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A nova História do Brasil

Uma nova geração de pesquisadores destrói mitos e revela


o verdadeiro passado do Brasil: um país mais forte, mais
complexo e bem mais humano do que ensinaram na escola

Edição279

Junho de 2010

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POR Redação Super

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Leandro Narloch*

O cenário deve estar quente na sua memória. Nos tempos


em que o país era uma colônia de Portugal, só havia por
aqui engenhos de cana-de-açúcar, as "plantations", com
centenas de escravos. Portugal passou séculos sugando as
nossas riquezas. No século 16, o reino português já havia
exterminado o pau-brasil, ganhando a madeira dos índios
em troca de bugigangas; no século 18 ainda levou embora
o ouro de Minas Gerais. Como todas as exportações
brasileiras eram controladas por Portugal, o país ficou
limitado a ser uma colônia agrícola. E aí, lembrou-se dessa
imagem? Pode esquecê-la. Essa história está virando,
literalmente, coisa do passado. Daqui para a frente, vai
conviver com esta aqui: no século 18, a economia brasileira
é maior que a de Portugal. O país é repleto de rotas
interestaduais de comércio de ferramentas, roupas e
alimentos, e ainda exporta, fora do controle do rei
português, produtos para a Argentina e a costa africana. A
descoberta do ouro ergue fortunas que ficam por aqui,
tornando o Brasil capaz de ter investimentos para crescer
mesmo em épocas de crise internacional. Os homens mais
ricos (entre eles, negros e índios) constroem sua fortuna
não como latifundiários, mas pelo comércio e emprestando
dinheiro a juros. A maioria dos brasileiros é formada por
homens livres que mantêm comércios ou pequenas
fazendas. Esse novo passado tem sido descoberto por
historiadores nos últimos anos. Dezenas de novos estudos
apagam silhuetas tradicionais da história brasileira. E
montam uma paisagem nova. Nas próximas páginas,
conheça a nova história do Brasil.

Uma história mais tranquila

Grande parte da história que os brasileiros conhecem hoje,


aquela que ainda está na maioria dos livros didáticos, foi
criada (ou virou consenso) entre 1960 e 1980. Era um
tempo mais tenso do que hoje. A Guerra Fria dividia os
países, os governantes e os intelectuais entre comunistas e
capitalistas. Na América Latina, as ditaduras militares
calavam jornalistas e professores, torturavam e matavam
dissidentes. Se no governo dominavam os capitalistas, a
direita, nas universidades predominavam as ideias e os
métodos de Karl Marx, o pai do comunismo científico. Para
se opor à ditadura, era estimulante ressaltar histórias de
dependência internacional, em que classes sociais lutavam
entre si e que tinham as grandes potências como as vilãs.
"Era uma leitura do passado que nos preparava para a
revolução", diz o historiador Marco Antonio Villa, da
Universidade Federal de São Carlos.

Mas o tempo passou. As ditaduras caíram, assim como o


Muro de Berlim e a União Soviética. Aos poucos, os
pesquisadores ficaram um pouco mais longe das ideologias
e passaram a tirar conclusões sem tanto medo de aderir a
um ou outro lado da política. "A geração anterior foi muito
marcada pela luta ideológica, exacerbada durante os
governos militares. Divergências eram logo transpostas
para o campo político-ideológico, com prejuízo para o
diálogo e a qualidade dos trabalhos", diz o historiador José
Murilo de Carvalho, professor da UFRJ e um dos imortais da
Academia Brasileira de Letras. "A nova geração de
historiadores formou-se em ambiente menos tenso e
polarizado, com maior liberdade de debate e um ambiente
intelectual mais produtivo."

A visão clássica do Brasil colonial nasceu com o intelectual


paulista Caio Prado Júnior em 1933. No livro Evolução
Política do Brasil, ele afirma que a sociedade brasileira era
simples e desigual: "Nos constituímos para fornecer açúcar,
tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e
diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o
mercado europeu. Nada mais que isso". Tudo girava em
torno do latifundiário, que deixava só miséria por aqui. A
teoria de Caio Prado fez um sucesso tremendo nas décadas
seguintes.

