar-se deixou-me nervosa.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 16/04/2020

“Graças a Deus!”
Decidi dar uma vista de olhos nos livros da minha biblioteca e encontrei muita
bibliografia interessante para a continuação do meu trabalho. O voltar a informação
palpável, nas folhas dos livros, tornou-se um “milagre” para a continuação da sua
redação. Ao ver a quantidade de informação que se apresentou a mim, e de uma forma
muito mais organizada, fiquei muito aliviada. A minha principal fonte de informação
era um dicionário! Este continha muitas referências a autores e a obras. Assim, consegui
fazer uma pesquisa mais organizada e metódica. O resultado da consulta de livros foi
muito positivo. Acabei o dia com o trabalho quase terminado.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 17/04/2020

Acabei o trabalho de metodologia de investigação e sinto me muito satisfeita com o


resultado.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 18/04/2020

Passei o dia a reler e a corrigir o meu trabalho de estado da arte. Queria deixar aqui em
registo algumas citações que achei importantes relativamente a relação entre a natureza
e o Homem.

A humanidade e a natureza são duas realidades inconciliáveis e, que por vezes, até se
manifestam, com o mais intenso antagonismo. Quanto mais o ser humano se afasta da

95
natureza, mais se esgota de si mesmo, na inconsciência de um domínio que é apenas aparente
e que não deixará de voltar-se contra si próprio.

(Pombo, 2001, p.102)

Pintores vieram de longe para viver na natureza e admirar e sentir a sua força criadora que
brota dela. Partilhando uma emoção de vida que é comum, pretendem que as suas obras
revelem a adesão íntima ao “estado da natureza”

(Pombo, 2001, p.102)

A “Natureza é uma emanação do Ser.!”

(Pombo, 2001, 104)

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 19/04/2020

Segundo Frank Barron, psicólogo e filósofo americano considerado um dos pioneiros da


psicologia da criatividade, considera que "Se as pessoas criativas estão constantemente
envolvidas num processo de auto-criação e autorrenovação, então temos de aceitar que,
juntamente com essa autorrenovação, vem uma quebra de estruturas e padrões antigos.”
(Barron, 1995). Assim, o afastamento do que é conhecido para uma criação nova e legítima
acaba por continuar o processo evolutivo da arte.

Amanhã, com a nossa música eletrónica nos nossos ouvidos, ouviremos a liberdade.
(John Cage)

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 22/04/2020

Decidi hoje que a tese de Guillaume Campion merecia uma maior atenção e entrei em
contacto com o autor para ele responder a algumas perguntas.

Mathilde Martins-22 de abril às 11h31, no Facebook:

96
Bonjour, Êtes-vous l'auteur de ce memoire?
https://papyrus.bib.umontreal.ca/xmlui/handle/1866/14096
Merci!!

Je suis étudiante française en maitrise de musique/composition au Portugal. J'ai lu votre


mémoire et je l'ai trouvée très intéressante et avantageuse pour mon projet de thèse,
l'année prochaine. Mon idée est très proche du travail que vous avez fait avec
"Littorale". Votre mémoire m'a beaucoup plu et inspiré.

Je voudrais savoir s'il est possible que je vous pose quelques questions sur vous, votre
projet et sur votre mémoire pour une des disciplines de ma maitrise.

J'aimerais aussi savoir s'il est possible que je vous cite dans ma thèse.

Si vous acceptez, cela peut-être fait comme vous le préférez: para écrit ( email,
Facebook, whatsapp, etc.) ou par video-conférence ( Skype, whatsapp, etc).

Je vous demanderai juste, et j'en suis désolée, que ceci soit possible avant mardi 28
avril.

Je vous laisse mon email et mon numero whatsapp.


Martins*******@gmail.com / +351 93*******

Merci !

Guillaume Campion- 22 de abril às 19h34, no Facebook:

Bonjour Mathilde!

Je suis heureux d'apprendre que mon humble contribution a trouvé écho jusqu'au
Portugal! Il me fera plaisir de répondre à vos questions et d'en apprendre plus sur vos
travaux.

97
Je déduis que vous n'êtes pas sur Facebook comme vous m'avez écrit à partir d'un autre
compte, aussi vous pouvez m'envoyer vos questions à l'adresse suivante:
Guillaume***********@gmail.com. Si nécessaire nous pourrons nous parler par
vidéo-conférence ensuite.

Si pertinent, deux articles supplémentaires sur un projet réalisé suite à Littorale, dans le
même sillon en quelque sorte:

https://www.cambridge.org/core/journals/organised-sound/article/acousmatic-music-as-
a-medium-for-information-a-case-study-of-
archipel/47F8DF05FFB9B61F21301709B7398A32

https://econtact.ca/18_4/campion-cote_archipel.html

Merci et au plaisir de lire vos questions et d'en apprendre plus sur vos propres travaux!

Guillaume
Acousmatic Music as a Medium for Information: A case study of Archipel | Organised
Sound | Cambridge Core
Acousmatic Music as a Medium for Information: A case study of Archipel - Volume 23
Special Issue - Guillaume Campion, Guillaume Côté
cambridge.org

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 24/04/2020

Comuniquei ao longo dos últimos dias com o compositor Guillaume Campion. Esta foi
uma das melhores experiencias do meu percurso académico.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 25/04/2020

Realizei nos últimos dias um relatório da entrevista.

