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TÍTULO ARTIGO:

SACRIFÍCIO E DOM: O caso dos “Homens-Bomba”

AUTORES:

Andrea Lissett Pérez Fonseca


Marta Magda Antunes Machado
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SACRIFÍCIO E DOM:

O caso dos “Homens-Bomba”

“Oh, Senhor meu, agracia-me com o filho que figura entre os virtuosos, e lhe
anunciamos o nascimento de uma criança que seria dócil, e quando a criança
chegou à adolescência o pai lhe disse: “Oh filho meu sonhei que te degolava,
o que opinas?” “Oh meu pai fazes o que te foi ordenado. Encontrar-me-á, se
Alá quiser, entre os perseverantes”. E quando ambos aceitaram o desígnio de
Alá e Abraão preparava seu filho para o sacrifício, então o chamamos: Oh
Abraão já realizas-te a visão, em verdade, assim recompensamos os
benfeitores. Certamente que esta foi a verdadeira prova e o resgatamos com
outro sacrifício importante e fizemos Abraão passar para a posteridade, que a
paz esteja com Abraão”. (Alcorão, versículos 83-113)

Após o ataque a vários pontos estratégicos da potência norte-americana, em 11 de

setembro de 2001, o presidente Bush denuncia que um novo “mal” ameaça o mundo: o

terrorismo. E não é que isso seja novo, uma vez que diferentes, cruéis e extremas formas de

violência têm acompanhado a história da humanidade. No entanto, é radicalmente novo, como

afirma Noam Chomsky (2001), o fato da mudança que se dá na orientação da política

internacional, na direção de onde “apontavam as pistolas”. O novo “foco de maldade” é o

mundo islâmico. Nesse sentido, o “terrorismo” adquire rosto, identidade e inclusive pátria.

Ainda que seja sinalizado o setor radical dos “fundamentalistas”, e de organizações

internacionalmente conhecidas, como é o caso da al-Qaeda, o fantasma do “terrorismo”

passou a envolver o mundo muçulmano, criando em torno desses povos um imaginário

carregado de valores negativos – “bárbaros”, “fanáticos”, “extremistas”, “adversários da

civilização”, entre outros – que acabam por invalidá-los e condená-los diante da opinião

internacional.

Assim, não se pode esperar que os ataques dos chamados “homens-bomba” 1 sejam

analisados de outra forma. Sua lógica responde ao paradigma do “terrorismo” e, junto deste,

ao conjunto de idéias negativas que se lhe associa. Os meios de comunicação dos países

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ocidentais apresentam os “ataques suicidas” ou “terrorismos suicidas” usando de maneira

equivocada muitos conceitos, como por exemplo o do suicídio, que se aplicam a outros tipos

de situação e realidade (onde a decissão e o alcance desse ato tem uma dimensão

preferencialmente individual); ademais, desviam “a atenção do fim dos mesmos [ataques] e

do contexto em que se produzem, para a personalidade do atacante e o truculento de sua ação”

(Velloso, 2002, p. 1).

Sem dúvida, um tal discurso é ideologizado, de uso político a favor de uma das partes

do conflito, que, tomando à mão seu poder simbólico – e o conseqüente controle sobre os

meios de comunicação de massa –, desqualifica o outro como “terrorista”, desconhecendo

e/ou mascarando sua própria ação diante desses povos. Nessa perspectiva, parece inteiramente

válido questionar, como o faz Agustín Velloso (2002), a natureza das formas de violência que

se manifestam no contexto da confrontação, mostrando os dois lados do conflito, tanto o das

ações chamadas de “terroristas”, em que se tem enquadrado os “homens-bomba”, quanto o

das agressões das potências ocidentais aos povos mulçumanos, sob as ordens de ataques com

aviões e tanques de guerra em nome de “ações militares civilizadas e sujeitas ao controle

democrático”.

Oportuno lembrar que o preocupante dessa situação é que não só a mídia transmite a

“imagem preconceituosa” acima apontada. Ela faz parte de uma tradição de pensamento

Ocidental, denominada por Said (1999) como o “orientalismo”, que, segundo este autor, pode-

se definir: “como instituição organizada para negociar com Oriente ... é um estilo ocidental

para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre Oriente” (Said, 1999: 15). O “orientalismo”

se inicia com o colonialismo europeu de fins do século XVIII, e foi enriquecendo-se, com o

passo do tempo, com os aportes de uma enorme massa de escritores e estilos literários (teorias

socais, românces, ensaios, épicas, relatos políticos, etc), todos os quais partiam da distincão

básica –de estilos de vida e de pensamento- entre Ocidente e Oriente. Essa imagem
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estereotipada pela qual Oriente é visto tem sido reforçada no mundo pós-moderno,

intensificando-se com isto “o domínio na demonologia acadêmica” (Said, 1990: 38). De modo

que, os Árabes e o Islã estão hoje identificados como “maus, totalitários e terroristas” (Said,

1999: 38).

Portanto, é importante ter un olhar crítico na revisão da literátura sobre esta temática.

A esse respeito, gostaríamos desatacar dois textos de especial referência no Brasil. De um

lado, Peter Demant (2004), que a despeito de fazer importante contextualização histórica, com

uma abordagem abrangente acerca dos múltiplos fatores que envolvem a civilização

muçulmana, termina sendo defensor, de algum modo, da idéia de que o Islã se mostra

impotente e tem fracassado ante aos desafios dos diferentes períodos da história, em particular

da modernidade. Para o autor, o desenvolvimento de novos meios de coexistência no mundo

deveria se pautar pela democratização das formas de governo e por uma reforma islâmica que

procedesse à interpretação histórica das fontes sagradas. Por outro lado, afirma que ao

Ocidente não resta outra saída, frente ao fundamentalismo islâmico, além da luta, da

confrontação. Sua crítica mostra-se, em parte, interessante; porém, há dois grandes vazios que

afloram partindo de um olhar menos “ocidentalizado”. O primeiro, pode-se assinalar, diz

respeito à ausência de questionamento por parte de Demant quanto aos modelos de opressão e

dominação ocidental vigentes no mundo moderno, o que o levaria a considerar, sob outra

ótica, a possibilidade dos islâmicos também enxergarem a luta como única saída. O segundo

limite aponta para a ausência de uma interpretação que parta do ponto de vista islâmico, desde

sua religião, sua cultura, sua identidade religiosa e política etc; o que se percebe, ao contrário,

é uma reflexão mediada pelo “modelo ocidental” como protótipo da verdadeira civilização e

do autêntico desenvolvimento.

Um outro estudo – este de menor pretensão – é o de Peter Antes (2003), “O Islã e a

política”, que procura mostrar a “multiplicidade” da realidade do Islã, compreendendo o fator


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político desde a “auto-imagem islâmica”. Nessa perspectiva, de alguma forma, Antes

privilegia uma “ciência da religião”, tentando resgatar elementos fundamentais da fé islâmica.

Daí sublinhar a permanência de um certo preconceito reducionista, o que chama de

“preconceito islamófobo” agindo na avaliação dos mulçumanos como “ameaça”. Em que pese

o esforço de indicar onde está, de fato, o perigo ameaçador – como o ódio racial e suas

conseqüências nacionais e internacionais – e de denunciar o drama do gigantesco número de

excluídos no mundo moderno, o autor parece cair num outro reducionismo: o da visão

triunfalista ocidental para propor soluções e “aprender a viver juntos”. Nesse sentido, lembra

Antes: “A ‘solução islâmica’ trabalha como uma varinha mágica para a solução de todos os

problemas, mas perde em brilho e clareza quando é chamada a dizer o que precisa ser

concretamente feito” (Antes, 2003, p. 148). Poderia-se indagar: há alguma solução na

modernidade cujo “brilho” e “clareza” tem logrado “o que precisa ser concretamente feito”?

Parte-se de que visão de desenvolvimento e política para dizer o que precisa ser feito? Talvez

aqui estejam subsumidas, num discurso simplista, outras realidades tão ou mais complexas

que as da sociedade ocidental, como a tradição islâmica enquanto fator de identidade

religiosa, social, cultural etc. Com efeito, o problema que emerge dessas abordagens parece

ser a preexistência de posicionamentos etnocêntricos que ou sub-valorizam, ou reduzem

drasticamente, ou ainda desconhecem o contexto social e cultural do mundo muçulmano e, em

particular, a lógica que preside suas ações.

