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SACRIFÍCIO E DOM:
“Oh, Senhor meu, agracia-me com o filho que figura entre os virtuosos, e lhe
anunciamos o nascimento de uma criança que seria dócil, e quando a criança
chegou à adolescência o pai lhe disse: “Oh filho meu sonhei que te degolava,
o que opinas?” “Oh meu pai fazes o que te foi ordenado. Encontrar-me-á, se
Alá quiser, entre os perseverantes”. E quando ambos aceitaram o desígnio de
Alá e Abraão preparava seu filho para o sacrifício, então o chamamos: Oh
Abraão já realizas-te a visão, em verdade, assim recompensamos os
benfeitores. Certamente que esta foi a verdadeira prova e o resgatamos com
outro sacrifício importante e fizemos Abraão passar para a posteridade, que a
paz esteja com Abraão”. (Alcorão, versículos 83-113)
setembro de 2001, o presidente Bush denuncia que um novo “mal” ameaça o mundo: o
terrorismo. E não é que isso seja novo, uma vez que diferentes, cruéis e extremas formas de
mundo islâmico. Nesse sentido, o “terrorismo” adquire rosto, identidade e inclusive pátria.
civilização”, entre outros – que acabam por invalidá-los e condená-los diante da opinião
internacional.
Assim, não se pode esperar que os ataques dos chamados “homens-bomba” 1 sejam
analisados de outra forma. Sua lógica responde ao paradigma do “terrorismo” e, junto deste,
ao conjunto de idéias negativas que se lhe associa. Os meios de comunicação dos países
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equivocada muitos conceitos, como por exemplo o do suicídio, que se aplicam a outros tipos
de situação e realidade (onde a decissão e o alcance desse ato tem uma dimensão
Sem dúvida, um tal discurso é ideologizado, de uso político a favor de uma das partes
do conflito, que, tomando à mão seu poder simbólico – e o conseqüente controle sobre os
e/ou mascarando sua própria ação diante desses povos. Nessa perspectiva, parece inteiramente
válido questionar, como o faz Agustín Velloso (2002), a natureza das formas de violência que
das agressões das potências ocidentais aos povos mulçumanos, sob as ordens de ataques com
democrático”.
Oportuno lembrar que o preocupante dessa situação é que não só a mídia transmite a
“imagem preconceituosa” acima apontada. Ela faz parte de uma tradição de pensamento
Ocidental, denominada por Said (1999) como o “orientalismo”, que, segundo este autor, pode-
se definir: “como instituição organizada para negociar com Oriente ... é um estilo ocidental
para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre Oriente” (Said, 1999: 15). O “orientalismo”
se inicia com o colonialismo europeu de fins do século XVIII, e foi enriquecendo-se, com o
passo do tempo, com os aportes de uma enorme massa de escritores e estilos literários (teorias
socais, românces, ensaios, épicas, relatos políticos, etc), todos os quais partiam da distincão
básica –de estilos de vida e de pensamento- entre Ocidente e Oriente. Essa imagem
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estereotipada pela qual Oriente é visto tem sido reforçada no mundo pós-moderno,
intensificando-se com isto “o domínio na demonologia acadêmica” (Said, 1990: 38). De modo
que, os Árabes e o Islã estão hoje identificados como “maus, totalitários e terroristas” (Said,
1999: 38).
Portanto, é importante ter un olhar crítico na revisão da literátura sobre esta temática.
lado, Peter Demant (2004), que a despeito de fazer importante contextualização histórica, com
uma abordagem abrangente acerca dos múltiplos fatores que envolvem a civilização
muçulmana, termina sendo defensor, de algum modo, da idéia de que o Islã se mostra
impotente e tem fracassado ante aos desafios dos diferentes períodos da história, em particular
deveria se pautar pela democratização das formas de governo e por uma reforma islâmica que
procedesse à interpretação histórica das fontes sagradas. Por outro lado, afirma que ao
Ocidente não resta outra saída, frente ao fundamentalismo islâmico, além da luta, da
confrontação. Sua crítica mostra-se, em parte, interessante; porém, há dois grandes vazios que
respeito à ausência de questionamento por parte de Demant quanto aos modelos de opressão e
dominação ocidental vigentes no mundo moderno, o que o levaria a considerar, sob outra
ótica, a possibilidade dos islâmicos também enxergarem a luta como única saída. O segundo
limite aponta para a ausência de uma interpretação que parta do ponto de vista islâmico, desde
sua religião, sua cultura, sua identidade religiosa e política etc; o que se percebe, ao contrário,
é uma reflexão mediada pelo “modelo ocidental” como protótipo da verdadeira civilização e
do autêntico desenvolvimento.
“preconceito islamófobo” agindo na avaliação dos mulçumanos como “ameaça”. Em que pese
o esforço de indicar onde está, de fato, o perigo ameaçador – como o ódio racial e suas
excluídos no mundo moderno, o autor parece cair num outro reducionismo: o da visão
triunfalista ocidental para propor soluções e “aprender a viver juntos”. Nesse sentido, lembra
Antes: “A ‘solução islâmica’ trabalha como uma varinha mágica para a solução de todos os
problemas, mas perde em brilho e clareza quando é chamada a dizer o que precisa ser
modernidade cujo “brilho” e “clareza” tem logrado “o que precisa ser concretamente feito”?