98
Falei bastante sobre a tese mas tenho que referir que a obra associada, litoralle, é uma
obra lindissima.
A audição da obra, do documentário acústico, é muito intensa: sons acústicos,
testemunhos e um ecrã preto. Esta estratégia permite uma concentração na parte
musical.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 26/04/2020

As emoções experienciadas pelo compositor através da sua proximidade com uma


grandiosa natureza e com o contacto humano com uns habitantes desta mesma terra,
foram transmitidas ao longo da obra. Por minha própria experiência, a audição do
documentário (unicamente sonoro) transportou-me para outro território: o da Haute-
Gaspésie. Vejo, nesta Haute-Gaspésie puramente imaginária e construída a partir de
som, ondas ferozes e incontroláveis que rugem ao contacto com os rochedos da costa.
Vejo o mar envolver impetuosamente tudo o que estiver no seu caminho, abraçando as
paredes de pedra dos precipícios. Sinto a humidade salgada do vento que voa, invisível,
por cima da água gélida do mar acompanhando o movimento onduloso das ondas. Vejo
a sua força na violente dança incessável do abanar das árvores da vasta floresta que me
rodeia. Sinto-o a arrepiar-me como se levasse parte da minha alma. Tudo acalma e ouço
uma voz. Uma voz reconfortante. A viagem pela história do passado da Haute-Gaspésie
e das canções folclóricas recolhidas por Barbeau começa.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 27/04/2020

Vi hoje o filme/documentário Microcosmos (1996) que é um documentário sobre a vida


dos insetos de Claude Nuridsany e Marie Pérennou, produzido por Jacques Perrin, e a
sua banda sonora foi feita por Bruno Coulais. A banda sonora do documentário reúne
sons reais, sons criados e a composição musical gravada de uma orquestra sinfónica. É
um documentário muito interessante sendo que não há presença de voz para a narração e
para o comentário.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 28/04/2020

99
Observei uma questão muito interessante na tese de Guillaume Campion, esta
relacionada com o SEL e questão da autenticidade.
Seguindo a questão da autenticidade defendida pelo SEL, e tendo como referência o
pensamento composicional de Murray Schafer e as técnicas de composição musical de
compositores como Pierre Schaeffer, Guillaume Campion criou uma obra emocionante
e que deixa o ouvinte numa imersão sonora profunda que o faz viajar até as terras
canadenses em questão. A voz dos narradores, testemunhos escolhidos pelo autor,
conhecedores da história da Haute-Gaspésie e homens que experimentaram ligação
sensorial direta com o meio ambiente e a natureza desta terra costeira, guiam a nossa
mente para uns tempos remotos. As gravações de cantos folclóricos, apuradas pelo
compositor, soam sob forma de eco á referencia de um passado longínquo.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 01/05/20

Ao longo das minhas pesquisas sobre a paisagem sonora, encontrei uma obra que já
Guillaume Campion tinha sugerido: The Tuning of the World , de Schaefer.
Percebi que ao longo da minha leitura que a obra de Murray Schaefer The Tuning of the
World era uma obra de referência para o compositor Guillaume Campion e mais eu
entrava dentro do assunto, ao ler teses e artigos sobre a filosofia de Schaefer, mais me
identifiquei com ele. Tudo faz sentido para mim e sei que estas obras vão também serem
orbas de referência para mim, para este projeto e para o futuro.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 05/05/2020

Vi hoje dois comentários: La culture et la récolte des châtaignes (2016), une tradition
ancestrale e Du Léman à la Méditerranée, un périple incroyable de 600 km à travers les
Alpes (2017), ambos documentários da Radio Télévision Suisse.
O documentário La culture et la récolte des châtaignes é um documentário fascinante,
não de um ponto de vista informativo sendo que a informação dada sobre o tema é
muito restrita e simplificada, mas de um ponto de vista artístico. Tanta emoção ressenti
ao longo dos seus 26 minutos! As imagens eram maravilhosas mostrando a natureza
sobe os seus melhores ângulos. Muito próxima de mim, vi uma natureza elegante e

100
intensa, provida de um grande significado. É exatamente isso que quero transmitir na
minha obra.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 07/05/2020

A realização do trabalho de análise necessita muita pesquisa. A intertextualidade na


música é um tema que tem muita bibliografia. Descobri hoje os diferentes tipos de
intertextualidades musicais:
 A alusão consiste na sugestão ou insinuação a uma fonte. Esta
intertextualidade é apresentada de forma implícita, associando-a a
elementos simbólicos reconhecíveis.
 A paródia apresenta uma versão crítica do objeto de origem de forma
satirizada, irónica e sarcástica.
 A paráfrase apresenta uma intertextualidade ligada ao tema da obra
fonte. A ideia é estudada e trabalhada pelo criador seguindo a sua fonte
temática comum.
 A epígrafe implica a utilização de uma passagem de um elemento da
fonte para iniciar uma nova obra.
 O pastiche (ital. pasticcio = paté) consiste na imitação direta do estilo de
outros criadores.
 O pot-pourri (esp. olla podrida = mistura de carne e de legumes cozidos)
é uma obra constituída por várias melodias, apresentadas de forma
parcial ou inteira, ligadas continuamente com ou sem notas de transição.
 Os fragmentos, termo usado no séc. XVIII, era um conjunto de várias
obras musicais sem ligação, mas todas obras de excito e de compositores
que lhes eram atuais apresentadas ao longo de um espetáculo.
 Os quodlibetos designam obras vocais e instrumentais constituídas por
obras musicais de outras fontes. O que as diferenciam do fragmento é o
implicar de um caráter cómico.
 Os galimatias são obras formadas, tal como os quodlibetos e fragmentos,
por várias músicas de outras fontes. Neste caso, essa junção não é séria
nem cómica: apresenta um caráter mais caricatural. Marie-Noelle Dupuy

101
considera que o estilo do galimatias “rapproche dans un esprit de dérision
le haut et le bas, le trivial et le noble, le savant et le populaire.”59
 A citação constitui a integração de um elemento de outra fonte na obra,
sendo este geralmente de outro tempo ou de outra cultura.
 A colagem consiste na sucessão de vários elementos numa obra única.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 10/05/2020

Realizei hoje a análise comparativa de várias obras que recorreram a estratégia da


citação.
Aqui um exemplo:

Os quadros acima confirmam então a ideia que existe uma recontextualização temporal
e cultural do significado do tema de origem pelo meio da citação. Observam-se
diferentes pontos de vista de um só tema, continuando a haver uma grande
independência estilística entre cada artista.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 11/05/2020

O concerto nº12 de Wolfgang Amadeus Mozart, por exemplo, também recorre a


esta mesma técnica. É de referir o segundo andamento deste concerto pela citação de

59
Tradução: Aproxima num espírito de desprezo o Cima e o Baixo, o Trivial e o Nobre, o Sábio e o
Popular.

102
um tema da abertura da obra La calamita de 'cuori de Johann Christian Bach. Mozart já
tinha usado esta melodia no seu trio nº5.