A intenção deste artigo não é justificar ingenuamente as práticas de alguns grupos

mulçumanos, nem tão pouco defender suas argumentações a favor delas. Antes, procura-se

compreender esse universo complexo de significações, admitindo, como o acenou Peter Fry

(2004), que cabe à antropologia permitir um exercício de “iconoplastia”, i.e., relativizar,

distanciar-se, desrespeitar os ícones dominantes. Efetivamente, pretende-se interpretar o

fenômeno dos “homens-bomba” indagando sobre a natureza de seus atos no mundo


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contemporâneo. Em outras palavras, o que faz alguém se “sacrificar” voluntariamente? Há

uma recompensa para esse sacrifício? Qual a lógica que preside tal ação? Existe uma eficácia

simbólica e social que resulte do sacrifício? Essas entre outras questões estão na base da

reflexão aqui proposta. Para pensar esses aspectos, dentre as possibilidades teóricas

consultadas, privilegia-se a perspectiva analítica desenvolvida por Marcel Mauss, tanto pela

incursão à sua teoria sobre o sacrifício (2001), quanto à sua teoria sobre a dádiva (2003). Em

se tratando de um trabalho fundamental para este estudo, considera-se a abordagem maussiana

como base do debate que será desenvolvido. Além disso, o diálogo com alguns autores

contemporâneos – os quais dão continuidade ao debate inaugurado por Mauss – parece sugerir

novas ênfases ou re-leituras do autor do Essai sur le don. Assim, procura-se dialogar com

Márnio Teixeira Pinto (1993), Pierre Bourdieu (1996), Maurice Godelier (2001) e Alain Caillé

(2002).

Em razão de que às leituras disponíveis sobre a temática particular dos “homens-

bomba” é bastante reduzida, simplista, além dos limites anteriormente acenados 2, decidimos

recorrer à pesquisa etnográfica considerando a existência de uma “comunidade islâmica” no

município de Lages, em Santa Catarina, cujo nascimento remonta ao ano de 1978 3. Assim,

realizamos várias saídas de campo, conhecendo nessa cidade a primeira mesquita inaugurada

no sul do Brasil, entrevistando a vários de seus fundadores, assim como a seus descendentes.

O importante contato feito com esses informantes nos levou ao xeique da comunidade

islâmica de Florianópolis, com quem tivemos vários encontros. Note-se que a experiência

etnográfica não apenas resultou valiosa, mas se mostrou decisiva para o início de uma

abordagem mais aprofundada acerca do sentido e da lógica dos sacrifícios vividos pelos

chamados “homens-bomba”. Destarte, é necessário dizer, o desenvolvimento da nossa

reflexão tem por base a interpretação das vozes dos “nativos” à luz da teoria maussiana.

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A fé islâmica como caminho de identidade

A tentativa de compreender o fenômeno dos chamados “homens-bomba” aponta para

alguns elementos recorrentes nos discursos dos mulçumanos entrevistados. De forma reiterada

e abrangente, algo que percorre suas falas parece dar o sentido efetivo das ações desses

“homens” – na verdade, conforme os informantes, muitos jovens e também muitas jovens.

Com efeito, observa-se uma clara unicidade de pensamento, de valores e de ação, que se

poderia refletir em termos de uma identidade ou um ethos islâmico4.

Inicialmente, é possível afirmar que a base do sistema de pensamento e de ação no Islã

está formulada e gravada no Alcorão. O “livro da palavra divina” guarda a revelação do Deus

único ao profeta Maomé (570-632 d.C.). Este, segundo a tradição islâmica, grava as palavras

de Deus, decorando-as e pregando-as no decurso de sua vida. Daí o anúncio das mensagens a

seu povo e a possibilidade de serem recopiladas – parcialmente escritas – e decoradas por seus

seguidores. No entanto, a organização final do livro só foi realizada após a morte do profeta,

sendo o seu primeiro escriba, denominado Zaid Ibn Tabit, o autor dessa missão (Nabham,

1996, p. 23). Um primeiro aspecto importante desse processo histórico em que se firma a

tradição corânica, segundo a autoridade religiosa entrevistada, o xeique Amin, diz respeito ao

fato de que o Alcorão se manteve “absolutamente fiel à revelação divina”, o que marcaria uma

profunda diferença em relação à Bíblia cristã. Nesse sentido, esclarece o xeique:

(...) [a Bíblia] não foi escrita com a mesma fidelidade e, portanto, encontrar-
se-iam misturadas as palavras divinas e as palavras do profeta, assim como as
interpretações dos apóstolos e as de seus seguidores. Nesse sentido, os quatro
livros que compõem a Bíblia só foram oficializados no ano 330 d.c. em Roma,
o que teria levado a uma distorção muito grande (Amin, 2004).

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Nessa perspectiva, nota-se que o Alcorão é concebido como a própria palavra divina –

pura, inalterada, preservada enquanto mensagem de revelação divina e em sua eficácia

salvífica. Em outras palavras, o Alcorão constitui “padrão absoluto” de preceitos e condutas

(Antes, 2003, p. 137). Por essa razão deve-se total obediência ao livro sagrado. Com efeito,

assim concebido o Alcorão, não existem dúvidas quanto às mensagens a serem guardadas,

gravadas e praticadas; não existem também múltiplas interpretações do texto; portanto, não há

necessidade de mediadores. O que há é somente o encontro direto “entre criador e criatura”

(Demant, 2004, p. 35). Daí o papel central da “palavra divina”, que é religiosamente

observada e adorada em todas as suas dimensões, tal como o expressa o xeique Amin: “(...)

quando se lê o Alcorão, sente-se a pureza da palavra divina, inclusive os gestos e a atitude

mudam de maneira especial”. Ademais desse elemento de “pureza” que os/as fiéis apreendem

no Alcorão, a revelação divina que o livro sagrado encerra constitui a última e genuína

mensagem de Deus, pois, a despeito de reconhecer todos os profetas e messias das tradições

judaica e cristã, o islamismo acredita que Maomé é o último “inspirado” a selar a “longa série

de profetas” (Antes, 2003, p. 38). Efetivamente, seguindo a crença dos mulçumanos, o

islamismo é a “religião autêntica e universal que, a apesar de ter sido revelada em árabe e por

meio do povo árabe, abrange a todos e dirige-se a todos” (Amin, entrevista, 2004). Na prática,

considerando o fato de ser uma religião configurada em base histórica e universalista, o Islã

tem por fundamento a crença em um só Deus, ao qual se deve submissão total (Demant, 2004,

p. 27). Nas palavras do xeique, é possível apreender tal significado do próprio termo “islã”,

cujo sentido profundo e abrangente indica a importância de ser submisso a Deus. Recorrendo

à mensagem corânica, Amin lembra:

“Deus quando criou os céus e a terra disse: ‘venham a mim obedientes ou


contra a vontade’. Eles responderam: ‘nós viemos submissos, obedientes ao
Senhor’ [...]”. Quando você declara que é submisso à vontade de Deus, você
tem que seguir sua vida com todos os seus sentidos, com todos os fatores da
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sua vida direcionados à Deus, obedecendo a ordem de Deus e a lei de Deus


(Amin, entrevista, 2004).

Na esteira dessa reflexão, é oportuno sublinhar que, para além de uma crença ou de

uma religião no sentido estrito da palavra, o Islã – sob a compreensão da lei divina absoluta e

da submissão total a Deus – acaba por abarcar todas as esferas da vida humana. Isso significa

dizer que, ao longo dos tempos, essa religião e sua crença tornaram-se modelo de vida,

tradição guardada e transmitida de geração a geração, quer dizer, tornaram-se cultura. Assim,

é imprescindível entender a sua autoridade na condução dos diferentes âmbitos da vida dos

indivíduos – em todas as etapas de desenvolvimento humano e educacional – e da

coletividade; na conformação das relações entre homens e mulheres; na concepção de

família; na condução da economia, do governo, da justiça, enfim, da sociedade em seu sentido

mais general (Demant, 2004, p. 35). Depreende-se desse aspecto o fato de que o Islã cria,

então, um sentido de totalidade da vida, na qual as diferentes esferas – a religiosa-moral, a

social, a política, a econômica, a cultural etc – individual e coletiva aparecem entrelaçadas

numa continuidade inclusiva. Ou seja, ainda que se produza uma diferenciação fundamental

entre imanente ou humano e transcendente ou divino – tal como se verifica nas chamadas

religiões universais, i.e., Judaísmo, Cristianismo e Islamismo –, o Islã parece indicar certo

“trânsito” entre tais dimensões, compreendendo uma interação que aproxima essas ordens

distintas de coisas. Em outras palavras, seguindo as intuições de Marcel Gauchet (1985), o

transcendente se instala também no imanente. Daí que todo movimento – o social e o

individual – é determinado pela continuidade totalizadora, na qual, embora apresentem

diferenças ontológicas, individual e social constituem um todo; ou melhor, não há unidades

dicotômicas e opostas, como no cristianismo por exemplo. Considera-se, a título de ilustração,

os opostos clássicos: céu e terra; Deus e homem [no sentido de humanidade]; corpo e alma;

matéria e espírito; indivíduo e sociedade; homem [varão] e mulher; religião e política, entre

outros. Elementos que aparecem profundamente separados e até contrapostos na sociedade


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ocidental de tradição judaico-cristã. Ao contrário disso, o islamismo mantêm certa

continuidade articuladora.