Parte-se de que visão de desenvolvimento e política para dizer o que precisa ser feito? Talvez
aqui estejam subsumidas, num discurso simplista, outras realidades tão ou mais complexas
religiosa, social, cultural etc. Com efeito, o problema que emerge dessas abordagens parece
mulçumanos, nem tão pouco defender suas argumentações a favor delas. Antes, procura-se
compreender esse universo complexo de significações, admitindo, como o acenou Peter Fry
uma recompensa para esse sacrifício? Qual a lógica que preside tal ação? Existe uma eficácia
simbólica e social que resulte do sacrifício? Essas entre outras questões estão na base da
reflexão aqui proposta. Para pensar esses aspectos, dentre as possibilidades teóricas
consultadas, privilegia-se a perspectiva analítica desenvolvida por Marcel Mauss, tanto pela
incursão à sua teoria sobre o sacrifício (2001), quanto à sua teoria sobre a dádiva (2003). Em
como base do debate que será desenvolvido. Além disso, o diálogo com alguns autores
contemporâneos – os quais dão continuidade ao debate inaugurado por Mauss – parece sugerir
novas ênfases ou re-leituras do autor do Essai sur le don. Assim, procura-se dialogar com
Márnio Teixeira Pinto (1993), Pierre Bourdieu (1996), Maurice Godelier (2001) e Alain Caillé
(2002).
bomba” é bastante reduzida, simplista, além dos limites anteriormente acenados 2, decidimos
município de Lages, em Santa Catarina, cujo nascimento remonta ao ano de 1978 3. Assim,
realizamos várias saídas de campo, conhecendo nessa cidade a primeira mesquita inaugurada
no sul do Brasil, entrevistando a vários de seus fundadores, assim como a seus descendentes.
O importante contato feito com esses informantes nos levou ao xeique da comunidade
islâmica de Florianópolis, com quem tivemos vários encontros. Note-se que a experiência
etnográfica não apenas resultou valiosa, mas se mostrou decisiva para o início de uma
abordagem mais aprofundada acerca do sentido e da lógica dos sacrifícios vividos pelos
reflexão tem por base a interpretação das vozes dos “nativos” à luz da teoria maussiana.
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alguns elementos recorrentes nos discursos dos mulçumanos entrevistados. De forma reiterada
e abrangente, algo que percorre suas falas parece dar o sentido efetivo das ações desses
Com efeito, observa-se uma clara unicidade de pensamento, de valores e de ação, que se
está formulada e gravada no Alcorão. O “livro da palavra divina” guarda a revelação do Deus
único ao profeta Maomé (570-632 d.C.). Este, segundo a tradição islâmica, grava as palavras
de Deus, decorando-as e pregando-as no decurso de sua vida. Daí o anúncio das mensagens a
seu povo e a possibilidade de serem recopiladas – parcialmente escritas – e decoradas por seus
seguidores. No entanto, a organização final do livro só foi realizada após a morte do profeta,
sendo o seu primeiro escriba, denominado Zaid Ibn Tabit, o autor dessa missão (Nabham,
1996, p. 23). Um primeiro aspecto importante desse processo histórico em que se firma a
tradição corânica, segundo a autoridade religiosa entrevistada, o xeique Amin, diz respeito ao
fato de que o Alcorão se manteve “absolutamente fiel à revelação divina”, o que marcaria uma
(...) [a Bíblia] não foi escrita com a mesma fidelidade e, portanto, encontrar-
se-iam misturadas as palavras divinas e as palavras do profeta, assim como as
interpretações dos apóstolos e as de seus seguidores. Nesse sentido, os quatro
livros que compõem a Bíblia só foram oficializados no ano 330 d.c. em Roma,
o que teria levado a uma distorção muito grande (Amin, 2004).
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Nessa perspectiva, nota-se que o Alcorão é concebido como a própria palavra divina –
(Antes, 2003, p. 137). Por essa razão deve-se total obediência ao livro sagrado. Com efeito,
assim concebido o Alcorão, não existem dúvidas quanto às mensagens a serem guardadas,
gravadas e praticadas; não existem também múltiplas interpretações do texto; portanto, não há
(Demant, 2004, p. 35). Daí o papel central da “palavra divina”, que é religiosamente
observada e adorada em todas as suas dimensões, tal como o expressa o xeique Amin: “(...)
mudam de maneira especial”. Ademais desse elemento de “pureza” que os/as fiéis apreendem
no Alcorão, a revelação divina que o livro sagrado encerra constitui a última e genuína
mensagem de Deus, pois, a despeito de reconhecer todos os profetas e messias das tradições
judaica e cristã, o islamismo acredita que Maomé é o último “inspirado” a selar a “longa série
islamismo é a “religião autêntica e universal que, a apesar de ter sido revelada em árabe e por
meio do povo árabe, abrange a todos e dirige-se a todos” (Amin, entrevista, 2004). Na prática,
considerando o fato de ser uma religião configurada em base histórica e universalista, o Islã
tem por fundamento a crença em um só Deus, ao qual se deve submissão total (Demant, 2004,
p. 27). Nas palavras do xeique, é possível apreender tal significado do próprio termo “islã”,
cujo sentido profundo e abrangente indica a importância de ser submisso a Deus. Recorrendo
Na esteira dessa reflexão, é oportuno sublinhar que, para além de uma crença ou de
uma religião no sentido estrito da palavra, o Islã – sob a compreensão da lei divina absoluta e
da submissão total a Deus – acaba por abarcar todas as esferas da vida humana. Isso significa
dizer que, ao longo dos tempos, essa religião e sua crença tornaram-se modelo de vida,
tradição guardada e transmitida de geração a geração, quer dizer, tornaram-se cultura. Assim,
é imprescindível entender a sua autoridade na condução dos diferentes âmbitos da vida dos
mais general (Demant, 2004, p. 35). Depreende-se desse aspecto o fato de que o Islã cria,
numa continuidade inclusiva. Ou seja, ainda que se produza uma diferenciação fundamental
entre imanente ou humano e transcendente ou divino – tal como se verifica nas chamadas
religiões universais, i.e., Judaísmo, Cristianismo e Islamismo –, o Islã parece indicar certo
“trânsito” entre tais dimensões, compreendendo uma interação que aproxima essas ordens
os opostos clássicos: céu e terra; Deus e homem [no sentido de humanidade]; corpo e alma;
matéria e espírito; indivíduo e sociedade; homem [varão] e mulher; religião e política, entre
continuidade articuladora.
islâmica, que, a nosso ver, a torna singular dentre as demais tradições, constituindo um dos
pilares sobre o qual se funda a dinâmica social e cultural dessa religião. Por outro lado, é
preciso dizer, reconhecemos a enorme polêmica que tal afirmação suscita. De fato, é bastante
complexa a tarefa de encontrar uma categoria “clara” para explicar essa discussão. De
qualquer forma, o que se deseja enfatizar é, pois, a idéia de que, embora apresente as
categorias do que chamamos de dualismo clássico, o Islã não as desenvolve como tal.
