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Revista Aproximação
(Revista eletrônica dos estudantes de graduação em Filosofia da UFRJ)
Volume 6 – Edição 2013/02
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
Anna Figueiredo, Carmel Ramos, Edson Bezerra, Eduardo Lopes, Felipe Ayres de
Andrade, Guilherme Santos, Jean Ilg, Pedro Rhavel N. Teixeira.
Conselho Editorial
Carolina de Melo Bomfim Araújo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha,
Fernando José de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco
Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Maria Clara Dias, Mário Antônio de
Lacerda Guerreiro, Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte
de Andrade, Rafael Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade,
Ulysses Pinheiro, Wilson John Pessoa Mendonça.
Contato: revistaaproximacao@gmail.com
Índice
Editorial......................................................................................................................................... 3
Dissecando “Contra Eratóstenes” de Lísias à luz do modelo de Córax e do Livro I da República
de Platão......................................................................................................................................... 5
As sensações segundo a teoria das ideias nas Meditações Metafísicas de Descartes................... 17
Foucault: do poder centralizado ao poder metafísico.................................................................... 34
A relação entre a tipologia do forte e a moralidade do costume em Nietzsche............................ 48
A verdade enquanto alétheia e sua dinâmica entre Heidegger e Lacan........................................ 56
Foucault: das práticas do suplício ao surgimento da prisão...........................................................62
Sobre a obra de arte: algumas considerações a partir de Hannah Arendt.......................................76
Nietzsche e a retomada do projeto crítico kantiano: uma leitura deleuzeana.................................88
O problema dos qualia na filosofia da mente..............................................................................103
Indiscernibilidade quântica - um problema para o nominalismo.................................................122
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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6
EDITORIAL
Longe de nós tentar prever o futuro e atentar contra o bom Aristóteles, mas o
espírito do fim de ano nos contagia e nos impele a fazer alguns planos para 2014 que nos
assoma logo em frente. Não só abriremos uma nova chamada para trabalhos em meados
do próximo semestre – a fim de manter nosso caráter de bi-anualidade – como também já
ensaiamos os primeiros movimentos do próximo evento de graduação da UFRJ – o qual,
ao que tudo indica, também terá o seu exemplar próprio – a tempo de abrir o período
letivo numa nota vitoriosa.
Por fim, algumas rápidas palavras sobre os trabalhos que compõem esta edição.
Gustavo Luntz recria o contexto das disputas jurídicas e literárias da Antiguidade a partir
da análise de um reputado discurso de Lísias, notório orador de então – o que, no entanto,
não compromete o cunho filosófico de sua empreitada, como bem garante o seu
embasamento em nomes como o de Platão e Aristóteles. Já na Modernidade, contamos
com Juliana Martins, que toma para si o difícil tema das ideias materialmente falsas nas
Meditações de Descartes, mas não sem propriamente contextualizá-lo a contento para o
leitor incauto. Em seguida, Evandro da Mata e Edimar Brigido, num cotejo arrojado,
disporão de dois autores insuspeitos: Hobbes e Foucault, a fim de analisar o conceito de
poder deste último com maior minúcia. Roberta Saavedra, por outro lado, se foca apenas
em um pensador, Nietzsche, atentando para as dificuldades internas de sua obra, por via
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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6
do exame comparado de dois sistemas morais que o próprio Nietzsche não parece
tematizar explicitamente, a saber, a relação entre a moralidade dos costumes, em Aurora,
e a moralidade forte na Genealogia da Moral. Agora inseridos no panorama da
contemporaneidade, Bruno Abilio e Eliene Gomes explorarão os diálogos profícuos que
a filosofia entreteu com a psicanálise no século XX, se demorando em Heidegger e Lacan
para tanto. Kairon Araujo agracia mais uma vez nossas páginas, mas se detem, por ora,
na filosofia de Foucault – que dá as caras mais uma vez nessa edição –, a fim de entender
a sua posição sutil sobre os mecanismos de punição e as instituições hodiernas. Rhavel
Teixeira argumenta por uma apreciação relevante da arte na filosofia de Hannah Arendt,
na contracorrente de interpretações mais imediatas sobre o estatuto da estética em sua
obra. Nietzsche retorna com Leornardo Oliveira, que se mune dos elegantes comentários
de Deleuze para fazer um Nietzsche "crítico" no sentido kantiano da palavra – mas que
só com Nietzsche ganharia sua dimensão plena. André Sant'anna, outro articulista
recorrente, situa-nos nas veredas atuais das discussões entabuladas pela filosofia da
mente, tomando, para tanto, o já clássico problema dos qualia. Por fim, Pedro Junqueira
se voltará para física quântica com pretensões filosóficas. A empreitada ambiciosa
consiste numa refutação qualificada de uma forma de nominalismo, num dos movimentos
mais autorais que nossa publicação, por enquanto, comporta. Boa leitura
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1- Objetivos
O objetivo do presente trabalho é a análise do texto retórico referido no título, do
ponto de vista de sua estrutura, inserido que está em modelo mais primitivo dos discursos
judiciais, com referências pontuais e inevitáveis ao Livro I da “República” de Platão. Para
tanto, lança-se mão de alguns textos clássicos imprescindíveis (a própria “República” e
algo da “Retórica” de Aristóteles, ainda que como velada referência) além da valiosa
bibliografia secundária sugerida: artigo de Jacob Howland e capítulo escrito por López
Eire na “Historia de la Literatura Griega”.
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Lísias2, por sua vez, é considerado o maior dos logógrafos3. Meteco siracusano
em Atenas, teria estudado Retórica em Turi com Tísias, discípulo de Córax (a quem
tradicionalmente atribui-se a invenção da técnica). Embora tenha obtido a devolução de
boa parte da fortuna familiar arrebatada pelos tiranos e pelo próprio estado ateniense, teve
na logografia valiosa fonte de renda.
“Contra Eratóstenes” foi o único discurso proferido pelo próprio Lísias no breve
período após a restauração democrática em que decreto de Trasíbulo conferiu-lhe a
cidadania. Ao que se sabe, teria sido esse o único discurso proferido por ele mesmo diante
dos atenienses. Com a invalidação do decreto, ele volta à condição de estrangeiro e tem
na escrita dos discursos sua atividade política possível, indireta e, lembremos, rentável.
Essa busca de ganho é retratada e bastante explorada por Platão quando se refere a Lísias.
1
A Tirania dos Trinta foi um governo oligárquico de Atenas composto por trinta magistrados chamados
tiranos, que sucedeu a democracia ateniense ao final da Guerra do Peloponeso, conflito armado entre Atenas
e Esparta vencido por esta última e que se travou entre 431 e 404 a.C.. O regime durou menos de um ano,
em 404 a.C.. Mais do que as vidas perdidas na guerra, Atenas viu centenas de seus cidadãos condenados à
morte pelo novo regime. Milhares exilaram-se à época, esvaziando a outrora pujante cidade grega.
2
De acordo com Dionisio de Halicarnassos e biografia atribuída a Plutarco, Lísias nasceu em 459 AC de
acordo com a tradição de que teria alcançado e até ultrapassado a idade de 80 anos. A data é obtida
flagrantemente pela contagem decrescente da fundação de Turi (444 AC), ante a tradição de que Lísias teria
lá chegado com a idade de 15 anos. Críticos modernos geralmente fixam tal data em 445 AC e determinam
a ida a Turi por volta de 430 AC. Sua obra é bastante extensa e diversos discursos nos foram deixados.
Debra Nails, The People of Plato (Hackett, 2002), p. 190, e S.C. Todd, "Lysias," in Oxford Classical
Dictionary 3rd ed. (1996).
3
Logógrafos eram pessoas que escreviam os discursos a serem lidos perante a assembleia pelos clientes.
As acusações e defesas não podiam ser empreendidas por terceiros, mas pela própria parte em litigio.
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negativa de justiça (mais do que indicar o que é a justiça, ficamos diante de várias coisas
que ela não pode ser). Como bem destaca Howland 4, é interessante que na obra platônica
a voz de Lísias só assim se possa ouvir. Foi mesmo indiretamente que ele se fez ouvir
durante sua vida.
Platão escreve
Data a República
Tirania Restauração
dramática da
dos 30 democrática Lísias
Retórica de República Derrota de Retórica de
profere"Contra
Córax Atenas Aristóteles
Eratóstenes"
Sem fazer grandes digressões, López Eire5 assinala que a oratória parece a
evolução natural daquilo que liga ao pensamento mágico, a uma mântica da palavra que
seria capaz de atingir diretamente o alvo da referência e modificar a realidade em
obediência aos desígnios do operador.
4
“Plato’s Reply do Lysias: Republic I and II and Against Eratosthenes”, Jacob Howland, in The American
Journal of Philology, Vol. 125, No. 2 (Summer, 2004), pp. 179-208, Published by: The Johns Hopkins
University Press. Stable URL: ttp://www.jstor.org/stable/1562196.
5
“La oratória”, López Eire; Capítulo XVII em Historia de la Literatura Griega”, coordenado por Juan
Antonio López Férez – Madrid, Ediciones Catedra, 1988.
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“levadas pelo vento”, para que sejam impedidas de impressionar as referências reais. No
pensamento primitivo, não são etiquetas, mas as própria coisas referidas que estão em
jogo no discurso.
Palavras embelezadas poderiam impressionar a vontade dos deuses (era esse, entre
outros, o poder/função dos poetas), mas logo percebeu-se, eram capazes também de
produzir “pathos” na assistência e de algo mais: o convencimento dos ouvintes.
Interessante perceber como a boa condução do discurso é apreciada e necessária até
mesmo em regimes tirânicos, disso sendo exemplo diversas passagens da “Ilíada”. Longe
de se fechar em copas, o rei tem o costume de ouvir seus nobres conselheiros, guerreiros
tão tenazes e belicosos como igualmente eloquentes.
Segundo seu modelo, um discurso deveria ser formado de quatro partes (proêmio,
narração, testemunhas, epílogo) e, como dito, ser capaz de convencer. Manuais e volumes
de discursos hipotéticos surgidos após (provavelmente os paradigmas de Lísias)
certamente seguiram esse modelo. A propósito, o ensino de retórica dava-se também por
manuais que estabeleciam as regras a serem seguidas e por coleções de exemplos, alguns
baseados em casos reais e outros aparentemente em meras hipóteses.
6
López Eire refere anedota atribuída a Córax segundo teria ele perguntado seus alunos como deveriam agir
dois homens em litígio, quem deveria ser verdadeiro perante o tribunal, sendo a vítima homem forte e
covarde e o agressor homem franzino e destemido. Após ouvir as respostas, teria advertido que nenhum
dos dois deveria ser fiel aos fatos. Para convencer os juízes, o homem forte deveria narrar que o agressor
estava acompanhado de outras pessoas que lhe aplicaram uma surra, enquanto o homem franzino mas
agressivo deveria sustentar sua fragilidade e incapacidade de bater em oponente mais forte. Importante seria
convencer… López Eire, op. cit., pg. 744.
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É forçoso lembrar do processo contra Sócrates, como podem ter pesado para sua
condenação suas relações pessoais e conhecida influência sobre os mais destacados dos
tiranos (Crítias e Alcebíades). Naquela democracia restaurada, havia espécie de anistia
negociada. Esses processos se valiam de pequenas brechas na cláusula de perdão
7
“O epílogo compõem-se de quatro partes. A primeira consiste em predispor o auditório a nosso favor e
contra nosso opositor; a segunda parte cumpre a função de amplificar ou atenuar o que foi dito; à terceira
cabe a função de estimular as paixões do auditório; finalmente, a quarta consiste em fazer uma
recapitulação.” Aristóteles, “Retórica”, 1419b, tradução de Edson Bini – São Paulo, EDIPRO, 2011, pg.
288.
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estabelecida quando do armistício que sucedeu a vitória dos democráticos sobre o Regime
dos 30.
Difícil não me parece, senhores juízes começar este libelo; sim, terminá-lo.
São em tão grande número e de tamanho vulto os crimes dos Trinta, que nem
mentido se poderiam assacar mais terríveis que os reais, nem, querendo dizer
a verdade, referir todos; por força, ou havia de se cansar o acusador, ou de se
esgotar o tempo. Vai-nos acontecer o contrário do que ocorria até hoje. Antes,
cumpria aos acusadores demonstrar a razão do ódio votado aos réus; hoje, é
mister indagar dos réus a razão do ódio à pátria, que os acoroçoa a cometer tais
crimes contra ela. Não digo isso por me faltarem pessoalmente razões de ódio
e desgraças; todos nós temos de sobra motivos de ordem particular e de ordem
pública para exacerbação. Quanto a mim, senhores juízes, jamais advoguei
uma causa, própria ou alheia; se estou acusando esse indivíduo, fui
constrangido a isso pelas circunstâncias; por isso, muitas vezes me vejo
assaltado de profundo desalento, temeroso de, por inexperiência, apresentar,
em meu nome e no de meu irmão, uma acusação não proporcionada ao crime
e ineficiente. Tentarei, não obstante, pôr-vos ao corrente de tudo desde o início,
com a possível concisão.
A partir daí, Lísias inicia a narrativa de como sua família veio a se mudar para
Atenas e como foi vítima da perseguição dos Trinta (passos 4 e seguintes).
8
“Mas uma coisa vos peço Atenienses, e insisto neste ponto: se me ouvirdes defender-me com as mesmas
palavras que costumo usar, quer na praça pública, junto aos balcões dos mercadores, onde muitos de vós
me tendes escutado, quer noutros lugares, não vos admireis nem protesteis por causa disto. É que minha
situação é a seguinte: pela primeira vez compareço perante um tribunal, depois de setenta anos de idade.
Encontro-me, por isso, alheio de todo o gênero de linguagem aqui empregado...” “Apologia”, Platão, 17c,
17d. “Apologia de Sócrates. Críton.”, tradução de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa, Edições 70, 2007.
9
“Contra Eratóstenes” em “Eloquência Grega e Latina”; tradução, introdução e notas liminares de Jaime
Bruna – São Paulo, Editora Cultrix, 1968, pg. 23. A edição compulsada para a elaboração do trabalho se
ressente da falta de referencias aos passos, orações do grego original. Para não tornar cansativa a leitura,
deixar-se-á de copia-lo quando for necessário referir outras partes relevantes do discurso, inserindo
remissões às marcações encontradas na cópia em espanhol encontrada em
http://pt.scribd.com/doc/89096162/Lisias-Contra-Eratostenes-Alma-Mater. O proêmio corresponde aos
passos 1 a 3.
10
Howland, op. cit..
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Mais que isso, o orador relata que casamentos foram impedidos por ordem dos
tiranos; que, fingindo acreditar, juravam pelos deuses garantir liberdade a quem os
subornassem e ainda assim descumpriam sua palavra (é apenas com sua habilidade e sorte
que Lísias escapa da morte certa, apesar de haver pago mais do que o combinado para
livrar-se da execução). Tais fatos rapidamente disparados constituem a narrativa.
De interesse que Lísias interrogue o réu, que, em sua defesa, afirma que cometeu
esses atos por temor de morte nas mãos dos demais tiranos. Após desmascarar o acusado
e afirmar que os mortos, que o morto Polemarco clama por vingança, o acusador diz que
não precisaria prosseguir por já haver demonstrado a necessidade da condenação de
Eratóstenes à morte, aí encerrando-se a narrativa (passos 37/42).
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O discurso é mesmo judiciário, pouco jurídico, por se amoldar mais à uma práxis
judicial, com a formalidade da administração da justiça, pouco ou nada se preocupando
com a indicação das leis violadas. Ressoa óbvio que o julgamento é político. Não há aqui
uma causa cível onde se discute entrega de mercadorias, termos concretos de um contrato
entre partes, mas a violação indistinta de uma série de regras, costumes que não precisam
ser escritos para impor-se como cogentes.
Não quero, porém falar do que aconteceria, se nem posso referir quanto
fizeram os Trinta; não bastaria para isso um ou dois acusadores; é tarefa para
muitos. Contudo, ponto todo meu ardor em lastimar os templos e objetos de
culto, por eles vendidos ou maculados por sua presença; a cidade, por eles
apequenada; os arsenais, por eles destruídos, e os mortos; como a estes não
pudestes amparar em vida, defendei a sua causa na morte. Eles, imagino, estão
ouvindo a nossa voz e vos conhecerão pelo voto que derdes; por quantos de
vós absolverdes os Trinta, eles considerarão condenados à morte e, por quantos
punirdes esses indivíduos, eles se considerarão vingados.
Concluo aqui meu libelo. Vós ouvistes, vistes, sofrestes; ele está em vossas
mãos; julgai-o.12
11
Os detalhes da arte do discurso e sua divisão em quatro partes teriam sido reunidas em uma obra por seu
discípulo Tísias. O proemio é destinada a conseguir a atenção dos membros do júri e captar sua
benevolência. A narração o momento adequado a expor fatos com claridade e concisão. A demonstração o
momento de trazer as provas e fazer considerações sobre os fatos expostos no momento precedente. E
finalmente o epílogo o momento em que se faria uma síntese da demanda, das provas produzidas e quando
se procura provocar a emoção dos julgadores. López Eire, op. cit., pg. 744.
12
“Contra Eratóstenes” em “Eloquência Grega e Latina”; tradução, introdução e notas liminares de Jaime
Bruna – São Paulo, Editora Cultrix, 1968, pg. 37. O trecho corresponde aos passos 99 e 100.
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Tudo está a indicar que Platão carregou mesmo nas tintas, a ponto de ser desleal
com a tragédia que se abateu sobre a família dos ricos estrangeiros que se radicaram em
Atenas. Talvez tenha passado ao largo da singeleza de uma “não-carta de amor”, vã
tentativa de ocultar o indisfarçável. Inveja da arte? Ciúmes do sucesso obtido pelos
retóricos? Em certa medida, parece que sim.