Com efeito, aqui talvez se possa assinalar a importante característica da tradição

islâmica, que, a nosso ver, a torna singular dentre as demais tradições, constituindo um dos

pilares sobre o qual se funda a dinâmica social e cultural dessa religião. Por outro lado, é

preciso dizer, reconhecemos a enorme polêmica que tal afirmação suscita. De fato, é bastante

complexa a tarefa de encontrar uma categoria “clara” para explicar essa discussão. De

qualquer forma, o que se deseja enfatizar é, pois, a idéia de que, embora apresente as

categorias do que chamamos de dualismo clássico, o Islã não as desenvolve como tal.

Interessante observar ainda que, nas leituras feitas sobre o islamismo, são recorrentes as

indicações de um sentido integrador entre as diferentes esferas, sobretudo aquelas concepções

que dizem respeito à continuidade entre política e religião. Ademais, apontam para o caráter

inclusivo e abrangente dessas, por assim dizer, dimensões. Entretanto, é importante frisar, não

há uma resolução, ou uma preocupação nesse sentido, quanto às questões da lógica e do

funcionamento dos dualismos presentes ao interior desse sistema de pensamento. Isso nos

leva a afirmar, sem medo de leviandade, certa ambigüidade, que teria sido produzida sob o

legado do pensamento grego para o Ocidente, cultura com a qual os povos árabes tiveram

estreito contato. Basta ver que os mulçumanos se reconhecem sucessores dos princípios

religiosos – crenças, dogmas, teologia, moral etc – do judaísmo e do cristianismo. Mas, além

disso, sofrem influência do mundo ocidental e do seu processo de “desenvolvimento” e

“modernização”. Neste caso, verifica-se a noção de oposição dualista entre as mais diversas

dimensões. Ao tentar buscar na fala dos informantes o sentido mais profundo dessa questão,

percebemos os sinais de ambigüidade a que nos referimos acima, haja vista o fato de estar a

lógica do seu pensamento evidentemente sustentada pelo sentido dualista das coisas. O que

parece inequívoco neste depoimento:


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(...) A dualidade está no universo, existe o bem e o mau, o homem e a mulher,


a energia positiva e negativa, o par de cada espécie, uma completa a outra. Se
não fosse assim, como a gente diferenciaria uma montanha de uma terra
plana? Porque existe essa forma alta da terra que apresenta a montanha, e, se
não fosse por ela, a gente não ia diferenciar um do outro. A gente consegue
definir o plano quando a gente tem a montanha, e consegue definir a montanha
quando a gente observa o plano” (Mohamed, entrevista, 2004).

Certamente, é fundamental perceber que uma coisa é ter a concepção e/ou o princípio

que sustenta essa diferenciação ontológica; e outra coisa bem distinta é que, de fato, as

dimensões “funcionem” de maneira separada e até antagônica. Daí destacar-se a singularidade

do Islã em relação ao que acontece na sociedade ocidental, cuja abismal distância entre as

diferentes esferas – corpo-humano-Estado, por um lado; e espírito-divino-religião por outro –

resulta em discursos e práticas evidentemente dualistas. Ao contrário, no islamismo procura-

se não perder o sentido de unicidade entre essas partes, integrando-as, de certa maneira, em

ordem a uma justaposição. Nesse sentido, chama especial atenção a forma como os

mulçumanos concebem a díade alma-corpo. Existem muitos elementos da tradição corânica,

por exemplo, que denotam um tratamento diferenciado para a questão do dualismo. Tendo em

conta, a título de reflexão, as punições prescritas pelas leis islâmicas, em que as penalidades

recaem sobre o físico-corporal, há um acento a ser destacado quanto à compreensão da

exigência acerca desse tipo de castigo – oportuno lembrar que o castigo cristão incide

privilegiadamente sobre a alma – que parece se esclarecer nas palavras do xeique:

Na verdade, a dualidade é uma só, não é uma dualidade separável. Entre o


corpo e alma, os estágios de relação são variáveis, uns são conscientes e
outros inconscientes. Conscientes, somente essa parte aqui, nessa vida. Após a
morte, a relação dessa alma com o corpo é uma relação diferente, não como
aqui; aqui o corpo mais domina, por isso ele precisa de comida, bebida, disso,
daquilo; a alma não precisa de nada disso. Após a morte a alma que domina.
Terminada essa fase, entra em outra, que é a fase interna, de ressurreição do
corpo e a integração da alma com o corpo, uma integração completa (...).
Enquanto punição, vamos dizer, a lei islâmica não separa, é na tese dos dois ao
mesmo tempo; no caso, por exemplo, de cortar a mão do ladrão, o que
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significa? Ela tem um efeito material e um efeito educativo à própria alma


espiritual (Amin, 2004).

Nessa perspectiva, sob a mesma lógica da continuidade e/ou articulação das

“dualidades inseparáveis”, estabelece-se uma estreita e, na maioria das vezes, inseparável

relação entre o político e o religioso. Na verdade, essa separação radical nunca existiu dentro

da comunidade islâmica, uma vez que qualquer instância social, incluindo a esfera política, se

deve reger, em princípio absoluto, pela submissão total à “palavra divina” do Alcorão. Do

mesmo modo, os conceitos de moral, ética e justiça dessa tradição estão perpassados pela

lógica religiosa da continuidade. Daí ser possível perguntar: até que ponto se pode falar da

relação entre política e religião quando, de fato, fazem parte de uma mesma realidade e

dinâmica?

Numa outra ponderação, considerando o mesmo elemento acima, pode-se pensar a

dualidade indivíduo e sociedade. Tal reflexão é permitida, na medida em que os princípios

religiosos do Islã apontam inegavelmente para o sentido do social, do coletivo e, portanto, da

solidariedade interna aos membros da comunidade islâmica, valorizando sobremaneira esse

aspecto. Como afirma Peter Antes (2003, p. 109), o ideal da educação do islã ensina os

indivíduos a priorizarem a sociedade e seus interesses. Desse modo, o indivíduo tende a

subtrair-se, sem desaparecer, mas dando lugar a uma noção do ser social, bastante afastada do

protótipo individualista da sociedade ocidental. Esse preceito – do valor social –, como

muitos outros que são considerados no Islã, mostra algo que parece bastante significativo

dentro do processo de construção dessa tradição: a inserção no mundo cultural em que se

produz a revelação – a Arábia, território habitado por tribos nômades, pastores e

comerciantes, cujos valores estão profundamente ancorados no vínculo familiar e

comunitário, e resguardados por princípios como a honra, ligada, por sua vez, ao controle da

sexualidade feminina (Demant, 2004, p. ). Há, por conseguinte, uma configuração do mundo

islâmico por sobre uma antiga tradição cultural, que se perpetua através do “livro sagrado” – o
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Alcorão – que se mantém fiel, como já foi observado, à revelação de Deus desde suas origens.

Por outro lado, seguindo a intuição de Clifford Geertz (2000, p. 107), é importante assinalar,

esse conjunto de princípios e de valores não teria “transcendência” se não estivesse

ligado/unido a uma forte prática ritual, cujos estados anímicos, cujas motivações e concepções

gerais da existência se encontram e se reforçam. Tal aspecto é fortemente confirmado na

religiosidade islâmica (Demant, 2004; Antes, 2003; Nabham, 1996), haja vista que os pilares

dessa tradição estão cimentados em práticas rituais e por meio delas: a fórmula da confissão,

as orações diárias, o jejum, a esmola e a peregrinação à Meca.