Interessante observar ainda que, nas leituras feitas sobre o islamismo, são recorrentes as
que dizem respeito à continuidade entre política e religião. Ademais, apontam para o caráter
inclusivo e abrangente dessas, por assim dizer, dimensões. Entretanto, é importante frisar, não
funcionamento dos dualismos presentes ao interior desse sistema de pensamento. Isso nos
leva a afirmar, sem medo de leviandade, certa ambigüidade, que teria sido produzida sob o
legado do pensamento grego para o Ocidente, cultura com a qual os povos árabes tiveram
estreito contato. Basta ver que os mulçumanos se reconhecem sucessores dos princípios
religiosos – crenças, dogmas, teologia, moral etc – do judaísmo e do cristianismo. Mas, além
“modernização”. Neste caso, verifica-se a noção de oposição dualista entre as mais diversas
dimensões. Ao tentar buscar na fala dos informantes o sentido mais profundo dessa questão,
percebemos os sinais de ambigüidade a que nos referimos acima, haja vista o fato de estar a
lógica do seu pensamento evidentemente sustentada pelo sentido dualista das coisas. O que
Certamente, é fundamental perceber que uma coisa é ter a concepção e/ou o princípio
que sustenta essa diferenciação ontológica; e outra coisa bem distinta é que, de fato, as
do Islã em relação ao que acontece na sociedade ocidental, cuja abismal distância entre as
se não perder o sentido de unicidade entre essas partes, integrando-as, de certa maneira, em
ordem a uma justaposição. Nesse sentido, chama especial atenção a forma como os
por exemplo, que denotam um tratamento diferenciado para a questão do dualismo. Tendo em
conta, a título de reflexão, as punições prescritas pelas leis islâmicas, em que as penalidades
exigência acerca desse tipo de castigo – oportuno lembrar que o castigo cristão incide
relação entre o político e o religioso. Na verdade, essa separação radical nunca existiu dentro
da comunidade islâmica, uma vez que qualquer instância social, incluindo a esfera política, se
deve reger, em princípio absoluto, pela submissão total à “palavra divina” do Alcorão. Do
mesmo modo, os conceitos de moral, ética e justiça dessa tradição estão perpassados pela
lógica religiosa da continuidade. Daí ser possível perguntar: até que ponto se pode falar da
relação entre política e religião quando, de fato, fazem parte de uma mesma realidade e
dinâmica?
aspecto. Como afirma Peter Antes (2003, p. 109), o ideal da educação do islã ensina os
subtrair-se, sem desaparecer, mas dando lugar a uma noção do ser social, bastante afastada do
muitos outros que são considerados no Islã, mostra algo que parece bastante significativo
comunitário, e resguardados por princípios como a honra, ligada, por sua vez, ao controle da
sexualidade feminina (Demant, 2004, p. ). Há, por conseguinte, uma configuração do mundo
islâmico por sobre uma antiga tradição cultural, que se perpetua através do “livro sagrado” – o
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Alcorão – que se mantém fiel, como já foi observado, à revelação de Deus desde suas origens.
Por outro lado, seguindo a intuição de Clifford Geertz (2000, p. 107), é importante assinalar,
ligado/unido a uma forte prática ritual, cujos estados anímicos, cujas motivações e concepções
religiosidade islâmica (Demant, 2004; Antes, 2003; Nabham, 1996), haja vista que os pilares
dessa tradição estão cimentados em práticas rituais e por meio delas: a fórmula da confissão,
quotidiana dos mulçumanos. De acordo com o xeique Amin, elas são “uma manifestação
verbal de adoração a Deus”. E acrescenta: “As cinco orações por dia fazem com que o
muçulmano lembre da presença de Deus na sua vida, no seu trabalho, na sua profissão, em
todas as horas do dia; por isso [os mulçumanos] começam antes do nascer do sol, vão até a
hora de dormir” (Amin, entrevista, 2004). Além dessa rotina de rezas, faz-se um dia de
reunião comunitária para a oração coletiva, que acontece às sextas-feiras ao meio-dia. Por sua
vez, o mês do jejum é igualmente uma celebração coletiva em que se celebra o recebimento
do Alcorão; os fiéis se abstêm, desde o nascer do sol até o pôr-do-sol, de práticas como a
relação sexual, a ingestão de bebidas e comidas etc (Demant, 2004, p. 27). É, pois, um ritual
entrevista, 2004). Ao mesmo tempo que concorre para uma auto-disciplina, o jejum reforça os
Com relação à esmola, ela é considerada “um dever de todo muçulmano, de ajudar os
mulçumano oferece à sua comunidade. Trata-se de uma contribuição obrigatória destinada aos
gastos e serviços da mesquita, cuja aplicação é feita de acordo com o tipo de ingressos dos
fiéis (Amin, 2004). Por outro lado, os mulçumanos observam a orientação corânica referente à
peregrinação ao lugar sagrado, a cidade de Meca. Mesmo que tal observância guarde um
caráter esporádico e/ou eventual, sabe-se que se trata de um ato muito relevante para a vida
religiosa dos/das fiéis. Assim, considerada como prática obrigatória, ao menos uma vez na
Os indivíduos que dispõem de recursos financeiros – não só para hospedar-se na cidade, mas
especialmente para deixar sua família amparada no tempo em que estiverem em peregrinação
–, devem cumprir religiosamente esse preceito. Nesse sentido, por suas dimensões, a
que reúne os muçulmanos do mundo todo, de todas as raças, de todas as cores, de todas as
línguas; de todos os cantos da terra se reúnem [mulçumanos] em um lugar só, onde adoram
um Deus único” (Abbel, entrevista, 2004)). Na prática, a peregrinação revela uma forte carga
entrega a Deus. Segundo Abdel, muitos idosos morrem em peregrinação; mas, para eles, isso
quanto as suas práticas rituais e sua disciplina religiosa estão diretamente relacionadas com a
único, cuja fórmula da confissão inscreve a sua vontade como a soberana destinação de toda a
humanidade. Essa adoração permanente e total a Deus está motivada por um ideal ou uma
utopia que se estende, ao longo da vida, à experiência humana dos/das fiéis, dando-lhe
justificação eterna no paraíso, na eternidade, após o dia do juízo final, junto do Deus único.