13
“Fala então, disse eu, já que és quem vai herdar nossa discussão... Quanto ao que disse Simonides sobre
a justiça, em que achas que ele está certo? – Em dizer que é justo devolver a cada um o que lhe é devido,
disse ele. Quando diz isso, parece-me, ele tem razão”. “República”, Platão, 331e. “A República”, tradução
de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins Fontes, 2006, pg. 9.
14
“República”, Platão, 331d. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo,
Martins Fontes, 2006, pg. 8.
15
Diz-se categoría do discurso judiciário de acusação. Apologia o discurso de defesa, como o proferido
por Sócrates por ocasião de seu julgamento em Atenas.
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boca do morto Polemarco o clamor da vingança, Platão faz dele o interlocutor harmonioso
com Sócrates (após certa discussão, é claro), no sentido de que a justiça não se compraz
com essa mesma vingança.
Ora, Platão faz isso manipulando habilmente a data dramática para antes da
perseguição a Polemarco e assim parece desmontar a verossimilhança da acusação, ao
passo que também coloca Lísias silente na mesma cena. O Livro I da “República” parece
dizer: Polemarco jamais clamaria por vingança, Lísias sabe disso, esteve lá e mente ou
muito pior: não compreendeu que a justiça não se faz com o retribuir mal com mais mal.
Por que não entendeu nada? Por força de sua equivocada trajetória em contraste
com o caminho filosófico tomado por Polemarco. Tornando-se logógrafo/retórico parece
ter desprezado a efetiva busca verdade para privilegiar a lucratividade de sua atividade.
Há mais e, aqui, voltamos a referir o diálogo “Fedro”. Lísias é aquele que não ama
(ou que diz que não ama; é aquele que se envergonha de amar) e por isso seria incapaz de
voltar-se para o mais alto 17. Se não ama é incapaz de alcançar o conhecimento, diria
Platão. Mais que isso, estabelece seu foco na vantagem que possa tirar de tudo o que faz,
inclusive nas relações amorosas. Platão parece querer retratá-lo no “Fedro” como um
prostituidor/prostituído que não merece crédito.
16
“Mas, com a justiça, os homens justos são capazes de tornar os outros injustos? Ou, falado de maneira
mais geral, com a virtude os bons são capazes de tornar maus os outros? – Mas é impossível! – Não é, creio,
tarefa do calor o tornar frio, mas o seu contrário. (...) – Ah! Não é tarefa do homem justo, Polemarco,
prejudicar nem o amigo nem a nenhum outro, mas o do seu contrário, o homem injusto. – Parece-me
Sócrates verdade o que dizes. – Ah, Se alguém afirma que é justo devolver a cada um o que lhe é devido, e
se para ele isso significa que aos inimigos, da parte do homem justo, o devido é causar-lhes prejuízo, mas
aos amigos prestar ajuda, não seria sábio quem o diz, pois sua afirmação não é verdadeira”. “República”,
Platão, 335d/335e. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins
Fontes, 2006, pg. 16.
17
“Sabes em que situação me encontro, como penso que já te falei nas vantagens para ambos de realizarmos
isso. Tenho que minhas pretensões não poderão frustrar-se , justamente por eu não pertencer ao número de
teus apaixonados...”. “Fedro”, Platão, 231A. “Fedro” tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Ed. UFPA,
2011.
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A retórica operada por Lísias teria o mesmo papel da culinária, só que dirigida à
alma. Seduz mas não beneficia. Lísias é alguém incapaz de proporcionar benefício à alma
dos ouvintes com sua arte. Apenas seduz, sem propiciar conhecimento, ao contrário do
filósofo.
8- Conclusões
“18 “República”, Platão, 332c. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo,
Martins Fontes, 2006, pg. 10.
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Bibliografia
“Retórica”, Aristóteles; tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini – São Paulo,
EDIPRO, 2011.
“Plato’s Reply do Lysias: Republic I and II and Against Eratosthenes”, Jacob Howland,
in The American Journal of Philology, Vol. 125, No. 2 (Summer, 2004), pp. 179-208,
Published by: The Johns Hopkins University Press. Stable URL:
ttp://www.jstor.org/stable/1562196.
“Contra Eratóstenes, El que fué de los Treinta, que pronunció el propio Lisias”, tradução
espanhola de autoria desconhecida, encontrada em
http://pt.scribd.com/doc/89096162/Lisias-Contra-Eratostenes-Alma-Mater, acesso em 25
de novembro de 2012.
“A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins
Fontes, 2006.
“Fedro”, Platão, tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Ed. UFPA, 2011.
Recebido: 02/2013
Aprovado: 06/2013
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Resumo O presente texto tem como tema as sensações, ou as ideias dos sentidos.
Procuraremos tratar aqui da maneira como o filósofo René Descartes problematiza e/ ou
se utiliza deste assunto nas Meditações Metafísicas, no sentido de esclarecer seus
diferentes aspectos e modos de tratamento ao longo dessa obra. Assim, analisaremos
algumas passagens das Meditações nas quais o filósofo trata dos sentidos. A ênfase será
sobre as Meditações Terceira e Sexta, onde ocorre respectivamente, a introdução do
conceito de ideia materialmente falsa e o tratamento das ideias dos sentidos como fonte
de certos tipos de conhecimentos.
Palavras-chave: Descartes. Ideias. Sentidos.
Abstract: The present paper has as its theme, sensations or ideas of sense. We work here
in the way the philosopher René Descartes discusses and / or uses this theme in his
Metaphysical Meditations, in order to clarify its different aspects and modes of treatment
throughout this book. Therefore, we will analyze some passages of the Meditations in
which the philosopher investigates the senses. Our emphasis will be on the Third and
Sixth Meditations, in which occurs respectively, the introducing of the concept of material
false ideas and the treatment of sense ideas as being a source of certain types of
knowledge.
Keyword: Descartes. Ideas. Senses.
Não seria de todo correto afirmar que a obra Meditações Metafísicas1 possui como
tema principal ou mesmo como objetivo principal, a problematização dos sentidos, ou, da
percepção sensorial. Contudo, é inegável que ao ler a obra, percebe-se que tal ponto se
faz presente em momentos importantes do texto. A Meditação Primeira, Segunda,
Terceira e Sexta são momentos nos quais podemos perceber o filósofo tratando do tema
dos sentidos. Neles, em diversas passagens é possível afirmar que nossas percepções
sensoriais estão sendo discutidas ou estão sendo utilizadas em argumentos para a
refutação ou para a ratificação de alguma tese.
1
DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1983. (Col. Os Pensadores).
Adotamos no texto a divisão por parágrafos e a consequente numeração dos mesmos estabelecida por Bento
Prado Junior nesta tradução para o português do texto cartesiano.
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2
Adotamos no texto os termos “sentido”, “sensações” e “ideias dos sentidos” como sinônimos.
3
Ibidem, pp. 85-86.
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Porém, ainda que eu possa pelo motivo exposto acima duvidar do meu
conhecimento das qualidades sensíveis de coisas particulares, eu não posso por esse
mesmo motivo duvidar do conhecimento fornecido pelos sentidos acerca da existência
destas. Embora eu possa ter percepções discrepantes acerca das qualidades dessas
qualidades, a percepção que tenho da existência da coisa que tem qualidades não varia.
Nesse sentido, ainda que minhas percepções das qualidades sensíveis sejam
inconsistentes e por isso, dubitáveis, minha percepção da existência das coisas
particulares é certa.
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pode não existir de fato, e assim como no sonho, posso ter simplesmente percepções de
coisas que não existem.
Deste modo, Descartes oferece razões que nos permitem questionar e duvidar dos
sentidos como fonte de conhecimento. Cabe enfatizar aqui que não se trata de uma dúvida
aleatória onde o pensador nega a existência da experiência empírica. Mas antes de uma
refutação relativa à legitimidade dos sentidos enquanto fonte de conhecimento. Trata-se
somente de negar uma função destes dentro de uma perspectiva cognitiva.
4
Ibidem, p. 99.
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pensamento, é o fato de que penso que sinto, penso que imagino, isto é, a consciência que
tenho de que sinto, que imagino, que amo, que quero, etc. Nas palavras de Descartes:
...conquanto as coisas que sinto e imagino não sejam talvez absolutamente
nada foram de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas
maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginações, somente na medida
em que são maneiras de pensar residem e se encontram certamente em mim.5
Desta forma, ainda que me ocorra sentir alguma coisa que possa não ter existência
empírica, não é possível duvidar deste ato de sentir, pois em última instância se trata tão
somente de “pensar que sinto” e isto se revela algo de cuja certeza não possuo, nem posso
possuir, a menor dúvida. Até aqui portanto, sentir, imaginar, querer, amar, pensar, etc., é
o mesmo que pensar que sente, pensar que imagina, pensar que quer, etc. Os sentidos aqui
são considerados enquanto modos de pensar e não em seu conteúdo, e por isso são
equivalentes a todos os outros. “Sentir”, “negar”, “querer”, “imaginar” são uma mesma
coisa na medida em que “penso que sinto”, “penso que nego”, “penso que quero” ou
“penso que imagino” referem-se e evidenciam uma mesma coisa: o meu pensamento
(cogito).
Prosseguindo, nessa mesma Meditação, após introduzir o que segundo ele seria o
sentido estrito do termo “ideia”, Descartes passa a outra problematização das ideias
relacionadas aos sentidos ao retomar algumas teses da tradição a respeito das ideias. Os
tipos de ideia por ele mencionados são: as que nascem comigo (inatas), as que vêm de
fora (adventícias), e as produzidas por mim mesmo (fictícias). Em suas palavras:
5
Idem.
6
Ibidem, p102.
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Os argumentos apresentados por ele são de dois tipos: primeiro problematiza a tese de
que as ideias têm origem nas coisas e segundo problematiza se origem garante
semelhança. Duas serão as explicações fornecidas por ele para verificar o porquê de se
acreditar que tais ideias têm origem nos objetos fora da mente (nas coisas): o simples
hábito, ou inclinação natural, que tenho de pensar deste modo e o fato dessas ideias
parecerem ser involuntárias, ou seja, parecerem não depender de mim.
A primeira dessas razões é que me parece que isso me é ensinado pela natureza;
e a segunda, que experimento em mim próprio que essas ideias não dependem,
de modo algum, de minha vontade; pois amiúde se apresentam a mim mau
grado meu.7
A seguir Descartes questiona a tese de que é legítimo crer que as ideias têm origem
nas próprias coisas pelo fato de parecerem ser produzidas independente de minha vontade.
Segundo ele, ainda que estas ideias pareçam não advir da minha vontade, isto não garante
que assim ocorra, pois é possível que eu tenha uma certa “faculdade oculta” que
produziria tais ideias sem que eu soubesse. Desta forma, embora eu pense que elas não
dependem de mim, elas de fato dependeriam de mim. Em suas palavras: “(...) talvez haja
em mim alguma faculdade ou poder próprio para produzir essas ideias sem auxílio de
quaisquer coisas exteriores, embora ela não me seja ainda conhecida (...)” 9.
Com esses dois argumentos o filósofo visa enfraquecer a tese de que as ideias
tenham origem nas coisas materiais. Para completar sua argumentação Descartes introduz
a hipótese de que mesmo se a origem dessas ideias for às coisas, os objetos empíricos,
isso não garantiria que elas lhe sejam necessariamente semelhantes. Para ilustrar esse
7
Ibidem, p.100.
8
Ibidem, p.102.
9
Idem.
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último argumento ele considera um exemplo: a ideia que possuímos de sol. Segundo ele,
possuímos em nós duas ideias diversas de sol, uma que teria origem nas coisas percebidas
pelos sentidos (que seria do tipo adventícia), que nos representa o sol como extremamente
pequeno e uma outra ideia que teria origem apenas nas razões da Astronomia, segundo a
qual o sol é grande, isto é, “maior do que a terra inteira”. Ora, argumenta Descartes, essas
duas ideias diversas não podem ser ambas semelhantes ao mesmo sol. Com essa
afirmação Descartes parece querer dizer que para que se possa defender a tese de que uma
dessas origens (as coisas ou a razão da Astronomia) é a verdadeira, é necessário um outro
argumento. Isto é, se posso ter duas ideias distintas de uma mesma coisa e se essas ideias
têm origens distintas, é necessário um novo argumento que garante que uma origem é a
que me fornece a ideia adequada e a outra não.
Mais adiante, Descartes afirma que as ideias, de maneira geral, são um tipo de ato
mental que pode ser considerado segundo dois aspectos: a realidade formal e a realidade
objetiva. O primeiro aspecto diz respeito ao ato que caracteriza qualquer ideia: o ato de
representar algo ao espírito. Por isso, segundo esse mesmo aspecto que é a realidade
formal das ideias, todas elas são iguais e verdadeiras, ou seja, todas representam algo. Já
o segundo aspecto, a realidade objetiva, equivale ao conteúdo da ideia, isto é, àquilo que
é apresentado ao espírito, à mente, por este ato mental. Desta maneira, de acordo com a
realidade objetiva, as ideias são diferentes umas das outras na medida em que exibem
conteúdos distintos.
10
Ibidem, p.101.
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Os exemplos que o filósofo utiliza para ilustrar este tipo de ideia são ideias
provenientes dos sentidos, a saber, as ideias de frio e de calor. : “(...) se é certo dizer que
o frio nada é senão privação do calor, a ideia que mo representa como algo de real e
positivo será sem despropósito chamada falsa” 13
. Se o frio é uma privação ou falta de
calor, ou se o calor é uma privação ou falta do frio, ou bem a ideia de calor, ou bem a
ideia de frio que, os representem na mente como sendo algo positivo ou real será chamada
de ideia materialmente falsa, pois estaria desta maneira representando o que nada é, como
sendo alguma coisa. Fornecendo material falso para a formulação de juízos a respeito
dessas ideias. A ideia falsa será deste modo aquela que representa coisas que
necessariamente não existem, isto é, que não podem existir.
11
Conforme esclarecemos na nota, na tradução brasileira as Meditações Metafísicas, cada Meditação tem
seus parágrafos numerados.
12
Ibidem, p.106.
13
Idem.
14
Idem.
15
Idem.
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Tais questões se tornam mais claras se nos lembrarmos do método utilizado pelo
filósofo para compor e escrever a obra aqui tratada: a ordem das razões. Este método se
diferencia da “ordem das matérias” ou “ordem dos tópicos” utilizada pelos medievais 17.
Estes quando escrevem suas obras tratam dos assuntos separadamente, esgotando-os em
si, sem necessariamente estarem ligados com os outros que se seguem ou antecedem.
Descartes rompe com esta tradição na medida em que nas Meditações Metafísicas
ao lançar mão da ordem das razões e, mais ainda, da ordem analítica das razões, opta pela
ordem da justificativa relativa tanto à introdução de questões quanto à tentativa de
explicações. Qualquer nova questão ou tese defendida surge por uma exigência racional
do próprio sistema apresentado. Isto significa, na prática, que não encontramos na
referida obra um tema isolado ou tratado separadamente de outros. Pelo contrário, o
surgimento dos assuntos (bem como das teses defendidas) é logicamente bem encadeado.
Cada tese afirmada e cada assunto tratado são sustentados ou resultam de conclusões
anteriormente inferidas. Mais ainda, na medida em que certas teses são necessárias para
a defesa de outras teses, a argumentação cartesiana nem sempre é linear. Um mesmo tema
16
Idem.
17
GUEROULT, M. Descartes Selon l'ordre des Raisons, Paris: Aubier-Montaigne, 1992.
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pode ser tratado várias vezes ao longo da obra, mas com argumentos diferentes. Como
ele explica a ordem por ele adotada:
A ordem consiste apenas em que as coisas propostas primeiro devem ser
conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas
de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem. ...E foi
o que me levou a não tratar na segunda [meditação] da distinção entre o espírito
e o corpo, mas apenas na sexta, e a omitir muitas coisas em todo esse tratado,
porque pressupunham a explicação de muitas outras.18
Este parece ser o que acontece no caso que estamos aqui examinando. Se
analisarmos os argumentos relacionados à falsidade material neste ponto da obra, e
constatamos que a maioria deles é hipotética, isto pode estar diretamente ligado aos
argumentos e a exposição que antecede a terceira meditação.
18
DESCARTES, R. Objeções e respostas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).
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físico sensível de fato existia e nem se conhecia sua essência, conhecimentos que, entre
outras teses, dependem da prova da existência de um Deus veraz só alcançada nas terceira
e quarta meditações. Por essa razão Descartes ali na terceira meditação tem que afirmar
que toda e qualquer afirmação e ideia relacionada aos sentidos é falsa, porque envolve
ideias ao menos até então consideradas obscuras e confusas com relação àquilo a que elas
correspondem, a saber, o mundo físico 19. Nesse sentido, as afirmações da terceira
meditação que expomos e julgamos ser de cunho hipotético caracterizadas pelo uso
constante da conjunção “se” tornam-se mais naturais.
Mas quando é que elas deixam de ser hipotéticas para serem categóricas? Quando
o filósofo poderá realizar uma exposição sobre o tema de modo não hipotético?
A resposta para tais questões nos parece ser a seguinte: somente quando o mundo
sensível tiver sua essência e existência conhecidas, as ideias relacionadas aos sentidos –
dentre elas as materialmente falsas – vão poder ser compreendidas. Seguindo a ordem das
razões a essência e existência do mundo externo, são demonstradas respectivamente na
Quinta e na Sexta Meditação. Exporemos a seguir esta última, dado que é onde as
sensações são problematizadas tratadas diretamente.
19
Inferimos tal explicação do texto do intérprete Richard Field. Ver, FIELD, Richard. Descartes on the
Material Falsity of Ideas. The Philosophical Review, v. 102, n.3 julho de 1993, pp 309-333. Neste texto, o
intérprete defende que por conta da ordem das razões a noção cartesiana de matéria (substancia extensa)
acaba mudando da Segunda para a Sexta Meditação.