Figura 14 - Ilustração de Reynolds, 2003, p.125

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 23/05/20

Realizei hoje trabalho em campo. Dirigi-me na Serra das Talhadas para conhecer
melhor o espaço.
As emoções que ressenti perante as maravilhosas paisagens da Serra da Talhada foram
muito intensas. Pensei, quando voltei para minha casa, como poderia transmiti las
musicalmente. Não deixei de ouvir o som do vento, o som dos pássaros, o som dos
grilos... Estes elementos teriam que estar presentes a obra.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 26/05/20

Comecei hoje a redação da minha etnografia. Efetuei primeiramente uma


contextualização da escrita desta mesma, ou seja, a sua relação com o confinamento do
COVID 19, que me fez voltar para algumas notícias e artigos de jornal do mês de
março.

103
O artigo de jornal Covid-19: Professores estão a ficar exaustos, alertam sindicatos60
indica que “Os professores estão a ficar exaustos, após mais de uma semana de aulas à
distância devido à Covid-19, em que tiveram de adaptar formas de ensinar e até comprar
equipamentos e licenças para aplicações, alertaram sindicatos e diretores escolares” e
que “Os professores tiveram de reinventar formas de ensinar e, para muitos, as
plataformas digitais eram um terreno desconhecido.” (Lusa, 2020).

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 28/05/20

A redação da etnografia incitou-me a aprofundar algumas das minhas pesquisas como,


por exemplo, as diferentes tipologias e modos de documentários. Apontei nesta mesmo
que existem os modos:
-Modo Poético (Nichols, 2010, p.138): o modo poético salienta o visual, qualidades
tonais ou rítmicas, passagens descritivas e organização formal. De certa forma poderia
ser considerada de cinema experimental sendo que a narração é feita pelas imagens e
pela banda sonora.
-Modo Expositivo (Nichols, 2010, p.142): o modo expositivo focaliza-se no comentário
verbal e no arguento. O documentário retrate algum acontecimento, referindo os fatos e
apresentando argumentos em coincidência com a narrativa.
-Modo Observativo (Nichols, 2010, p.146): Este modo apresenta o quotidiano, de
qualquer seja o sujeito, com o meio a uma observação discreta.
- Modo Participativo (Nichols, 2010, p.153): Este mostra a interação do cineasta com o
tema. Constitui-se principalmente por entrevistas e imagens de arquivo para analisar
temas históricas.
- Modo Reflexivo (Nichols, 2010, p.162): João Leite, autor do artigo Quais são os tipos
de documentários (2019) explica que este modo “chama atenção para as hipóteses e
convenções que regem o cinema documentário. Aguça a nossa consciência da
construção da representação da realidade feita pelo filme.”61
-Modo Performático (Nichols, 2010, p.169): Recusa o conceito de objetividade e
mostra-se a favor de lembranças e afetos. Este género está muito ligado á abordagem

60
https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-03-25-Covid-19-Professores-estao-a-ficar-exaustos-
alertam-sindicatos Consultado dia 01/05/2020
61
https://www.avmakers.com.br/blog/quais-sao-os-tipos-de-documentario/ consultado dia 04/06/20

104
introspetiva do ensaio cinematográfico. São muitas vezes obras experimentais e
vanguardistas.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 29/05/20

Compareci outra vez na aula de composição sem música a apresentar devido a


impossibilidade de trabalhar no estúdio som da Universidade de Aveiro, mas entrei em
contacto com a direção para conseguir reservas da sala. Na semana do dia 15 de junho,
conseguirei ir la trabalhar. Concentro-me então nos trabalhos que tenho que entregar
até dia 12 de junho.

Caderno de Campo, Mathilde Martins, 03/06/20

Li hoje pela primeira vez artigos sobre os monumentos megalíticos da Serra da Talhada.
A anta da Sepultura do Rei encontra-se a 700 metros de altitude e apresenta muitas
características particulares que a distinguem da maioria dos outros monumentos
megalíticos de Sever do Vouga.

Ao contrário das grandes sepulturas coletivas do Neolítico, implantadas em


amplas esplanadas, esta é uma sepultura individual inserida numa pequena
plataforma encostada à base de um relevo, representando uma grande
mudança no ritual da morte. O topónimo popular “Sepultura do Rei” vem
reforçar a convicção de que o túmulo terá sido de alguém importante. A
imaginação popular associou-a a um rei. O facto de não terem sido achadas
peças associadas ao enterramento, durante as escavações arqueológicas,
dificulta uma atribuição cronológica mais correta à sepultura.

A Anta do Poço dos Mouros é o monumento megalítico o qual acho mais interessante
do ponto de vista estético. Apresenta-se coberto por pedras ao contrário dos dois outros
que estão cobertos com terra. Para além disso, a localização da Anta do Poço dos
Mouros é a mais descoberta pela vegetação e a que se apresenta num terreno mais
rochoso.