Dentre as práticas rituais, as orações ocupam lugar central na vida religiosa e

quotidiana dos mulçumanos. De acordo com o xeique Amin, elas são “uma manifestação

verbal de adoração a Deus”. E acrescenta: “As cinco orações por dia fazem com que o

muçulmano lembre da presença de Deus na sua vida, no seu trabalho, na sua profissão, em

todas as horas do dia; por isso [os mulçumanos] começam antes do nascer do sol, vão até a

hora de dormir” (Amin, entrevista, 2004). Além dessa rotina de rezas, faz-se um dia de

reunião comunitária para a oração coletiva, que acontece às sextas-feiras ao meio-dia. Por sua

vez, o mês do jejum é igualmente uma celebração coletiva em que se celebra o recebimento

do Alcorão; os fiéis se abstêm, desde o nascer do sol até o pôr-do-sol, de práticas como a

relação sexual, a ingestão de bebidas e comidas etc (Demant, 2004, p. 27). É, pois, um ritual

fundamental para a “disciplina de auto-controle e de purificação interior” (Abdel Nasser,

entrevista, 2004). Ao mesmo tempo que concorre para uma auto-disciplina, o jejum reforça os

laços comunitários, motivando durante esse período os encontros familiares e as

confraternizações, que se realizam a partir do anoitecer até a madrugada.

Com relação à esmola, ela é considerada “um dever de todo muçulmano, de ajudar os

que necessitam, como um ato de caridade”. Conforme as informações do xeique, essas

demonstrações voluntárias de caridade encontram eco também no imposto anual que o


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mulçumano oferece à sua comunidade. Trata-se de uma contribuição obrigatória destinada aos

gastos e serviços da mesquita, cuja aplicação é feita de acordo com o tipo de ingressos dos

fiéis (Amin, 2004). Por outro lado, os mulçumanos observam a orientação corânica referente à

peregrinação ao lugar sagrado, a cidade de Meca. Mesmo que tal observância guarde um

caráter esporádico e/ou eventual, sabe-se que se trata de um ato muito relevante para a vida

religiosa dos/das fiéis. Assim, considerada como prática obrigatória, ao menos uma vez na

vida, a peregrinação é mais um grande testemunho de submissão a Deus e às leis islâmicas.

Os indivíduos que dispõem de recursos financeiros – não só para hospedar-se na cidade, mas

especialmente para deixar sua família amparada no tempo em que estiverem em peregrinação

–, devem cumprir religiosamente esse preceito. Nesse sentido, por suas dimensões, a

peregrinação adquire um inegável tom apologético constituindo uma “assembléia universal

que reúne os muçulmanos do mundo todo, de todas as raças, de todas as cores, de todas as

línguas; de todos os cantos da terra se reúnem [mulçumanos] em um lugar só, onde adoram

um Deus único” (Abbel, entrevista, 2004)). Na prática, a peregrinação revela uma forte carga

sentimental e espiritual, convertendo-se numa viajem de resgate e de reencontro com a

“identidade de fé do monoteísmo”, em que se faz demonstração de crença, de obediência e de

entrega a Deus. Segundo Abdel, muitos idosos morrem em peregrinação; mas, para eles, isso

significa “um ganho na loteria”.

Finalmente, pode-se observar, tanto os princípios, as normas e os valores do Islã,

quanto as suas práticas rituais e sua disciplina religiosa estão diretamente relacionadas com a

entrega a Deus. Tudo é oferenda divina, no sentido de demonstrar-se fé e submissão ao Deus

único, cuja fórmula da confissão inscreve a sua vontade como a soberana destinação de toda a

humanidade. Essa adoração permanente e total a Deus está motivada por um ideal ou uma

utopia que se estende, ao longo da vida, à experiência humana dos/das fiéis, dando-lhe

sentido, e preparando-os para a “salvação” plena – individual e coletiva –, cujo prêmio é a


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justificação eterna no paraíso, na eternidade, após o dia do juízo final, junto do Deus único.

Nesse sentido a fórmula da confissão acompanha o/a fiel que, em primeiro lugar, manifesta

verbalmente a sua fé: “A crença é a base de toda a nossa visão (...). A palavra do testemunho

da unicidade de Deus, a palavra do testemunho de que neste universo existe um único Deus,

não existe outro Deus (...)” (Amin, 2004).

O sacrifício e a reciprocidade na tradição islâmica: um diálogo com Mauss

Até o momento, tem-se buscado um caminho que tenta trazer à superfície desta

reflexão uma visão mais fidedigna dos princípios e valores da tradição islâmica, que, a nosso

ver, condicionam a experiência dos chamados “homens-bomba”. Ora, é preciso aqui

aprofundar o fenômeno descrito, ocupando-se com sua lógica e com a configuração da

totalidade de seu sentido. Para alcançar esse intento, é necessário definir, inicialmente, uma

categoria que se considera como a mais apropriada para analisar esse fenômeno. Na

introdução deste estudo, recusava-se o termo “suicida”, porque este se afastaria da natureza do

ato em questão; ou seja, entende-se que não se trata apenas de “dar morte a si próprio”, tal

como é compreendido no mundo ocidental. Há um sentido muito mais profundo, pois, além

de “dar morte a si próprio”, essa ação se realiza contra certos objetivos político-militares, o

quer dizer: sai da esfera estritamente pessoal. Por outro lado, não se pode igualmente reduzi-

lo a um “ato terrorista”, posto que tal expressão está carregada de ideologia a serviço das

potências ocidentais, para invalidar as práticas vistas como “perigosas” para os seus

interesses; ou melhor, é um termo usado de maneira unilateral.

Para além dessas denominações – arbitrárias e parciais –, é preciso admitir, não parece

tarefa fácil a de classificar um evento dessa natureza, que foge das categorias com as quais

usualmente são analisadas as ações bélicas. Dificuldade esta que se radica, fundamentalmente,
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no fato de que não se pode enquadrar esse fenômeno dentro de uma só esfera, porque ele

apresenta características não apenas de uma ação político-militar, mas se reveste

especialmente de um inegável sentido sócio-religioso. Daí a indagação: como, então,

denominar um ato dessa natureza, lidando com sua aparente ambigüidade e seu sentido

“multívoco”? A despeito de notar uma aparente ambigüidade, nas conversas com os

informantes, sobretudo, destacam-se importantes elementos indicando que o eixo dessa ação

poderia estar no campo religioso, cujo substrato fundamenta toda a vida e o pensamento da

comunidade islâmica. Essa idéia aparece, de algum modo, nos depoimentos recolhidos,

evidenciando claramente o sentido religioso desse ato. Ou seja,

Não, não [se] encontra violência nenhuma no Alcorão, mas ele – o “homem-
bomba” – pensa que, dando a vida dele por uma boa causa, ele vai ganhar o
paraíso. Então, o sentido de matar é outro, é uma entrega. O suicídio para ele
não é um suicídio. É um sentido diferente de fazer tua missão e ir para o
paraíso (Abdel Nasser, 2004).

Vamos ampliar a visão desse sentido dos “homens-bomba”. Em qualquer


revolução sempre haverá uma teoria e uma filosofia por trás, certo? E essa
revolução sempre tem seus adeptos, que a teoria junta eles, une eles no mesmo
objetivo; a favor desse direito, eles conseguem se auto-dominar, sacrificar e
desprezar suas vidas em benefício do bem comum. Isso não somente referente
ao Islã, até qualquer Estado, qualquer país, qualquer exército; ele tenta formar
grupos ou células dessa natureza, para a defesa da pátria e do Estado. No
islamismo o sentido disso é diferente. Eu não quero justificar o que está
acontecendo, nem tão pouco criticar, porque isso aí é um outro assunto. Mas
nós temos uma vida e temos bens, isso que nós possuímos dessa vida. Não
posso pegar a tua vida nem também pegar seus bens, isso é um direito teu.
Isso para um muçulmano não me pertence; aliás a qualquer um ser humano,
seja muçulmano ou não, verdadeiramente não lhe pertence essas duas coisas.
Isso aí pertence a Deus. Matar uma pessoa é um crime que Deus declara no
Alcorão, que aquele que mata uma pessoa intencionalmente é como se tivesse
cometido o pecado de matar todos os humanos e ele terá um castigo [...]. Mas,
no caso, quando o assunto é defesa da sua pátria, da sua religião, da sua
dignidade e da sua fé, então você oferecerá isto com a maior gratidão e a
maior satisfação a Deus [grifo nosso] (Amin, 2004).