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sorte que era necessário que fossem causadas em mim por quaisquer outras
coisas. Coisas das quais não tendo eu nenhum conhecimento senão o que me
forneciam estas mesmas ideias, nada poderia considerar exceto crer que tais
coisas eram semelhantes às ideias que elas causavam.20
Esta nos parece ser a tese da tradição tomista escolástica visada aqui por
Descartes. Como expomos no início do texto, é com esta tradição mais do que com a dos
filósofos ditos céticos que Descartes dialoga, e uma vez que tal tradição leva em
consideração os sentidos na produção de ideias é compreensível a menção e citação acima
de Descartes a este ponto. O objetivo do pensador moderno nas Meditações é rejeitar esta
tese de que toda ideia tem que necessariamente ter passado pelos sentidos. No decorrer
das Meditações, Descartes mostra justamente que pelo menos as ideias de da natureza e
da existência do pensamento, da natureza e existência de Deus existente e da essência do
mundo externo expressam conhecimentos que não passaram pelos sentidos.
Contudo, aqui na sexta meditação, os sentidos, através das ideias de sensação são
resgatados, desempenhando papel chave para dois tipos de conhecimento. Primeiramente,
as ideias dos sentidos aparecem como elemento fundamental no contexto da prova da
existência das coisas materiais. É somente a partir da constatação de que tenho sensações,
ou seja, de que possuo uma faculdade passiva que recebe ideias das coisas particulares
físicas, que se desencadeia o argumento da prova: “(...) Demais encontra-se em mim certa
faculdade passiva de sentir, isto é, de receber e conhecer tais ideias das coisas sensíveis” . 22
20
DESCARTES, R. Op. Cit. p.132.
21
Idem.
22
Ibidem pp.134-135.
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Conclui primeiro que não pode ser o próprio eu pensante, pois na medida em que se
entende como sujeito de consciência, se o fosse, naturalmente poderia saber.
Contudo, imediatamente após tal prova Descartes reitera que o conteúdo das ideias
dos sentidos, na medida em que pretendem corresponder às coisas materiais tais como
elas são, não é confiável. Diz o filósofo: “talvez elas (as coisas corpóreas) não sejam,
todavia, inteiramente como nós as percebemos pelos sentidos, pois esta percepção dos
sentidos é muito obscura e confusa em muitas coisas”. 23
O que nos parece haver aqui é uma garantia de que as sensações fornecem o
conhecimento da existência de corpos no mundo físico. Corpos estes com propriedades.
Entretanto, tais propriedades eu não sou capaz, com estas minhas mesmas ideias, de
conhecer clara e distintamente.
Prosseguindo em sua análise acerca das ideias dos sentidos, Descartes introduz
uma nova prova baseada também nas ideias dos sentidos: que sua alma é substancialmente
unida a um corpo. Tendo já demonstrado a distinção real entre corpo e alma, visto que
cada uma delas é um substância completa e que possuem cada uma, um único atributo
essencial e distinto, agora, novamente pelas sensações, ele pode concluir que apesar de
distintos, são substancialmente unidos. É porque tenho sensações, é porque sinto coisas,
que sou obrigado a concluir que a alma não está no corpo como se fosse “um piloto em
23
Ibidem, p.135.
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seu navio”: se assim fosse, como o piloto, ela observaria e compreenderia o que ocorre
no corpo, mas não sentiria:
(...) a natureza me ensina também por esses sentimentos de dor, fome e sede
etc., que não estou meramente alojado em meu corpo, como um piloto em seu
navio, mas que, lhe estou conjugado muito estreitamente de tal modo
confundido e misturado que componho com ele um único todo. Pois se assim
não fosse, quando meu corpo é ferido não sentiria por isso dor alguma, eu que
não sou senão uma coisa pensante, e apenas perceberia este ferimento pelo
entendimento.24
Note-se que, mais uma vez, apesar das ideias dos sentidos terem um papel
importante na prova da união substancial, não é o conteúdo representativo dessas ideias,
mas antes o simples e objetivo fato de eu ter estas ideias - que são sensações - que é o
elemento central do argumento.
Tal situação parece mudar agora. Com a prova da união substancial, o “Eu”, é
entendido agora não como apenas pensamento, ou alma, mas como um composto formado
de “pensamento/ corpo”, Descartes sustenta a legitimidade dos sentidos como fonte de
um certo tipo de conhecimento: o conhecimento do que é prejudicial e do que é benéfico
para o composto pensamento/corpo, ou o homem.
Entre essas diversas percepções dos sentidos, umas me são agradáveis e
outras desagradáveis, posso tirar uma conseqüência completamente certa, isto
é, que meu corpo [composto de corpo e alma] pode receber diversas
comodidades ou incomodidades dos outros corpos que o circundam.25
...essa natureza [de ser uma união substancial] me ensina realmente a fugir
das coisas que causam em mim o sentimento da dor e a dirigir-me para
aquelas que me comunicam algum sentimento de prazer.26
24
Ibidem, p.136.
25
Idem. Grifo nosso.
26
Ibidem, p.137. Grifo nosso.
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percepções lhe transmitem algo, ainda que ele não defina isto muito bem. Em suas
palavras: “comodidades”, “incomodidades”. Entretanto, as expressões “causam em mim
o sentimento da dor”, bem como, “me comunicam algum sentimento de prazer” parece
nos evidenciar que o pensador reconhece aquilo que tais ideias lhe transmitem, ou causam
nele. O composto corpo\alma reconhece, pelas sensações, o que lhe é bom, ou ruim, o
que lhe dá prazer ou dor. E deste modo pode se situar no mundo, entre os outros corpos:
afastando-lhe daquilo que lhe causa dor, e aproximando-se do que lhe fornece prazer.
Poderíamos dizer assim que trata-se de um conhecimento de sobrevivência, de como o
homem, entendido como composto de corpo e alma, deve sobreviver e se manter no
mundo físico.
5- Conclusão
Nosso trabalho teve como objetivo mostrar como o tema das sensações foi tratado
por Descartes na sua obra Meditações Metafísicas. A tese que procuramos defender aqui
foi a de que ao longo desta obra ocorreu uma mudança de tratamento pelo filósofo em
relação a este assunto. Para elucidar tal posição, expusemos algumas passagens da obra
em questão, a saber, a Terceira e Sexta Meditação. Escolhemos estes dois momentos da
obra por entendermos que ambos são bem ilustrativos de que ocorre uma transformação
em relação a este tema.
Vimos que os sentidos são tratados na obra em questão sempre dentro de uma
perspectiva representacional, ou seja, própria das ideias que lhes correspondem. Por isso
mesmo, no início do texto esclarecemos que os termos “sensações” e “ideias de sentidos”
seriam por nós entendidos como sinônimos. A partir disto podemos afirmar que tais ideias
são, nas Meditações, tratadas ora do ponto de vista do ato representativo, ora do ponto de
vista de seu conteúdo.
Na Terceira Meditação, embora as ideias dos sentidos não sejam o tema principal,
ainda assim são problematizadas em momentos importantes da mesma e sob o ponto de
vista de seu conteúdo: seja quando o filósofo menciona as ideias adventícias, seja quando
introduz o problema da falsidade material. Em ambos os casos, nos parece natural
concluir que, por neste momento da obra ainda existir a dúvida em relação à existência
dos corpos materiais ou extensos, uma afirmação categórica sobre o quê ideias
relacionados a objetos físicos representam – no caso das ideias materialmente falsas -,
bem como uma garantia de que eles possam lhe ser causa e semelhantes - no casa das
ideias adventícias - não pode ocorrer agora.
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Concluímos assim que é em virtude de seu método - a ordem das razões - que
nesta meditação Descartes é hesitante quanto à explicação da falsidade material, bem
como da validade das ideias adventícias. Uma vez que não conhece ainda que as coisas
do mundo material existem e nem sua essência, e uma vez que as ideias dos sentidos
pretendem representar que elas existem como elas são, Descartes não pôde na terceira
meditação dar uma descrição categórica do conteúdo das ideias materialmente falsas, nem
garantir que objetos físicos causem tais ideias.
É também por causa da ordem das razões que constatamos que na Sexta Meditação
ocorre uma transformação, uma mudança de tratamento em relação aos sentidos: as ideias
dos sentidos são tratadas do ponto de vista de sua realidade formal, isto é, são
consideradas como um verdadeiro ato de pensamento, e ocupam papel importante e
central, pois são usadas como base epistêmica para fundamentar a existência do mundo
externo, de uma união substancial entre corpo e pensamento, bem como de um
conhecimento de como deve sobreviver no mundo físico, estando rodeado de outros
corpos. Agora o pensador não está mais hesitante em relação a sua validade cognitiva,
pois elas produzem conhecimento.
Bibliografia
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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6
Recebido: 08/2013
Aprovado: 12/2013
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Abstract: Based on the analysis of power in modernity, this work aims to address the
issue of the displacement that power suffered through history. According to the
Hobbesian theory, power is centralized, set, and can be easily identified in the figure of
Leviathan, which is the ultimate expression of power. Foucault in turn, breaks with this
pattern when believes that power exists in a microphysic way. That is: occurs as molecular
forms in the relationship between people. From that point on, power isn’t treated only as
negative but also as a positive and constructive force that produces and regulates
knowledge, discipline, as well as individual’s lives. Michel Foucault in his genealogy
aims to analyse its devices, relationships and effects. Institutions are places where power
is intensified.
Keywords: Devices. Knowledge. Power. Relationships.
1- Introdução
1
Doutorando e Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor de Filosofia
no Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).
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ser amado ou temido. Esse poder está centralizado no Estado soberano – o Leviatã,
detentor máximo do poder –, que se utiliza de todos os mecanismos que justifiquem a
manutenção de seu domínio. É o Estado forte que surge na sociedade para garantir a vida
aos indivíduos que lhe conferiram toda a força e poder por meio de um contrato.
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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6
Estado. Desse modo, o poder estaria concentrado nas mãos do Estado que possui a razão
e a força para justificar seu poder.
O Estado, como vimos, surge de um contrato para garantir a vida dos indivíduos.
A passagem do estado natural para o civil se dá por meio de um contrato que confere “[...]
toda a força e o poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir
as diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade [...]” (HOBBES, 2012,
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p. 139). Este poder instituído é altamente necessário para cessar o constante estado de
guerra. Ribeiro (2003, p. 57) assinala:
Conforme diz Hobbes (apud Ribeiro 2003, p. 29), “o estado de igualdade [o estado
natural] é o estado de guerra”. Essa igualdade dá ao homem a plena liberdade de agir que,
guiado por seus impulsos, acaba por criar um estado de guerra de todos contra todos –
pois não existe uma instância reguladora que crie e aplique as leis. Assim sendo, “o juiz
no estado de natureza é o próprio indivíduo” (BERNARDES, 2002, p. 35) que faz aquilo
que melhor julga ser apropriado, pois é livre e autônomo. As leis que produzem efeitos
no comportamento desse indivíduo natural são as leis de honra que fazem com que a
crueldade seja evitada.
Ainda que existam essas leis naturais – que não obrigam os indivíduos a obedecê-
las – é necessário um poder que estabeleça uma ordem e segurança na sociedade. Esse
poder regulamentador, capaz de organizar a sociedade, é o Estado:
[...] a multidão assim unida numa só pessoa [...]. Essa é a geração do grande
Leviatã, ou, antes (para usarmos termos mais reverentes), daquele deus mortal
a quem devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e defesa. Em virtude da
autorização que cada indivíduo dá ao Estado a usar todo o poder e a força, esse
Estado, pelo temor que inspira, é capaz de conformar todas as vontades, a fim
de garantir a paz em seu país, e promover ajuda mútua contra os inimigos
estrangeiros. (HOBBES, 2012, p. 140)
A essência do Estado é essa pessoa instituída de plenos poderes através de um
pacto firmado entre os indivíduos. O soberano é o detentor desse corpo artificial e deve
usar de todos os meios para estabelecer a ordem na sociedade – inclusive meios negativos,
objetivando fins positivos, que é o bem dos indivíduos. O Estado hobbesiano é o Estado
forte que, dotado da espada, faz reconhecer seus atos como legítimos pelos seus súditos.
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O Estado é instituído para agir na sociedade por um período ilimitado – pois surge
para garantir a vida e a paz dos indivíduos – e se faz necessária a criação do direito de
sucessão. O soberano é juiz e legislador, seus atos são legítimos e visam o bem comum.
Todos os súditos devem considerar os atos de seu soberano como seus atos. Ele é capaz
de promover a paz ou a guerra na sociedade e sua honra e poder devem ser maiores do
que de todos os demais indivíduos.
Esses direitos, acima explicitados, são a essência da soberania que, para se manter,
deve ser unida, indivisível e representada pelo soberano (cf. HOBBES, 2012, p. 148). Os
homens possuem as paixões que provocam todos os malefícios na sociedade, como a
guerra. Já que os homens não possuem a “ciência civil”, a moral, que faz com que seja
assegurado na sociedade o bem comum, tal poder deve ser criado.
Embora muitas vezes pareça que esse poder artificial é prejudicial, seria muito
pior se ele não existisse. O mal maior é a ausência de governo, que faz com que haja no
estado a guerra de todos contra todos e a violência, pois o homem é o lobo do homem e,
não havendo uma instância que regule seu comportamento, ele traz a crueldade para a
sociedade.
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age e manda ou; uma força dominante (FERREIRA, 2008, p. 637). Michel Foucault
rejeita o tratamento negativo geralmente dado ao poder, sempre concebido numa estreita
relação com o aparelho de Estado que se utiliza de todos os meios para manter-se na
sociedade, que é a disciplinar. Contudo, “quando ele identificou a sociedade moderna
como uma sociedade disciplinar, ele não afirmou o desaparecimento do modus operandi
da soberania; igualmente, uma sociedade governamentalizada não vem substituir a
sociedade disciplinar” (CANDIOTTO, 2010, p. 39).
O poder foi o termo que ocupou uma posição fundamental em suas pesquisas
genealógicas. Como o filósofo francês afirma ser provisória toda teoria, ele não faz uma
teoria do poder, antes, analisa as formas microfísicas do poder: a sua especificidade, suas
relações, práticas e o seu funcionamento que estão em constante transformação, fazendo
uma analítica do poder. De acordo com Branco (2001, p. 240):
Foucault nunca trata do poder como uma entidade coerente, unitária e estável,
mas de ‘relações de poder’ que supõem condições históricas de emergência
complexas e que indicam efeitos múltiplos, compreendidos fora do que a
análise filosófica identifica tradicionalmente como campo do poder.
O poder é uma situação estratégica, “[...] é dificilmente localizável ou apropriado
por alguém” (CANDIOTTO, 2010, P. 34), mas atinge todo o corpo social. Roberto
Machado (2006, p.168 apud BRÍGIDO 2012, p. 26) diz que essa mecânica do poder
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social, e não acima dele, penetrando a vida cotidiana, e por isso pode ser
caracterizado como micropoder ou subpoder.
Foucault quando pontua que as contribuições dadas ao termo são insuficientes
para descrevê-lo, coloca duas questões: quem exerce o poder? Onde o exerce? O filósofo
ratifica que tal poder não pode ser apropriado por alguém ou por uma instituição, e
acrescenta:
Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detém [...]. Além disso,
seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de revezamentos e
até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de
proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é,
propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em
determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao
certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui (FOUCAULT, 2012a, p.
138).
Assim é descrito o poder microfísico: uma relação de forças que se exerce sobre
os indivíduos que o mantém e o perpetuam; é o poder que circula, que só pode ser
percebido numa cadeia; é uma rede que passa pelos indivíduos, em oposição a outras
concepções, que o viam sempre em uma aplicação, mesmo que despercebido, pois os
indivíduos são os seus efeitos.
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O poder, como vimos, terá um outro tipo de visada. Ele não está, como em
Hobbes, localizado no soberano que se serve de todos os mecanismos para manter-se. A
partir de Foucault, o poder é uma rede produtiva que gera saber e discurso, não atuando
somente de forma negativa. Foucault (2012a, p.54) também constata que “a ‘verdade’
está circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem e apoiam, e a efeitos de
poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ de verdade”. Tratando do saber, ele
apresenta a figura do intelectual, que durante muito tempo fora o detentor do saber.
2
“O saber não é uma soma de conhecimentos, porque desses se deve poder dizer sempre se são verdadeiros
ou falsos, exatos ou não, aproximados ou definidos, contraditórios ou coerentes. [...] [O saber] é o conjunto
dos elementos (objetos, tipos de formulação, conceitos e escolhas teóricas) formado a partir de uma única
e mesma positividade, no campo de uma formação discursiva unitária” (FOUCAULT, 1968, p. 723 apud
CASTRO, 2009, p. 394).
3
A verdade é o “[...] conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao
verdadeiro efeitos específico de poder” (FOUCAULT, 2012a, p. 53).
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O intelectual era como que uma consciência de todos4, porém, com o passar do
tempo, ele perde o seu papel sendo situado em pontos precisos da sociedade, fazendo com
que surja o intelectual específico, em oposição ao intelectual universal. Segundo Foucault
(2012a, p. 48), “o intelectual foi perseguido pelo poder político, não mais em função do
seu discurso geral, mas por causa do saber que detinha: é nesse nível que se constituía
como um perigo político”. O intelectual específico, na figura do cientista, enquanto
dominante de determinado ponto do saber, representa um perigo para o poder político, e
tende a tornar-se “cada vez mais importante, à medida que, quer queira, quer não, ele é
obrigado a assumir responsabilidades políticas” (FOUCAULT, 2012a, p. 51).
