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OAB 1ª FASE – XXI EXAME DE ORDEM

Filosofia – Aula 01
Bernardo Montalvão
TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO: UMA
BREVE ABORDAGEM EM TORNO DA DOGMÁ-
TICA DAS FONTES DE DIREITO.

1. INTRODUÇÃO.

As normas jurídicas não são válidas em si mesmo,


pois são vinculadas a um contexto, ou seja, são
dependentes da relação da norma com as outras
normas do contexto. Ferraz Júnior assenta que o
contexto tem de ser reconhecido como uma “relação
ou conjunto de relações globais de autoridade”.
De uma forma técnica, poder-se-ia dizer que a vali-
dade da norma jurídica depende do ordenamento
em que está inserida. A sentença é a norma elementar da pirâmide. Kel-
sen a denomina de “norma específica”. A norma
Com espeque em Ferraz Jr., o ordenamento jurídico jurídica pode ser genérica ou específica. A sentença
brasileiro é o conjunto de todas as suas normas, é a norma mais específica possível. Acima dela,
incluídas aqui todas as espécies classificadas ante- estão as leis (ordinárias e complementares). Acima
riormente. Estão também incluídos no ordenamento das leis, as emendas constitucionais e, acima des-
os critérios de classificação (como as classificações tas, a Constituição.
legais dos bens segundo o artigo 79 e ss. do Código
Civil), embora não sejam normas em face da inexis- Registre-se que a Constituição não é a norma fun-
tência de uma imposição vinculante e institucionali- damental para Kelsen, tampouco é a norma mais
zada. importante ou relevante da estrutura piramidal. A
norma mais importante para Kelsen é a Norma Fun-
Encontram-se no ordenamento também as defini- damental. A norma fundamental é o princípio que
ções (como a definição de doação segundo o Códi- organiza e mantém o ordenamento jurídico como
go Civil no artigo 538), os preâmbulos (considera- um todo homogêneo.
ções de ordem valorativa e fática, como o da Consti-
tuição de 1988), as exposições oficiais dos motivos É com base na estrutura piramidal que se pode
(em que o legislador revela as razões pelas quais entender a explicação kelseniana de validade: uma
foram estabelecidas as normas). norma vale em relação a outra norma, que a ante-
cede hierarquicamente. Essa relação norma/norma
O conceito de ordenamento é operacionalmente é uma relação de validade (relação sintática). E
importante para a dogmática jurídica: ele permite a identificar a validade de uma norma significa verifi-
integração das normas num conjunto, dentro do car sua relação de subordinação em decorrência de
qual é possível identificá-las como normas jurídicas outra norma.
válidas. É um “sistema dinâmico” (Kelsen), que, em
oposição ao estático, capta as normas dentro de um A sentença é válida porque encontra apoio na nor-
processo de transformação contínua. Normas são ma que lhe é imediatamente superior, a lei. A lei é
promulgadas; atuam; são substituídas; são revoga- válida porque está conforme a norma imediatamen-
das ou perdem sua atualidade em face de altera- te superior, as emendas constitucionais. As emen-
ções nas situações normatizadas etc. Para dizer se das constitucionais são válidas porque estão con-
a norma é válida, é necessário integrá-la nesse forme uma norma imediatamente superior, a Consti-
conjunto sistêmico. tuição.
2. O ORDENAMENTO JURÍDICO SEGUNDO Esse tipo de raciocínio, entretanto, levaria a um
KELSEN problema: o de regressão ao infinito. Essa série
normativa (de encadeamento de normas) deve en-
Para Kelsen, o ordenamento é um sistema unitário, contrar seu fim, isto é, a norma que fundamenta
marcado por um princípio que organiza e mantém o todas as demais.
conjunto como um todo homogêneo (a norma fun-
damental). As normas do ordenamento compõem Se para encontrar a validade das normas, é preciso
séries escalonadas. recorrer a uma hierarquia de normas, Kelsen recorre
No escalão mais alto está a primeira norma da sé- a uma norma básica (grundnorm) acima da própria
rie, de onde todas as demais derivam. Constituição, cuja função é outorgar-lhe validade,
A estrutura do ordenamento jurídico, para Kelsen, é validando, desta forma, todo o conjunto. A norma
piramidal: fundamental é, portanto, o pressuposto lógico do
ordenamento.