Um outro aspecto que chama fortemente a atenção nos depoimentos refere-se à forma

como os informantes diferenciam a imolação dos “homens-bomba” daquela resultante de

outras práticas tomadas como semelhantes às deles – como a morte pela pátria ou por ideais
17

similares a estes. Para os mulçumanos, há “um sentido diferente”. E, entende-se, essa

diferença advém de uma “agregação” especial do simbólico: a “transcendência”, a busca do

“além”, fora do mundo humano, que se dinamiza e se concretiza por meio da “entrega” ou da

“oferenda de si mesmo” a Deus. Nessa perspectiva, propõe-se a noção de sacrifício para

categorizar esse ato, uma vez que ela se afigura como teoria satisfatória à compreensão dos

fenômenos a que se refere. De qualquer modo, é oportuno reconhecer, não se resolve todo o

problema levantado; pelo contrário, partindo desse novo elemento, surge uma série de

perguntas: trata-se de que tipo de sacrifício? qual a lógica interna a ele? que elementos

culturais o explicam?

Com efeito, a aproximação da abordagem de Marcel Mauss e de Henri Hubert (2001)

mostra-se importante para o presente estudo. Os autores propõem um interessante marco

analítico, que permite entender a “lógica” do sacrifício. Segundo os pesquisadores, embora

haja uma diversidade de rituais sacrificais, existe uma prevalência de “unidade de ação”, que

consiste em:

(...) estabelecer uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano


por intermédio de uma vítima, isto é, de uma coisa destruída no decorrer de
uma cerimônia (Mauss e Herbert, 2001, p. 223).

Na esteira dessa abordagem, o sacrifício cumpriria o papel de mediação entre o mundo

“sagrado” e o mundo “profano” (TEIXEIRA, 1993, p. 167), estabelecendo contato entre essas

“duas ordens de realidade” e, por conseguinte, mobilizando certas forças que são necessárias

em determinados contextos sociais. Esse seria, pois, o princípio que determina a lógica do

sacrifício. Oportuno lembrar que o seu conteúdo muda no decurso da história, passando de

uma noção mais prosaica e materialista – “obter dos deuses benefícios muito precisos” – a

uma mais espiritual, referida a fins transcendentes – “salvação das almas”, “imortalidade”
18

“paraíso” etc –, assim como o concebem as grandes religiões históricas (Mauss, 2003, p. 198;

Caillé, 2002, p. 196).

Por sua vez, os “homens-bomba” fariam parte desse último tipo de sacrifício, que se

orientam pelos fins transcendentes. Assim, da mesma forma que atua todo sacrifício, eles

realizariam uma mediação entre o mundo profano e o sagrado. Aproximam, pois, esses dois

planos da vida. Por meio deles próprios, de sua imolação – ato intenso e contundente –, fazem

essa ponte de comunicação e interação entre as partes. Nesse sentido, eles são vítimas e

sacrificantes ao mesmo tempo; no processo de “consagração”, ambos os elementos estão

concentrados neles, à medida que mudam de natureza: de um estado profano passam ao

domínio do sagrado (Mauss, 2003, p. 151), ingressando numa nova categoria: a dos mártires.

Esse protótipo seria, então, algo com que o coletivo estabelece formas de identificação e/ou

projeção partindo de suas próprias carências e necessidades. Nessa condição singular eles

adquirem poder – o poder dado pelo “sagrado” e o “transcendente” –, que transmitem e

irradiam ao mundo profano. Aí se radica sua força e “eficácia simbólica”.

Em se considerando os elementos abordados até o momento, efetivamente, é possível

inferir, quanto ao rito sacrifical, que esse fenômeno comporta uma necessária dinâmica de

entrega e retribuição, de mobilização de forças e tributos, cuja dimensão da troca permite

certa inflexão na presente análise. De fato, a sugestão de Marcel Mauss, desde a época em

que foi escrita a teoria sobre o sacrifício, no ano de 1899, aponta para os elementos aqui

retomados à luz de sua abordagem acerca da correlação entre rito sacrifical e dinâmica da

reciprocidade. Recorrendo às palavras de Mauss e Hubert, temos:


19

Se o sacrificante dá alguma coisa de si, ele não se dá; ele se reserva


prudentemente. É que, se ele dá, em parte é para receber. O sacrifício se
apresenta, sob um duplo aspecto. É um ato útil e é uma obrigação. O
desinteresse se mistura aí com o interesse. Daí por que com tanta freqüência
foi tão amiúde concebido sob a forma de contrato. No fundo, talvez não haja
sacrifício que não tenha alguma coisa de contratual (Mauss e Hubert, 2001, p.
225).

Ora, no Ensaio sobre a Dádiva (1924), Mauss não aprofunda essa questão, mas tem-se

uma clara reiteração da idéia do contrato preexistente no rito sacrifical. Afirma o autor que “a

destruição do sacrifício tem precisamente como finalidade ser uma doação que há de ser

necessariamente retornada” (Mauss, 2001, p. 172). Por outro lado, no âmbito dos estudos

contemporâneos, muitos autores têm proposto o debate em torno ao tema da reciprocidade e

do sacrifício, dando continuidade à reflexão inaugurada por Mauss. Nessa perspectiva, alguns

matizes devem ser levados em conta. Um primeiro estudo a ser lembrado é o de Maurice

Godelier (1996). Discorrendo sobre o sentido do sacrifício, o autor o compreende como

dívida eterna dos humanos para com Deus, para a qual não existe retribuição possível; logo, a

lógica da reciprocidade, em termos maussianos, não seria aplicável nesse caso. Nas palavras

de Godelier:

A humanidade encontra-se em dívida, portanto, desde sua origem, em relação


às potências que deram forma e deixaram como herança o mundo em que
vive, e esta dívida é impagável. Nenhum contradom pode ser “equivalente” a
ela, pode cancelá-la (Godelier, 2001, P. 279).

Um outro acento interessante é aquele proposto por Allain Caillé (2002).

Diferentemente de Godelier, esse autor procura deslocar a discussão acerca do sacrifício para

o campo teórico da reciprocidade/dádiva. Ao indicar o limite presente à teoria do sacrifício de

Hubert e Mauss, Caillé observa que esta deveria ser reinterpretada à luz do Essai sur le don –

a obra maussiana de 1924. Daí que sua proposta é a de reformular tais noções traduzindo-as

para a linguagem do dom (CAILLÉ, 2002, p. 166). Depreende-se da abordagem desses


20

autores certa polarização em torno à complexa questão do sacrifício. De um lado, a ênfase no

sentido da dívida eterna, sem possível retribuição; de outro lado, a ênfase no sentido da

reciprocidade, entendida como o movimento do dom e contradom. Para além da polarização,

busca-se, assim, situar o debate no nível do diálogo entre o campo teórico do sacrifício e o da

reciprocidade, compreendendo-os segundo uma singularidade ontológica que os diferencia e,

simultaneamente, os coloca diretamente imbricados. Nessa perspectiva, a análise de Marcel

Mauss parece definir com clareza a existência dos dois campos teóricos, como já acenado

anteriormente. Não obstante, como bem sublinha Teixeira Pinto (1993, p. 168), o tema do

sacrifício acabou sendo “esquecido” inclusive pelo próprio Mauss, que teria relegado a

segundo plano o seu “problema original”. Segundo o autor, essa tarefa apresenta-se como um

dos desafios para a antropologia: retomar e prosseguir a análise de alguns dos problemas

colocados por Mauss.

Quanto à perspectiva de análise aqui adotada, o material etnográfico recolhido sugere

a interpretação do sentido de “reciprocidade” implícito na imolação dos “homens-bomba”. De

maneira inequívoca, aparece em primeiro plano a demonstração de abnegação, de entrega, de

“submissão absoluta” a Deus e à sua vontade. No entanto, por mais altruísta que se mostre tal

ato, ele não está isento de interesse. Ou seja, há uma busca explícita de compensação. Uma

aspiração que, como os mulçumanos mesmos sinalizam, não pertence à ordem do material

nem do imanente e/ou imediato:

Por vontade própria ninguém quer morrer. Quem gosta da morte? Ou, então,
quem gosta de tirar todos os seus bens e entregar para outro? Mas os
companheiros do Profeta fizeram isto por seu livre arbítrio. Vendo que atrás
deste ato há uma grande recompensa. A recompensa é a satisfação de Deus e
seu contentamento com a pessoa, a absorção do castigo infernal, o lugar no
paraíso. A salvação. Com certeza, ele não espera a recompensa de alguém aqui
na terra. O que ele espera da sua vida? O que ele espera em troca? Fazer um
monumento e colocar no meio da praça? O que vai adiantar isso para ele? Vai
devolver sua vida? A única coisa que a pessoa espera, nesse sentido, é o
sucesso na outra vida (Amin, 2004).
21

Na prática, entretanto, tal “reciprocidade” referente à comunicação com a esfera do

sagrado não é a mesma que se verifica no interior das relações sociais. Pode-se observar uma

mudança significativa na natureza da relação que se estabelece, quanto às partes envolvidas,

quanto aos objetos que se trocam, ao seu direcionamento e ao tempo em que a troca se efetiva.