3- Os dispositivos do poder
4
O intelectual era a consciência de todos por ser o detentor do saber; ele fazia reconhecer seu poder no
âmbito das palavras, tomando a atenção das pessoas que paravam para escutá-lo. Para melhor compreensão
das contribuições dadas ao termo, ler Le philosophe masqué (1980), La fonction politique de l’intellectuel
(1976), assim como Quaderni del cárcere (1975) de Gramsci que também contribui na análise do papel
desempenhado pelo intelectual.
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é arquitetado para justificar sua atuação. Estes dispositivos “[...] são inseridos na
sociedade de forma discreta. Chega certo ponto da construção da sociedade, que a
existência desses dispositivos é vista como necessária, indispensável e legítima pelos
próprios cidadãos” (BRÍGIDO, 2012, p. 30). Os que produzem efeitos sobre os corpos
dos indivíduos são os de vigilância e punição, que aparecem de forma explícita em Vigiar
e punir, o estudo das prisões, as arquiteturas do poder.
A arquitetura aparece desde longa data ligada ao poder – “essa relação entre
arquitetura e poder passa pelo modo como a organização do espaço distribui o movimento
do olhar, determina a visibilidade” (CASTRO, 2009, p. 42). A arquitetura das instituições
tem por objetivo a docilidade dos corpos, domesticando-os para a manutenção de seu
poder. “Geralmente se chama instituição todo comportamento mais ou menos coercitivo,
aprendido. Tudo que em uma sociedade funciona como sistema de coerção, sem ser um
enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é uma instituição” (FOUCAULT, 2012a,
p.368).
5
Panopticon é um modelo que, aplicado numa estrutura institucional, pretende manter a relação disciplinar,
pois possibilita uma visão geral em um determinado espaço. Em Vigiar e punir é abordado de modo mais
específico a maneira com que a disciplina se exerce sobre os corpos dos encarcerados, através do
panoptismo. Jeremy Bentham foi quem “[...] programou, definiu e descreveu, da maneira mais precisa, as
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por alguns outros; trata-se de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não
existe ponto absoluto. A perfeição da vigilância é uma soma das malevolências”
(FOUCAULT, 2012a, p. 334).
“Desde a época clássica, o corpo foi descoberto como objeto de poder, que pode
ser manipulado, modelado, treinado, que responde e obedece, tornando-se dócil e hábil à
medida que suas forças se multiplicam” (WELLAUSEN, 2007, p. 5). É justamente esse
corpo domesticado que Michel Foucault abordará em Vigiar e punir, analisando desde os
suplícios até as modernas técnicas disciplinares aplicadas nas (e pelas) prisões.
3.1.1- A prisão
Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias
marcadas, seu trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação,
com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do
juiz, tenha-se tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda
formas de poder em que vivemos, e quem apresentou um maravilhoso e célebre pequeno modelo desta
sociedade da ortopedia generalizada: o famoso Panóptico” (FOUCAULT, 1994, p. 594 apud CASTRO,
2009, p. 53-54).
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nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os
quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?
De fato, a prisão surge como um instrumento que deve agir sobre os corpos dos
indivíduos, assim como outras instituições. Porém, ela fracassa no seu papel de
transformar o indivíduo em um “bom sujeito”, fabricando-o como delinquente, fazendo
com que esse saia pior do que entrou (FOUCAULT, 2012a, p. 217). O sistema penal foi
arquitetado de tal maneira que permitiu um desentendimento entre os delinquentes para
permitir o funcionamento geral do sistema.
A prisão é para Michel Foucault um ponto específico do aparelho disciplinar, que
utiliza-se do olhar panóptico para produzir efeitos sobre os corpos dos indivíduos,
tornando-os dóceis. Esse panoptismo permite um sistema de vigilância perpétuo através
de uma torre central que vigia e dispõe cada um dos indivíduos, aplicando sobre eles a
punição como método coercitivo. O interesse de Foucault na prisão se centra na relação
poder-saber, que permite um funcionamento disciplinar da sociedade.
4- Considerações finais
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vantajoso, pois o indivíduo que teme ser punido se torna seu próprio vigia. Assim, não
será todo um sistema punitivo que garantirá a segurança social, mas o esquadrinhamento
das pessoas, possibilitando uma vigilância perpétua na sociedade.
O poder está, portanto, localizado em todos os lugares onde existem pessoas – e
não mais no Estado soberano. O poder aparece como uma rede de relações, que são
microfísicas; ele só existe em circulação, é algo que se dá numa cadeia. Aparece sempre
associado a um jogo de verdade, que o produz e é produzido por ele. O poder produz
saber, discurso, normatiza a vida dos indivíduos, assim como produz individualidade.
Bibliografia
BERNARDES, Júlio. Hobbes & a liberdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
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Recebido: 08/2013
Aprovado: 12/2013
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Abstract: The goal of this article is to investigate possible relations between the creation
of the morality of customs, as it is described in Daybreak (1881), and the characteristics
of the typology of the strong described by Nietzsche in his Genealogy of Morals
(1887). Thus, this article commits to approaching the double origin of morals – and,
therefore, to point to the distinction between strong and weak – so as to, after that, proceed
to characterize the strong type described by Nietzsche and to associate it with the morality
of customs.
Keywords: Morality of customs. Nietzsche.
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– e mais potente – de criar valores advém dos nobres e nasce de um Sim a si mesmo, de
uma força autoafirmativa, plástica, de um transbordamento da vontade de potência. O
estabelecimento desses valores afirmativos eclodiu num primeiro momento,
contrapondo-se, em conseqüência, a tudo aquilo que era o seu oposto, i.e., à fraqueza,
ausência de força. A aristocracia associava o termo “bom” a “nobre”, “poderoso”, “belo”,
“feliz”, “caro aos deuses”, “espiritualmente bem-nascido”, “espiritualmente
privilegiado”. Assim, num ato criador, o nobre definiu a si mesmo como “bom” e, num
segundo momento, tudo o que era baixo como “ruim” – no sentido de fraco, inferior.
Portanto, entende-se esse pathos da distância como pré-requisito da criação de valores
proveniente dos fortes:
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meio de deduções lógicas. Tudo se passa como se o fraco elaborasse o seguinte raciocínio:
você, forte, a quem invejo, é mau; eu sou o seu oposto; logo, sou bom. Sob essa
perspectiva, o forte é representado como o “mau”, enquanto o fraco se considera o “bom”.
Assim, devido à ausência de força no fraco, a sua criação de valores é dependente da
valoração que é rejeitada por ele 1: por isso, pode-se afirmar que sua ação é de cunho
fundamentalmente reativo.
1
Enquanto a moral nobre é independente por surgir de uma afirmação própria, a moral escrava é
completamente dependente do seu oposto, pois nasce justamente em função da existência da moral que lhe
é antagônica. Aí a fraqueza típica do fraco e a força do forte tornam-se visíveis: aquele carente de força é
incapaz de agir sem precedentes, sem ressentimento: é o ressentimento – reativo - que move a criação da
moral escrava, enquanto a ação potente move o modo de valoração nobre: “Esta inversão do olhar que
estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do
ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir
em absoluto – sua ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce
espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda mais júbilo e gratidão.”
(NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral, I, § 10)
2
O forte não está eximido do ressentimento, porém, quando ressente, não se permite envenenar por esse
ressentimento, não se torna vítima e presa dele: “Mesmo o ressentimento no homem nobre, quando nele
aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena.” (NIETZSCHE, F.
Genealogia da Moral, I, § 10)
3
Cabe ressaltar que os estados de força e de fraqueza não são permanentes: são provisórios, pois não há
indivíduo essencialmente forte ou essencialmente fraco; isso é construído por diversos fatores e cada
indivíduo administra em si determinados níveis de força e de fraqueza.
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Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-
dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos,
resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse
como força. Um quantum de força equivale a um mesmo quantum de impulso.
(NIETZSCHE, 1998, p. 32 – 33)
Ao analisar as relações estabelecidas entre as tipologias forte e fraca, Nietzsche
lamenta que, historicamente, os fortes tenham sido derrotados pelo ressentimento dos
fracos, e que a “rebelião escrava na moral” tenha sido vitoriosa e tenha se concretizado e
se enraizado na cultura ocidental com o cristianismo. Nesse sentido, a cultura ocidental
de origem socrático-cristã traria consigo a marca de uma moralidade fraca. Contudo,
embora tome este dado como marcante de nossa cultura, Nietzsche não deixa de apontar
para a possibilidade de superação desse modo ressentido de estabelecer valores. E, ao
fazê-lo, refere-se a um tipo de moralidade que teria emergido num momento histórico
anterior à moralidade com a qual conviveríamos atualmente, e que, como pretendo
analisar, manteria uma íntima relação com a tipologia do forte trabalhada na Genealogia
da Moral. Trata-se da moralidade dos costumes, à qual Nietzsche se dedica mais
detidamente em Aurora, e que não por acaso volta a ser referida por ele no Prefácio da
Genealogia da Moral.
4
NIETZSCHE, 1998, p. 32
5
NIETZSCHE, 2004, p. 23
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Assim, por exemplo, este axioma: a moralidade não é outra coisa (e, portanto,
não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas
costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. [...] O que é a tradição?
Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil,
mas porque ordena. – O que distingue esse sentimento ante a tradição do
sentimento do medo? Ele é o medo ante um intelecto superior que manda, ante
um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que pessoal – há
superstição nesse medo. (NIETZSCHE, 2004, p. 17 -18)
O sentimento de medo ante a indeterminação inerente à tradição é causa da
punição do indivíduo que desonra os costumes vigentes: a comunidade, após identificar
a desobediência à ordem estabelecida, cuida para que a ação (que destoa da obediência
aos costumes) seja revertida, de modo que o coletivo não sofra o castigo consequente do
ato “imoral” do indivíduo. Segundo Nietzsche, quando uma ação é julgada pelas lentes
da moral, todo impulso é acompanhado de uma boa ou má consciência, i.e., determinado
impulso está vulnerável a ser reprovado e julgado ou aprovado e exaltado. Os impulsos
reprováveis são aqueles que ameaçam a estabilidade da ordem na comunidade. Assim,
são carregados de má consciência e culpa: é um modo de impor um castigo ao indivíduo
que ousa desmistificar os limites da moralidade vigente. Todo e qualquer ato considerado
“imoral” assume esse papel por representar uma intimidação para os demais membros da
comunidade. Portanto, esse “ato imoral” é acompanhado de uma má consciência, o que é
elucidado no seguinte trecho de Aurora:
O mesmo instinto torna-se o penoso sentimento da covardia, sob efeito da
recriminação que os costumes lançaram sobre tal instinto; ou o agradável
sentimento da humildade, caso uma moral como a cristã o tenha encarecido e
achado bom. Ou seja: ele é acompanhado de uma boa ou de uma má
consciência! Em si, como todo instinto, ele não possui isto nem um caráter e
denominação moral, nem mesmo uma determinada sensação concomitante de
prazer e desprazer: adquire tudo isso, como sua segunda natureza, apenas
quando entra em relação com instintos já batizados de bons e maus, ou é notado
como atributo de seres que já foram moralmente avaliados e estabelecidos pelo
povo. (NIETZSCHE, 2004, p. 36 - 37)
Dessa forma, aquele que rompe os preceitos da moralidade dos costumes está
vulnerável a sofrer todo castigo e toda punição que a sociedade julgar necessários para
manter o bem-estar do todo. Porém, há um caráter ambíguo nesse indivíduo que rompe o
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Compreendem por que tinha de ser a loucura? Algo que fosse, em voz e gestos,
assustador e imprevisível como os demoníacos humores do tempo e do mar e,
6
Devido a essa capacidade dos fortes de cunhar valores utilizando como motor sua vontade de potência e
sua força afirmativa, essa tipologia pode ser considerada como detentora de uma certa independência, no
sentido em que não se submete à obediência aos costumes e cria sua própria moralidade: “O ser
independente é pecúlio dos raros; é privilégio dos fortes.” (NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal, §29)
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Bibliografia
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.
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___________________. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo,
Companhia das Letras, 1992.
Recebido: 02/2013
Aprovado: 08/2013
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Resumo: A verdade enquanto alétheia, resgatada dos gregos por Heidegger, diz respeito
à dinâmica de encobrimento e desencobrimento da relação entre ser e ente. Os entes,
componentes da physis, têm por essência o ser e correspondem ao aparente, enquanto o
ser ocupa uma posição inaparente. Assim, na physis, que abrange todas as coisas
existentes, o ser se oculta em cada ente que aparece. Portanto, a verdade enquanto alétheia
corresponde a essa dinâmica em que apenas é possível delimitar e dizer a parte desta que
aparece. Lacan, dialogando com Heidegger, tem por objetivo mostrar como o pequeno a,
objeto perdido e causa de desejo, aparece somente enquanto objeto provisório e parcial
para tamponar a falta estrutural. Uma vez que essa falta é fundante do sujeito e indizível,
os objetos tomados pelo analisando como semblantes dessa falta só aparecem em análise.
Palavras-chave: Alétheia. Ente. Pequeno a. Ser.
Abstract: The truth as alétheia rescued from the Greeks by Heidegger regards the
dynamic of concealment and uncovering the relationship between be and being. The
beings, components of physis, have in essence the be and correspond to apparent while
be occupies a unapparent position. Thus, the physis, which covers all existing things, be
is hidden in each entity that appears. So the truth as alétheia matches this dynamic in that
it is only possible to delimit and say that this part appears. Lacan dialogue with Heidegger,
aims to show how the little a, and lost object cause of desire, appears only as provisional
and partial object to buffer the structural fault. Once, this lack is the foundational subject
and unspeakable, the objects taken by analyzing as countenances this lack only appear in
treatment.
Keywords: Alétheia. Being. Little a. Be.
1- Introdução
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para irmos direto ao assunto, é de origem, άλήθεια, termo sobre o qual tanto especulou
Heidegger.” (LACAN, 1985, p. 123). Portanto, para compreendermos o sentido que
Lacan atribui à verdade, é necessário mostrar como Heidegger compreende a verdade
enquanto alétheia e como ela é utilizada por Lacan.
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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6
Desta maneira, pensar somente o aparente é pensar que tudo o que surge decorre do que
já é enquanto ente. Quando o ente aparece algo está oculto, pois a alternância exige troca.
Disso que se oculta, é possível apenas fazer apontamentos já que se trata do que nossos
olhos não alcançam. Considerando tudo o que surge como ente e a physis constituída de
entes, tudo o que existe, então o que permanece oculto se oculta no próprio ente. Segundo
Pessoa (2003), o surgimento dos entes é o sentido e a verdade do ser, tudo o que aparece
é ente, já o que se distingue dos entes é o dessemelhante enquanto sentido e verdade,
portanto, o que se distingue dos entes é o ser. Então o ser, enquanto distinto dos entes,
mantém-se oculto neles. Se a verdade do ser é o ente e este se oculta, podemos
compreender sua verdade como aparente enquanto desencobrimento, o que corresponde
a apenas uma parte da verdade.
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“se funda no fato de não sabermos que estamos esquecidos, pois, se assim não fosse,
lembraríamos” (PESSOA, 2003, p. 81).
A verdade em sua totalidade não pode ser dita, ela é apenas “semi-dita”, o dizer
mostra apenas uma parte e a outra permanece indizível. A verdade enquanto
desencobrimento é composta pelo ente, parte aparente, e pelo ser, que permanece oculto,
podemos considerar o processo analítico como uma relação entre entes, na dinâmica do
discurso do sujeito. O analisando por meio da linguagem se coloca enquanto discurso na
análise, ao se colocar, toda a verdade não é possível ser dita, pois o ser do ente permanecer
oculto, assim é possível apenas produzir um saber acerca do aparente em relação à
verdade, ou seja, aos aspectos e características do ente que aparecem no discurso.
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Portanto, podemos dizer que a relação entre verdade e saber, compreendida sob a
dinâmica da alétheia, se dá em relação ao desejo e a sua causa, o pequeno a, que, por se
tratar de algo perdido, mantém fora do alcance do analisando a possibilidade de saber o
que ele é. O sujeito em processo de análise, em constante devir, se deparará com outros
objetos que possuam o semblante daquilo que foi perdido e, ao ser motivado pelo desejo
de encontro, se moverá em busca do que é aparente tomando-o como o que completa a
falta real. Nessa dinâmica entre ser e ente, há algo que permanece oculto e, ao permanecer
oculto, permite que outros objetos apareçam enquanto semblante para o sujeito fazendo
com que este se mova em direção a esse objeto.
4- Conclusão
Podemos concluir que Lacan, ao falar do objeto perdido causa de desejo, fundante
da falta estrutural e da busca por esse objeto que possam suprir tal falta, faz com que o
indivíduo se mova em direção a outros objetos que possam suprir tal falta. Uma vez que
ele desconhece o que de fato lhe falta e tomando o objeto como substituto, este objeto
adotado, possível de ser dito em processo de análise, proporcionará o saber somente de
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uma parte da verdade, pois a falta estrutural do sujeito é indizível. Assim, a verdade para
Lacan é compreendida e utilizada no sentido pensado por Heidegger como alétheia, em
que o ser, enquanto essência do ente, se oculta nele na medida em que o ente surge,
constituindo dessa forma a verdade sobre o ser, em que uma parte da verdade pode ser
dita, a aparente e a outra permanece inefável. Assim, como nos disse Lacan, “[...] toda a
verdade, é o que não se pode dizer” (LACAN, 1985, p.124), pois esta só pode ser “semi-
dita”.
Bibliografia:
Recebido: 08/2013
Aprovado: 12/2013
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Resumo: Em sua genealogia do ato de punir, Foucault nos apresenta dois modelos
distintos de aplicação da pena: o suplício (antiguidade) e a prisão (modernidade). O
objetivo deste artigo é analisar como se deu essa evolução de uma sociedade do
espetáculo à prisional, isto é, discutiremos esses diferentes estilos de punição,
característicos de um dado momento histórico, tomando como questionamento a seguinte
pergunta: essa modificação da forma de punir representou ou não um progresso para a
sociedade?