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Lembre-se que, para Kelsen, a explicação do que é seria uma condição transcendental do pensar, se-
norma jurídica e do que é ordenamento jurídico gundo o próprio Kelsen.
parte do raciocínio que a norma jurídica é um juízo
lógico de natureza hipotética. Por isto, pode-se pen- 3. ORDENAMENTO JURÍDICO POR BOBBIO E
sar que o ordenamento jurídico também é uma es- POR HART
trutura lógica.
A pressuposição de Kelsen foi muito criticada por
E, para que ele preserve sua coerência, acima de filósofos do direito. A crítica fundamentou-se, sobre-
todas as normas deve haver uma primeira norma tudo, na abstração da construção da norma funda-
que não possui nenhuma outra norma que a ante- mental, ou seja, na falta de explicações de como se
ceda e que justifique todas as normas que em razão daria o pontapé inicial para a construção de um
dela existem no ordenamento jurídico. Esse é o ordenamento jurídico.
pressuposto lógico do ordenamento. Pressuposto
porque não é um conteúdo passível de comprova- Isto levou Norberto Bobbio, mais tarde, a afirmar
ção, mas, sim uma premissa do raciocínio lógico. que a explicação de norma fundamental de Kelsen
não seria satisfatória. Bobbio observa que Kelsen
Do ponto de vista de uma análise empírica, a norma procura o impossível com uma validade que não
fundamental não existe. A norma fundamental é seja relacional e, com isto, propõe que a norma
pura hipótese, desprovida de qualquer conteúdo fundamental se identifique com um ato de poder.
ético ou empírico. Você não vai encontrá-la em
qualquer texto de lei ou na Constituição, pois ela A norma primeira seria, portanto, posta por um po-
não está escrita em nenhum lugar. Ela é uma pres- der fundante da ordem jurídica cuja característica é
suposição lógica para que o ordenamento jurídico a efetividade: “ou o poder se impõe ou não é poder
tenha coerência lógica. Enfim, ela tem forma, mas fundante e não se terá norma fundamental”. Nesta
não conteúdo. perspectiva, se qualquer norma é posta, nem toda
norma é válida. Um magistrado pode prolatar uma
A norma fundamental é responsável pela validade sentença fora de sua competência:
de todas as outras normas e possui uma qualidade houve positivação, mas a norma não é válida. Essa
diferente. Ela não á válida no mesmo sentido das relação entre positividade e validade, entretanto se
demais. A validade é um conceito relacional para estreita à medida que se sobe na pirâmide. Ao che-
Kelsen (relação norma/norma, em que uma é válida gar ao poder constituinte, não haverá mais distância
porque está conforme outra que lhe é imediatamen- entre norma posta e norma válida, visto que tal po-
te superior) e, por isso, der, ao positivar a norma já a estabelece como váli-
da.
a norma fundamental (ou primeira norma) não pode
se relacionar a outra, pois, senão, não seria a pri- Já Herbert Hart, filósofo do direito inglês, propõe
meira. “Se dissermos que a sentença de um juiz explicação diversa de Bobbio e de Kelsen. Ele tam-
(norma individual) repousa sobre as normas gerais bém concebe o ordenamento jurídico como um sis-
de competência e de obrigação, e estas, sobre as tema dinâmico e unitário, e, para que se possa iden-
normas constitucionais, em que repousa a validade tificar a validade das demais normas, é necessário
destas? que exista uma norma de reconhecimento, isto é,
uma norma que permita identificar outras normas
As normas constitucionais, como as demais, são como pertencentes ao sistema.
postas por uma autoridade competente, diz ele [Kel-
sen]”. Entretanto, a norma de reconhecimento, que deve
ser a última da série normativa, não é válida e nem
Para explicar sua validade, precisa-se admitir outra inválida: ela apenas existe. Não é uma condição do
norma que não é posta, visto que não deve exigir pensar (como afirmara Kelsen), já que, se ela exis-
outra norma que lhe confira validade. Desta forma, a te, ela é usada no âmbito do ordenamento jurídico
norma fundamental é pressuposta. da sociedade.

Ela prescreve que o “jurista reconheça uma primeira Do ponto de vista externo (imagine-se um teórico do
norma posta como fundamento das demais normas direito descrevendo o ordenamento jurídico), a nor-
postas e que raciocine a partir dela (por exemplo, a ma de reconhecimento seria um dado objetivo: le-
norma estabelecida por revolução ou pelo povo ou gisladores e magistrados lançariam mão dela como
pela tradição etc.)”. ponto de partida para sua atividade.