(work in progress)

105
106
Autoetnografia coletiva

Encontramo-nos neste dia 6 de abril de 2020 numa reunião em videoconferência


com objetivo de redigir um artigo auto etnográfico coletivo relativo a semana do dia 30
de março a 4 de abril de 2020. Nós, sujeitos desta auto etnografia, identificamo-nos
como estudantes de mestrado em música no ramo de composição da Universidade de
Aveiro. É de referir que este texto é desenvolvido para a disciplina de Laboratório de
Etnografia.
É relevante mencionar o motivo que nos impede de nos encontrar presencialmente, pois
o desenvolvimento deste trabalho está condicionado pelo nosso confinamento devido à
doença a nível mundial do Covid-19.
Nesta reunião percebemos pontos em comum nos nossos diários no caderno de campo
individual da respetiva semana. O principal ponto em comum é, além de sermos os três
compositores, a pesquisa bibliográfica para o projeto artístico.
Através da pesquisa bibliográfica, descobrimos textos que achámos muito interessantes
e que provavelmente terão muita influência no nosso trabalho final.
Na semana passada, o Lucas continuou a ler e rever aspetos importantes para a
tese do Ticiano Rocha, tendo como tema o tempo, duração e instante. Durante a
videoconferência, o Lucas explicou às suas colegas quem era Ticiano Rocha, que elas
desconheciam.
Na tese, Ticiano diz que “o tempo é uma dimensão de difícil compreensão, que não
apresenta formas físicas materiais”. Esta temática é mais relevante para o de trabalho
do Lucas, sendo o tema tempo, pois ele explora o Código Morse, onde foi usado como
forma de comunicação. Nele encontramos o rápido e o lento, tendo também em conta os
anos de existência desta forma de comunicação.
O Lucas foi à procura de mais bibliografia de alguns filósofos e afins das suas épocas,
como Galileo, onde disse que o tempo é uma variável independente na descrição e
Newton disse que, tempo é independente de seu ambiente que a sua passagem possa ser
mensurável. A procura de bibliografia do Lucas específica aos filósofos mais antigos
despertou a curiosidade da Mathilde, que gosta de comparar bibliografia entre épocas.
A Rita leu uma das teses que a professora Isabel Soveral sugeriu - a tese de
Mestrado em Música de Tiago Lestre, nosso conhecido. Esta tese também foi lida pelos
seus colegas Mathilde e Lucas. Percebemos que é um trabalho vantajoso para ambas as

107
compositoras, visto que aborda um projeto artístico multimédia, embora esta tese tenha
enfoque no circo, tema que não é abordado nas teses da Rita e da Mathilde. “O objetivo
principal deste projeto artístico é explorar o imaginário gestual e contextual circense,
expondo-o numa composição musical. Inspirado pelos espetáculos multimédia do
passado e do presente, como a tragédia grega e a ópera, ponho em contraponto as novas
ferramentas tecnológicas, como a programação informática, com elementos mais
tradicionais como a música, dança e teatro.”[CITATION Tia15 \p 11 \l 2070 ] Embora
o tema principal desta tese – espetáculo circense – não seja o mesmo que a Rita quer
criar, a abordagem feita pelo Tiago Lestre não é menos pertinente. A elaboração
bibliográfica e consequente construção de cada obra é semelhante para os compositores,
tendo sido uma mais valia perceber como outro compositor preparou o seu percurso
para o objetivo final.
Uma vez que a instrumentação escolhida para a sua peça de Mestrado é de
frequências graves, a Rita pesquisou concertos para violoncelo – um dos seus
instrumentos de eleição. Encontrou um concerto para violoncelo de Elgar, compositor
inglês dos sécs. XIX e XX: (https://www.youtube.com/watch?v=lNVe_1Eb5dw).

Embora não componha neste estilo – romântico e pós romântico -,


é uma atividade enriquecedora; mesmo sem me aperceber, há
sempre algo nas obras (ornamentos, frases, timbres, preenchimento
orquestral) que me ajuda a desmanchar o nó que me impede de
compor, ou sequer de gostar do que componho.” (caderno de
campo Rita Rainho 8 de abril de 2020)

No caso da Mathilde, o trabalho desenvolvido nesta semana focou-se na leitura


de bibliografia acerca do compositor John Corigliano, mais especificamente sobre a sua
primeira sinfonia. Esta sinfonia - https://www.youtube.com/watch?v=KskXS9euKQY -
é uma obra que a Mathilde aprecia muito, sendo que até já tinha mostrado alguns
momentos musicais à sua colega Rita ao longo do ano letivo de 2019/2020.
No quinto capítulo do livro “The Language of Electroacoustic Music”, David
Keane aborda a maneira como a música electroacústica, ou, num termo mais amplo,
como a arte contemporânea é compreendida pelo público e como os
compositores/performers vêem o público – “One of the more likely functions of
electroacoustic music is to establish communication between composer-performer and

108
audience. But, if this is the case, it is complicated by the fact that on the one hand the
general public seems to regard contemporary art with contempt and on the other hand
there are artists who regard the public with contempt (and who produced art for some
more deserving public which will, they assume, exist in a better time or place).”.
[CITATION Kea86 \p 100 \l 2070 ] Outro ponto importante deste início de capítulo é o
facto de, apesar de serem considerados radicais na época, os novos instrumentos
eletroacústicos – telarmónio, ondas Martenot ou theremin – relacionavam-se mais com
noções da música clássica do que no fenómeno da nova música – contemporânea – que
estava a ocorrer. [CITATION Kea86 \p 98 \l 2070 ] Compositores como Pierre
Schaeffer e Karlheinz Stockhausen foram os precursores da utilização da fita magnética
e gerador sonoro para concerto, já que estes não foram produzidos originalmente para a
performance musical. [CITATION Kea86 \p 98 \l 2070 ] Considera que este livro pode
ser enriquecedor para o trabalho da Mathilde e planeio aconselhar a sua leitura.
A descoberta da biografia do compositor John Corigliano, que a Mathilde já admirava,
despertou-lhe muito interesse sendo que o compositor se mostrou envolvido no mundo
da música desde muito cedo na sua vida. Mathilde refere que a leitura de uma
entrevista, denominada “Two conversations with Bruce Duffie” (1987 & 2004), teve um
grande impacto na maneira de como idealizava o compositor enquanto pessoa. De facto,
a leitura da entrevista permitiu dar um caráter e uma voz humana ao criador das obras,
como a tal primeira sinfonia, que já antes conhecia. A entrevista é extensa; não obstante,
aconselhou à Rita e ao Lucas a sua leitura.
Além disso, a leitura de várias teses impulsionou mais pesquisa bibliográfica
sobre as técnicas composicionais usadas pelo compositor. Apesar de já ter abordado o
assunto durante umas aulas de análise de licenciatura, que partilhou com a sua colega
Rita, um dos aspetos que despertou mais a atenção foi a intertextualidade da
citação/colagem. A descoberta de trabalhos como “Citations et collages comme
brouilleurs temporels de la musique de Marie-Noëlle Dupuy” (2018) ou de “Collage,
Music, and American Identity” de Richard Daniel Blim (2013) foi muito positivo para a
continuação do seu trabalho de projeto artístico. Embora o tema da intertextualidade
seja um assunto interessante, só a Mathilde é que o está a explorar.
De facto, apesar das temáticas da pesquisa não serem as mesmas, todas
contribuem para o nosso crescimento enquanto criadores e pensadores. O trabalho de
pesquisa é essencial para o processo de desenvolvimento do nosso projeto artístico. A
análise da informação permite-nos ter bases mais consistentes. A partilha dos nossos