Essa espécie de re-configuração dos elementos envolvidos na referida relação determina-se

fundamentalmente pela distância ontológica dos seres que se relacionam: de um lado estão os

seres humanos – pertencentes à esfera do imanente; e, de outro, está o Deus único –

pertencente à esfera do transcendente. A situação oriunda da comunicação entre as partes

coloca ambas as esferas num plano de verticalidade; ou melhor, trata-se de uma relação

assimétrica, de caráter hierárquico, entre um ser superior e suas criaturas (Caillé, 2002, p. 168;

Godelier, 1996, p. 290). Destarte, o tipo de troca que se estabelece adquire uma outra

dimensão. Torna-se mais acentuada e contundente. Por um lado, há uma exacerbação da

“dimensão da abnegação”; e, por outro, uma amplificação ao máximo do interesse calculado”

(Caillé, 2002, p. 168). Assim, na esteira dessas idéias e tendo em conta o que o xeique afirma

acerca do sacrifício, conforme citação acima, compreende-se a ação do “homem-bomba”

como um ato maximizado de entrega, cuja oferenda é o dar-se a si mesmo, e sem reservas, a

Deus. Pela oferta de sua própria vida, espera receber, em troca da entrega total, um bem

também supremo, absoluto, sem medida de comparação: o paraíso – a salvação eterna.


22

Observa-se, desse modo, uma relação evidentemente hierárquica, que encerra uma

imprescindível dimensão de poder: os humanos se submetem inteiramente ao mandato divino,

à vontade de Deus, à sua lei. Nesse sentido, ainda que pareça uma troca eventual e desconexa,

ela está, na verdade, inserida na lógica da reciprocidade, conservando uma linha de

continuidade a ela, muito embora se situe numa escala diferenciada de tempo, e, por sua longa

duração, abarque sujeitos de diferentes épocas e gerações. Importante ressaltar que essa troca

não se inicia com a imolação dos “homens-bomba”, ela é contínua a um movimento que tem

suas origens, como o afirma Godelier (2001), na dívida original dos humanos para com os

deuses criadores do mundo em que vivem. Contudo, à diferença do que propõe o autor, esse

dom primogênito é retribuído por meio da fé e da demonstração permanente do ato de

submissão ao Deus todo poderoso. Daí que, na prática da religião islâmica, a comunidade de

fiéis incorpora à sua experiência cotidiana um significativo sentido da ação ritual, que se

estende aos diferentes âmbitos da vida humana. Portanto, constata-se a existência do contra-

dom humano; porém, este é de menor categoria, i.e., inferior ao dom divino. Todavia, não

deixa de se constituir numa contraprestação. Precisamente na diferença de “categorias” se dá

cimentação da relação hierárquica entre as esferas divina e a humana – oportuno assinalar que

Mauss procura mostrar esse elemento quando se refere às relações hierárquicas estabelecidas

por meio dos dons “agonísticos”. No sentido proposto por Mauss, a magnitude dos dons,

oferecidos e destruídos, é uma marca clara de status social e de relações de poder. Em suas

palavras:

Por meio desses dons [os agonísticos, de destruição e perda de grandes


riquezas] se estabelece uma hierarquia entre os chefes e seus súditos, entre os
súditos e seus mantenedores. Dar é sinal de superioridade, de ser mais, de
estar mais alto, de magister; aceitar sem retornar, ou sem retornar mais, é
subordinar-se, tornar-se cliente e servidor, fazer-se pequeno, escolher o mais
baixo (Mauss, 2003, p. 255).
23

Nessa perspectiva, a imolação dos “homens-bomba” emerge como uma prova maior

da submissão absoluta, que faz parte, por conseguinte, da relação de reciprocidade com a

esfera do divino. No entanto, nota-se, essa troca não se restringe ao nível do individual, pois a

pessoa que se sacrifica nesse ato não o faz motivada por uma causa pessoal, nem em busca de

uma recompensa individual. Ela entrega sua vida por uma causa social, em “defesa da pátria,

da sua religião, da sua fé”, e igualmente está esperando uma recompensa maior: a “salvação

de toda a humanidade”. Assim, a sua ação incorpora o coletivo, inserindo-o na dinâmica da

reciprocidade, no caráter extensivo da dádiva e em seu retorno necessário. De fato, ativa-se o

ciclo da reciprocidade em diferentes tempos e corporeidades.

Por outro lado, nessa noção de reciprocidade, há o elemento do duplo caráter do

referido fenômeno. O que significa dizer que se trata de um ato “voluntário, aparentemente

livre e gratuito”; e, ao mesmo tempo, “obrigado e interessado” (Mauss, 2001, p. 157).

Efetivamente, o que se coloca, aqui, em questão é a natureza aparentemente desinteressada,

altruísta e voluntária do ato de dar, mas, por trás disso, há um “interesse” e um sentido de

“obrigação”. Sendo assim, como entender esse sentido da obrigação em algo que se apresenta

como um ato livre? De acordo com a abordagem maussiana, é preciso olhar para o conjunto

de forças que atuam no universo social enquanto influenciam e delimitam igualmente o agir

individual – as alianças sociais, as relações de poder, a força do simbólico, os valores morais,

entre outros. Uma noção pertinente a esse tema, e que parece circunscreve-lo de forma eficaz,

é aquela desenvolvida por Pierre Bourdieu: a noção de habitus. De acordo com o autor:

Essa economia muito especial [a da reciprocidade] se apóia, ao mesmo tempo,


em estruturas específicas e em estruturas incorporadas, disposições – habitus –
que essas estruturas pressupõem e produzem ao lhe oferecer suas condições de
realização. (...) Isso significa que o dom como ato generoso só é possível para
agentes sociais que adquiriram, em universos onde são esperadas,
reconhecidas e recompensadas, disposições generosas adaptadas às estruturas
objetivas de uma economia capaz de garantir-lhes recompensa e
reconhecimento (Bourdieu, 1996, p. 9).
24

Procura-se, pois, considerar que o universo da tradição islâmica, já apresentada

anteriormente, fornece o contexto mais amplo das estruturas por meio das quais se

reproduzem essas disposições determinantes das ações que empreendem os chamados

“homens-bomba”. Tendo em conta alguns aspectos referentes a essa tradição, compreende-se

o dado da submissão como elemento central da doutrina religiosa, que perpassa todas as

esferas da vida dos muçulmanos, produzindo neles uma forma de conduta, de raciocínio e de

se relacionar e de agir diante do mundo. Com efeito, basta lembrar o fato de que os cinco

pilares do islamismo assinalam práticas de oblação a Deus. Assim, partindo da fé incorporada

desde cedo aos costumes de família, vê-se configurar o habitus nas diversas dimensões da

vida pessoal e da vida social. Como assevera Abdel Nasser: “(...) lá [no Oriente Médio] é

outra coisa. Desde cinco ou seis anos uma criança na escola já aprende a ler o Alcorão; aqui

não é desse jeito. A grande maioria desses países árabes tem o Alcorão no ensino, tem que

aprender a memorizar” (entrevista, 2004).