Até que, nos anos 90, historiadores descobriram dados que


não batiam com a teoria. Registros dos portos do Rio de
Janeiro e de Salvador mostravam que, em épocas de crise
econômica europeia, quando os preços de açúcar e algodão
desabavam pelo mundo, no Brasil eles mudavam pouco.
Mesmo quando as exportações do Rio de Janeiro
diminuíram, a compra de farinha e charque do Rio Grande
do Sul aumentava. Esses dados sugerem que havia um
bom mercado consumidor no Brasil. Além disso, o
testamento dos homens mais endinheirados mostrava que
a maioria não fez fortuna exportando cana-de-açúcar, mas
fabricando ferramentas ou emprestando dinheiro. Eles
compravam fazendas só depois de ricos, para ganhar status
de proprietários de terras e eventuais títulos de nobreza.

O mais recente estudo com essa nova visão virou o livro


História do Brasil com Empreendedores, de Jorge Caldeira,
lançado em 2009. Ele mostra mais um mito do Brasil
colonial: a ideia de que só havia por aqui uma enorme
massa de escravos e seus senhores. Em 1819, os escravos
eram um quarto da população total, de 4,4 milhões de
pessoas. E, entre os brasileiros livres, 91% deles não
tinham escravos. "Com essa população, o Brasil tinha uma
economia maior que a de Portugal", diz Jorge Caldeira.

Os mitos do outro lado, os da direita, também estão com os


dias contados. No caso da Guerra do Paraguai, glorificada
pela caserna, hoje ninguém discute que os soldados negros
foram entregues à própria sorte no campo de batalha,
sendo os primeiros a morrer. Alguns, inclusive, foram à
guerra como "substitutos", no lugar de senhores de
escravos que preferiram não arriscar a vida pelo país.
Tiradentes, mártir usado como peça de proganda dos
governos desde o início da República, teve sua participação
na Inconfidência Mineira bem diminuída. Falando em
República, hoje se reconhece que, logo depois que os
militares a proclamaram, em 1889, o Brasil regrediu em
diversos pontos. A censura à imprensa, por exemplo, foi
um dos primeiros atos do proclamador em pessoa, o
marechal Deodoro da Fonseca.
Mito 1

"A sociedade brasileira se dividia entre senhores e


escravos"

Havia mais pessoas livres do que se imagina. No século 18,


40% da população era de escravos. No começo do 19,
25%. E alguns senhores trabalhavam com os negros, já
que tinham poucos escravos.

Mito 2

"Portugal apenas sugava nossas riquezas"

A montagem de engenhos e a exploração de ouro


trouxeram riquezas para cá, criando um comércio ativo no
Brasil. No fim do século 18, nossa economia era maior que
a de Portugal.

Mito 3

"Os latifundiários eram as pessoas mais ricas"

Um navio negreiro valia mais que um engenho inteiro. Só


25% dos maiores testamentos eram de fazendeiros, o resto
era de comerciantes, banqueiros e traficantes de escravos.
Esses homens, para ganhar status, compravam terras no
fim da vida.

Mito 4

"A Inglaterra fez o Brasil destruir o Paraguai"

Ao contrário do que se imagina, a diplomacia britânica


tentou evitar o conflito. O país tinha investimentos no Brasil
e no Paraguai, que ficariam em risco em caso de guerra.
Mito 5

"Aleijadinho era um deficiente físico grave que fez centenas


de estátuas sozinho"

As famosas esculturas são provavelmente fruto de vários e


talentosos artistas, que dividiam o trabalho entre si e
tinham ajudantes. E a imagem dele como um homem
desfigurado pode ser uma criação literária.

Mito 6

"Lampião lutava contra coronéis e latifundiários"

O rei do cangaço prestou favores a grandes coronéis do


sertão. Ao mesmo tempo, ameaçava famílias pobres e
executava operários que construíam estradas pelo interior
do Nordeste.