Como consequência, a norma fundamental possui Do ponto de vista interno (magistrado prolatando
uma espécie de validade que não é do tipo relacio- uma sentença ou um cidadão cumprindo determina-
nal, mas das condições do próprio pensamento:

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da norma), a norma de reconhecimento é uma regra tro ou fora do sistema, bem como o que entra e o
que se assume. que sai dele.

Importante é registrar que existe e existiu grande A representação gráfica para a noção de sistema é
discussão entre os autores. A norma fundamental é a circular, vez que Tércio, com espeque em Luh-
o aspecto mais criticado na doutrina de Kelsen. Sua mann, afirma que o círculo representaria com mais
teoria é demasiado abstrata e se tem grande dificul- fidedignidade a dinâmica do sistema, ou seja, a
dade de associá-la ao mundo real. capacidade do sistema de se adaptar às transfor-
mações sociais.
Registre-se ainda que Tércio Sampaio Ferraz Junior
não adotou a expressão “ordenamento jurídico” em Além da ideia de alteridade, de circularidade e de
sua teoria. Ele distingue “ordenamento” de “siste- constante troca, Alisson Alessandro Mascaro sugere
ma”. Embora grande parte dos autores utilize “orde- a figura de uma ameba como a representação gráfi-
namento” como sinonímia para “sistema jurídico”, ca que melhor possibilitaria identificar essa capaci-
não se deve incorrer neste erro. dade de transformação/mutação em relação ao
ambiente em que se encontra o sistema.
Pode-se admitir “ordenamento” e “sistema” como
sinônimos quando se estiver falando de Norberto Ressalte-se que, qualquer que seja a representação
Bobbio, de Hans Kelsen ou de Miguel Reale. Mas, gráfica utilizada, o que se deve ter em mente é a
para Tércio Sampaio, para Niklas Luhmann e para capacidade de adaptação às transformações soci-
Marcelo Neves, inexiste tal confusão. Para estes ais.
últimos, o conceito de ordenamento como sistema LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos siste-
não admite uma só hierarquia, mas várias, não exis- mas. 2ª edição. Tradutor: Ana Cristina Arantes Nas-
tindo, portanto, uma única norma fundamental. É o ser. Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p.
que se verá a seguir. FERRAZ JR., p. 188.
FERRAZ JR., op. cit., 1994, p. 187.
O sistema mantém-se numa troca constante com o
4. A TEORIA SISTÊMICA DE TÉRCIO (LUHMANN ambiente em que está situado. Tanto o sistema
E NEVES) interfere no ambiente, quanto o ambiente interfere
no sistema. Isso ocorre de forma constante. A troca
Para Ferraz Jr., “ordenamento” como “conjunto de entre sistema e ambiente ocorre por meio de duas
normas” é uma ideia estática. Pode-se pensar, de palavras-chave: abertura normativa e fechamento
um lado, que a ideia da pirâmide adotada por Kel- normativo.
sen seja útil para demonstrar a hierarquia entre as
normas jurídicas de um dado ordenamento, mas, de O sistema se abre para a informação advinda do
outro, ela pode levar a um grande equívoco, o de ambiente e se fecha para descartar uma parte da
sugerir fossilização; ou dificuldade do ordenamento informação advinda do ambiente. Em seguida, o
de acompanhar as transformações sociais. sistema seleciona uma parcela da informação ori-
unda do ambiente e descarta a outra parcela.
O desenho piramidal que Kelsen utiliza sugere que
qualquer modificação do ordenamento jurídico sus- O sistema não assimila toda a informação oriunda
citaria um processo mais estático, resistente e en- do sistema, pois estaria colocando em jogo sua
gessado que numa concepção de sistema que pro- própria autonomia, sua sobrevivência. Ele assimila a
cure representar uma formação mais dinâmica. informação para poder se adaptar ao ambiente (em
face da mutabilidade do ambiente), mas não assimi-
O que se explica aqui é uma noção de ordenamento la o todo.
de maneira mais dinâmica possível, que consiga
acompanhar a velocidade das transformações soci- Na acepção de Ferraz Jr., poder-se-ia afirmar que o
ais. É neste intuito que Tércio se utiliza do conceito ordenamento jurídico, além de ser composto por um
de sistema, e não de ordenamento. conjunto de elementos normativos e não-
normativos, é também uma estrutura, ou seja, um
A concepção de sistema tem caráter dinâmico. Em- conjunto de regras que determinam as relações
bora a expressão “sistema dinâmico” venha de Kel- entre os elementos. É o próprio Tércio que esclare-
sen, a ideia de sistema permite traçar os contornos ce: “uma sala de aula é um conjunto de elementos,
necessários ao Direito (se se está ou não diante de as carteiras, a mesa do professor, o quadro-negro, o
uma norma jurídica; giz, o apagador, a porta etc.; mas estes elementos,
ou se sua prescrição é válida etc.), uma vez que todos juntos, não formam uma sala de aula, pois
“sistema” traz uma noção de “limite” – linha abstrata pode tratar-se de um depósito da escola; é a dispo-
diferencial que autoriza a identificar o que está den- sição deles, uns em relação aos outros, que permite
identificar a sala de aula; esta disposição depende