Há toda uma situação colocada pela prática religiosa dos fiéis que cria as condições

para o exercício da obediência, da submissão e da entrega total a Deus. Os ensinamentos do

Alcorão e os documentos religiosos produzidos ao longo dos tempos não apenas introduzem

os fiéis no âmbito da vontade de Deus, mas os informa sobre as leis por meio das quais ele

continua agindo nas suas vidas individuais e sociais: na religião, na política, na economia, na

sociedade etc. Tal é a lógica que alimenta a obediência oferecida a Deus por Abraão. Também

ele recebe a palavra e a aceita incondicionalmente. O resultado de sua entrega é o

fortalecimento da sua fé, mas também dos benefícios que toda a humanidade receberia por

meio dessa entrega. Daí ser chamado o “pai” da fé. Nesse sentido, o coletivo é o principal

beneficiário da entrega. Abraão não teria imolado seu filho simplesmente por um capricho de

Deus, ou, menos ainda, para salvar-se a si mesmo, mas pela eficácia da entrega, que está

diretamente ligada à vontade de Deus com quem faz aliança por meio de sua livre decisão.
25

Enfim, esse contexto cultural islâmico, marcado pelo sentido religioso, está criando e

recriando na prática quotidiana um estilo de ser, uma disposição para se comportar e agir que

basicamente está orientada por sua atitude de entrega total a Deus. Uma entrega que está

alimentada por grandes ideais. Em primeiro lugar, a salvação eterna, o paraíso. Em seguida, o

que Demant (2004, p. 329) chama de “utopia islâmica”, que é a visão e a busca de uma

sociedade justa. Nessa perspectiva, os “homens-bomba” são a representação simbólica e ritual

maximizada dessa disposição de “entrega” em ordem à satisfação dos ideais de salvação e

justiça social. Observe-se o seguinte depoimento, que é bastante representativo dessa idéia:

Aquele que está lutando por um ideal é o mesmo que você [ao] defender-se contra um
agressor para proteger sua vida, mas você está fazendo este ato porque você está
cumprindo uma ordem de Deus. Acredita em Deus e acredita que este agressor irá para
o inferno, irá ser castigado e você, ao se defender e matar, não será punida. Você
acredita que Deus te deu o direito de proteger sua vida como a vida do próximo. Se o
próximo tirar sua vida, você está fazendo uma coisa pela causa de Deus, porque esta
vida não lhe pertence, mas pertence a Deus. A pessoa que está lutando num país onde
ele está vendo sua pátria violada, sua mulher, seus filhos, seus bens, sua riqueza, sua
casa está sendo destruída, sua vida está sendo tirada, ele está lutando não por causa
somente disso, mas também porque Deus deu o direito de lutar para proteger estas
coisas, porque a construção da vida humana é através da proteção destas coisas.
Segundo o Alcorão, aquele que mata uma pessoa é como [se] tivesse matado toda a
humanidade, aquele que dá a vida para alguém, dá a vida para toda a humanidade
(Amin, 2004).

Finalmente, parece imprescindível sublinhar que, independentemente do juízo moral

frente a esse ato, bem como das distintas posições que existem dentro do mundo islâmico e

fora dele, torna-se de fundamental importância a reflexão em torno de um fato cuja conduta

está intrinsecamente ajustada à lógica cultural e religiosa em que crescem e se educam os

homens e as mulheres-bomba. Dito de outra maneira, mais claramente, é uma possibilidade de

escolha, “normal” e/ou “plausível”. Ou ainda, trata-se de uma disposição apreendida ao longo

de suas vidas, que se ativa frente a determinadas condições sociais e políticas.


26

CONCLUSÃO

Algumas considerações, ao final deste estudo, devem reconhecer primeiramente a

complexidade da abordagem desse fenômeno, que moral e politicamente tem inúmeras

implicações. De modo especial, os obstáculos surgem quando são exigidos princípios como o

da “objetividade” e da “neutralidade” científicas. De fato, parece muito difícil não assumir o

“lugar” que torne explícito o recorte feito – ou melhor, o “lugar” do qual se fala. Com efeito, a

nossa aproximação junto aos representantes da comunidade islâmica em Santa Catarina se dá,

como se sabe, numa perspectiva ocidental de análise dos “nativos”. Entretanto, lembrando a

reflexão de Eduardo Viveiros de Castro (1998) 5, fizemos o esforço de compreender a

perspectiva do “outro”, sob o seu olhar, e pensá-la numa interlocução com a tradição de

pensamento ocidental. Nesse sentido, o diálogo com Marcel Mauss mostra-se eficaz. Em

outras palavras, o nosso “lugar” privilegia uma interpretação voltada para o confronto a certos

preconceitos e ao moralismo dominantes na visão que se tem construído no Ocidente acerca

de tal fenômeno. Tentamos captar a lógica e o sentido que os mesmos “nativos” dão a esse

fato. Por outro lado, seguindo a contribuição de Mauss, procuramos tomar à mão alguns

elementos da sua teoria, para explicar o sacrifício e a reciprocidade partindo da pertinência

desses temas na experiência de campo e nas leituras feitas sobre a tradição islâmica.

5
27

Oportuno refletir que essa aproximação poderia se dar de diversos modos, sobretudo

porque há um debate colocado pelas diferentes formas de violência no mundo contemporâneo,

que desafia as sociedades “modernas” a pensar muitas e complexas questões. A título de

ilustração, podemos citar recente entrevista de Jacques Derrida (2004) ao Jornal Folha de São

Paulo quando, interrogado sobre o terrorismo e o medo que este provoca hoje, a despeito de

criticar o uso ideológico desse conceito, indica que o futuro depende da filosofia e dos novos

conceitos criados pelos filósofos – como “um novo conceito do político” e “um novo direito

internacional”; ou seja, ao que tudo indica, as respostas, de uma forma ou de outra, apontam

para a “capacidade” do Ocidente de propor soluções. 6 Diferentemente disso, procuramos

alcançar uma visão sensivelmente nova e diversa do olhar de que partimos. Trata-se de algo

complexo que, a nosso ver, desvela no fenômeno dos “homens-bomba” significativa riqueza

cultural e simbólica da sociedade muçulmana. Por outro lado, entendemos que é possível

fazer uma leitura “total” desse fato, em se considerando a abordagem maussiana, para

compreender essa cultura. Tendo em conta o “fato social total”, vemos que o fenômeno aqui

analisado concentra elementos de toda ordem: religiosos, econômicos, políticos, sócio-

culturais, simbólicos etc. Tais elementos se “ordenam” sob o contexto contemporâneo da

sociedade global. Nesse ponto concordamos com Demant (2004) quando afirma que o

“fundamentalismo muçulmano é moderno”. Essa idéia nos parece bastante relevante para

explicar esse fato, uma vez que os “homens-bomba” são produto da sociedade moderna, de

seus conflitos e suas crises. Mas não somente isso: é também a atualização de uma tradição

milenar, que reconstrói seus códigos simbólicos para dar respostas diante dos desafios do

mundo contemporâneo. Certamente, não estamos defendendo essa “resposta” – a dos homens

e das mulheres-bomba – como a melhor opção para os embates de hoje. Entretanto, é

necessário compreender a lógica histórica e cultural que preside esses fatos no mundo. Como

lembra Bourdieu (1996), há “disposições incorporadas” que delimitam o agir.


6
28

Uma tal lógica fundamenta-se na tradição religiosa que, como já foi visto ao longo

deste estudo, é o substrato da cultura dos mulçumanos, do seu pensamento, dos seus valores e

dos princípios que norteiam sua vida. Na prática, essa tradição tem como elemento central o

sentido da submissão, da abnegação, da entrega absoluta a Deus. Daí que o “sacrifício” se

insere nesse universo simbólico como algo incorporado e vigente na vida desses povos. Como

bem sublinha Marcel Mauss (2003), o sacrifício foi conservado e inclusive sublimado pela

teologia cristã – aspecto que, de resto, consideramos perfeitamente aplicável ao islamismo –,

tornando-se uma importante estratégia de ação e de defesa diante de situações consideradas

“perigosas”, naquelas em que o “contra-ataque do caos e o mal requerem incessantemente

novos sacrifícios, criadores e redentores” (Mauss, 2001, p. 167). Assim, a nossa opção para

interpretar a ação dos “homens-bomba” sob a ótica de Mauss corresponde ao esforço de

colocar novas possibilidades de discussão em torno do tema do sacrifício, cuja inspiração, na

tradição antropológica, permite perceber mais satisfatoriamente o fenômeno. Em outras

palavras, é preciso contribuir com a crítica aos limites do debate político na sociedade

Ocidental, observando o aspecto relacional sob o qual se deve tomar a visão do “outro”. Nesse

caso, a visão do “outro” é plasmada por uma tradição religiosa e cultural bastante relevante no

mundo, e não apenas por aquilo que significa o “ataque dos homens-bomba” à modernidade

ocidental. A própria lógica do fenômeno revela um conjunto simbólico por si só pertinente aos

nossos estudos, como “interlocutor” autônomo e legítimo, para continuarmos avançando,

inclusive quanto à premente discussão política acerca das relações humanas nas sociedades e

nos Estados.