Mito 7

"O Paraguai era uma potência latente"

Era o país mais atrasado do Cone Sul. O comércio exterior


era 6 vezes menor que o do Uruguai, que tinha a metade
da população.

Mito 8

"Canudos era uma sociedade igualitária"

A cidade de Antonio Conselheiro não pregava a reforma


agrária. Como fora dali, havia miseráveis e pessoas mais
ricas.
Mito 9

"Santos Dumont inventou o avião"

O inventor brasileiro foi um gênio. Mas os irmãos Wright


voaram 3 anos antes dele e, em 1906, quando o 14 Bis
decolou, já tinham um avião bem melhor. A grande
aeronave do brasileiro é outra: o Demoiselle, de 1908,
primeiro ultraleve da história.

Mito 10

"Os bandei-rantes eram desbravadores europeus"

Os bandeirantes eram filhos de índios com brancos,


andavam quase nus e seguiam a cultura tupi-guarani.

Mito 11

"A banana e o coco são nativos do Brasil"

Essas frutas, assim como a jaca, a manga e o abacate e


alguns animais, como os cães, não existiam no Brasil.
Chegaram aqui a bordo das caravelas europeias.

Mito 12

"A feijoada foi criada com restos da Casa-Grande"

Ao contrário do que muita gente acredita, a feijoada tem


origem europeia. Vem da tradição de misturar legumes com
carnes, como o cassoulet, francês, feito com carne de porco
e feijão branco.
Mito 13

"Os índios do Sudeste foram praticamente extintos "

Enquanto milhares de índios eram dizimados, outros


decidiram deixar as aldeias e ir para as cidades,
assimilando-se à população. Hoje, na média, 8% do
genoma dos brasileiros tem origem indígena.

Mito 14

"Os índios não foram escravizados"

Principalmente durante os séculos 16 e 17, milhares de


índios de todo o Brasil e do Paraguai foram levados a São
Paulo como escravos. Como outras regiões também
precisavam de trabalhadores, começaram a trazer escravos
da África.

Mito 15

"Os quilombos lutavam contra a escravidão"

As comunidades lutavam pela liberdade de seu grupo. Mas


é provavel que os membros poderosos tivessem escravos
próprios.

Mito 16

"A Inglaterra foi contra a escravidão para criar um mercado


consumidor"

A luta contra a escravidão na Inglaterra partiu de um


movimento religioso e popular. Não passava pela cabeça
dos homens de negócio ingleses acabar com a escravidão
nas colônias britânicas na América.
Mito 17

"A maioria das fazendas tinha dezenas de escravos"

Os engenhos com muitos escravos eram raridade. No


século 18, a maioria estava, em média, em plantéis
pequenos, geralmente de 4 ou 5 pessoas.

Mito 18

"Os africanos viviam em tribos selvagens"

Enriquecidos com a venda de algodão, ouro e escravos,


alguns reinos africanos ficaram poderosos. Havia por lá
exércitos e cidades grandes.

Mito 19

"O samba é um ritmo puramente brasileiro"

O ritmo tem influências que não são do Brasil nem da


África. Donga, o músico que gravou o primeiro samba, em
1917, montou bandas de jazz. Sinhô, o "rei do samba" nos
anos 30, usava melodias europeias em suas canções.

Uma história destruidora

A história de qualquer país nasceu no berço do patriotismo.


Na tentativa de construir um passado comum entre os
habitantes e deixá-los orgulhosos do lugar onde viviam,
surgiram relatos de grandes artistas e heróis, tradições
milenares, mitos da fundação do país e datas nacionais. No
Brasil, esse tipo de leitura da história surgiu principalmente
com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), de
1838. O órgão teve uma importância gigantesca para o
país. O próprio imperador dom Pedro 2º participava de suas
reuniões, de onde saíram os primeiros grandes relatos da
história brasileira, caso do Como Se Deve Escrever a
História do Brasil, do naturalista Carl von Martius, de 1840,
e História Geral do Brasil, escrito por Francisco Varnhagen
em 1854. Por trás dessas obras, havia sempre uma moral
edificante e uma tentativa de valorizar a pátria.