Nesse sentido a fórmula da confissão acompanha o/a fiel que, em primeiro lugar, manifesta
verbalmente a sua fé: “A crença é a base de toda a nossa visão (...). A palavra do testemunho
da unicidade de Deus, a palavra do testemunho de que neste universo existe um único Deus,
Até o momento, tem-se buscado um caminho que tenta trazer à superfície desta
reflexão uma visão mais fidedigna dos princípios e valores da tradição islâmica, que, a nosso
totalidade de seu sentido. Para alcançar esse intento, é necessário definir, inicialmente, uma
categoria que se considera como a mais apropriada para analisar esse fenômeno. Na
introdução deste estudo, recusava-se o termo “suicida”, porque este se afastaria da natureza do
ato em questão; ou seja, entende-se que não se trata apenas de “dar morte a si próprio”, tal
como é compreendido no mundo ocidental. Há um sentido muito mais profundo, pois, além
de “dar morte a si próprio”, essa ação se realiza contra certos objetivos político-militares, o
quer dizer: sai da esfera estritamente pessoal. Por outro lado, não se pode igualmente reduzi-
lo a um “ato terrorista”, posto que tal expressão está carregada de ideologia a serviço das
potências ocidentais, para invalidar as práticas vistas como “perigosas” para os seus
Para além dessas denominações – arbitrárias e parciais –, é preciso admitir, não parece
tarefa fácil a de classificar um evento dessa natureza, que foge das categorias com as quais
usualmente são analisadas as ações bélicas. Dificuldade esta que se radica, fundamentalmente,
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no fato de que não se pode enquadrar esse fenômeno dentro de uma só esfera, porque ele
denominar um ato dessa natureza, lidando com sua aparente ambigüidade e seu sentido
informantes, sobretudo, destacam-se importantes elementos indicando que o eixo dessa ação
poderia estar no campo religioso, cujo substrato fundamenta toda a vida e o pensamento da
comunidade islâmica. Essa idéia aparece, de algum modo, nos depoimentos recolhidos,
Não, não [se] encontra violência nenhuma no Alcorão, mas ele – o “homem-
bomba” – pensa que, dando a vida dele por uma boa causa, ele vai ganhar o
paraíso. Então, o sentido de matar é outro, é uma entrega. O suicídio para ele
não é um suicídio. É um sentido diferente de fazer tua missão e ir para o
paraíso (Abdel Nasser, 2004).
Um outro aspecto que chama fortemente a atenção nos depoimentos refere-se à forma
outras práticas tomadas como semelhantes às deles – como a morte pela pátria ou por ideais
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“além”, fora do mundo humano, que se dinamiza e se concretiza por meio da “entrega” ou da
categorizar esse ato, uma vez que ela se afigura como teoria satisfatória à compreensão dos
fenômenos a que se refere. De qualquer modo, é oportuno reconhecer, não se resolve todo o
problema levantado; pelo contrário, partindo desse novo elemento, surge uma série de
perguntas: trata-se de que tipo de sacrifício? qual a lógica interna a ele? que elementos
culturais o explicam?
haja uma diversidade de rituais sacrificais, existe uma prevalência de “unidade de ação”, que
consiste em:
“sagrado” e o mundo “profano” (TEIXEIRA, 1993, p. 167), estabelecendo contato entre essas
“duas ordens de realidade” e, por conseguinte, mobilizando certas forças que são necessárias
em determinados contextos sociais. Esse seria, pois, o princípio que determina a lógica do
sacrifício. Oportuno lembrar que o seu conteúdo muda no decurso da história, passando de
uma noção mais prosaica e materialista – “obter dos deuses benefícios muito precisos” – a
uma mais espiritual, referida a fins transcendentes – “salvação das almas”, “imortalidade”
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“paraíso” etc –, assim como o concebem as grandes religiões históricas (Mauss, 2003, p. 198;
Por sua vez, os “homens-bomba” fariam parte desse último tipo de sacrifício, que se
orientam pelos fins transcendentes. Assim, da mesma forma que atua todo sacrifício, eles
realizariam uma mediação entre o mundo profano e o sagrado. Aproximam, pois, esses dois
planos da vida. Por meio deles próprios, de sua imolação – ato intenso e contundente –, fazem
essa ponte de comunicação e interação entre as partes. Nesse sentido, eles são vítimas e
domínio do sagrado (Mauss, 2003, p. 151), ingressando numa nova categoria: a dos mártires.