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de regras de relacionamento; o conjunto destas A geladeira irá trabalhar de acordo com a informa-
regras e das relações por ela estabelecidas é a ção que vem do ambiente. Se a geladeira é aberta
estrutura”. diversas vezes durante o dia, o ambiente vai forne-
cer calor para seu interior no momento em que a
O conjunto dos elementos constitui apenas o reper- porta é aberta (recepção de uma (ou mais) informa-
tório. Quando se afirma que a sala de aula é um ção advinda do ambiente);
conjunto de relações (estrutura) e de elementos quando a porta é fechada, o termostato assimila que
(repertório), pensa-se nela como um sistema. O precisa mandar um comando para o motor, a fim de
sistema é um todo composto por estrutura e repertó- que este volte a produzir frio para manter a tempe-
rio. Assim, o ordenamento jurídico é um sistema. ratura desejada. Por outro lado, se a porta da gela-
deira não é aberta muitas vezes, o comando é que
A estrutura entre as normas jurídicas ocorre de for- se fique em stand by, ou seja, que o motor cesse de
ma circular (e não linear) e haverá um encadeamen- fazer frio, já que se atingiu a temperatura almejada.
to, uma espécie de série normativa. Imagine-se que O termostato é a regra de calibração. Ele vai cali-
cada norma é um círculo, que vai interferir em outro brar o sistema, ajustá-lo ao ambiente externo.
círculo (norma), que vai interferir em outro e assim
por diante. Tércio aduz que os sistemas normativos jurídicos
“são constituídos primariamente por normas (reper-
Esse encadeamento normativo circular culmina em tório do sistema) que guardam entre si relações de
uma primeira norma, isto é, necessariamente tem validade reguladas por regras de calibração (estru-
um término; não é infinito. Não é infinito porque a tura do sistema)”.
relação de subordinação não é causal-linear, que
implica relações lineares que se prolongam infinita- Todo sistema atua num ambiente, o sistema social,
mente nos dois lados da série: que é nada mais que a própria vida social, que lhe
“toda causa produz um efeito que é causa de outro atribui demandas (sobretudo conflitos que ensejam
efeito, e assim por diante; e todo efeito provém de decisão). Para seu funcionamento, as normas são
uma causa que, regressivamente, é feito de uma organizadas por séries hierárquicas de validade,
causa, que é efeito de outra causa etc.”. que culminam numa norma-origem.

A série deve ter um ponto final, senão a subordina- Quando “uma série não dá conta das demandas, o
ção perderia o sentido: pense-se na autoridade que sistema exige uma mudança em seu padrão de
estabeleceu a competência de determinado magis- funcionamento, o que ocorre pela criação de nova
trado para julgar ações de certa matéria. Qual seria norma-origem e, em consequência, de nova série
a autoridade que estabeleceu a competência daque- hierárquica. O que regula esta criação e, portanto, a
la primeira autoridade pra determinar as competên- mudança de padrão, são suas regras de calibração.
cias do magistrado? E assim sucessivamente po- Graças a elas, o sistema muda de padrão, mas não
der-se-ia chegar ao infinito. se desintegra: continua funcionando”.