Esse modo de ver a história cria um vício: tudo passa a ser


visto de forma parcial. Se alguém do seu país consegue
mesmo um grande feito, tende a ganhar uma aura de
herói. E ai de quem questionar seus feitos. A aura em torno
de Santos Dumont no Brasil é um dos maiores exemplos
disso. Aqui ele é o pai da aviação. E ponto final. No resto do
mundo, engenheiros e historiadores consideram os irmãos
americanos Orville e Wilbur Wright mais importantes para o
pioneirismo das máquinas voadoras. E é fato. Não se trata
apenas de esforço dos EUA em vender seus heróis. Ao
contrário do que muita gente acredita no Brasil, os irmãos
americanos voaram na presença de testemunhas antes de
Santos Dumont apresentar o 14 Bis ao mundo. No dia 5 de
outubro de 1905, fizeram um único voo de 39 minutos,
percorrendo 38,9 quilômetros. Já o 14 Bis, em novembro
de 1906, voou 220 metros de distância a uma altura
máxima de 6 metros. E foi abandonado 5 meses depois,
quando sofreu uma queda lateral e teve uma das asas
despedaçadas. Se as últimas linhas despertaram em você
alguma emoção mais quente, tenha calma. Ao contrário da
história do século 19, a atual não se preocupa em criar
ícones de heroísmo nacional e descrever grandes feitos. Na
verdade, uma parte dos intelectuais de hoje se dedica a
investigar como grandes lendas da história ganharam
forma - e esse trabalho tende a destruir mitos consagrados.
Um exemplo lapidar dessa tendência é o livro Aleijadinho e
o Aeroplano, publicado pela historiadora Guiomar de
Grammont, da Universidade Federal de Ouro Preto, em
2008. A obra mostra como a imagem do escultor mineiro
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, não veio de
documentos históricos, mas da cabeça de um escritor.

A primeira biografia de Aleijadinho foi escrita pelo jurista e


deputado mineiro Rodrigo Ferreira Bretas em 1858. Mesmo
sem fontes e documentos para provar o que dizia, Bretas
descreveu seu personagem com detalhes horripilantes. A
partir dos 47 anos, o escultor teria sofrido de uma doença
desconhecida, que o fizera perder os dedos, os dentes e
curvar o corpo. Para poupar os passantes de topar com sua
feiúra, o homem entocava-se em igrejas, separado do
mundo com cortinas improvisadas. Para a historiadora, o
mais provável é que a fonte de inspiração da biografia de
Bretas eram personagens literários populares no século 19,
como Quasímodo, o corcunda de Notre Dame do livro do
escritor francês Victor Hugo. Os dois são
impressionantemente parecidos. Como Aleijadinho,
Quasímodo era um belo-horrível: apesar de ter uma
aparência desfigurada, era capaz de boas ações. A
descrição de Victor Hugo caberia muito bem a Aleijadinho:
"A careta era o próprio rosto, ou melhor, a pessoa toda era
uma horrível careta; entre os dois ombros, uma corcunda
enorme da qual o contragolpe se fazia sentir na parte
frontal de seu corpo; um sistema de coxas e de pernas tão
estranhamente tortas que se tocavam apenas por meio dos
joelhos". O personagem de Bretas era tão fascinante que
pegou. O biógrafo ganhou prêmios de dom Pedro 2º e virou
sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro.
No começo do século 20, os modernistas viram em
Aleijadinho a expressão da cultura mestiça brasileira, já
que o escultor era filho de um português com uma escrava.
O problema é que isso é uma das poucas coisas que se
sabe mesmo sobre Antônio Francisco Lisboa. Não só a
biografia escrita sem base em documentos e décadas
depois de sua morte não ajuda como também há outro
empecilho: não dá para saber quais obras realmente são
dele. Não havia o costume de assinar esculturas naquela
época. Mas a lenda em torno de seu nome ficou tão forte
que Aleijadinho virou uma grife. E o número de obras
atribuídas a ele explodiu. Na década de 1960, eram 160
esculturas; hoje são mais de 400. Pesquisadores
consideram isso um exagero. Mas, ao que parece, a
verdade não importa tanto. A aura vale mais. Só que a
nova historiografia pode acabar com isso.

