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ear GOR am 1992 Hans Ulrich Gumbrecht MODERNIZAGAO DOS SENTIDOS Traducio Larne Flores Peria SM 000216993 0288- 09560 ULF.MM.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITARIA | Ke SAUTE 65 “Viko oamraue esta TQUETA + editoralli34 1, CASCATAS DE MODERNIDADE Quem opera com prablemas econceitos como os demoderni- dade e modernizagio, periodosetransgdes de periodo, progresso ‘eestagnacio — pelo menos quem o faz dentro do campo da cul tra ocidental ces interessado em discutie a identidade do pré- prio presente histrico — nfo pode deixar de confrontarse com { fato de uma sobreposiglo “desordenada” entre uma série de ‘conceitos diferentes de moderidade e modernizagio. Como e3s- catas, esses conceitos diferentes de modernidade parecem segy ‘um ao outro numa seqigncia extremamente veloz, mas, retros- pectivamente, observa-se também como se cruzam, como 0s seus letos se acumulam e como eles interferem mucuamente numa di- mensio (dificil de deserever) de simultaneidade Devido a etimologia daquelaspalavras que, em linguas eu ‘opéias diferentes, derivam do ltim hodiermus i. “de hoje”) tem sido possvel, desde o final da Antigidade, usar 0 adjtivo *mo- dderno” para estabelecerdistingBes entre oestgo presente € 0 an- tezior da histria das insiuigdes.! Eimprovével, portanto, queuma expresso como papa modernusse efira um papa especificamente “cabs aberta” (ow mesmo “progressista”}mas simplesmente a0 “papa atual”, num momento cronol6gico determinado, Embora case uso se mantenha bastante vivo, os problemas interessantese- ferentes“moderidade” provém exclusivamente de um nivel is- ‘into de suas sgnifieagbes, ou sea, da intrferéncia entre concei- tos diferentes de periodo que esto acoplados a esse tnico sgnif- cante, Hi uma nogo de Inicio da dade Moderna que,enfatizando acontecimentos famosos como a descoberta do Novo Mundo ou ‘a invengio da imprensa, subsume 0s movimentos eas mudangas Marden dos Setidos ° ue cringgm a impress de “deixar para tis” que fora até en to chao de “Idade das Trevas”-Seessa modetndade-Renas- _cenga foo principal objet de fascinio do séeulo XIX, os sori ores alias tm se mostrado mais preocupads, em contrapart- da, em descrever um processo enormemente complexo de moder- risa istemoligica co centro els situam entre 1780 ¢ 1830.) Ea essa propria transigao que se refer Hegel — como situacio contemporanea — quando deua sua flsofia a condigio de enci- minhar histria a um fim edefendea, numa ese complement, {que a ate perdera suas fungées para a humanidade. Em aparente contadgio com o concetohegliano de fim do periodo da arte”, tuna tetra nogio de modernidade, requentementeespcificaa comno Als Moderndade, tem umn campo de aplicagao muito mais fstriayvoca uma épocaespecficamenteprodutvanashistrias cients da literatura e das ares, durante as primeira déeadas XX, época mareads,paricularmhe, por programasra- dicaisegxperimentos audaciosos Embora possaser verdad que de Pssmodernidade sorgiv, pela primeira ver,com a de determinadas caractecticas estilisticas que perm Jecer uma difrengaente literatura €a ate a tum lado, eas do inal do século XX, de outro, no ha vida de que nese meio tempo esseconcsto mais recente de mo- transformourse no pono focal de uma nova discus ica que busca determinar a identidade do nosso pr do segundo miléno, atentando especificamente para a igo de conserutora de temporalidade, iar um ensaio apontando quatro configuragdeseconcei- ntesqueseconfurden faclmente porque todos ls po resentados com o mesmo termo * Moderidade”, pode im gsto que torma por demais previsivel o argumento fc. Niodeveria propor a seguir defines mas transpa- os permit distinguirclaramente os quatro periodos sda Modernidade? Com cera, no estou negando que de consenso no so de tas concetos seria provito= Indo eacima de do, convém insistirem que, Ulrich Gurbrece iferentemente dos conceitossisteméticos, os problemas inerentes ‘as noes historias mio podem ser resolvidos via definigSes trans- parentes ou mesmo consensuais. Fm vez de obter clareza por meio ‘Se defnigbes, 