109
temas de projeto também foi importante, uma vez que através das nossas opiniões e
conselhos, permitiu uma consequente melhoria do nosso trabalho.
Esta videoconferência foi enriquecedora para nós, já que, além da partilha de
informação e de novo conhecimento que fomos adquirindo ao longo da semana,
também realizámos audições das obras em questão.

110
Etnografia Sequencial

Data: 24 de Março de 2020


Timóteo Cuche

24 de Março iniciou triste para mim, logo pela manhã recebi a notícia da morte
do Saxofonista Camaronês Manu Dibango, vitima de Covid-19. Leão de África como é
carinhosamente chamado é um dos meus grandes ídolos e mentor. Tive o privilegio de o
conhecer Dibango no ano de 2015 durante a realização do Festival More Jazz Séries em
Maputo, toquei no mesmo palco que o papa Manu e pude conversar com ele e colher
varias impressões sobre a sua vida e experiencia musical, de lá pra cá sempre que ele
fosse a Moçambique estava disponível praticar e falar de música. Ele tinha uma visão
impressionante da música africana.
Papa Manu morreu aos 86 anos de idade depois de ter sido diagnosticado o
Covid-19 a uma semana atrás. Esta data é também marcada pela morte de um grande
senhor das artes, Alberd Uderzo, um desenhista de histórias em quadradinhos Francês
perdeu a vida aos 92 anos de idade. Celebre por ter criado o personagem Asterix.
Recordou-me os tempos de infância em que assisti a varias cenas de Asterix e Obelix.
Dibango e Uderzo são com certeza duas grandes perdas para a arte do século XXI.
Devido a estas tristes noticias o dia não foi produtivo para mim a nível
instrumental, passei o dia ouvindo as obras musicais de Manu Dibango. Peguei o
saxofone apenas para tocar a música mais famosa de Dibango, o Soul Makossa, uma das
obras musicais mais remixadas em todo mundo por vários cantores e Djs.
Michael Jackson usou um trecho do refrão de Soul Makossa em “Wanna Be
Startin Somethin”, do álbum Thriller (1982). Em 2009, Rihanna usou um trecho em
“Don’t Stop the Music”, o que levou Dibango a processar os dois e ganhou a causa.
Para além de Jackson e Rihana, Kanye West, Jay Z e A Tribe Called Quest também
trechos de Makossa em suas obras musicais.
Enfim, o Covid-19 está a ser uma experiencia dolorosa e espero que não
percamos mais artistas pois a arte ainda precisa deles, para que possam compor obras
musicais, pintar belas telas e fazer belíssimas histórias de quadradinhos sobre como nós
os artistas e a sociedade no geral conseguimos vencer este vírus diabólico. Até um dia
Covid-19.

111
25 de Março de 2020
Rita Rainho

Embora estejam a ser dias de sol e com temperatura agradável, que convidam a
sair e aproveitar este tempo, não o posso fazer. Esta pandemia obriga-me a ficar
recolhida em casa, à espera de melhores dias. Estar em casa, para mim, é descansar do
trabalho que faço lá fora, na universidade. Não é, por isso, fácil trabalhar em casa; é um
esforço contínuo, um obrigar-me a fazer os meus deveres enquanto estudante. Tento
sempre aproveitar para fazer algo que me custe menos nesse dia: ler um capítulo de um
dos livros ou de uma tese que me vai ajudar a evoluir enquanto compositora, ouvir
álbuns que me inspirem a compor, escrever meia dúzia de compassos ou ir para o piano
tocar alguma coisa que goste, enquanto as ideias não surgem.
Hoje de manhã estive a ouvir música popular brasileira. Comecei com Nara
Leão e depois João Gilberto. É um estilo que gosto muito e que me relaxa; ajuda-me a
começar o dia da melhor maneira. Fui para o jardim acabar a manhã a ler o capítulo que
me falta de um dos livros que a professora Isabel Soveral me indicou (“Language of
Electroacoustic Music”). É um capítulo interessante, que aborda a linguagem
composicional no computador. Vivemos numa época onde manipular sons é mais fácil
do que nunca. O produto final é de máxima qualidade e com ferramentas novas, que nos
ajudam a levar as peças mais longe do que sempre se pensou. Outra ferramenta que o
computador nos proporciona é o software de composição onde podemos ouvir
imediatamente o que estamos a compor. Sabemos exactamente como soa o que está a
ser composto. Um dos softwares que mais me impressionou foi “synthesis”, que produz
uma técnica de síntese granular; aqui, os sons electrónicos são previamente gravados e a
sua difusão sonora é integrada na performance instrumental. Esta reprodução
electrónica é controlada através do ataque numa nota do instrumento, com um pedal ou
com um controlo remoto, tudo ao alcance do instrumentista. Graças a este método, é
possível ampliar imenso o espectro de possibilidades de difusão de uma peça, levando a
música a outro patamar. Um óptimo exemplo deste software de manipulação de síntese
granular é “In Tempore” de João Pedro Oliveira, compositor português com especial
interesse em música electroacústica.
Vídeo da peça com partitura: https://www.youtube.com/watch?v=EgtB_uWkn78

112
Vídeo da estreia de outra peça de João Oliveira com o mesmo tipo de software:
https://www.youtube.com/watch?v=mWY4M_iwCTg

É curioso perceber agora, às 18h30, como um dia que parecia ser só mais um em
casa, sem poder sair, presa a uma rotina condicionada por um surto mundial, se
transformou num dia de mais um estudo e descobertas bastante interessantes na área da
música.