Uma história de baixo para cima

Por 3 séculos, os homens mais poderosos na vila que deu


origem a Niterói, no Rio de Janeiro, eram os Souzas. Em
1644, Portugal concedeu a um rapaz chamado Brás de
Souza o cargo de capitão-mor daquela aldeia. A justificativa
era que se tratava de um "descendente dos Souzas, que
sempre exercitaram o dito cargo". O reino deu um
argumento parecido 150 anos depois, quando outro Souza,
Manoel, ganhou o cargo de capitão-mor. Segundo o órgão
do reino português, o homem devia receber o posto porque
tinha uma "ascendência nobre". O curioso é que aqueles
senhores bem-nascidos não eram descendentes de nenhum
português com sangue azul. O primeiro Souza daquela
região se chamava Arariboia. Era o líder da tribo dos
temiminós que, no século 16, se aliaram aos portugueses
para expulsar os franceses e os índios tupinambás do Rio
de Janeiro. Depois da vitória, os índios ganharam um nome
português e se instalaram por ali. Menos de 100 anos
depois, seus descendentes já não se viam como índios:
eram os Souzas.

Até pouco tempo atrás, a história do Brasil admitia só dois


personagens indígenas: ou a vítima passiva ou o selvagem
rebelde. Mas uma nova figura surgiu: o índio colonial,
aquele que se mudou para as cidades e adotou um nome
português. Isso aconteceu com os descendentes de
Arariboia e com índios de todo o Brasil. Em Minas Gerais,
despachos do governador mineiro mostram que muitos
índios coropós, gavelhos e croás, que há até pouco tempo
eram considerados extintos, se mudaram para as cidades
para tentar lucrar com a corrida do ouro do século 18. Em
São Paulo, censos de 1798 a 1803 mostram centenas de
índios com endereço, nome português e profissão - havia
agricultores, carpinteiros, músicos...

Outra paisagem que está mudando é a que retrata os


bandeirantes, os sertanistas que exploravam o interior do
Brasil em busca de ouro e índios que levavam a São Paulo
como escravos. Nos quadros clássicos, eles aparecem
fortes, bem-vestidos, submetendo os nativos à sua
vontade. Imagens assim surgiram no século 19, 2 ou 3
séculos depois de os bandeirantes explorarem as florestas
brasileiras. Escritores paulistas, na tentativa de criar um
passado heróico para São Paulo, reverenciaram os
bandeirantes e os descreveram à sua imagem e
semelhança, sem influência indígena. "Era uma paisagem
imaginada, já que não existem imagens deles anteriores a
1810", diz o escritor Jorge Caldeira. Hoje, acredita-se que a
diferença entre índios e bandeirantes fosse bem menor.

Se os bandeirantes tinham alguma roupa, ela se desfazia


depois de poucos meses no meio do mato. Por isso,
andavam provavelmente nus e descalços. Filhos de
portugueses com mulheres nativas, eram mestiços. Muitos
cresceram nas aldeias convivendo com tios, primos e
irmãos índios. A maioria tinha várias mulheres, dando de
ombros à vigilância dos jesuítas, que proibiam a poligamia.
"Para a cultura tupi-guarani, um aliado tinha que ser parte
da família. Era uma exigência dos líderes indígenas que os
europeus tivessem mulheres índias. Isso favoreceu o
surgimento de uma população profundamente
miscigenada", afirma Caldeira. Um bom exemplo de
bandeirante-índio é Domingos Jorge Velho, que destruiu o
Quilombo de Palmares em 1695. Filho de uma índia e de
um português, ele cresceu entre aldeias. Ao chegar a
Pernambuco para lutar contra Zumbi, teve problemas para
se comunicar com as autoridades pernambucanas: ele não
falava português, só tupi-guarani.