0 hstoriadorestéobrigado&tarefa de desenvolver cdescrigies cada ver mais complexas e sofisticadas dos momentos ‘edas stuacBes do passado — descriges que podem refletir-se em ‘onceitos de periodo sempre mais complexos. Afinal, nfo deveria ser nosso interessedispensaro passado, controlando-o.em conce tos eficentes, mas somente pita n6s mesmose 20 nosso presen- teem confronto com as imagens mais rcas possives da alterida- de hstérca, Portanto, uando tentoenfatizar as diferengas entre fs quatro modernidades mencionadas, minha meta principal € ‘analisare usar a disimica de sua seqiéncia em cascata como uma pré-istria que nos ajudaré a focalizaro stanus histérico peculiar a0 nosso proprio momento. Nesse procedimento hermenéutico ‘hastante convencional de confrontar passado presente hi algo, ‘no entanto, muito menos convencional em jogo. Poderia muito bem acontecer que a vabilidade de tal contraste dependesse do cronétopo “tempo histirico” —o qual, freqientemente, compre: tendemos equivocadamente como um fendmeno meta-hist6rico, rio obstante a sua ocorréncia esteja limitada (no m4ximo) a0 erode de tempo das diferentes moderidaes, Se aconteesse que, hessas cascatas de modemizacio ow através delas, 0 cronétopo do tempo hist6rico tives chegado ao su fim, a descrigio dos sado no fancionaria mais — pelo menos, nio mais necess ‘mente — como um segundo plano para aidentifiasio do presente [Nese caso, a anlisehistérica das cascatas de modernizacio te ria o status de uma miseensabime para ese tipo de analis € para ‘ crondtopo “tempo histrico” como seu pré-requisito principal. Inicio DA MODERNIDADE [A segiéncia de inovagBes que, como i propus, pode ser re~ presentada metonimicamente pela invengio da imprensa ¢ pela Mosrsnaso dos Sentios n escoberta do continenteamericano aponta para a emergéncia do tipo ocidental de subjetvidade — para uma subjtividade que est condensada no papel de um observador de primeira ordem’e na fungio de produgio de conhecimento. Durante a Idade Mé contro, a auto-imagem predominante do homem 0 ‘sentado como parte de uma Criagio divi tayaalém da compeeensio huma dada a conhecer pela conhecimento novo, a do esquecimento todo: no fato de o homem ver asi ‘mesmo ocupando papel do sueito da produgio de saber (o qual, no contexto da teologia protestante, muda o status dos sacamen ‘tos para 0 de meros atos de comemoragib). Em vee de set uma parte do mundo, 0 sujeito moderno ¥éa si mesmo como excén- ele, em ver dese defini como uma unidade de espiito terpreta o mundo dos objetos. Penetrando 0 mundo dos objetos ‘como uma superficie, deifrando seus elementos como signiicantes icantes da superficie ma- 2 Hans Ulich Gambrecht ea terial do mundo nunca sio suficientes para expressar toda a ver~ clade presente a sua profundidade espiri spo hermentutico passou por uma sre initerrupta de desafis e crises. -MODERNIDADE EPISTEMOLOGICA sum processo de moderizag em volta de 1800, que gerou um papel de observa dor que é incapaz de deixa fem diante, auto-reflexivo —de sueito, a emergéncia do observa dor de segunda ordem acarteta tes. sformagies epis temoligias importantes. se observar no ato de observ ‘observador de segunda ordem torna-se i primero lugar um tavelmente consciente Mosderiaso dos Semis 13 de sua consttuigdo corpérea — do corpo humano em geral, do sexo ede seu corpo individual — como uma condigio complexa de sua propria percepgio do mundo, Ao mesmo tempo, aquelas| superfiies materiis do mundo a que apenas a percepgio pode referit-se (mas que estavam reduzidas a um status subordinado dentro do campo hermenéurico) estio em processo de reavalia- ‘io, © interesse do materalismo do século XVII pela anatomia, pels fungdes e pelos objetos dos sentidos humanos,e seu cres: ‘centefascinio pela especifcidade da experiéncia estética, pareeem ser singomas histricos que prefiguram um tal retorno de corpos « materialidades, Uma vee, contudo, que a percepcio como ato fisico eo mundo material como seu objeto se tornaram novamente ‘pico, sungem as questies de saber como eles se relacionam com ‘um tipo de experiéncia que ¢ baseada