26 de Março de 2020
Mathilde Martins

Falei ontem do bom tempo que nos acompanha nestes dias de crise, mas a
meteorologia mudou. Acordei hoje num dia fresco e cinzento e, ao contrário dos últimos
dias, sinto algum reconforto no calor da casa. Sentada ao meu escritório, escrevi,
alternando o meu olhar sobre o texto e as árvores que se agitam devagarinho pelos raios
do sol enevoado pelo céu. Para acompanhar o meu pensamento, ouvi música meditativa.
É um estilo musical que acho particularmente descontraído. Lembrei-me, enquanto
ouvia, de um compositor que me transmitia a mesma sensação pela audição das suas
obras: Steven Halpern. Assim iniciei umas pesquisas sobre o seu trabalho.
Descobri que Steven Halpern, músico e compositor de música new age, era
inicialmente trompetista jazz/rock com formação clássica. Descontente com a música
moderna dos anos 70 existente, optou por seguir um caminho diferente: começou a fazer
música, inspirado em antigas tradições. O autor James Singleton descreve a música de
Halpern como “construída sobre as antigas tradições da música como a medicina dos
tibetanos, gregos e egípcios, e assente com um rigoroso apoio à pesquisa académica”
(Singleton, 2012).
Considero o aspeto de ter decidido seguir um caminho musical distinto ao inicial
muito interessante. Já o Arvo Part tinha renunciado, pelos anos 60, a composição
serialista. Olho estas mudanças arrojadas, muitas vezes, como o impulso para o sucesso
e concretização, enquanto artista.
O estilo musical pelo qual o compositor optou vai além da área da música:
medicina, meditação, relaxamento, entre outras áreas relacionadas com a musicoterapia.
O compositor parece ter presente o conceito de que “Our cells are pre-wired to shift into

113
these higher order functions – this is part of what I seek to do through my music.”
(Halpern).
É mágico o poder que a música pode ter, este poder que eu mesma sinto muitas
vezes, e que todos deveríamos sentir. É mágica a emersão mental que, por momentos,
me faz esquecer a realidade que está a ser vivida, e do que acontece fora disto. Um dia
sem música, seria um dia ainda mais trágico, porque a inevitabilidade da tragédia, é
cada vez mais real…

Data: 27 de Março de 2020

Margarida Lázaro França Caetano

Começo o dia com a leitura habitual da meditação matinal com o título “Caminho para
a Sabedoria”. O teor do texto de hoje é sobre a espera. Temos que saber esperar. Como
esperar o covid 19 passar? Estou a duas semanas em quarentena domiciliar, isolada.

Aproveito estes dias de isolamento, para estudar e compor músicas para conscientizar as
pessoas da necessidade de se adoptar as medidas de precaução. Compus duas músicas,
62
uma delas na minha língua materna changana, Para conscientizar em especial a
sociedade moçambicana sobre os cuidados que se deve ter em consideração ao vírus. A
segunda na língua portuguesa, de modo a partilhar as letras apelativas não só com
Moçambique mas com todos falantes da língua portuguesa. Partilhei as duas músicas
pelas plataformas digitais, o facebook, whatsap e youtube.

Infelizmente muitos concertos foram cancelados em Portugal, e eu participaria em um


desses concertos por isso gravo um vídeo a cantar a música “ Refúgio”, para a 2ª edição
do gospel arte beat, para a realização do mesmo evento pelas plataformas digitais
online. O mundo a mudar, é preciso ajustar-me a nova realidade.

Como música posso e devo levar esperança e informação a sociedade, de modo a


participar activamente nesta luta contra o inimigo invisível. Viver um dia de cada vez, é
o que faço! Adecuar-me as circunstâncias e manter viva a música que vive em mim.

https://m.youtube.com/watch?feature=youtu.be&v=-GQirC51hP4

62
É uma das línguas de Moçambique da família das línguas Bantu

114
https://m.facebook.com/story.php?
story_fbid=522923761942233&id=100026738400241&sfnsn=mo&d=n&vh=i

https://m.facebook.com/story.php?
story_fbid=523561465211796&id=100026738400241&sfnsn=mo&d=n&vh=i

Data: 27 de Março de 2020

Maria João Ribeiro

É agora meio-dia, quando recebo uma triste notícia de mais duas pessoas do
nosso mundo da música que faleceram. Mais dois músicos esta semana que perderam a
vida na luta contra este inimigo invisível! Estavam ligadas à música clássica brasileira,
o maestro Martinho Lutero e da maestrina Naomi Munakata. A notícia foi-me dada por
duas amigas brasileiras, de São Paulo. Neste momento, encontram-se muito
entristecidas, conheciam a maestrina Naomi, trabalharam diretamente com ela no Coro
da OSESP (Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo), “foram duas grandes perdas
para todos nós, principalmente Naomi, fizeram muito pelo nosso cenário musical”,
confessam-me. Por indicação delas, ouço a “Suíte dos Pescadores” sob a direção da
maestrina (link: https://youtu.be/GFnR7wugWWE), uma música que trata da despedida,
da saudade e da esperança. Apesar de toda a envolvência da música trazer uma certa
inquietação, ao ouvi-la começo a sentir-me mais leve pela boa vibração e energia que
transmite.