Essas descobertas são resultado de um novo jeito de ler a


história indígena. Em vez de se concentrar nos relatos dos
brancos, os pesquisadores passaram a olhar a história de
baixo para cima, a partir de como os mais fracos (no caso,
os índios) agiam e pensavam. Quando adotaram essa nova
abordagem, os historiadores tomaram um susto.
Perceberam que os índios não foram só vítimas. Também
souberam se adaptar aos invasores e, principalmente,
protagonizaram episódios fundamentais na história do
Brasil. Algumas tribos tinham poder suficiente para
negociar com os brancos, traçar estratégias e fazer sua
vontade prevalecer. Isso também vale para as bandeiras e
as guerras indígenas. "Certos conflitos europeus no Brasil
também eram guerras de índios contra índios", diz o
professor Antonio Carlos Jucá, da UFRJ. Em 1565, por
exemplo, o padre José de Anchieta estranhou que os
tupinambás de repente tentaram ficar amigos dos colonos
portugueses. Para o padre, o motivo da aproximação era
estratégico, pois aqueles índios tinham um "desejo grande
de guerrear com seus inimigos tupis, que se levantaram
contra nós".

Uma história com pessoas

Conheça 3 mulheres da história do Brasil: Joanna Baptista,


Caetana e Bárbara Gomes de Abreu e Lima.

- Joanna Baptista foi uma mulher livre que, em 1780, em


Belém do Pará, decidiu se vender como escrava. Cobrou,
por si própria, 40 mil-réis em dinheiro e outros 40 mil em
jóias e roupas. A venda foi registrada em escritura por um
tabelião, na presença do comprador e de duas
testemunhas. O documento conta que Joanna, doente,
decidiu se tornar escrava porque "se achava sem pai nem
mãe que dela pudessem tratar, e nem tinha meios para
viver em liberdade, e para poder viver em sossego,
empregando-se no serviço de Deus e de um senhor que
dela tivesse cuidado e em suas moléstias a tratasse".

- Em 1835, Caetana, escrava de uma fazenda de café de


Rio Claro, em São Paulo, foi obrigada a casar com o
escravo Custódio. No começo ela aceitou. Depois, bateu o
pé e se recusou a dormir com o marido. Pediu ao seu dono,
o capitão Tolosa, para anular o casório. O senhor da
escrava topou. Contratou um advogado, que montou uma
petição para a Justiça eclesiástica. Contrariando o
machismo e a falta de direitos dos escravos daquela época,
Caetana conseguiu anular seu casamento.

- Uma das pessoas mais ricas da vila mineira de Sabará no


século 18 foi a ex-escrava Bárbara Gomes de Abreu e Lima.
Dona de um casarão em frente à Igreja Matriz, ela tinha 7
escravos, revendia ouro e controlava negócios em diversas
cidades de Minas e da Bahia. A herança incluía dezenas de
saias, vestidos, joias e artefatos de metais preciosos.

Essas 3 mulheres dificilmente se encaixam em alguma


lógica ou em teorias tradicionais da história do Brasil. Como
pode uma pessoa livre querer virar vítima de um sistema
cruel? Por que uma ex-escrava, depois de se libertar da
escravidão, se tornaria dona de escravos? Casos como os
delas, descobertos na última década por historiadores
brasileiros e americanos, são exemplos de mais uma
diferença da nova história do Brasil: tentar contar uma
história com pessoas.