Esse protótipo seria, então, algo com que o coletivo estabelece formas de identificação e/ou
projeção partindo de suas próprias carências e necessidades. Nessa condição singular eles
inferir, quanto ao rito sacrifical, que esse fenômeno comporta uma necessária dinâmica de
certa inflexão na presente análise. De fato, a sugestão de Marcel Mauss, desde a época em
que foi escrita a teoria sobre o sacrifício, no ano de 1899, aponta para os elementos aqui
retomados à luz de sua abordagem acerca da correlação entre rito sacrifical e dinâmica da
Ora, no Ensaio sobre a Dádiva (1924), Mauss não aprofunda essa questão, mas tem-se
uma clara reiteração da idéia do contrato preexistente no rito sacrifical. Afirma o autor que “a
destruição do sacrifício tem precisamente como finalidade ser uma doação que há de ser
necessariamente retornada” (Mauss, 2001, p. 172). Por outro lado, no âmbito dos estudos
do sacrifício, dando continuidade à reflexão inaugurada por Mauss. Nessa perspectiva, alguns
matizes devem ser levados em conta. Um primeiro estudo a ser lembrado é o de Maurice
dívida eterna dos humanos para com Deus, para a qual não existe retribuição possível; logo, a
lógica da reciprocidade, em termos maussianos, não seria aplicável nesse caso. Nas palavras
de Godelier:
Diferentemente de Godelier, esse autor procura deslocar a discussão acerca do sacrifício para
Hubert e Mauss, Caillé observa que esta deveria ser reinterpretada à luz do Essai sur le don –
a obra maussiana de 1924. Daí que sua proposta é a de reformular tais noções traduzindo-as
sentido da dívida eterna, sem possível retribuição; de outro lado, a ênfase no sentido da
busca-se, assim, situar o debate no nível do diálogo entre o campo teórico do sacrifício e o da
Mauss parece definir com clareza a existência dos dois campos teóricos, como já acenado
anteriormente. Não obstante, como bem sublinha Teixeira Pinto (1993, p. 168), o tema do
sacrifício acabou sendo “esquecido” inclusive pelo próprio Mauss, que teria relegado a
segundo plano o seu “problema original”. Segundo o autor, essa tarefa apresenta-se como um
dos desafios para a antropologia: retomar e prosseguir a análise de alguns dos problemas
“submissão absoluta” a Deus e à sua vontade. No entanto, por mais altruísta que se mostre tal
ato, ele não está isento de interesse. Ou seja, há uma busca explícita de compensação. Uma
aspiração que, como os mulçumanos mesmos sinalizam, não pertence à ordem do material
Por vontade própria ninguém quer morrer. Quem gosta da morte? Ou, então,
quem gosta de tirar todos os seus bens e entregar para outro? Mas os
companheiros do Profeta fizeram isto por seu livre arbítrio. Vendo que atrás
deste ato há uma grande recompensa. A recompensa é a satisfação de Deus e
seu contentamento com a pessoa, a absorção do castigo infernal, o lugar no
paraíso. A salvação. Com certeza, ele não espera a recompensa de alguém aqui
na terra. O que ele espera da sua vida? O que ele espera em troca? Fazer um
monumento e colocar no meio da praça? O que vai adiantar isso para ele? Vai
devolver sua vida? A única coisa que a pessoa espera, nesse sentido, é o
sucesso na outra vida (Amin, 2004).
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sagrado não é a mesma que se verifica no interior das relações sociais. Pode-se observar uma
quanto aos objetos que se trocam, ao seu direcionamento e ao tempo em que a troca se efetiva.
fundamentalmente pela distância ontológica dos seres que se relacionam: de um lado estão os
coloca ambas as esferas num plano de verticalidade; ou melhor, trata-se de uma relação
assimétrica, de caráter hierárquico, entre um ser superior e suas criaturas (Caillé, 2002, p. 168;
Godelier, 1996, p. 290). Destarte, o tipo de troca que se estabelece adquire uma outra
(Caillé, 2002, p. 168). Assim, na esteira dessas idéias e tendo em conta o que o xeique afirma
como um ato maximizado de entrega, cuja oferenda é o dar-se a si mesmo, e sem reservas, a
Deus. Pela oferta de sua própria vida, espera receber, em troca da entrega total, um bem
Observa-se, desse modo, uma relação evidentemente hierárquica, que encerra uma
à vontade de Deus, à sua lei. Nesse sentido, ainda que pareça uma troca eventual e desconexa,
continuidade a ela, muito embora se situe numa escala diferenciada de tempo, e, por sua longa
duração, abarque sujeitos de diferentes épocas e gerações. Importante ressaltar que essa troca
não se inicia com a imolação dos “homens-bomba”, ela é contínua a um movimento que tem
suas origens, como o afirma Godelier (2001), na dívida original dos humanos para com os
deuses criadores do mundo em que vivem. Contudo, à diferença do que propõe o autor, esse
submissão ao Deus todo poderoso. Daí que, na prática da religião islâmica, a comunidade de
fiéis incorpora à sua experiência cotidiana um significativo sentido da ação ritual, que se
estende aos diferentes âmbitos da vida humana. Portanto, constata-se a existência do contra-
dom humano; porém, este é de menor categoria, i.e., inferior ao dom divino. Todavia, não
cimentação da relação hierárquica entre as esferas divina e a humana – oportuno assinalar que
Mauss procura mostrar esse elemento quando se refere às relações hierárquicas estabelecidas
por meio dos dons “agonísticos”. No sentido proposto por Mauss, a magnitude dos dons,
oferecidos e destruídos, é uma marca clara de status social e de relações de poder. Em suas
palavras:
Nessa perspectiva, a imolação dos “homens-bomba” emerge como uma prova maior
da submissão absoluta, que faz parte, por conseguinte, da relação de reciprocidade com a