Nessa direção, a análise sugere que o ato dos “homens-bomba” pode ser entendido

como manifestação de um “sacrifício redentor”, o qual irrompe enquanto “resposta cultural” a

um contexto de conflito que afeta profundamente a estabilidade social desses povos. Esse

“lugar” de conflito é identificado pelos mulçumanos como “o mal” ameaçador, que atinge
29

tanto os bens fundamentais (primários) – território, pátria, família, comunidade etc – como

aqueles referentes aos seus grandes ideais (religiosos e/ou de vida) – a construção de uma

“sociedade justa” e a “salvação da humanidade”. Diante dessas forças do “mal” e do “caos”,

eles reagiriam, pois, com as “armas” da tradição: o rito e o sacrifício. Ora, sem dúvida, essa

“ação” mostra-se eficaz. Não apenas como mecanismo inapreensível pela lógica ocidental;

mas, especialmente, a eficácia do “sacrifício” se dá no interior dos povos mulçumanos, que,

como foi sugerido anteriormente, se projetam no “homem-bomba” e se identificam com ele

de algum modo, compreendendo-o como figura mística, “mártir” mesmo, o qual renova e

atualiza o sentido da fé e, de certa maneira, revivifica o “mito” primogênito de Abraão quando

oferece uma prova suprema de entrega e sacrifício incondicionais a Deus.

NOTAS

1 Ao utilizar o termo “homens-bomba” não se quer esquecer que, dentre o grupo de indivíduos que figuram
nessas ações violentas, há também a participação de mulheres. No entanto, conforme a fala de alguns
informantes, elas apareceriam em menor número que os homens. De qualquer forma, a expressão neste estudo
quer sobretudo lembrar uma referência cunhada por aqueles que dizem “combater o terrorismo” e pela mídia que
reproduz essa idéia.

2 De modo geral, pensa-se, por exemplo, no número grande de revistas e jornais de circulação nacional que
deram ênfase ao tema dos “homens-bomba”, e de outros que se relacionam a ele, à época imediatamente
posterior ao 11 de setembro, preocupando-se muito mais com a divulgação de notícias “vendáveis” em torno ao
Oriente Médio e aos mulçumanos, do que propriamente com uma análise baseada em estudos científicos.

3 Santa Catarina é um dos estados brasileiros apontados pelo historiador Peter Demant (2004, p. 188) como
lugar de concentração dos mulçumanos. Da cidade de Lages, na serra catarinense, nos veio a possibilidade de
conhecer de perto integrantes da comunidade islâmica brasileira. O Islã no Brasil está representado por uma
comunidade cujo número de fiéis “supostamente chegaria a um milhão”. Os mulçumanos radicados no Brasil
descendem, uma parte, de escravos negros africanos e, outra parte, de imigrantes árabes, sobretudo de libaneses
– que têm no país a maior comunidade dessa descendência no mundo – e sírios. Nesse sentido, é interessante
perceber, na esteira do estudo de Demant, que o fenômeno da “tolerância intercomunitária” e da “mestiçagem”
no país empurrou esses imigrantes para uma assimilação: “(...) aqui a sobrevivência de uma cultura islâmica
específica tem que lidar com a presença de uma cultura receptiva ‘demais’, sendo considerada por alguns
‘leviana’, em comparação aos preceitos puritanos do islã” (Id.). Com efeito, os últimos anos foram para o
islamismo e sua comunidade brasileira momento de expansão, inclusive com o apoio financeiro e logístico da
Arábia Saudita (DEMANT, 2004, p. 188-189). Daí que nos foi possível sentir na receptividade da comunidade
islâmica essa possibilidade de convivência pacífica entre alteridades.

4 Sem dúvida, seria necessário discutir inclusive o tema da identidade tendo em conta as análises em torno dos
conceitos que as ciências sociais têm formulado acerca dessa questão. Não obstante, ocupar-se-á, neste estudo,
mais diretamente das implicações religiosas e sociais que um tal conceito sugere. Por outro lado, do ponto de
vista da antropologia o conceito de identidade remete ao de etnia que, grosso modo, é assim descrito: “Na
linguagem científica corrente, o termo ‘etnia’ designa um conjunto lingüístico, cultural e territorial de um certo
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tamanho, sendo o termo tribo geralmente reservado a grupos de menor dimensão” (BONTE;IZARD, 1992, p.
242). Para um estudo minucioso do tema, ver, por exemplo, as interessantes reflexões propostas por Richard
JENKINS, 1997, p. 9-15. Nesse estudo, o autor chama “the basic social anthropological model of ethnicity”
elementos relevantes para a análise do termo etnia. Segundo Jenkins (1997, p. 13-14), “ethnicity” diz respeito 1)
às diferenças culturais, o que leva à percepção da identidade social enquanto dialética entre semelhança e
diferença; 2) à cultura, dentro da qual ocupa lugar central; 3) à capacidade de mudança que esse “fato” tem na
cultura ou nas situações em que é produzido e reproduzido; 4) às dimensões coletiva e individual que
caracterizam uma “identidade social”, sendo externalizadas na interação social, e internalizadas na auto-
identificação pessoal.

5 Ao falar sobre a atividade antropológica, o autor propõe a superação do jogo discursivo que coloca o
“antropólogo” em situação de vantagem em relação ao “nativo”. Neste sentido, sugere tomar a todos os
envolvidos nessa atividade por “antropólogos”, o que significa admitir uma relação de conhecimento entre
“observador” e “observado” operando uma modificação recíproca que se constitui por “atualização de
virtualidades insuspeitas do pensar”. Assim, a idéia de “relacionalismo” (perspectivismo para Deleuze)
corresponde à afirmação de que “a verdade do relativo é a relação”. Com efeito, a “experiência antropológica” se
torna efetiva não pela explicação do mundo do outro, mas pela possibilidade de multiplicar o mundo do próprio
“observador”. Tal tarefa se realiza por meio da relação antropológica, cujas “idéias nativas” são tomadas como
conceitos (VIVEIROS de CASTRO, E. O nativo relativo. In: Mana. v. 1, n. 8, fevereiro, 2002, p. 113-148).

6 DERRIDA, J. Jacques sem fatalismos. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de agosto de 2004, p.
10-11 (Caderno Mais). Um outro artigo no mesmo Jornal enfatiza ainda mais esse olhar “ocidentalizado” sobre
as questões no mundo contemporâneo, por exemplo, quando afirma: “No caso do Iraque, creio que os
americanos estivessem muito otimistas e cheios de ilusões sobre o que achavam que poderiam fazer no Oriente
Médio. Foi um erro. Creio até que foi um ‘erro honesto’, e não uma mentira total em relação às intenções por
trás da guerra. Mas foi ingenuidade acreditar que, depois de uma ditadura de 30 anos como a que existiu no
Iraque, as pessoas simplesmente iriam aceitar uma democracia rapidamente” (LAQUEUR, W. Guerra sem
limites: megaterror está a caminho, diz analista. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de agosto de
2004, p. A20 (Sessão Mundo, por Fernando Canzian).

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RESUMO:

SACRIFÍCIO E DOM: O caso dos “Homens-Bomba”. Um Olhar desde o contexto brasileiro.

Neste artigo procura-se fazer uma interpretação do fenômeno dos “homens-bomba” partindo
de uma experiência etnográfica junto a uma comunidade islâmica no sul do Brasil, e da
consulta bibliográfica acerca do tema. Indagam-se os motivos que levam muitos integrantes
do islamismo ao “sacrifício” voluntário de suas vidas, a importância do contexto para a
compreensão desse fenómeno, a lógica que sustenta tal ação e a eficácia simbólica desta.
Seguindo a teoria de Marcel Mauss sobre o sacrifício e a dádiva, e discutindo-a à luz das
contribuições teóricas contemporâneas, poderia-se compreender a imolação voluntária como
uma recriação contemporânea da tradição islâmica, que, para além dos fatores sociais e
políticos, se fundamenta no sentido religioso da submissão total, i.e., uma permanente
oferenda a Deus.

Palavras chaves: Islã, Homens-Bomba, Sacrifício e dom.

Abstract

SACRIFICE and GIFT: The case of the “bombers sacrifice”.

In this article, an interpretation of the “bombers sacrifice” phenomenon is carried out, taking
as a starting point an ethnographic experience of an islamic community in Southern Brasil,
and a bibliographical revision regarding this issue. The reasons leading many islamists to the
voluntary sacrifice of their lives are inquired, the importance of this context for the
understanding of this phenomenon, the logic behind it that supports such an action and the
symbolic efficiency of this act. Following the theory of Marcel Mauss on the sacrifice and the
gift, and discussing it in the light of the theoretical contemporary contributions, this voluntary
inmolation is understood as a comtemporary recreation of the islamic tradition that, beyond
the social and political factors, it is based on the total submission in the religious sense, i.e., a
permanent offering to God.

Key words: Islamic, “bombers sacrifice”, sacrifice and gift.


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