Palavras-chave: Prisão. Punição. Suplício.
Abstract: In his genealogy on the act to punish, Foucault presents us two different models
of applying penalty: the suplicio (antiquity) and imprisonment (modernity). The purpose
of this article is to analyze how this evolution occurred from a society of the spectacle to
prison system, that is, we will discuss those different styles of punishment, which are
characteristic of a particular historical moment, taking as questioning the following
question: Did this modification in the form of punish represent or not an progress to
society?
Keywords: Prison. Punishment. Suplicio.
1- Considerações iniciais
Em Vigiar e Punir, Foucault tece uma reflexão concernente aos recursos sociais
utilizados para castigar ou punir os indivíduos desordeiros do meio comunitário. Para
tanto, o filósofo inicialmente descreve as formas impactantes de punição do corpo através
da encenação da dor (suplício), cuja finalidade consistia em imprimir no corpo do
condenado todo o sofrimento desencadeado por ele à sociedade. Trata-se, portanto, de
um ritual que “visa marcar o corpo da vítima, tornar infame o criminoso, ao mesmo tempo
em que esta violência que marca é ostensiva, caracterizada pela demonstração excessiva
do poder daquele que pune” 1.
1
Alvarez. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica, p. 171
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tortura física, despontando a concepção do sujeito de direito, que dentre outros detém o
direito sublime de existir, ou seja, direito à vida. Neste trabalho verificaremos como se
deu essa evolução de uma sociedade do espetáculo à prisional, isto é, discutiremos esses
diferentes estilos de punição, característicos de um dado momento histórico.
De acordo com Foucault, “as penas físicas tinham, portanto, uma parte
considerável. Os costumes, a natureza dos crimes, o status dos condenados as faziam
variar ainda mais” 3. Desse modo, segundo Silveira: “dentre os suplícios Foucault [...]
elencou uma série deles, destacando em especial os que configuravam penas de morte,
abrangendo todos os tipos de morte” 4.
2
Foucault. Vigiar e Punir, p. 17
3
Ibid., p.33
4
Silveira. Michel Foucault e a constituição do corpo e da alma do sujeito moderno, p.50.
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Nota-se, portanto, que tal processo criminatório acontecia de modo secreto, com
a ocultação dos fatos tanto a sociedade quanto ao indivíduo acusado. “O processo se
desenrolava sem ele ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as
imputações, os depoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era
privilégio absoluto da acusação” 9. Deste modo, ao suposto criminoso, era vedado o
direito de defesa, o conhecimento dos seus denunciadores, o acesso as peças do processo,
o sentido da acusação, a disposição de um advogado para defendê-lo do incriminatório.
De outro lado, todavia, o magistrado detinha o poder em suas mãos para acatar todos os
tipos de acusações, mesmo as anônimas, interrogá-lo de forma meticulosa e insinuosa.
Ele constituía sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o
acusado; e essa verdade, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e
de relatórios escritos; para eles, esses documentos sozinhos comprovavam; só
encontravam o acusado uma vez para interrogá-lo antes de dar a sentença. A
forma secreta e escrita do processo confere com o princípio de que em matéria
criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um
direito absoluto e um poder exclusivo10.
5
Ibid., p.50
6
Foucault. Vigiar e Punir, p. 34
7
Ibid., p.34
8
Ibid., p.35
9
Ibid., p.35
10
Ibid., p.36
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Observa-se que com tais práticas judiciárias, o monarca pretendia sinalizar que o
poder soberano de onde provém a prerrogativa de punir, de forma alguma poderia está ao
cargo da multidão. Nesse contexto, é interessante as palavras de Silveira, quando afirma
que “tal instituição vem deslocar o condenado de uma situação de súdito comum, que
pode viver sua vida sem limitações ou maiores sofrimentos, para uma situação de possuir
a marca do “menos poder”11 que, segundo ele,“em função do exercício da potência divina
do rei , projeta o condenado a um estado de impotência, retira seu arbítrio e exaure suas
forças no sentido de impedir paulatinamente a manutenção de sua própria vida”,
submetendo-o “a um processo de mortificação, gradativo e calculado, de acordo com os
interesses políticos e de poder articulados pelos que estrategicamente o detém, em
determinado momento histórico”12.
11
Silveira. Michel Foucault e a constituição do corpo e da alma do sujeito moderno, p.46
12
Ibid., p. 47
13
Foucault. Vigiar e Punir, p.44
14
Ibid., p.45
15
Ibid., p.46
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(2001), um dos fatores que contribuiu para esse deslocamento das penas severas do
suplício às punições não ligadas diretamente ao físico, foi o aspecto de ambivalência
presente nessas ações dos suplícios, ou seja, sendo o suplício uma técnica que
potencializava o poder do soberano, nem todas as penas aplicadas continham um caráter
de justiça. Nesse sentido, se por um lado aumentava a autoridade do rei, do outro, todavia,
contribuía para fomentar na comunidade a piedade e compaixão em relação ao
condenado. Tais sentimentos desencadeavam com frequência o descontrole da população
durante a aplicação da sentença, causando certo tumulto, principalmente, quando se
duvidava da culpa do acusado. Essas revoltas impediam, em certos casos, a conclusão da
pena, ocorrendo um levante do povo em prol da libertação e eliminação da pena do
condenado. Deste modo, a população insatisfeita com as práticas do suplício, recusava-
se a se subordinar ao rei.
Nesse ponto, segundo Foucault, era “preciso punir de outro modo: eliminar essa
confrontação física entre soberano e condenado”, além desse “conflito frontal entre a
vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do
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carrasco” 16. Em outras palavras, para os defensores humanistas era “preciso que a justiça
criminal” punisse “em vez de se vingar.” 17 Desse modo, argumentavam que “no pior dos
assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua
“humanidade” 18.
Essas críticas às formas dos suplícios, de acordo com Foucault, “não são tanto, ou
não são só os privilégios da justiça, sua arbitrariedade, sua arrogância arcaica, seus
direitos sem controle que são criticados”, mas, acrescenta ele, “antes a mistura entre suas
fraquezas e seus excessos, entre seus exageros e suas lacunas, e, sobretudo o próprio
princípio dessa mistura, o superpoder monárquico ” 19.
16
Foucault. Vigiar e Punir, p.69
17
Ibid., p.69
18
Ibid., p.69
19
Ibid., p.75
20
De acordo com Wellausen (2006-2007), Foucault se propõe a pensar o poder não como algo centralizador
ou totalitário, pertencente a uma determinada classe social (visão antimarxista), “mas como
transversalidade, isto é, como dispersão, constelação, multiplicidade, como microfísica, uma vez que o
poder está em todo lugar e em todas as coisas.” (Wellausen; 2006-2007, p.1) Senso assim, argumenta ela,
“contra a centralização do poder na forma de Estado, é apresentada uma nova rematerialização - seu lugar,
sua particularidade tem um caráter secundário e subalterno, e pode ser visto no asilo, na clínica, na prisão.”
(Wellausen; 2006-2007, p.4) Dessa forma conclui que “do suplício à prisão modelo, o itinerário descrito
não recupera a reconciliação com a humanidade, ao contrário, permanecem as espoliações,” (Wellausen;
2006-2007, p.15) porque, “ainda estamos no espaço da violência, do jogo de forças, das estratégias, no
qual o poder, disseminado nas múltiplas formas institucionais, afirma-se” por meio “de dispositivos
disciplinares, produzindo sujeitos “sujeitados” na história da modernidade.” (Wellausen; 2006-2007, p.20)
Discorrendo sobre o assunto Danner (2010, p.144) destaca que em Foucault “não existe ‘o Poder’; o que
existe são relações de poder, isto é, formas díspares, heterogêneas, em constante transformação.”
21
Foucault. Vigiar e Punir, p.58
22
Silveira. Michel Foucault e a constituição do corpo e da alma do sujeito moderno, p.55
23
Foucault. Vigiar e Punir, p.16
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Essa nova sociedade, cunhada por Foucault como sociedade disciplinar 29,
caracteriza-se por utilizar novos modelos punitivos, ou melhor, dizendo, de correção. O
24
Ibid., p.18
25
Ibid., p.88
26
Ibid., p.23
27
Conforme Neto (2006-2007, p.2) “disciplina e espetáculo são apreensões conceituais distintas de [...]
complexas sociedades.” Especificando a diferença entre os dois paradigmas aponta que “a sociedade do
espetáculo, baseada na soberania, se ordena juridicamente. Na sociedade disciplinar, no entanto, a lei e o
contrato são substituídos pela norma e pelo regulamento.” (Neto; 2006-2007, p.6)
28
Silva. O cotidiano da sociedade disciplinar tomado como uma categoria histórica, p.8
29
Nesse modelo social segundo Danner (2010, p.150) “as disciplinas trabalham diretamente o corpo dos
indivíduos, manipulam seus gestos e comportamentos, formam-no, adestram-no. Desse modo, ela “capta o
corpo humano numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.”
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castigo agora tem como finalidade além da defesa da sociedade, recuperar o infrator,
devolvendo-o novamente ao convívio social. Nessa direção, as medidas punitivas devem
ter como parâmetro a consequência de cada crime cometido, ajustando ao mesmo seus
efeitos e a pena. Entretanto, nesse paradigma social vigente, o ato de punir precisa estar
associado à vigilância, de modo a punir os infratores como também prevenir possíveis
desvios sociais.
30
É importante destacar, que a prisão, enquanto um modelo substitutivo aos projetos de penalidades
anteriores (séculos XVII e XVIII), não foi algo previamente planejado, dessa forma, ela “surge no início
do século XIX, como uma instituição de fato, quase sem justificação teórica” (Foucault, 2002, p.84), já que
não estava prevista no projeto de reformulação da penalidade do século XVIII.
31
Foucault utiliza como modelo para refletir sobre essas questões, Mettray. E o próprio filósofo explica o
porquê: Por que Mettray? Porque é a forma disciplinar no estado mais intenso, o modelo em que concentram
todas as tecnologias coercitivas do comportamento.
32
Foucault. Vigiar e Punir, p.98
33
Ibid., p.129
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Por conseguinte, a figura do carrasco (na prática do suplício) foi substituída por
outros profissionais como médicos, psicólogos, psiquiatras, educadores, de modo a tornar
a prisão um ambiente mais humanístico e recuperador. Nesse contexto, “a prisão
transformava o processo punitivo em técnica penitenciária; quanto ao arquipélago
carcerário, ele transporta essa técnica da instituição penal para o corpo social inteiro” 40.
34
Foucault. Vigiar e Punir, p.109
35
Alvarez. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica, p. 171
36
Foucault. Vigiar e Punir, p.110
37
Ibid., p.112
38
Ibid., p.114
39
Wellausen. Os dispositivos de poder e o corpo em “Vigiar e Punir”,p.17
40
Foucault. Vigiar e Punir, p.261
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41
Todas as partes destacadas na letra da música são grifos nossos.
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Foucault analisa esse fracasso 42 prisional, ao observar que “do mesmo modo que
o projeto de uma técnica corretiva acompanhou o princípio de uma detenção punitiva, a
crítica da prisão e de seus métodos aparece muito cedo, [...].” Ademais “ela, aliás, se fixa
num certo número de formulações que — a não ser pelos números — se repetem hoje
sem quase mudança nenhuma”43.
Para Foucault:
42
Representa o deslocamento de uma prisão corretiva e/ou restauradora, a um ambiente de especialização
da criminalidade. Hoje, por exemplo, algumas pessoas costumam afirmar (criticando essa instituição) tal
criminoso entrou formado e saiu mestre ou doutor em criminalidade.
43
Foucault. Vigiar e Punir, p.234
44
Ibid., p.235
45
Ao assumir um caráter de imposição a força, o trabalho, deixa de funcionar como um mecanismo
educativo e restaurador do caráter moral do prisioneiro, contribuindo para revolta e hostilidade do mesmo,
perdendo assim seu aspecto educativo e integrador ao contexto comunitário.
46
Foucault. Vigiar e Punir, p.235
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No tocante à reincidência criminal, alguns fatores são elencados por Foucault para
explicar seus elevados índices. De acordo com o filósofo, as condições impostas ao
criminoso, ao passar pelo sistema prisional, acabam induzindo-o a novas práticas
delituosas. Ao sair da prisão, o sujeito carrega consigo a fama de ex-detento. Os
estereótipos e preconceitos sociais em relação a ele dificultariam sua reinserção social,
que se dá sobremaneira através do trabalho 49. Esse seria um dos primeiros obstáculos
enfrentados pelo libertado, ao deixar as celas. A falta de oportunidade no âmbito social
(educação, emprego, moradia, etc.), e as dificuldades em se manter, colocá-lo-iam em
situação de vulnerabilidade de reincidência.
47
Ibid., p.235
48
Ibid., p.235
49
Por que através do trabalho? Em nossa sociedade capitalista, o trabalho (uma atividade social) representa
o elo de conjunção do homem com o seu meio, isso significa que é através do labor que ele se integra como
sujeito produtivo a sociedade, uma vez que o trabalho é a ferramenta que lhe garante obter sustento e/ou
mesmo status na comunidade.
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5- Considerações finais
Bibliografia
ALVAREZ, M. C. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica. São Paulo
em Perspectiva, São Paulo, v.18, n.1, p. 168-176, 2004.
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Recebido: 08/2013
Aprovado: 10/2013
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“I think my poems immediately come out of the sensuous and emotional experiences I have, but I
must say I cannot sympathise with these cries from the heart that are informed by nothing except
a needle or a knife, or whatever it is. I believe that one should be able to control and manipulate
experiences, even the most terrific, like madness, being tortured, this sort of experience, and one
should be able to manipulate these experiences with an informed and an intelligent mini I think
that personal experience is very important, but certainly it shouldn't be a kind of shut-box and
mirror looking, narcissistic experience. I believe it should be relevant, and relevant to the larger
things, the bigger things such as Hiroshima and Dachau and so on.”
Resumo: Este artigo tem como proposta apresentar as considerações de Hannah Arendt acerca
da obra de arte. Para isto, é necessário articular o conceito de Obra presente no capítulo homônimo
de A Condição Humana e apontar a relação entre arte e a atividade do pensamento esboçada em
A Vida do Espírito.
Palavras-Chave: Arte; Hannah Arendt; Pensamento
Abstract: This article proposes to present the Hannah Arendt’s considerations about work of art.
For that, is necessary articulate the concept of Work in the chapter namesake of The Human
Condition and point to the relationship between art and thought’s activity outlined in The life of
the Mind.
Keywords: Art; Hannah Arendt; Thought
1- Introdução
A obra de arte precisa ser retirada de todo e qualquer contexto de uso e finalidade. Esta
proposição pode parecer uma tentativa de conceituação da arte, mas uma leitura mais atenta da
obra de Arendt descarta tal hipótese. Este pensamento parece se aproximar da ideia do
desinteresse de Kant (SUASSUNA, 2008, p. 73), embora este também não tenha fundamentado
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uma filosofia de arte, mas sim um estudo minucioso sobre as categorias subjetivas para um juízo
estético e do gosto.
Arendt irá usar o caráter universal de julgamento estético de Kant para fundamentar o que
ela considera a parte a ser estudada para entender uma filosofia política kantiana (ARENDT,
1993, p. 16). Descartou os textos redigidos sobre o tema no final da vida de Kant, baseada na
premissa de que suas faculdades cognitivas já não funcionavam da melhor forma possível ou da
forma esperada, ou mesmo, da forma que funcionavam quando escreveu suas críticas ao longo de
sua vida.
Limitemo-nos a este comentário (ARENDT, 1993, p. 15), pois o propósito deste breve
ensaio não é falar sobre a extensa e magnífica teoria política concebida por Hannah Arendt e nem
de seu lastro kantiano. Havemos de pensar a obra de arte a começar pelo seu caráter de obra antes
mesmo do caráter artístico, pois parece que esta categoria antecede a da arte.
Adriano Correia elabora na 11ª edição de A Condição Humana uma sofisticada revisão
técnica acerca da tradução dos termos Labor e Work. A discussão sobre a tradução de Labor não
será realizada, uma vez que não tratamos deste tema em específico. Correia insiste na tradução de
Work por Obra se valendo das demais traduções de A Condição Humana para o francês e espanhol
e argumenta que o termo Fabricação exclui a ideia de um objeto final3. Correia ainda admite que
a própria autora traduziu para o alemão Work por Das Herstellen (o fabricar), embora utilizasse
1
O termo é traduzido por Trabalho, Obra e Fabricação.
2
André Duarte é o primeiro por optar pela tradução de Work por Fabricação. DUARTE, André. O
Pensamento à sombra da Ruptura: Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt. São Paulo,
Tese de Doutorado/USP, 1997.
3
CORREIA, Adriano. Nota. In: ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 11º Edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2011. p.VI.
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na seção 11 do capítulo 4 Werk para designar o produto final desta atividade e Herstellen como a
atividade da Obra4.
O que se pode perceber é que o conceito e a atividade gozam de uma complexidade que
o título por si só não é capaz de sintetizar em conteúdo, o que acaba tornando a experiência da
leitura instigante.
Neste ponto da jornada se faz necessário uma distinção entre cognição e pensamento.
Hannah Arendt irá dizer que:
4
Ibidem, p.VIII.
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função do processo vital” (ARENDT, 1989, p. 186). Ainda assim, diferente das obras, esta força
intelectual é tão alheia ao mundo quanto o labor e o consumo.
O que nos interessa é afirmar que a obra de arte, apesar de não perder o seu caráter de
obra, não é fabricada através dos processos mentais da cognição e do raciocínio lógico. Esta por
sua vez não está subordinada a tais atividades mentais, mas sim possui uma intrínseca relação
com a capacidade e a atividade que é o pensamento de modo a ser totalmente inútil e de certa
forma também alheia ao mundo e à filosofia utilitarista do homo faber. No entanto, a obra de arte
não deixa de ter uma espécie de utilidade, a qual representa melhor dentre todos os outros objetos
fabricados: a permanência do mundo.