esfera do divino. No entanto, nota-se, essa troca não se restringe ao nível do individual, pois a
pessoa que se sacrifica nesse ato não o faz motivada por uma causa pessoal, nem em busca de
uma recompensa individual. Ela entrega sua vida por uma causa social, em “defesa da pátria,
da sua religião, da sua fé”, e igualmente está esperando uma recompensa maior: a “salvação
referido fenômeno. O que significa dizer que se trata de um ato “voluntário, aparentemente
altruísta e voluntária do ato de dar, mas, por trás disso, há um “interesse” e um sentido de
“obrigação”. Sendo assim, como entender esse sentido da obrigação em algo que se apresenta
como um ato livre? De acordo com a abordagem maussiana, é preciso olhar para o conjunto
de forças que atuam no universo social enquanto influenciam e delimitam igualmente o agir
entre outros. Uma noção pertinente a esse tema, e que parece circunscreve-lo de forma eficaz,
é aquela desenvolvida por Pierre Bourdieu: a noção de habitus. De acordo com o autor:
anteriormente, fornece o contexto mais amplo das estruturas por meio das quais se
o dado da submissão como elemento central da doutrina religiosa, que perpassa todas as
esferas da vida dos muçulmanos, produzindo neles uma forma de conduta, de raciocínio e de
se relacionar e de agir diante do mundo. Com efeito, basta lembrar o fato de que os cinco
desde cedo aos costumes de família, vê-se configurar o habitus nas diversas dimensões da
vida pessoal e da vida social. Como assevera Abdel Nasser: “(...) lá [no Oriente Médio] é
outra coisa. Desde cinco ou seis anos uma criança na escola já aprende a ler o Alcorão; aqui
não é desse jeito. A grande maioria desses países árabes tem o Alcorão no ensino, tem que
Há toda uma situação colocada pela prática religiosa dos fiéis que cria as condições
Alcorão e os documentos religiosos produzidos ao longo dos tempos não apenas introduzem
os fiéis no âmbito da vontade de Deus, mas os informa sobre as leis por meio das quais ele
continua agindo nas suas vidas individuais e sociais: na religião, na política, na economia, na
sociedade etc. Tal é a lógica que alimenta a obediência oferecida a Deus por Abraão. Também
fortalecimento da sua fé, mas também dos benefícios que toda a humanidade receberia por
meio dessa entrega. Daí ser chamado o “pai” da fé. Nesse sentido, o coletivo é o principal
beneficiário da entrega. Abraão não teria imolado seu filho simplesmente por um capricho de
Deus, ou, menos ainda, para salvar-se a si mesmo, mas pela eficácia da entrega, que está
diretamente ligada à vontade de Deus com quem faz aliança por meio de sua livre decisão.
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Enfim, esse contexto cultural islâmico, marcado pelo sentido religioso, está criando e
recriando na prática quotidiana um estilo de ser, uma disposição para se comportar e agir que
basicamente está orientada por sua atitude de entrega total a Deus. Uma entrega que está
alimentada por grandes ideais. Em primeiro lugar, a salvação eterna, o paraíso. Em seguida, o
que Demant (2004, p. 329) chama de “utopia islâmica”, que é a visão e a busca de uma
justiça social. Observe-se o seguinte depoimento, que é bastante representativo dessa idéia:
Aquele que está lutando por um ideal é o mesmo que você [ao] defender-se contra um
agressor para proteger sua vida, mas você está fazendo este ato porque você está
cumprindo uma ordem de Deus. Acredita em Deus e acredita que este agressor irá para
o inferno, irá ser castigado e você, ao se defender e matar, não será punida. Você
acredita que Deus te deu o direito de proteger sua vida como a vida do próximo. Se o
próximo tirar sua vida, você está fazendo uma coisa pela causa de Deus, porque esta
vida não lhe pertence, mas pertence a Deus. A pessoa que está lutando num país onde
ele está vendo sua pátria violada, sua mulher, seus filhos, seus bens, sua riqueza, sua
casa está sendo destruída, sua vida está sendo tirada, ele está lutando não por causa
somente disso, mas também porque Deus deu o direito de lutar para proteger estas
coisas, porque a construção da vida humana é através da proteção destas coisas.
Segundo o Alcorão, aquele que mata uma pessoa é como [se] tivesse matado toda a
humanidade, aquele que dá a vida para alguém, dá a vida para toda a humanidade
(Amin, 2004).
frente a esse ato, bem como das distintas posições que existem dentro do mundo islâmico e
fora dele, torna-se de fundamental importância a reflexão em torno de um fato cuja conduta
escolha, “normal” e/ou “plausível”. Ou ainda, trata-se de uma disposição apreendida ao longo
CONCLUSÃO
implicações. De modo especial, os obstáculos surgem quando são exigidos princípios como o
“lugar” que torne explícito o recorte feito – ou melhor, o “lugar” do qual se fala. Com efeito, a
nossa aproximação junto aos representantes da comunidade islâmica em Santa Catarina se dá,
como se sabe, numa perspectiva ocidental de análise dos “nativos”. Entretanto, lembrando a
perspectiva do “outro”, sob o seu olhar, e pensá-la numa interlocução com a tradição de
pensamento ocidental. Nesse sentido, o diálogo com Marcel Mauss mostra-se eficaz. Em
outras palavras, o nosso “lugar” privilegia uma interpretação voltada para o confronto a certos
de tal fenômeno. Tentamos captar a lógica e o sentido que os mesmos “nativos” dão a esse
fato. Por outro lado, seguindo a contribuição de Mauss, procuramos tomar à mão alguns
desses temas na experiência de campo e nas leituras feitas sobre a tradição islâmica.