Da parte da tarde aproveito para fazer mais algumas gravações. Primeiro,


gravação de uma canção para enviar à minha professora de canto, pois, é desta forma
que, nesta época tão particular, os estudantes de música têm as suas aulas de
instrumento. Foi esta a melhor forma encontrada para que alunos e professores de
instrumento possam continuar o seu trabalho, estando todos a fazer um esforço de
adaptação a esta nova “normalidade”. Seguidamente, gravações para os meus alunos de
canto, que não tendo piano em casa, necessitam de um suporte auditivo para poderem
treinar e estudar as suas peças. Os alunos adaptaram-se bem às aulas virtuais e têm

115
aderido com entusiasmo às tarefas propostas. Também eles, com a sua enorme vontade
em ajudar, estão a fazer um esforço para que tudo corra e funcione bem.

E, por fim, gravação para um projeto português que me foi dado a conhecer
através das redes sociais, o projeto “Fica em Casa” do flautista Vítor Alves (link do
projeto: https://youtu.be/fpTfJHT6tuc). Inspirado no “Virtual Choir” de Eric Whitacre,
e com letra em português, tem como objetivo sensibilizar e mobilizar a população
portuguesa a ficar em casa. O projeto só será possível através da participação da maior
parte da comunidade de músicos de Portugal. Seguramente esta será uma experiência
única a recordar para sempre.

Data: 28 de Março de 2020

Lucas de Sousa Cerqueira

Chega mais um dia e esta situação do Covid-19 parece cada vez mais
descontrolada tendo os Estados Unidos e a Itália ultrapassado o número de infetados da
China, que foi o país de origem desta triste doença e onde os presentes mortais dizem
não se lembrar de tamanha doença que fez com que o mundo todo abrandasse e quase
parasse. Cada dia que passa é um dia de aflição, já são muitos infetados e a situação
aumenta exponencialmente. Portugal chegou aos três dígitos de mortos em pouco tempo
e o pior país, Itália, chegou aos cinco dígitos. A única boa notícia que se tira desta
doença é a poluição pois o mundo recuperou o que muitos diziam ser irrecuperável.

Estes dias de isolamento têm sido um pouco sufocantes, sendo um tempo que
parece infinito dentro de um espaço pequeno. Isto do espaço e tempo é muito engraçado
para quem estuda composição, e, principalmente, quem tem e teve aulas com a
professora Isabel Soveral, olha para esta matéria com outros olhos. A professora pede
para lermos as teses que pudermos e solicita-nos o exercício de tirar apontamentos do
que é pertinente para o nosso trabalho final e, ainda mais, aquilo que nos fascina
enquanto seres humanos e aquilo que nos poderá vir a fazer crescer enquanto músicos.

A parte da tarde deste dia, fez-me bem relembrar esse tal exercício no qual revi
apontamentos de colegas como Miguel Barata Gonçalves, que na sua tese fala de um

116
compositor que me “inspirou” e inspira para a peça que estou a elaborar, abordando o
tema “O estilo composicional de Pierre Boulez”. Também revi apontamentos de um
colega brasileiro, Ticiano Rocha, que aborda as “Identidades sonoras na constituição de
um discurso orientado por temporalidades”. Esta tese despertou-me a curiosidade em
temas, como o tempo no espaço e o espaço no tempo e também o que é o material e a
matéria.

No decorrer da tarde estive a ler um livro pelo qual estou fascinado, intitulado
“Se Beethoven pudesse ouvir-me”, de Ramon Gener. Este escritor faz atualmente
programas de televisão como o “This is Opera”. Neste livro, ele conta de maneira subtil
a sua vida na música e não tendo eu ninguém com quem conversar sobre música em
casa, este livro está a superar as expetativas.

Assim se passa mais um dia com o mundo “fechado”, fazendo abrir-se outro no
meio de livros e de teses onde nos podemos reconfortar com histórias e conhecimento
dos de mais mortais como nós no qual a doença atual faz pensar o quanto valemos e o
que levamos…

Data: 29 de Março de 2020

Orlando Fernão

Enfim, o bastão chega às minhas mãos para continuar a refletir sobre a época
porque passamos. É a época da pandemia Covid-19 – que assola o mundo todo desde o
princípio deste ano. Quase todo o mundo funciona a meio-gás, devagar, quase parando.
Muitas instituições estão fechadas, incluindo àquela a que estou adstrito – a
Universidade de Aveiro. Este é um tempo em que experimentamos novas formas de
existir, novas formas de fazer todas as outras coisas que fazíamos, porém à distância.

Conforme foi já mencionada pelos colegas, todas as pessoas estão condicionadas por
esta pandemia: O Timóteo mencionou já as perdas que o mundo da música teve,
referindo a morte de Mano Dibango, vítima desta doença; a Rita, num tom nostálgico
mencionou com este mal condiciona a vida dela: “Esta pandemia obriga-me a ficar
recolhida em casa, à espera de melhores dias”; não muito diferente da Rita, a Mathilde
inicia o texto dela demonstrando este desconforto causado pelo enclausuramento,

117
conforme se nota: “Sentada ao meu escritório, escrevi, alternando o meu olhar sobre o
texto e as árvores que se agitam devagarinho pelos raios do sol enevoado pelo céu.
Para acompanhar o meu pensamento, ouvi música meditativa”. O otimismo não a deixa
achar isto uma tragédia; tragédia seria se no meio disto tudo não houvesse música: “Um
dia sem música, seria um dia ainda mais trágico, porque a inevitabilidade da tragédia,
é cada vez mais real”. A Margarida, por sua vez, e para minimizar mais ainda a
eminente tragédia, tomou uma atitude ativa: “para conscientizar as pessoas da
necessidade de se adotar as medidas de precaução (...) compus duas músicas”.
Infelizmente, o Covid-19 não para suas ações nefastas pelo mundo todo. A Maria João
Ribeiro deixou-nos a saber que “mais dois músicos esta semana que perderam a vida
na luta contra este inimigo invisível”. E é visível que a doença ainda não está a
abrandar. Lucas de Sousa Cerqueira diz que “esta situação do Covid-19 parece cada
vez mais descontrolada tendo os Estados Unidos e a Itália ultrapassado o número de
infetados da China, que foi o país de origem desta triste doença”. Eu também, sendo
residente deste planeta não ficaria incólume. O meu progresso académico de alguma
forma está condicionado. A ausência do convívio real com os colegas e o intercâmbio
estudantil constitui em mim uma perda, pois em muitas intervenções dos colegas na sala
de aula adicionavam valor à minha vida e aumentava minha bagagem intelectual.
Outrossim, outras aprendizagens que tinha em mente fazer fora da Universidade ficaram
impossíveis, incluindo viagens e cursos de especialização de curta duração. Isto tudo só
não é uma catástrofe porque ainda temos música...