exclusivamente em concei tos — ese percepgiofisica ea experiencia conceitual podem em todo caso ser mediadas ou reconciliadas. Encontramo-nos ainda =e talvez maisintensamente do que nunca —confrontados com ‘esses problemas. Se, em segundo lugar, o novo observador,auto= feflexivo, sabe que 0 conto de toda observacio depende de sua posiglo particular (eé claro que palavea “posigio” cobre aqui ‘ama moltplicidade de condigBes interagentes), fica claro que — pelo menos enquanto for mantide 0 pressuposto de um “mundo real” existe — cada fendmeno particular pode produzie uma infnidade de percepsdes, formas de experignca erepresentagdes| posivcs, Nenhuma dessas miltplas representagdes pode jamais pretender set mais adequada ou epistemologicamente super todas as outras. Este 0 problema que Foucault denomina “a crise dle representabilidade”."2 Em tercero lugar, possivel conectar ‘aquilo que Reinhart Kosellck e outros hstoriadorestém repet ‘damente escrito como a “temporalizagio” ou mesmo como a “acelerasio do tempo” no séeulo XIX com essa situago de uma «rise de tepresentabilidade.!? Em ver de avalae essa crise como ‘um novo nivel de complexidade epistemolégica ou de adequacio referencial, podemos ver no gesto do século XIX — e no nosso = de descrever os fendmenos por suas evolugbes ou por suas his 4 Hans Ulich Garbrecht ‘6rias uma estratégia de chegar a um acordo com a infinidade agora potencial de suas representagdes. Toda representagao nova pode assim ser integrada em modelos cada vez mais complexos de evolucio ou em relatos historiograficos. Sob essa perspectiva, ‘ahistoricizagio ea narrativizagio aparecerio antes como meios ‘de manipular um problema primordialmente petturbador da pe cepgio do mundo e da experiéncia do que como “realizages cevolutivas”, ‘Atese segundo a qual a temporalizagio é motivada por uma «rise de represenabiidade que, por sua ver, recua atéa emergéncia do observador de segunda ordem implica como conseqiéncia, que ‘aquilo que chamamos “tempo histrico” €ele mesmo um croné- topo historicamente especifico —e, neste sentido, um cronstopo hnascante recente. Ora, 0 que exatamente € especifico acerca do tempo hist6rico”? Estamos tio acostumados com esse pad ‘complexo de experiéncia que é possivel que uma resposta no apareca imediatamente, Parece seguro dizer, contudo, que somente ‘desde o inicio do século XIX atribuiu-se ao tempo a fungio de ser ‘um agente absoluto de mudanga, No interior do tempo histri- «0, no se pode imaginar que quaisquer fendmenos esto livres dde mudanga —e iso leva & acetagio geral da premissa de que periods hstoricos diferentes nio podem ser comparados por ‘uaisquer padres de qualidade meta-hist6rica. Simultaneamen- ‘te,0 tempo como um agente absoluto de mudanga da inovagio «rigor de uma lei compulséria. Doravante, nenhum individuo, ‘senhum grupo, enenhura momento “historico” tem condighes de ser visto como uma repetigio de seus predecessores. Dizer que alguém ou algo “permanecem os mesmos” depois de alguns anos torna-s um cumprimento cada ver mais ambiguo, Se, nto, cada presente precisa ser experienciado tanto como uma modificagio do seu passado quanto como sendo potencialmente modificado pelo seu fururo, compreendemos que o tempo histrico gere a pos sibilidade estrutural de modalizagio tempora.!S Cada uma das ttés dimensdes do tempo pode agora ser imaginada do ponto de vista das das outras dimensBes: o presente como fururo do pas- Mordemiago dos Seis 1s sado e como passado do futuro; o futuro como passado de um faruro remoto ¢ como presente do futuro; 0 passado como fut rode um passado remoto e como presente do passado. A medida ‘que 0 tempo histrico parece ser posto em movimento por tan tos impulsos convergentes, lo & mais possivel pensar o presente ‘como um intervalo de continuidade. Para o eronstopo do tempo histrico, o presente transforma-se naquele “instante impercep- tivelmente curto”,!