Há uma questão intrigante, para a qual não parece haver resposta evidente. Essa questão
se impõe desde que este trabalho estava ainda sendo delineado e ainda não fora edificado como
obra: Há arte sem obras?
Magia
5
Tradução livre do poema Magie citado em uma nota de rodapé por H. Arendt do original: Aus
unbeschreiblicher Verwandlung stamen/ solche Gebilde - Fühl! und glaub!/ Wir leidens oft: zu Asche
werden Flammen;/ doch, in der Kunst: zur Flamme wird der Staub./ Hier ist Magie. In das Bereich des
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A fonte material deste mundo não deixa de ser a natureza, é dela que com violência se
retira a matéria-prima para toda e qualquer fabricação. Entretanto, as coisas destinadas ao uso são
destruídas com o passar do tempo conforme são utilizadas. Arendt irá dizer que isto pode ser
entendido como um processo de “consumo lento”, o que ocorre na verdade é que tais coisas
deixam detritos e são descartadas assim que perdem a sua utilidade. Sempre haverá um resto de
algo mesmo que este tenha passado por um processo de destruição lenta que possa ser chamado
ou evocado como consumo.
A obra de arte por não estar destinada a nenhum fim não passa por esse processo de
desgaste, sendo dentro das coisas produzidas pelo homo faber a que mais perdura através do
tempo. É “algo imortal feito por mãos mortais” (ARENDT, 1989, p. 181).
Ainda de acordo com Arendt, elas não são julgadas em termos de “para quê”. Mesmo se
considerarmos que a fonte histórica da obra de arte tenha cunho religioso, ela “sobreviveu
magnificamente à separação da religião, da magia e do mito.” A obra de arte chega a atingir o
patamar de permanência que espelha a estabilidade humana. Não há nada como a obra de arte
para demonstrar a estabilidade deste mundo artificial edificado.
É pertinente a questão: Se a obra de arte de nada serve, qual a fonte imediata de sua
inspiração? A resposta já dada é que o pensamento inspira a obra de arte. Nos resta explicar como,
mas antes vamos a uma definição de pensamento que seja capaz de, minimamente, dar conta de
nossa proposição. Aqui me parece pertinente transcrever a epígrafe do capítulo sobre a atividade
de pensar de A Vida do Espírito atribuído à Heidegger.
Zaubers/ scheint das gemeine Wort hinaufgestuft .../ und ist doch wirklich wie der Ruf des Taubers,/ der
nach der unsichtbaren Taube ruft.
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O pensamento, de imediato, não nos traz nada. Ele é como o próprio nada, cheio de
possibilidades, possibilidades infinitas tanto quanto a nossa capacidade de imaginar. O
pensamento é uma atividade, como a fabricação do homo faber, apesar de nada tangível produzir.
Não há lugar no mundo para o pensamento, pois para pensar é preciso se retirar do mundo, mesmo
que por um curto ou mínimo espaço de tempo. Pensar é voltar-se para si e prestar satisfações a si
mesmo. O pensamento não é sensível a nenhum sentido, só é possível pensar sobre o próprio
pensamento através da imaginação. O pensar por si só não leva a nada e nada traz. Sendo a obra
de arte fruto de tal atividade ela deve servir a esse caráter inútil e alheio ao mundo, pois não tem
finalidade aparente.
O pensamento aliado ao “trabalho de nossas mãos” produz uma obra inútil. Esta dualidade
de atividades é capaz de produzir uma obra de arte. Segue uma citação de Hannah Arendt de A
Condição Humana que explica melhor que pretendo apresentar:
Ao que se refere tal objetificação? Arendt irá dizer que não é mera transformação, mas
sim transfiguração: metamorfose (ARENDT, 1989, p. 182). É como no poema de Rilke, aonde
cinzas se tornam chamas contrariando o curso natural ao longo do qual o fogo transforma tudo
em cinzas. A obra de arte é fruto de sentimentos reificados pelo pensamento, aprisionados no
âmago do ser e pensados repetidamente.
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De todas as obras de arte, a menos imaterial e mais parecida com o pensamento é a poesia.
Ela permanece na memória através do ritmo do som dos versos cunhados. A trama composta
apesar de imaterial, em algum momento, precisará ser registrada de alguma maneira a fim de que
não se perca na perecível memória humana. É através do artifício humano, e servindo a ele, que
toda poesia ou prosa literária pôde permanecer através do tempo ganhando imortalidade.
Apesar de ser um tipo de arte cujo suporte se dá inteiramente através da linguagem, seja
falada ou grafada, a poesia é na verdade uma obra de imagens.
A poesia, por possuir uma íntima relação com a atividade do pensamento, possui uma
ligação com a capacidade humana de imaginar, que por sua vez, está diretamente conectada à
memória. Não é à toa que Homero em seu primeiro verso da Ilíada (Canta-te, ó musa, do Peleio
Aquiles), assim como os Aedos recorrem à Mnemosyne, a mãe de todas as musas, a musa da
memória, antes de recitar seus poemas. É claro que nesta época remota, o registro na memória era
fundamental uma vez que a relação da poesia se dava através da língua falada e não escrita.
6
Ouvir a entrevista concedida ao repórter Peter Orr, ou CARVALHO, Ana Cecília. A Poética do Suicídio
em Sylvia Plath. Em Tese, Belo Horizonte v.3, n. 1, p. 21-29, dez, 1999.
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É curioso como Arendt através do poema de Rilke apresenta uma metáfora de cinzas que
se tornam chamas como exemplo. Plath utiliza uma metáfora parecida em seu famoso poema
Lady Lazarus que fala sobre uma força, que como no mito de fênix, renascerá das cinzas e irá
devorar homens como o ar. Mesmo se tratando de símbolos destrutivos e meramente caóticos, a
relação entre as cinzas, as sobras ou mesmo o nada termina por configurar uma obra.
Bibliografia
______. Lições sobre a Filosofia Política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt & Karl Marx: O Mundo do Trabalho. São
Paulo: Ateliê Editorial: 2002.
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Anexos:
Lady Lazarus
Eu dou um jeito —
Meu pé direito
Peso de papel,
Dispa o pano
Eu te aterrorizo? —
O hálito amargo
Em casa, em mim.
Que besteira
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Um milhão de filamentos.
O grande striptease.
Senhoras e senhores,
Meus joelhos.
Foi acidente.
Na segunda quis
Oscilei, fechada
Morrer
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É o teatral
Aflito e brutal:
"Milagre!"
Há um preço
Ou mancha de sangue
Me viro e carbonizo.
Cinza, cinza —
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Barra de sabão,
Anel de casamento,
Obturação de ouro.
Cuidado.
Cuidado.
Recebido: 08/2013
Aprovado: 10/2013
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NIETZSCHE E A RETOMADA DO PROJETO CRÍTICO
KANTIANO: UMA LEITURA DELEUZEANA
Résumé: Cet article analyse l’interprétation de Gilles Deleuze sur la relation entre les
philosophies de Immanuel Kant et Friedrich Nietzsche, comparant les écrits des
philosophes commenté avec les écrits do commentateur, en particulier le travaux
Nietzsche et la philosophie, spécialement le chapitre intitulé La critique, où Deleuze
défend la thèse que Nietzsche a repris le projet critique kantien pour le surmonter.
Mots-clés: Critique. Interprétation deleuzienne. Nietzsche. Kant.
1- Introdução
Ciência, sendo que Deleuze faria uso dessa noção para refletir sobre o conjunto da obra
do filósofo alemão (Cf. MARTON, 2010, p.44).
Embora não tomemos tais críticas à interpretação deleuzeana como dadas, sem o
devido questionamento e contextualização, não cabe ao propósito desde texto debater tais
questões. O que nos interessa é reconstruir a argumentação de Deleuze na obra Nietzsche
e a filosofia, mais notadamente o terceiro capítulo, intitulado A Crítica, em que o filósofo
francês parte da ideia de que Nietzsche retoma o projeto crítico kantiano para superá-lo.
Para tanto, iniciaremos investigando o problema da valoração, essencial na leitura de
Deleuze, que não aguarda o terceiro capítulo para abordá-la, iniciando o livro com essa
questão e configurando-a, junto à ideia de “sentido”, como uma noção crítica por
excelência. O problema da valoração despertará, no segundo momento de nossa
investigação, o levantamento, realizado por Deleuze, das diferenças essenciais entre os
projetos críticos de Kant e Nietzsche; o que culmina em uma problemática – constituinte
da terceira parte da presente investigação – que envolve uma idéia-chave para a
interpretação deleuzeana das ideias de Nietzsche e principalmente para a obra filosófica
do próprio Deleuze, a saber, a ideia de imagem do pensamento1.
Destarte, nosso trabalho se faz por uma via positiva, onde procuramos constatar a
coerência interna da interpretação deleuzeana, remetendo-a aos textos dos próprios
filósofos em questão: Kant e Nietzsche.
2- Valoração e genealogia
1
A problemática da imagem do pensamento envolve toda a filosofia de Deleuze, mas aparece com maior
ênfase, além da obra aqui abordada, nos livros Proust e os signos e Diferença e Repetição.
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Contra o tipo dos trabalhadores filosóficos – que formam uma espécie de operários
da filosofia – e contra os homens de ciência – atuantes no círculo dos eruditos –, o duplo
desvio de Nietzsche visa escapar e se opor a uma filosofia que trate tanto daquilo que vale
para todos como com daquilo que vale em si. Daí se deduz o conceito de genealogia tal
como Deleuze o interpreta, como origem dos valores e valor da origem.
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Nietzsche acredita que Kant não criou e nem realizou a verdadeira crítica,
comprometendo-a, tanto em seus princípios como em sua aplicação, e acredita somente
em si próprio, como pensador capaz de efetivá-la. Isso faz com que Deleuze busque
estabelecer um paralelo entre Nietzsche e Kant, do ponto de vista dos princípios e das
conseqüências de ambos os projetos críticos.
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aqui; pretende-se, porém, saber qual seja o critério geral e seguro da verdade de todo o
conhecimento” (KANT, 2001, p.93, grifos do autor). Nesse contexto problemático
destaca-se um ponto fundamental de diferença entre Kant e Nietzsche. Kant põe em
questão as pretensões à verdade e ao verdadeiro conhecimento, mas não a própria verdade
e o próprio conhecimento. Para Nietzsche, a crítica não consiste em atacar verdades mal
formuladas, mas sim em questionar a própria verdade. Vários aforismos de Além do bem
e do mal confirmam essa hipótese, a começar pelo primeiro:
A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, [...] Se,
com essa esfinge, também nós aprendemos a questionar? Quem, realmente,
nos coloca questões? O que, em nós, aspira realmente “à verdade”? [...] O
problema do valor da verdade apresentou-se à nossa frente – ou fomos nós a
nos apresentar diante dele? Quem é Édipo, no caso? Quem é a Esfinge?
(NIETZSCHE, 1999, p.9)
Nietzsche, colocando-se para além de Kant, concebe-se corajoso o bastante para
realizar a crítica, propondo que a verdade esteja também sob a forma de um valor; em
substituição ao pretenso atrelamento da verdade à universalidade e à abstração total: a
verdade como pressuposto inabalável. Pensa-se não mais em pura verdade, mas antes em
valor de verdade; o que nos remete à pergunta sobre uma vontade de verdade. Sob a forma
do valor, não cabe à verdade um caráter universal e inato. Transfere-se a questão do centro
do problema do conhecimento para o problema da valoração; não mais ‘o que é a
verdade?’, mas sim ‘para quê a verdade?’, ‘o que quer quem a deseja?’. O caráter
valorativo torna-se evidente se considerarmos a tragédia de Sófocles invocada por
Nietzsche. Lembremos que Édipo buscou mais do que ninguém a verdade. Sua procura
desenfreada por conhecimento desembocou na perda de sua honra, de seu reino e de sua
visão. Mas a cegueira de Édipo não estaria colocada em sua própria busca? Nietzsche
argumenta em favor de demonstrar os perigos que a pretensão ao conhecimento puro
comporta, pois tal busca esconde seus reais impulsos e conseqüências: “’o conhecimento
pelo conhecimento’ – eis a última armadilha colocada pela moral: é assim que mais uma
vez nos enredamos inteiramente nela” (NIETZSCHE, 1999, p.67).
2
Sobre a referência à Molière na crítica à Kant, Nietzsche trabalha com a ideia de que o argumento kantiano
para justificar a possibilidade dos juízos sintéticos a priori se assemelha ao argumento de um personagem
de Molière em sua comédia O doente imaginário: “’Em virtude de uma faculdade’, havia ele dito, ou ao
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O texto intitulado Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade nos
evidencia os pressupostos morais implicados na defesa kantiana da verdade a todo custo:
menos dado a entender. Mas então isto é – uma resposta? Uma explicação? Não seria apenas uma repetição
da pergunta? Como faz dormir o ópio? ‘Em virtude de uma faculdade’, isto é, da virtus dormitiva – responde
aquele médico de Molière [...]. Mas respostas assim se acham em comédias” (NIETZSCHE, 1999, p.13).
Nietzsche também fala de uma “tartufice do velho Kant” (NIETZSCHE, 1999, p.12), termo derivado de
“Tartufo”, personagem de peça homônima de Molière.
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A defesa da verdade, deslocada de seu interesse epistemológico, pode ser pensada como
detentora de princípios essenciais para a manutenção do sistema kantiano, assegurando
sua teoria moral, baseada na universalidade formal do imperativo categórico. Ainda em
Além do bem e do mal, no quinto aforismo, presenciamos a acusação de Nietzsche, de
que o pretenso desenvolvimento autônomo de uma dialética pura esconde preconceitos
morais, adotados de antemão, e cita Kant como exemplo:
A rígida e virtuosa tartufice do velho Kant, com a qual ele nos atrai às trilhas
ocultas da dialética, que encaminham, ou melhor, desencaminham, a seu
‘imperativo categórico’ – esse espetáculo nos faz sorrir, a nós [...] que achamos
não pouca graça em observar os truques sutis dos moralistas e pregadores da
moral ( NIETZSCHE, 1999, p.p. 12-13).
Percebe-se que Nietzsche tenciona, genealogicamente, marcar os pontos
indiscerníveis entre conhecimento e moral. Talvez possamos compreender melhor a
intenção de Deleuze ao afirmar que a Genealogia da moral foi concebida como uma
reformulação da Crítica da razão pura, isto é, onde Kant trabalha com paralogismos,
antinomias e ideais, no contexto de questões de caráter gnosiológico, Nietzsche trata-os
em um campo moral, uma vez que “as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia
constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira.” (NIETZSCHE,
1999, p.13).
Deleuze denomina “genialidade de Kant” o fato de que seu projeto crítico tenha
sido concebido sob um viés imanente, na medida em que a crítica não fazia referência aos
domínios exteriores ao pensamento, mas sim à própria razão e seus limites, instalando um
tribunal próprio da razão no domínio do pensamento, não delimitando o negativo do
pensamento sob a forma do erro, mas ampliando-o para a noção de ilusão.
Para Kant, os desvios da razão não são obra do acaso e não devem ser registrados
segundo o encontro com forças exteriores contingentes, como as paixões do corpo. O
dogmatismo é o efeito de uma disposição natural de nossa razão. O atrelamento inevitável
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entre a razão pura e a metafísica não pode ser explicado somente como uma aparência
extirpável, mas também como um movimento natural em direção ao fim da razão. Trata-
se menos de uma tentativa de extirpação da aparência do que de um diagnóstico dela.
Como expõe Kant:
Para que a Crítica se efetive como uma ruptura na história das ideias, é necessário
reconhecê-la como um rompimento com a tradicional concepção do que seria o negativo
do pensamento, isto é, o erro. Como argumenta Lebrun, ao comentar a filosofia de Kant:
“[...] é preciso parar de considerar o erro como um brusco acesso de loucura ou como a
irrupção, no encadeamento das verdades, de uma causalidade fisiológica contingente, e
desenterrar o seu germe na junção tenebrosa da natureza e da ilusão” (LEBRUN, 1993,
p.60). Não basta denunciar os erros, enquanto derivados do corpo e de suas paixões, é
preciso ir até a morada da ilusão, da qual os erros são somente os sintomas e o que os
torna possíveis; embora o erro seja produto de uma ignorância, a própria ignorância se
inscreve em uma confiança de poder sobrevoar a objetividade, de uma inclinação, de uma
razão positiva de julgar, de uma pretensão à verdade.
O problema não é mais da ordem das paixões exteriores como obstáculo para o
pensamento, mas sim das ilusões provenientes da própria razão. A Crítica da razão pura
significa, assim, uma crítica interna, a crítica da razão pela própria razão. Nietzsche não
parece se conformar com a possibilidade da razão criticar a si própria:
O intelecto não pode, ele mesmo, criticar-se, justamente porque não pode ser
comparado com intelectos diferentemente constituídos e porque sua
capacidade de conhecer viria à luz somente em face da “verdadeira realidade”
[wahren Wirklichkeit], isto é, porque, para criticar o intelecto, precisaríamos
ser um ser mais elevado, com “conhecimento absoluto”. Isso já pressupõe que
haveria algo, um “em si”, para além de todas as espécies de perspectivas de
consideração e de apropriação sensível-espiritual (NIETZSCHE, 2008, p.256).
Fazendo coro a Nietzsche, Deleuze questiona se a crítica da razão pela razão, se a
constituição do tribunal onde juiz e acusado são os mesmos, não seria propriamente a
contradição kantiana. A resposta deve indicar um “fracasso” do projeto kantiano, na
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medida em que existe uma grande distância entre o projeto inicial e seus resultados.