Data: 30 de Março de 2020

118
Ana Gaipo

Por ser a última, estive a semana toda à espera deste momento, na expetativa do
que poderia dizer quando chegasse a minha vez! Agradeço, à professora Rosário, a ideia
em começar a ordem alfabética invertida. Em muitos dos contextos da minha vida, em
particular nos escolares, quase sempre, tive a dura tarefa de tomar a dianteira. Tantas
vezes, no íntimo dos meus pensamentos, desaprovei a ideia dos meus pais em chamar-
me Ana. Engraçado é que muitas pessoas com quem convivia, naturalmente me
chamavam de Margarida. Por isso, em alguns momentos, quando alguém se esqueceu
que era Ana, mantinha o segredo e aproveitava-me da Margarida. Com este pequeno
truque, algumas vezes ganhei felicidades, pelo menos em poder fazer, depois de ver os
outros. Neste caso, não sei se fiquei em melhor posição do que os outros... cabe-me o
encerramento desta cadeia de escrita colaborativa. Consegui perceber que cada um teve
inquietações, não só no âmbito da tragédia mundial que nos assola (COVID-19), mas
também pessoais, onde se enquadram as de ordem académico (os projetos de cada um).
Também me inquieto com o mesmo! Parece que o confinamento a que estamos
cometidos tem-se apoderado de todas as nossas componentes psicológicas, atrapalhando
particularmente a produtividade da nossa criatividade, uma vez que todos somos
músicos. Mas todos procuramos, de uma maneira ou de outra, por vezes com algum
custo ‘empurrando o psicológico’, inverter o panorama em atividades proactivas, como
foi exemplo a Margarida. Eu procurei inspiração e inversão de angústias em caminhadas
solitárias pelo campo. Para mim, também foi uma semana ‘infernizada’ 63. Não apenas
por falta de inspiração, mas por um conjunto de tarefas académicas e profissionais que
me levaram a criar um sentimento que só consigo expressar por ‘angústia’. O tempo
parecia mais rápido que o relógio. O meu correio eletrónico não parava. Eram
mensagens dos alunos a enviarem-me trabalhos para corrigir e avaliar, e do conselho
pedagógico a pedir apreciação urgente de documentos e a agendar reunião
extraordinária por videoconferência. Os meus filhos ouviam os ‘plins’ do meu
telemóvel e riam-se dizendo: “o telefone da mãe não pára! Ainda vai dar em
maluquinha!”. Ao menos, servi-lhes de entretenimento! Pensava com os meus botões:
“Tudo tem urgência! E os trabalhos do mestrado...em que prioridade os coloco? Quero
concentrar-me neles e não consigo.” Não foi de todo fácil ultrapassar esta semana. Os
meus dias resumiram-se a um número imenso de horas sentada à frente de um

63
Termo que se usa na ilha de S. Miguel para dizer ‘aborrecida’.

119
computador e a gerir prioridades de tarefas. O corpo dói-me sem ter feito esforço físico.
Mas a alma também...do esforço psicológico. Ainda me surgiu mais um problema...ouvi
nas noticias da RTPAçores que as Festas do Espírito Santo estão a ser canceladas em
todo o arquipélago. Começa a ficar comprometido o avanço do meu tema de tese! Tal
como muitas das contribuições anteriores, também acabei por fazer desta participação
um ‘muro de lamentações’. Mas hoje, depois de tudo passado, e cumpridas todas as
tarefas (acho que algumas não muito bem, avaliando pelas “pancadinhas” das
professoras na aula de Metodologias64), escrever estas linhas “caiu-me que nem ginjas”.
Serviram de verdadeiro alívio! São doze horas e não vou deixar o dia encerrar para
escrever senão, acho que redigirei uma tese e para a próxima, a professora e os colegas,
não me deixarão colaborar!
Agora que chego ao fim da minha contribuição...acho que não vou dar por
concluída esta cadeia. Talvez fosse interessante ‘ouvir’(na aula virtual de amanhã) uma
participação da professora Rosário! Assim também pode participar para não dizer que
como o seu nome fica entre as letras intermédias do alfabeto...não lhe demos
oportunidade de cooperar!

64
Obrigado Fernão por teres aparecido quase no final da aula para salvares o meu dia! Não fiquei sozinha
com as “pancadinhas”!

120
Somos um grupo: turma de Etnografia 2020

Onde estamos: zoom

Tema: música do sec. XXI – no seu todo de géneros - Worldmusic

Introdução

Este artigo é fruto de uma experiência colaborativa de fazer e compor música no


séc. XXI por estudantes do Mestrado em Música da Universidade de Aveiro.
Encontramo-nos, hoje (31 de março de 2020), por videoconferência para uma
aula de Laboratório de Etnografia, pela plataforma ZOOM. Estamos em
momento de isolamento social causado pelo COVID-19 que é o nome atribuído
pela Organização Mundial da Saúde, à doença provocada pelo novo coronavírus
SARS-COV-2. que pode causar infeção respiratória grave como a pneumonia.
Este vírus foi identificado pela primeira vez em humanos, no final de 2019, na
cidade chinesa de Wuhan, província de Hubei, tendo sido confirmados casos em
outros países (SNS24). Assim, fomos desafiados a pensar colaborativamente
sobre a música do século XXI, tendo em conta as nossas experiências tanto
intérpretes como espetadores, dado que a situação para os artistas se mostra
crítica. Abordaremos os assuntos individuais que se relacionam com o tema
central.

(Work in progress)

121

Você também pode gostar