O problema, portanto, é explicar como se interrom- Observe-se o exemplo dado por Tércio do famoso
pe a série normativa circular do sistema, tanto re- julgamento havido no Tribunal de Nuremberg após a
gressivamente (a norma-origem) quando progressi- 2ª Guerra Mundial. Grande dilema dos magistrados
vamente (decisão final). Isso ocorre por meio da à época era o fato de inexistirem normas de Direito
regra de calibração. Internacional Penal que tipificassem genocídio como
crime. Em vigor já estava o princípio nullum crimen
Através da regra de calibração é que o sistema se nulla poena sine lege (não há crime nem pena sem
ajusta ao ambiente externo. Ela coordena/orienta a lei anterior que os definam).
substituição de uma série normativa por outra. A
expressão vem da cibernética, trata-se de regras de Mas como responsabilizar os nazistas pelos crimes
regulagem; de ajustamento de um sistema. Pense- ocorridos? O Tribunal definiu “genocídio” como cri-
se numa geladeira, cujo controle da temperatura me contra humanidade e, para escapar ao princípio
interna é feita por um maquinismo de produção de do nullum crimen, invocou a existência de determi-
ar gelado. nadas exigências fundamentais de vida na socieda-
de internacional que implicariam a responsabilidade
Esse maquinismo é regulado através do termostato, penal dos governantes e dos seus executantes.
que permite o mantimento de determinada tempera-
tura. Ocorre que a temperatura de uma geladeira Em termos sistêmicos, houve uma mudança de
não se mantém estável o tempo inteiro. Fora da padrão: o padrão de funcionamento do ordenamen-
geladeira, ou seja, no ambiente, a temperatura pode to penal internacional – padrão de legalidade, regido
atingir 30 graus ou pode atingir 10 graus. pelo princípio nullum crimen nulla poena sine lege –
foi convertido para um padrão de legitimidade, regi-

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do pelo princípio de exigências fundamentais de O sistema econômico possui uma linguagem espe-
vida na sociedade internacional. Tais princípios são cífica e um código binário específico (ter dinhei-
regras de calibração de um sistema normativo. ro/não ter dinheiro). Ao mesmo tempo em que o
Direito troca com a Economia ou com a Religião, e
As regras de calibração estatuem relações dinâmi- esses trocam com o ambiente, tem-se a estrutura-
cas, surgem e desaparecem a todo momento e têm ção da sociedade. A sociedade é o grande ambien-
como fonte a jurisprudência, a doutrina, a política, a te, dentro do qual há todos esses sistemas intera-
moral, a religião etc. Pode-se depreender dos gindo entre si ao mesmo tempo.
exemplos que o sistema jurídico não possui uma
norma fundamental, mas muitas, milhares! Enquan-
to em Kelsen, há uma norma fundamental (“a” nor-
ma fundamental), para Tércio há várias!

No Tribunal de Nuremberg, o princípio do nullum


crimen constituía uma série normativa regulando o
direito penal internacional. Quando se viu a hipótese
de impunidade dos criminosos nazistas (informação
advinda do ambiente), o Tribunal viu-se obrigado a
substituir tal encadeamento por outro tipo de série, o
princípio de exigências fundamentais de vida na
sociedade internacional.

Se não há esta mudança de padrão, o sistema entra


em colapso: autodestruição. A regra de calibração
traduz-se na tentativa de reajustamento do sistema
ao ambiente.

Em suma, enquanto sistemas dinâmicos, o ordena-


mento jurídico possui grande mobilidade: tudo está
em movimento, daí a dificuldade de operá-lo. Cabe
ao jurista operar essa possibilidade de jogo. É por
isso que ele precisa lançar mão de conceitos opera-
cionais dinâmicos, sob pena de os conflitos sociais
serem indecidíveis (proibição em face do princípio
da vedação ao non liquet).

É importante ressaltar, por fim, que não é só o am-


biente que interfere no sistema, trazendo-lhe novas
informações. Pode haver também interferência de
um sistema sobre outro: é o acoplamento estrutural.

Por exemplo, o sistema religioso interfere no Direito


quando, em relação ao Código Penal, pleiteia pelo
mantimento do aborto como crime. Mas cabe ao
Direito, por meio de sua estrutura e repertório, regu-
lar essa interferência do sistema religioso.

Quando um sistema troca informações com o ambi-


ente ou com outro sistema, através de abertura e
fechamento normativos, ele está preservando sua
própria existência. A isto se dá o nome de autopoi-
ese. Autopoiese é a capacidade do sistema jurídico
de produzir suas próprias normas, isto é, a capaci-
dade de se manter vivo e, ao mesmo tempo, de se
adaptar, trocando ou se comunicando com o ambi-
ente ou com outro sistema. A base dessas trocas
(com o ambiente ou com outro sistema) é a comuni-
cação. Cada sistema possui uma linguagem especí-
fica e um código binário específico (lícito/ilícito no
caso do Direito).

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