Diferente de operar em favor de uma gênese interna, os princípios transcendentais atuam
como princípios de condicionamento; e segundo Deleuze, houve condições e instâncias
que permaneceram exteriores ao condicionado. Para que a crítica de Kant obtivesse êxito
seria necessário utilizar um método capaz de julgar a razão a partir de dentro, sem que a
própria razão fosse autorizada a tal. Somente o conceito de vontade de potência permite
que se dê conta de uma crítica interna, para que se ponham em evidência as forças ou a
vontade que orientam e se manifestam na razão. Desse modo, a razão seria avaliada a
partir de uma referência à tipologia das forças, que têm seu complemento qualitativo na
vontade de potência. Segundo Deleuze, a vontade de potência é o princípio genealógico
legislador, que opera a verdadeira crítica e abre o terreno para a transvaloração. Nietzsche
define o filósofo do futuro: “Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade de
verdade é – vontade de poder” (NIETZSCHE, 1999, p.118).
Mas não seria o caráter legislador e ativo do conhecimento um dos grandes pontos
de semelhança entre as filosofias de Nietzsche e Kant? De fato, a filosofia legisladora é
o complemento ao projeto da crítica interna, tal como concebera Kant. O filósofo de
Königsberg põe em relevo o caráter constitutivo do conhecimento, destacando que a
produção de conceitos através do entendimento, embora necessite da recepção do objeto,
se realiza apenas segundo a atividade do sujeito do conhecimento. O intelecto humano
molda o caos da experiência sensível, dando-lhe ordem e unidade. Mas por que Nietzsche,
ao tratar do filósofo-legislador, identifica Kant ao quadro do que ele denomina de
operários da filosofia? A questão é que, pela filosofia de Kant, é sempre alguma faculdade
que legisla em um domínio específico. Se é legislador somente na condição de se permitir
ser moldado segundo o bom uso das faculdades, essa passividade, para o autor de
Diferença e repetição, não é própria de um legislador-criador, ao contrário, se confunde
com o lugar de um cidadão obediente, respeitoso dos valores estabelecidos.
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domínios, ao mesmo tempo em que reparte valores estabelecidos –, mas sim por um
genealogista, o filósofo do futuro, aquele que avalia e interpreta, que cria novos valores,
que faz filosofia a “marteladas”; 4. Não é o operário de valores em curso – ao mesmo
tempo sacerdote e fiel, legislador e súdito, escravo vencedor e escravo vencido –, o
homem bem realizado, que deve criar novos valores, mas sim o tipo crítico, homem que
quer ser ultrapassado, superado, um tipo relativamente sobre-humano; 5. O objeto da
crítica não são os fins do homem ou da razão e sim, finalmente, o super-homem, o homem
superado, ultrapassado. A crítica em filosofia não se justifica por uma tentativa de
evolução do pensamento, mas por um deslocamento, em que se possa sentir de outras
maneiras, alcançar uma outra sensibilidade (Cf. DELEUZE, 2010, p.108).
A crítica de Kant não poderia ocupar o lugar onde Nietzsche a colocou, uma vez
que não atacara os pressupostos da imagem dogmática do pensamento. Tal imagem
pressupõe uma afinidade natural entre pensamento e verdade. Relação essa colocada em
cheque pela crítica nietzschiana, ao deslocar a verdade para o campo valorativo: “o
problema do valor da verdade. – A vontade de verdade requer uma crítica – com isso
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a “verdade”, da qual nossos professores tanto falam, [...] ela é uma criatura de
humor fácil e benevolente, que não se cansa de assegurar a todos os poderes
estabelecidos que ela não quer criar aborrecimentos a ninguém; pois, afinal de
contas, não se trata aqui apenas de “ciência pura”? (NIETZSCHE, 2009,
p.177).
Kant não realizou a crítica completa, pois sua filosofia não entra inteiramente em
combate com a imagem dogmática do pensamento. Lembremos que a segunda tese da
imagem clássica do pensamento nos diz que o negativo do pensamento, aquilo que o
pensador deve ao máximo evitar, é o erro, proveniente da sensibilidade. Lembremos
também que Kant esboçou um movimento de mudança nessa imagem, ao não se limitar
ao problema do erro, deslocando o negativo do pensamento para a noção de ilusão. Ainda
assim, seja com o erro ou com a ilusão, a figura oposta é a mesma, isto é, a verdade. Foge-
se do erro e da ilusão para se alcançar a verdade. O problema é que existem verdades
estúpidas e baixas. O que a filosofia deve impedir não é o desvio do caminho da verdade,
mas o crescimento da estupidez 3 e da baixeza do pensamento.
3
O termo utilizado por Deleuze no original é “bêtise”, e trata-se de um conceito retomado por Deleuze em
Diferença e repetição, configurando-se como uma questão de maior peso no pensamento do filósofo francês
do quê do próprio Nietzsche. Pode ser traduzido por “tolice”, como fazem Ruth J. Dias Edmundo F. Dias
na tradução de Nietzsche et la philosophie, “besteira”, como optam Luiz Orlandi e Roberto Machado na
versão brasileira de Différence et répétition, “estupidez”, nossa opção. Privilegiamos esse último,
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Segundo Deleuze:
A estupidez não é um erro nem um tecido de erros. Conhecem-se pensamentos
imbecis, discursos imbecis que são feitos totalmente de verdades; mas essas
verdades são baixas, são as de uma alma baixa, pesada e de chumbo. A
estupidez e, mais profundamente, aquilo de que ela é um sintoma: uma maneira
baixa de pensar (DELEUZE, 2010, p.120).
A tolice, a estupidez, a imbecilidade, a besteira, a baixeza expressam o triunfo das
forças reativas no pensamento e atuam em função da separação entre pensamento e vida.
A filosofia, precisamente por garantir seu caráter afirmador e vital, precisa se contrapor
à tolice. A atividade filosófica fundamental, aquilo que define a filosofia, para Deleuze,
é a criação de conceitos. Ainda que não realizada em função da luta contra a tolice, a
criação de conceitos empreende, como consequência de sua atuação criativa e de sua
expansão, sua posição contraposta, uma vez que a tolice se encontra prejudicada por tal
criação.
5- Conclusão
sobretudo, por se homogeneizar com a tradução que Paulo César de Souza realiza do texto de Nietzsche
em alemão.
4
Mesmo suas leituras de Kant se devem em boa parte aos comentários de história da filosofia de Kuno
Fischer (Cf. MARTON, 2010, p.25).
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A verdade não seria mais o que o pensamento possui de mais positivo. Assim, o
negativo do pensamento não reside mais em noções como “erro” e “ilusão”, e sim na ideia
de “estupidez”. A estupidez não é uma categoria social ou psicológica, mas uma estrutura
do pensamento enquanto tal, e que permanecerá atuando como força inerte em relação ao
pensamento, desde que uma força ativa não se ocupe a forçá-lo a pensar; nesse sentido,
ao contrário do conceito intemporal de erro, ela é sempre atual (Cf. DELEUZE, 2010, p.
122) e leva Deleuze a afirmar que a filosofia está, constantemente, em posição contrária
ao seu tempo. “Posição contrária ao seu tempo” é o mesmo que dizer, em linguagem
nietzschiana: a favor de um tempo por vir.
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Bibliografia
LEBRUN, Gérard. Kant e o fim da metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os
pensadores, v. II).
______. Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade. In: ______. Textos
seletos. Petrópolis: Vozes, 2012.
MARTON, Scarlett. Nietzsche, seus leitores e suas leituras. São Paulo: Editora
Barcarolla, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. 2º edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
______. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Recebido: 02/2013
Aprovado: 03/2013
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O PROBLEMA DOS QUALIA NA FILOSOFIA DA MENTE
Abstract: In this paper, I shall try to explore some problems generated by qualia in
philosophy of mind. First, I shall try to define qualia in philosophical terms. Second, I
make a distinction between the ontological problem of qualia and the epistemological
problem of qualia, pointing out to some thought experiments that motivate these
problems. In the third section, I shall try to relate the discussion outlined in both section
one and section two by showing how the definition of qualia given in the first section
relates to the thought experiments presented in the second section. After that, I shall
present recent development in philosophical theories of perception, hoping that it might
shed some lights on our discussion.
Keywords: Qualia. Naturalism. Disjunctivism.
1- Introdução
Um os grandes desafios da filosofia da mente é o de encontrar uma explicação dos
aspectos qualitativos (qualia) de nossos estados mentais que seja compatível com as
nossas intuições científicas mais básicas. Neste artigo, pretendo explorar de um modo um
pouco mais detalhado estas dificuldades. Com o intuito de delimitar minha discussão,
estarei concernido aqui primariamente com os obstáculos filosóficos que os qualia
impõem a uma visão naturalista do mundo. Por esse motivo, dividirei esta discussão em
dois momentos distintos: primeiro, apresentarei os problemas ontológicos gerados pelos
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qualia, e, por fim, apresentarei os problemas epistemológicos gerados por estes aspectos
de nossos estados mentais.
Precisamos, certamente, explicar o que estes termos querem dizer. Antes de fazer
isso, eu gostaria, entretanto, de esclarecer um ponto em relação a esta definição. Em seu
trabalho de 1988 e posteriormente de 1991, Dennett assume claramente uma postura
eliminativista em relação aos qualia. Para ele, os qualia não possuem uma realidade
metafísica própria. O ponto que quero deixar claro aqui é o seguinte: ao assumir a
definição de qualia de Dennett, não estou assumindo também seu eliminativismo. Esta
definição está dissociada do eliminativismo de Dennett, já que, na verdade, é contra esta
definição de qualia que Dennett situa sua postura eliminativista.
Tendo esclarecido este ponto, passemos às três noções acima que tomamos como
definidoras da noção de qualia. Para tornar nossa análise mais simples, vamos considerar
aqui o caso singular de um quale visual associado à experiência visual que temos quando
olhamos para uma rosa vermelha.
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normais, temos uma experiência visual com variados aspectos qualitativos, sendo um
deles a vermelhidão. Esta vermelhidão de nossa experiência visual é subjetiva, tal como
prescreve a definição de qualia dada acima, porque só nós podemos ter acesso a ela
enquanto aspecto qualitativo de nossa experiência visual. Em outras palavras, este
aspecto vermelho de nossa experiência visual só é acessível a um único sujeito, a saber,
o sujeito do qual este aspecto compõe a experiência. É importante notar também que
quando dizemos que “é somente acessível a um único sujeito”, esta sentença não se refere
a uma limitação local ou atual do mundo, mas sim a uma limitação em princípio: quando
dizemos que o quale de uma pessoa é subjetivo, dizemos que não podemos, em princípio,
ter acesso a este quale. Isso é o que podemos entender por qualia enquanto aspectos
subjetivos.
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3- Naturalismo e qualia
Definir o termo naturalismo seria, certamente, uma tarefa que poderia ser
empreendida à parte. Para os nossos propósitos aqui, no entanto, podemos nos restringir
a duas ideias centrais: (i) a ideia segundo a qual hipóteses filosóficas devem ser
consideradas em continuidade com hipóteses científicas; e (ii) a ideia segundo a qual o
universo físico é causalmente fechado. Tentarei explicar estas noções com mais detalhes
no que se segue.
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Quine, poderiam ser resolvidos pela investigação empírica dos processos psicológicos da
mente humana.
Tendo especificado (i), passemos agora à análise de (ii). A questão que temos em
nossa frente é a seguinte: o que significa dizer que o universo físico é causalmente
fechado? A noção de fechamento causal do universo está associada a uma noção de
completude das ciências naturais, mais especificamente da física. Em outros termos,
quando dizemos que o universo físico é causalmente fechado, estamos nos
comprometendo com a visão segundo a qual a explicação causal de um evento E pode ser
dada exaustivamente por uma causa física F ou um conjunto de causas física F1, F2, ...,
Fn.
Note que dizer que o universo físico é causalmente fechado não é uma afirmação
trivial para o naturalismo dentro da filosofia da mente. Nas discussões acerca da natureza
do mental, ainda não temos claro se a mente é uma substância independente da matéria
(como no caso do dualismo de substâncias) ou se a mente é somente matéria. Neste
sentido, quando assumimos o naturalismo (e, portanto, (ii)), eliminamos, por definição, a
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1
Gostaria de enfatizar que não pretendo, de nenhum modo, apresentar estas experiências de um modo
exaustivo. O meu objetivo é simplesmente apresentar uma versão simplificada destas experiências de
pensamento que possa, no entanto, capturar os conflitos entre nossas intuições acerca da mente e dos qualia
com uma visão naturalista do mundo.
2
Esta afirmação, com toda a certeza, poderia ser disputada. O próprio Chalmers (1996), após negar a
possibilidade de uma abordagem em termos puramente físicos da mente, elabora sua proposta acerca da
natureza do mental, proposta a qual ele denomina de dualismo naturalista. A proposta de Chalmers não se
enquadra, em um primeiro momento, na definição de naturalismo que demos neste artigo. Poderíamos,
entretanto, revisar alguns de nossos comprometimentos de tal modo que a proposta de Chalmers pudesse
ser chamada, em um sentido estrito, de naturalista. Isso, no entanto, extrapolaria os propósitos deste artigo.
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Estados Unidos e a cópia física de Lionel Messi seria o melhor jogador de futebol do
mundo, de tal modo que eles se comportem da mesma maneira como se comportam os
indivíduos dos quais são cópias no mundo atual. Embora fisicamente e
comportamentalmente indistinguíveis do Barack Obama e do Lionel Messi de nosso
mundo, as cópias físicas (doppelgängers) não teriam uma vida mental: a vida interior
destes doppelgängers seria, ao contrário dos indivíduos de nosso mundo, uma completa
escuridão!
Aqui nós podemos nos perguntar: e o que isso quer dizer? Para Chalmers, isso nos
permite perceber que existe pelo menos um cenário logicamente possível no qual seres
inteligentes (como os doppelgängers de Obama e Messi) ajam exatamente como os
indivíduos do qual são cópia no mundo atual, mas que não tenham nenhuma experiência
consciente. Isso nos levaria a considerar a hipótese segundo a qual é preciso que haja algo
a mais do que meras condições físicas para que exista mente ou consciência, visto que é
possível concebermos um mundo que seja uma cópia física idêntica do mundo atual, mas
no qual não exista nenhuma mente.
Note que aqui há um conflito entre as nossas intuições e o modo em que uma
postura naturalista conceberia a natureza da mente. O fato de poder haver um mundo
físico idêntico ao nosso no qual não existam mentes viola (i) e (ii), visto que estas mentes
estariam fora do universo causal da física (violando (i)), o que é uma tese que afronta
diretamente outras teorias mais bem estabelecidas da ciência (o que implica a violação de
(ii)). Neste sentido, teríamos que assumir que mentes são algo mais do que meramente
um composto de entidades materiais, uma postura que não é compatível com a versão do
naturalismo que descrevemos aqui.
3
Para uma discussão relacionada, ver Shoemaker (1982).
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rosa, Pedro responderia algo semelhante a: “Eu vejo uma rosa que é vermelha”. Agora
imagine o caso de Marcos, que, ao olhar para uma rosa vermelha, tem uma experiência
da qual o quale da cor verde é constituinte. Se perguntássemos a Marcos qual a cor que
ele vê ao olhar para a rosa, ele diria algo do tipo: “Eu vejo uma rosa que é vermelha”.
Essa história pode parecer uma ficção exagerada, mas, ao contrário do caso dos
zumbis, parece ser possível pensarmos que tal seja o caso no nosso mundo. Para entender
isso, considere o fato de que ensinamos as noções de cores às crianças por ostensão, isto
é, apontando para um objeto no mundo e dizendo “Aquilo é vermelho!”. O que não
sabemos, entretanto, é se a criança tem de fato a mesma experiência que nós temos ao
olhar para aquele objeto. E, pelo menos ao que indica nossas intuições acerca do assunto,
não parece ser possível, em princípio, descobrirmos qual o quale associado à experiência
da criança. É justamente este o ponto do argumento do espectro invertido: parece não
haver nenhum modo de sabermos, a partir de considerações físicas, se a experiência de
um outro indivíduo é a mesma que temos quando olhamos para um objeto vermelho. É
perfeitamente possível que estas experiências sejam distintas, mas que ainda assim nos
referimos a elas pelo mesmo termo (por exemplo, pelo termo “vermelho”).
Essa exposição nos permite ter uma perspectiva do que seria o problema
ontológico dos qualia. Antes de analisarmos o problema epistemológico no próximo
tópico, um esclarecimento precisa ser feito. Este esclarecimento está relacionado à
divisão que faço entre problemas ontológicos e problemas epistemológicos. Certamente
esta divisão não é tão clara como alguns poderiam desejar. Um olhar mais atento aos
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casos dos zumbis e do espectro invertido nos mostra que também podemos extrair destes
cenários problemas epistemológicos, como é o caso, por exemplo, do problema acerca da
justificação da nossa crença segundo a qual outros seres humanos possuem mente. Em
outros termos, se não podemos saber se o quale de Marcos é o mesmo do que o de Pedro,
como sabemos que Marcos ao menos tem um quale? Mais radicalmente, como sabemos
que Marcos tem uma mente? Não poderia ser ele um zumbi?
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especial e apresentássemos a ela um objeto vermelho, teria Mary uma nova experiência
ou ela já saberia como é ter uma experiência de vermelho, já que ela é uma expert na
ciência das cores?
A intuição comum que temos neste caso é que Mary adquiriu, de alguma forma,
um novo conhecimento, isto é, o conhecimento de como é ver a cor vermelha. O problema
que um naturalista teria neste ponto é o seguinte: se Mary conhecia todos os fatos físicos
sobre a experiência de uma cor vermelha, e se a mente pode ser explicada pela física,
como é possível que Mary tenha adquirido um novo conhecimento? Se concedermos à
nossa intuição inicial, parece haver aqui um problema em relação ao modo em que
conhecemos o mundo físico e o modo em que conhecemos nossas mentes.