® naquele lugar estrucual em que cada passa dose tora futuro, Mas é também o lugar —e isso talverseja a ‘mais importante conseqiéncia da temporalizacio do século XIX em que o papel do sujcito conecta-se ao tempo histrico, Em cada momento presente, osueito deve imaginae uma gama de si- ‘agdesfuturas que tém de sr diferentes do passado edo presen- tee dentre as quais ele escolhe um fururo de sua preferéncia, So- ‘mente por meio dessa ligagio com o tempo histico eda fungi ‘que cla cumpre nessa dimensio pode a subjeividade integear 0 ‘componente de ago na auto-imagem que ela oferece & human dade. E essa inter-relagio entre tempo e ago que cra a impres- so de que a humanidade écapaz de “fazer” sua propria histria, CObviament, a filosofia da histéria como wma pritica do [pensamento © como um discurso pressupse essa propria conste- lao epistemoldgica — e pode-se mesmo argumentar que seu programa intelectual reage dretamente a ela, Se a “ilosofia da histévia”, enquanto conceit, remonta a Voltaire, nio hs divida ‘de que a obra de Hegel oferece o leque mais amplo de associa- ‘Ges econexdes potenciais entre a filosofia da historia eas novas mers, ver FLU. Gunbreci, “Objektiver Humor On Hegel, Borges, nthe Hisoal Pace ofthe Latin American Novel” in UichSchuli-Bsch aus Karlin Seong) Prot des Romans der Gegenwart, MO hen, 1996, c: “Das Nicht Hermenestihe.Skizze ener Genealoge”, Im Tervntonen 8, Basel, 1996 2 Sobre sua comvergéni, ver Hors Wenzel rg, Gutnberg wnd die Modecszagio dos Sentidos y Neue Welly Munchen, 194, ¢H.U,Gambecet, “The Boy vs. the Printing ‘res: Media inthe aly Modern Pero, Metals inthe Regn of Castle and another History of Lierary Fors, Petes 14 (1985, pp. 209.227 [apatece neste volume, 38 pp 67-96 (Qsigo a tese de Reinhart Kosleck sobre o assim chamado Sates ("period da ela”) entre 1780-1830. Ela implica que, de um ponto devs Ihermenéoico, a oatridade dos textos anteriores a 1780 sempre stags ex ‘cede s posibilidads da nova compreensio, 20 psso que estamos cons {antemente correndoo isco de no setimos exesivament familiares com textos posterioresa 1830, Ver Vergangone Za. Zur Seman geschicht- licher Zeiten, Fraskfest, 1979. deicrigio de Michel Foucaat de um “so {e" episterolgco por volta de 1800 pode ser lida como uma versio mais ‘eatin da mesa obervagdo. Ver Les mots et les choses, Une arciolgie essences arsine, Pais, 1966, p. 225. Embora a auto-eferéaci “oficial » Quanto ao papel de Bors nese context, ver Carlos Rnsin, "The Lain Amerian Plot in Stanford Literature Renew 10 (1983), pp 167-186. Gabel Garcia Mirus, em patil enaioa vias vensa base realita” de seus romance e novelas — qe seria coavensonalment con ceitundos como “lieatrsfantia™. Ver, or exemploo documento em Carlos Rincon 8 Krista Teebe (ores. Nicaragua Vor wns de Mien der Ebene, Wappecal, 1982, pp. 158161. Movderiaso dos Setidos 3 0 exempo mas novi & a constragio temporal de Com anos de soldi de Gavi! Gara Marquet —ea sua “andi polis” feta plo ssbio Melqiade no capil inal Us deliberadament est conccito de Georg Laks, em Theo des ‘Romans (1916/1820, pas aminalar 0 pego ileal iad 0 ets mo tal com a legbidade” da terarrapsmodera. [Ver Georg Laks, Teoria do romance, Lisboa, Frese, 1966.) > nastate no edo do conceit de Roland Barthes “te de lt Em otras palivrae ings como mo no pode dear de produ “fe tos dereferencialdade” — a menos que ela sea sada, como o facta os neva, Gotu taco de problematic fanebo. 31 Dero ext bpervcio nos meus amigos Marin Menocal (Yak) © Friedrich Kite (Humbol Universit 20 Belin) quem m poupad e- foxos; hi alguns anos, na teat de me convener de que 4 mia de rock overdadeitoparadigma pra os endmenos de “presen gue apn to.agi Exo presando pra alga (meio: Ionveri, Ver Wlad Godsch, “Language, Imag, and the Poster Pre- dicament" in HU. Gumbvech 8 K. Ludwig Pile (orgs), Materiies of Comminction, Santor, 1994, pp. 355373 °° Como grande apoine enorsameno do Departamento Aco da Univesdade de Stanford plane escrever am eo sores ettia do ae bol americano — veo que pretende desctever eanaisaret pepo apd 0 conexito € wado no sentido contemplo por Jean-Luc Nancy, ‘The Birth to Presence, Stanford, 1993 fm parila p. 16, M3166), Ver nota 29 a Hans Ulich Gambreche

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