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Oportuno refletir que essa aproximação poderia se dar de diversos modos, sobretudo
ilustração, podemos citar recente entrevista de Jacques Derrida (2004) ao Jornal Folha de São
Paulo quando, interrogado sobre o terrorismo e o medo que este provoca hoje, a despeito de
criticar o uso ideológico desse conceito, indica que o futuro depende da filosofia e dos novos
conceitos criados pelos filósofos – como “um novo conceito do político” e “um novo direito
internacional”; ou seja, ao que tudo indica, as respostas, de uma forma ou de outra, apontam
alcançar uma visão sensivelmente nova e diversa do olhar de que partimos. Trata-se de algo
complexo que, a nosso ver, desvela no fenômeno dos “homens-bomba” significativa riqueza
cultural e simbólica da sociedade muçulmana. Por outro lado, entendemos que é possível
fazer uma leitura “total” desse fato, em se considerando a abordagem maussiana, para
compreender essa cultura. Tendo em conta o “fato social total”, vemos que o fenômeno aqui
sociedade global. Nesse ponto concordamos com Demant (2004) quando afirma que o
“fundamentalismo muçulmano é moderno”. Essa idéia nos parece bastante relevante para
explicar esse fato, uma vez que os “homens-bomba” são produto da sociedade moderna, de
seus conflitos e suas crises. Mas não somente isso: é também a atualização de uma tradição
milenar, que reconstrói seus códigos simbólicos para dar respostas diante dos desafios do
mundo contemporâneo. Certamente, não estamos defendendo essa “resposta” – a dos homens
necessário compreender a lógica histórica e cultural que preside esses fatos no mundo. Como
Uma tal lógica fundamenta-se na tradição religiosa que, como já foi visto ao longo
deste estudo, é o substrato da cultura dos mulçumanos, do seu pensamento, dos seus valores e
dos princípios que norteiam sua vida. Na prática, essa tradição tem como elemento central o
insere nesse universo simbólico como algo incorporado e vigente na vida desses povos. Como
bem sublinha Marcel Mauss (2003), o sacrifício foi conservado e inclusive sublimado pela
novos sacrifícios, criadores e redentores” (Mauss, 2001, p. 167). Assim, a nossa opção para
palavras, é preciso contribuir com a crítica aos limites do debate político na sociedade
Ocidental, observando o aspecto relacional sob o qual se deve tomar a visão do “outro”. Nesse
caso, a visão do “outro” é plasmada por uma tradição religiosa e cultural bastante relevante no
mundo, e não apenas por aquilo que significa o “ataque dos homens-bomba” à modernidade
ocidental. A própria lógica do fenômeno revela um conjunto simbólico por si só pertinente aos
inclusive quanto à premente discussão política acerca das relações humanas nas sociedades e
nos Estados.
Nessa direção, a análise sugere que o ato dos “homens-bomba” pode ser entendido
um contexto de conflito que afeta profundamente a estabilidade social desses povos. Esse
“lugar” de conflito é identificado pelos mulçumanos como “o mal” ameaçador, que atinge
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tanto os bens fundamentais (primários) – território, pátria, família, comunidade etc – como
aqueles referentes aos seus grandes ideais (religiosos e/ou de vida) – a construção de uma
eles reagiriam, pois, com as “armas” da tradição: o rito e o sacrifício. Ora, sem dúvida, essa
“ação” mostra-se eficaz. Não apenas como mecanismo inapreensível pela lógica ocidental;
de algum modo, compreendendo-o como figura mística, “mártir” mesmo, o qual renova e
NOTAS
1 Ao utilizar o termo “homens-bomba” não se quer esquecer que, dentre o grupo de indivíduos que figuram
nessas ações violentas, há também a participação de mulheres. No entanto, conforme a fala de alguns
informantes, elas apareceriam em menor número que os homens. De qualquer forma, a expressão neste estudo
quer sobretudo lembrar uma referência cunhada por aqueles que dizem “combater o terrorismo” e pela mídia que
reproduz essa idéia.
2 De modo geral, pensa-se, por exemplo, no número grande de revistas e jornais de circulação nacional que
deram ênfase ao tema dos “homens-bomba”, e de outros que se relacionam a ele, à época imediatamente
posterior ao 11 de setembro, preocupando-se muito mais com a divulgação de notícias “vendáveis” em torno ao
Oriente Médio e aos mulçumanos, do que propriamente com uma análise baseada em estudos científicos.
3 Santa Catarina é um dos estados brasileiros apontados pelo historiador Peter Demant (2004, p. 188) como
lugar de concentração dos mulçumanos. Da cidade de Lages, na serra catarinense, nos veio a possibilidade de
conhecer de perto integrantes da comunidade islâmica brasileira. O Islã no Brasil está representado por uma
comunidade cujo número de fiéis “supostamente chegaria a um milhão”. Os mulçumanos radicados no Brasil
descendem, uma parte, de escravos negros africanos e, outra parte, de imigrantes árabes, sobretudo de libaneses
– que têm no país a maior comunidade dessa descendência no mundo – e sírios. Nesse sentido, é interessante
perceber, na esteira do estudo de Demant, que o fenômeno da “tolerância intercomunitária” e da “mestiçagem”
no país empurrou esses imigrantes para uma assimilação: “(...) aqui a sobrevivência de uma cultura islâmica
específica tem que lidar com a presença de uma cultura receptiva ‘demais’, sendo considerada por alguns
‘leviana’, em comparação aos preceitos puritanos do islã” (Id.). Com efeito, os últimos anos foram para o
islamismo e sua comunidade brasileira momento de expansão, inclusive com o apoio financeiro e logístico da
Arábia Saudita (DEMANT, 2004, p. 188-189). Daí que nos foi possível sentir na receptividade da comunidade
islâmica essa possibilidade de convivência pacífica entre alteridades.