A geração anterior, que inspirou nossos livros didáticos,


consideraria essas mulheres exceções. O método
predominante lá atrás era montar teorias gerais, grandes
esquemas para explicar as origens da sociedade brasileira.
Nessa leitura do passado, sociológica, o que mais
importava eram as dinâmicas das classes sociais e as
relações econômicas entre os países. Indivíduos que não
agiam conforme uma lógica de classes ficavam de fora dos
livros.
Aos escravos e ex-escravos, só havia duas possibilidades
de comportamento: ou eles eram submissos, vítimas
eternamente passivas do sistema escravista, ou rebeldes
que morriam lutando contra a escravidão. Nos últimos 20
anos, cartas comerciais, registros de cartório, testamentos
e arquivos judiciais revelaram personagens mais complexos
do que as teorias sociológicas mostravam. "Sabemos hoje
que não havia apenas uma forma de responder à
escravidão. Como pessoas inteligentes, cada escravo
traçava suas estratégias", diz o historiador Antonio Carlos
Jucá de Sampaio, da UFRJ. Claro que eram estratégias
limitadas a um contexto de total falta de direitos. Mas ainda
assim cada um tinha sua maneira de exercer o pouco que
tinha de livre-arbítrio de modo a obter uma vida menos
ruim. "Isso explica por que, enquanto alguns escravos
fugiam para os quilombos, outros ganhavam armas para
cuidar das fazendas."

Também veio à tona uma influência bem maior da África na


escravidão brasileira. Capturando e vendendo escravos
para os europeus, alguns reinos africanos ficaram
riquíssimos. Um exemplo é o reino do Daomé, atual Benin.
No século 18, havia por lá estradas, pontes vigiadas por
guardas e cidades com 28 mil pessoas. As relações
comerciais eram tão intensas que, em 1795, dois
embaixadores do Daomé fizeram uma longa viagem
diplomática à Bahia e a Portugal para negociar o monopólio
da venda de escravos.

A América também funcionava como um abrigo de nobres


africanos que perdiam disputas pelo poder. Foi assim que
um príncipe africano chamado Fruku chegou ao Brasil.
Mandado para cá como escravo, logo conseguiu comprar
sua alforria. Mesmo exilado no Brasil, permaneceu atento à
política do outro lado do Atlântico. Vinte anos depois,
quando a situação política do Daomé melhorou para o seu
lado, ele voltou à África para tentar reaver seu trono, dessa
vez com o nome de "dom Jerônimo, o Brasileiro".

Se você pudesse entrar num De Lorean do De Volta para o


Futuro e viajar para 2 ou 3 séculos atrás, poderia, sim,
topar com a imagem que os professores descrevem na
escola, aquela do engenho de cana-de-acúcar com
centenas de escravos. Mas também veria cenas diferentes.
"Diversos estudos novos mostram que a maioria dos
senhores tinha poucos escravos. Eram grupos pequenos",
diz Renato Marcondes, professor de história econômica da
USP. Você ficaria surpreso ao perceber que alguns desses
senhores eram negros. Sabe-se hoje que, em muitas vilas e
cidades brasileiras, ex-escravos eram uma parte
considerável dos donos de escravos. Em Campos dos
Goytacazes, no Rio de Janeiro, um terço dos donos de
escravos era de negros. Em Santiago do Iguape, 46,5%.
Mais: "Como o número de escravos era menor que o
necessário, podemos supor que o dono da fazenda e seus
filhos trabalhavam na roça ao lado dos escravos", diz Bert
Barickman, historiador da Universidade do Arizona e autor
do livro Um Contraponto Baiano.

Nada disso suaviza o fato de que 4 milhões de africanos


foram trazidos à força, ficando entregues aos castigos dos
seus senhores. Mas uma história contada do ponto de vista
das pessoas, não das ideologias, até deixa os absurdos
mais claros: Isabel, uma escrava da Bahia, foi jogada viva,
e grávida, numa fornalha porque contou para a mulher de
seu dono que ele a traía, por exemplo. Crimes assim são
uma vergonha eterna. Mas a criação de um passado fictício
não irá vingá-los.

*Autor do livro Guia Politicamente Incorreto da História do


Brasil (editora Leya, 2009)

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