Note que poderíamos avançar um pouco mais e dizer que o que explica o fato de
Mary não saber como é ter a experiência da cor vermelha é o fato de que o quale do
vermelho não é uma propriedade física. Esta é, de fato, a conclusão de Jackson (1982).
Esta conclusão, no entanto, não se segue necessariamente do cenário que desenhamos. O
mero fato de não podermos saber como é ter a experiência do vermelho apenas pelo
estudo dos fatos físicos relativos à experiência não significa que esta experiência seja não-
física. Pode ser que, por exemplo, exista uma discrepância entre o modo em que
conhecemos os fatos físicos e nossas experiências conscientes4. Em outras palavras, tudo
o que o argumento parece indicar é que há um problema epistemológico a ser resolvido.
4
Este é o caminho segui por teóricos como P. M. Churchland (1989), Lewis (1988) e Nemirow (1988).
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espacialmente através do som que eles próprios emitem. Dado que esta é uma experiência
totalmente alheia ao homem, uma vez que este se localiza espacialmente pela visão, o
exemplo de Nagel nos coloca frente a uma importante questão: seria possível reproduzir
ou conhecer fenômenos subjetivos a partir de uma perspectiva objetiva? Se as nossas
intuições acerca da experiência de pensamento de Nagel estiverem corretas, então parece
que uma resposta negativa seja a mais provável.
Aqui também temos um caso em que um teórico dualista poderia reforçar seus
argumentos apelando para esta experiência de pensamento. A grande dificuldade, no
entanto, parece estar associada à ligação entre fenômenos subjetivos e fenômenos não-
físicos. É possível concebermos, pelo menos em princípio, fenômenos que possam ser
subjetivos sem ser, necessariamente, não-físicos. Autores como John Searle (1992), por
exemplo, acreditam que uma explicação da mente pode ser dada em termos puramente
biológicos, sem, no entanto, abrirmos mão da associação entre mente e subjetividade.
Michael Tye (1995) também parece sustentar que a existência do fenômenos subjetivos
não implica necessariamente em um problema ontológico para o que ele chama de
fisicalismo 5. Para ele, no entanto, um fisicalista deve de fato explicar como tal coisa como
estados mentais subjetivos são possíveis, problema que o próprio Tye denominará de
problema da propriedade (problem of ownership).
Terei algo mais a dizer sobre o problema epistemológico na próxima seção, mas,
para o presente momento, basta entendermos que estes problemas, apesar de poderem
sustentar conclusões ontológicas acerca da natureza dos qualia, não situam uma
problemática ontológica de modo independente. Tendo isso em mente, podemos passar
agora às considerações relativas à noção de qualia da primeira seção e às experiências de
pensamento aqui apresentadas. Esta é a discussão que terá lugar na próxima seção.
Nas duas últimas seções, estivemos envolvidos em uma discussão de caráter mais
expositivo. Nesta seção, pretendo estabelecer uma relação entre as duas seções
apresentadas até aqui. Em outras palavras, tentarei demonstrar por que aquela definição
5
Podemos entender fisicalismo aqui como a concepção de mundo segundo a qual os entes físicos são os
entes mais básicos da nossa ontologia. Em um cenário ideal, poderíamos explicar todos os fenômenos da
natureza baseando-nos nesses entes.
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Na primeira seção, vimos que uma definição filosófica dos qualia pode ser
caracterizada a partir de três noções principais: a noção de qualia enquanto aspectos
subjetivos de nossos estados mentais, a noção de qualia enquanto aspectos intrínsecos
destes estados mentais e a noção de qualia enquanto aspectos mais básicos ou monádicos
dos estados mentais. Uma questão que ainda está em aberto é a seguinte: como esta
definição se relaciona com os argumentos discutidos na segunda seção? Esta será a nossa
discussão neste tópico.
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físicas mais elementares poderá revelar a verdadeira natureza dos qualia, tal como vimos
no parágrafo acima.
6
Dennett (1988 e 1991), P.M. Churchland (1985 e 1996), P.S. Churchland (1989) são os defensores mais
expressivos desta ideia.
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Nesta última parte do artigo, pretendo tratar de uma teoria que tem se
desenvolvido recentemente na filosofia da percepção. Esta é a teoria disjuntivista da
percepção. Não pretendo argumentar em favor desta teoria neste momento, mas somente
apresentar suas principais asserções e apontar para a relação entre estas asserções e o
problema dos qualia.
7
Ver Fish (2010 e online) para uma discussão introdutória acerca destas teorias.
8
Ver Hinton (1967a e 1967b) para as discussões iniciais sobre o disjuntivismo e Snowdon (2008) para uma
análise mais detalhada do assunto.
9
Byrne e Logue (2008) exploram alguns dos diferentes comprometimentos das variadas teorias
disjuntivistas. Ver também Haddock e Macpherson (2008), volume no qual se insere o artigo de Byrne e
Logue, para textos que exploram as teorias disjuntivistas em diferentes contextos filosóficos, como é o caso
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daqueles relativos à percepção (seção I), aqueles relativos às teorias da ação (seção II) e aqueles relativos
ao conhecimento perceptual (seção III).
10
Ver Fish (2008 e 2009) e Martin (2000, 2002a, 2002b, 2004 e 2006)
11
Isso fica explícito, por exemplo, na crítica que Revonsuo (2010) faz às teorias externalistas dos qualia
(teorias nas quais o realismo ingênuo se enquadra): “Durante o sonho, experienciamos sensações e objetos
de percepção (percepts) que podem ser radicalmente distintos daqueles que experienciamos em nosso
estado de vigília. E ainda que eles fossem similares às nossas experiências em vigília, onde é que estão os
conteúdos desta experiência?” (REVONSUO, 2010, p. 191). Note que a preocupação aqui é com estados
mentais que aparentemente possuem qualia, mas que não estão em nenhuma relação direta com objetos
externos, como é o caso dos sonhos. Sytsma (2010), ao contrário de grande parte dos disjuntivistas, oferece-
nos motivos baseados em considerações empíricas para questionar a afirmação de Revonsuo segundo a qual
experiências como sonhos possuem qualia. Para Sytsma, o problema dos qualia ou o problema difícil da
consciência não é um problema genuíno da ciência, visto que ele está fundamentado não em assunções
científicas bem fundamentadas, mas sim em pressuposições filosóficas controversas.
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das dores? Ou, ainda, como seria uma explicação realista ingênua da dor? Estas são
questões em aberto. Outro ponto importante da discussão acerca do disjuntivismo seria a
de explicar por que o cérebro parece ser tão importante para o estudo da mente. Em outras
palavras, como conceber os estudos empíricos acerca da percepção humana a partir de
uma teoria disjuntivista?
12
Esta postura vem sendo defendida há alguns anos por teóricos externalistas, como é o caso de Dretske
(1995) e Tye (1995, 2000).
13
Isso, é claro, não resolveria o problema acerca da relação entre propriedades físicas e aspectos qualitativos
ou fenomenais. Byrne (2006) argumenta, por exemplo, que não existe o problema difícil da consciência
(Chalmers, 1996), mas sim um problema difícil da cor. Para ele, o difícil seria explicar não como a mente
ou a consciência surgem da matéria, mas sim como as cores podem ser propriedades de objetos compostos
pelas partículas elementares da física. Este é um problema que deve ser resolvido por um realista ingênuo
caso este deseje sustentar uma concepção naturalista do mundo.
14
Em oposição a materialistas eliminativistas.
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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6
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Recebido: 08/2013
Aprovado: 10/2013
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Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a defesa de uma tese condicional. Se
aceitarmos um realismo com relação à mecânica quântica não-relativista, então o
nominalismo é falso. Dessa forma, caracterizamos o nominalismo, defendemos um
determinado tipo de realismo e explicitamos uma incompatibilidade entre a mecânica
quântica não-relativista e o nominalismo.
Palavras chave: Nominalismo, Mecânica Quântica, Indiscernibilidade
Abstract: The goal of this work is to defend the following conditional thesis: that if we
accept a realism towards non-relativistic quantum mechanics, then nominalism is false.
Thereby, we shall describe what it is nominalism, defend a certain kind of realism, and
expose the incompatibility between non-relativistic mechanics and nominalism.
Keywords: Nominalism, Quantum Mechanics, Indiscernibility
1- Introdução
O objetivo de nosso trabalho, como o próprio título diz, será levantar um problema
para o nominalismo. Este problema tem origem em um campo curioso, descoberto
recentemente, se levarmos em conta a história humana ou mesmo a história da filosofia.
Faço referência aqui ao mundo quântico. Esse tópico, estudado pela física, busca
compreender os componentes dos átomos e tem trazido à luz muitos fenômenos que, para
dizer o mínimo, contradizem nossas intuições habituais sobre como o mundo é. Dessa
forma, tomaremos um destes fenômenos e mostraremos como ele é incompatível com o
nominalismo. Assim, nosso argumento assumirá uma forma condicional. Se aceitarmos
as teorias da mecânica quântica não-relativista15, então o nominalismo é falso.
15
Referimos-nos a mecânica quântica não relativista ou ortodoxa seguindo as argumentações em Krause,
2008.
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uma busca por compreender o aspecto peculiar que o problema da individuação produz
nesse campo. Entretanto, até o presente momento, não encontramos nenhum trabalho que
explore a relação do mundo quântico com o problema dos universais. Dessa forma,
propomos este trabalho como uma forma de iniciar esta discussão, apontando que a bem
da física quântica, o nominalismo parece sair perdendo.
2- Nominalismo
16
Nossa exposição do nominalismo segue o verbete “Nominalism” da Stanford Encyclopedia of
Philosophy.
17
David Armstrong (1978; 1997)
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3- Realismo Científico
Segundo aponta nossa introdução, o lugar no qual devemos procurar tal entidade
é a mecânica quântica não-relativista. Dessa forma, antes de encontrarmos o que nos
interessa nessa teoria, convém que argumentemos em favor de aceitá-la como uma fonte
fiável para o pensamento metafísico. Nesse sentido, buscaremos defender aqui certo tipo
de realismo científico. Mas o que é realismo científico? É o que veremos a seguir18.
18
Seguimos aqui as distinções do verbete “Scientific Realism” da supracitada enciclopédia virtual.
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“realismo”. De acordo com o tipo de objetos ou referência que julgamos que eles tenham
no mundo encontraremos tipos diferentes de realismo. Nosso interesse aqui é defender
um realismo metafísico. Neste caso, queremos dizer que os objetos teóricos designados
pelas ciências se referem a objetos existentes no mundo independentemente das mentes
humanas. De outra forma, podemos dizer que o realismo metafísico sustenta que os
objetos que conhecemos por meio da ciência são descobertos pelos homens e já estavam
presentes na natureza. Isso pode ser pensado por oposição a um antirrealismo que poderia
supor que os objetos estudados pela ciência não passam de construtos teóricos, criados
pela própria ciência. Entretanto, um realista não precisa aceitar indiscriminadamente
quaisquer termos teóricos como objetos existentes. A atitude realista que nos interessará
aqui é aquela que se direciona as entidades postuladas pela mecânica quântica não-
relativista. Defenderemos assim um realismo metafísico de entidades. Podemos
compreender essa posição a partir de exemplos. Pretendemos aqui que as partículas
elementares descritas pela mecânica quântica como elétrons, fótons e quarks de fato
existam. Entretanto, isso não quer dizer que supomos que as leis físicas que governariam
seus comportamentos também existam. É possível pensar as leis como aparatos teóricos
que descrevem o comportamento de entidades realmente existentes. O compromisso com
um realismo de entidades não implica um compromisso com um realismo com relação às
explicações científicas. Agora que fomos capazes de tornar clara nossa posição, cabe a
nós fornecer argumentos robustos capazes de fortalecê-la e torná-la aceita.
Existem dois tipos de argumentos que são mais utilizados na defesa do realismo.
Entretanto, para que sejam utilizados especificamente com as entidades que nos
interessam, devemos preenchê-los com os dados empíricos correspondentes. Antes de nos
atermos ao que diz respeito especificamente a essas questões empíricas, exporemos a
estrutura básica dos dois argumentos.
O primeiro argumento chama-se Argumento do Milagre. Peço aos leitores que não
se preocupem, já que não há querelas teológicas envolvidas. Este argumento nos diz
apenas que seria milagroso que uma determinada teoria não fosse capaz de se referir a
objetos existentes no mundo e ainda assim fosse capaz de funcionar perfeitamente. Tal
19
Nossa fonte para tais informações é o Wikipedia, cada artigo utilizado poderá ser conferido nas
referências bibliográficas ao fim do texto.
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funcionamento a que nos referimos diz respeito à confirmação de predições com base na
teoria, construção de aparatos tecnológicos que pressupõe suas entidades, em suma,
qualquer evento prático observável que diga respeito ao conhecimento ou manipulação
das entidades supostas pela teoria e que tenha sucesso.
20
Sigla em inglês para grande colisor de hádrons (large hadron collider).
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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6
de ambos, há as câmaras de ionização que utilizam ainda um terceiro método para detectar
partículas.
Para que fique claro o que ocorre, devemos inicialmente compreender em que
consiste tal princípio. O princípio como formulado por Leibniz não aparece de modo tão
rigoroso, sendo assim, daremos uma definição mais minuciosa 22. Ele pode ser formulado
da seguinte forma: para todo x e para todo y, se x tem todas as propriedades em comum
com y, então x e y são o mesmo indivíduo e assim reciprocamente. Analisando esta
formulação, podemos ver que o que é assumido no princípio é um colapso extensional
entre dois conceitos de identidade. São assimilados aí os conceitos que quero chamar de
identidade qualitativa e identidade numérica. Para o nosso fim, podemos definir
identidade qualitativa como se referindo às propriedades de um objeto. Nesse sentido,
dois objetos (ou mais) seriam qualitativamente idênticos na medida em que tivessem
todas as qualidades (propriedades) em comum. Já o conceito de identidade numérica é
aquele que diz respeito a uma relação que um objeto pode ter apenas consigo mesmo e
nenhum outro, ou seja, uma relação autorreferencial. Não há dois objetos que sejam
numericamente idênticos. Afinal, se houvesse seriam dois, e exatamente por isso, não
seriam apenas um objeto, deixando assim de ser numericamente idênticos.
21
Discourse on Metaphysics, Section 9 (Loemker 1969: 308)
22
Nossa fonte sobre a identidade dos Indiscerníveis foi o artigo sobre o tema encontrado na Stanford
Encyclopedia of Philosophy.
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esse princípio parece se aplicar muito bem a todos os objetos que experimentamos
cotidianamente por meio de nossos próprios sentidos sem a ajuda de instrumentos mais
refinados. Entretanto, não é por isso que devemos aceitá-los no mundo quântico. De
acordo com suas conclusões, podemos perceber que naquela escala há objetos que são
qualitativamente idênticos, ou seja, tem todas as propriedades em comum, embora não
sejam numericamente idênticos, ou seja, ainda são mais de um. Dois elétrons, por
exemplo, não são distinguíveis entre si, tendo todas as propriedades em comum 23. O
mesmo ocorre para fótons, pósitrons ou quaisquer partículas elementares em seu tipo.
A partir dessas considerações, creio que já é possível perceber qual a objeção que
se levanta ao nominalismo. De todo modo, vamos apresentá-la com mais clareza.
Como observamos na seção anterior a esta, não há apenas uma entidade, de fato
diversos dos mínimos constituintes da matéria são exemplificados mais de uma vez.
Dessa forma, elétrons não são particulares, mas sim universais. Poderiam objetar-nos
dizendo que elétrons são tipos naturais e não propriedades como convêm a um universal,
no corrente sentido. Mesmo concedendo a esta objeção, nosso argumento funciona. Os
elétrons tem diversas propriedades e são indistinguíveis entre si. Isto significa que se
23
Como exposto por Krause, a partir da segunda seção de seu supracitado artigo (Krause 2008).
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realizarmos uma permutação entre um número qualquer de elétrons maior que um,
obteremos sempre o mesmo resultado. Dessa forma, podemos perceber que suas
propriedades não são extremamente semelhantes como a humanidade de Platão e a
humanidade de Aristóteles, como supõe o nominalista. Nesse caso, as propriedades são
indistinguíveis, e não semelhantes. De outro modo, a permutação de elétrons apresentaria
resultados diversos, o que, de fato não ocorre. Como atestam Krause e Arenhart na
passagem a seguir:
7- Possíveis objeções
O nominalista poderia objetar-nos que nosso argumento não tem força suficiente
para considerar o nominalismo como terminantemente falso. Afinal de contas, nosso
argumento se baseia em dados científicos, o que, a considerar a história da ciência, não
são um solo estável. Tal objeção poderia então se desdobrar de duas formas.
24
Trecho retirado de (Krause e Arenhart, 2013).
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necessária sobre a falsidade do nominalismo. Ele seria defensável, ainda que apenas por
princípio, e, ademais, dadas as pretensões absolutas da metafísica, nosso argumento não
teria peso. Entretanto, tal objeção não traria bons resultados ao nominalista. Afinal, se
considera que nosso argumento é válido neste mundo e não em outro, acaba de se
comprometer com a tese de que, igualmente, sua posição não tem caráter de necessidade
metafísica.
8- Conclusão
Retomando nosso caminho, podemos perceber que operamos com uma definição
neutra e abrangente de nominalismo. Além disso, explicamos em que consiste um
realismo metafísico de entidades, fornecendo argumentos decisivos para aceitá-lo com
relação às partículas elementares. Notamos, por fim, que, segundo a mecânica quântica
não-relativista, há entidades indistinguíveis. Mostramos, ainda, como esta realidade é
incompatível com a tese nominalista. Por fim, apresentamos possíveis objeções do
nominalista, mostrando como não lhe rendiam bons frutos. Dessa forma, se tivermos
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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6
Bibliografia
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Cambridge University Press.
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Recebido: 02/2013
Aprovado: 05/2013
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