4 Sem dúvida, seria necessário discutir inclusive o tema da identidade tendo em conta as análises em torno dos
conceitos que as ciências sociais têm formulado acerca dessa questão. Não obstante, ocupar-se-á, neste estudo,
mais diretamente das implicações religiosas e sociais que um tal conceito sugere. Por outro lado, do ponto de
vista da antropologia o conceito de identidade remete ao de etnia que, grosso modo, é assim descrito: “Na
linguagem científica corrente, o termo ‘etnia’ designa um conjunto lingüístico, cultural e territorial de um certo
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tamanho, sendo o termo tribo geralmente reservado a grupos de menor dimensão” (BONTE;IZARD, 1992, p.
242). Para um estudo minucioso do tema, ver, por exemplo, as interessantes reflexões propostas por Richard
JENKINS, 1997, p. 9-15. Nesse estudo, o autor chama “the basic social anthropological model of ethnicity”
elementos relevantes para a análise do termo etnia. Segundo Jenkins (1997, p. 13-14), “ethnicity” diz respeito 1)
às diferenças culturais, o que leva à percepção da identidade social enquanto dialética entre semelhança e
diferença; 2) à cultura, dentro da qual ocupa lugar central; 3) à capacidade de mudança que esse “fato” tem na
cultura ou nas situações em que é produzido e reproduzido; 4) às dimensões coletiva e individual que
caracterizam uma “identidade social”, sendo externalizadas na interação social, e internalizadas na auto-
identificação pessoal.
5 Ao falar sobre a atividade antropológica, o autor propõe a superação do jogo discursivo que coloca o
“antropólogo” em situação de vantagem em relação ao “nativo”. Neste sentido, sugere tomar a todos os
envolvidos nessa atividade por “antropólogos”, o que significa admitir uma relação de conhecimento entre
“observador” e “observado” operando uma modificação recíproca que se constitui por “atualização de
virtualidades insuspeitas do pensar”. Assim, a idéia de “relacionalismo” (perspectivismo para Deleuze)
corresponde à afirmação de que “a verdade do relativo é a relação”. Com efeito, a “experiência antropológica” se
torna efetiva não pela explicação do mundo do outro, mas pela possibilidade de multiplicar o mundo do próprio
“observador”. Tal tarefa se realiza por meio da relação antropológica, cujas “idéias nativas” são tomadas como
conceitos (VIVEIROS de CASTRO, E. O nativo relativo. In: Mana. v. 1, n. 8, fevereiro, 2002, p. 113-148).
6 DERRIDA, J. Jacques sem fatalismos. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de agosto de 2004, p.
10-11 (Caderno Mais). Um outro artigo no mesmo Jornal enfatiza ainda mais esse olhar “ocidentalizado” sobre
as questões no mundo contemporâneo, por exemplo, quando afirma: “No caso do Iraque, creio que os
americanos estivessem muito otimistas e cheios de ilusões sobre o que achavam que poderiam fazer no Oriente
Médio. Foi um erro. Creio até que foi um ‘erro honesto’, e não uma mentira total em relação às intenções por
trás da guerra. Mas foi ingenuidade acreditar que, depois de uma ditadura de 30 anos como a que existiu no
Iraque, as pessoas simplesmente iriam aceitar uma democracia rapidamente” (LAQUEUR, W. Guerra sem
limites: megaterror está a caminho, diz analista. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de agosto de
2004, p. A20 (Sessão Mundo, por Fernando Canzian).
BIBLIOGRAFIA
BOURDIEU, Pierre. (1996), “Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom”. Mana. v. 2,
n. 2: 7-20.
DERRIDA, Jacques. (2004), “Jacques sem fatalismos”. Jornal Folha de São Paulo. São
Paulo, 15 de agosto de 2004: 10-11 (Caderno Mais).
LAQUEUR, Walter. (2004), “Guerra sem limites: megaterror está a caminho, diz analista”.
Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de agosto de 2004, p. A20 (Sessão Mundo, por
Fernando Canzian).
MAUSS, Marcel. (2001), Ensaios de sociologia. 2.ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva.
MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: formas e razão da troca nas sociedades
arcaicas”. In: _______. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac e Naify.
NABHAN, Neuza Nief. (1996), Islamismo: de Maomé a nossos dias. São Paulo: Ática.
TEIXEIRA PINTO, Márnio. (1993), “Marcel Mauss: o sacrifício e a dádiva”. In: PAZ,
Francisco Moraes (Org.). As aventuras do pensamento. Curitiba: Ed. da UFPR.
RESUMO:
Neste artigo procura-se fazer uma interpretação do fenômeno dos “homens-bomba” partindo
de uma experiência etnográfica junto a uma comunidade islâmica no sul do Brasil, e da
consulta bibliográfica acerca do tema. Indagam-se os motivos que levam muitos integrantes
do islamismo ao “sacrifício” voluntário de suas vidas, a importância do contexto para a
compreensão desse fenómeno, a lógica que sustenta tal ação e a eficácia simbólica desta.
Seguindo a teoria de Marcel Mauss sobre o sacrifício e a dádiva, e discutindo-a à luz das
contribuições teóricas contemporâneas, poderia-se compreender a imolação voluntária como
uma recriação contemporânea da tradição islâmica, que, para além dos fatores sociais e
políticos, se fundamenta no sentido religioso da submissão total, i.e., uma permanente
oferenda a Deus.
Abstract
In this article, an interpretation of the “bombers sacrifice” phenomenon is carried out, taking
as a starting point an ethnographic experience of an islamic community in Southern Brasil,
and a bibliographical revision regarding this issue. The reasons leading many islamists to the
voluntary sacrifice of their lives are inquired, the importance of this context for the
understanding of this phenomenon, the logic behind it that supports such an action and the
symbolic efficiency of this act. Following the theory of Marcel Mauss on the sacrifice and the
gift, and discussing it in the light of the theoretical contemporary contributions, this voluntary
inmolation is understood as a comtemporary recreation of the islamic tradition that, beyond
the social and political factors, it is based on the total submission in the religious sense, i.e., a
permanent offering to God.