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“Mas não tem estupro no livro. Ou tem?

”: A Cultura do Estupro na Literatura

Quando comecei a pesquisar para escrever esse post percebi que estava indo no
caminho errado. Eu tinha me proposto a escrever sobre a Literatura e a Cultura do Estupro.
Assim que eu olhei para minha estante de livros, eu pensei em diversos momentos que a
literatura abordou o assunto e que me marcaram. Pensei na cena do estupro de “Ensaio sobre
a cegueira”, de Saramago; pensei no livro “Reze pelas mulheres roubadas”, de Jennifer
Clement; pensei em Desonra, de Coetzee. Mas o problema da Cultura do Estupro não é
nenhum desses livros. O problema é Crepúsculo.
É muito fácil dizer que o estupro é um crime horrível. Isso é o óbvio. A grande maioria
das pessoas vai te jurar com toda a convicção que creem que a violência sexual é uma das
coisas mais reprováveis do mundo. E mesmo que isso seja de uma inocência que não me é
típica, eu acredito que elas acreditem isso mesmo. O problema é que muitas delas não sabem
o que é uma violência, muito menos uma violência sexual.
Eu não sou uma grande fã de literatura Young Adult. Mas eu dei aula para
adolescentes por um tempo e acabei tomando contato com muitos livros do gênero. Eu li
muitos dos livros que eles liam para poder conversar com eles sobre. O primeiro que eu li foi
Crepúsculo. Quando o livro saiu, eu já não tinha mais idade para participar do fenômeno que
ele foi – veja bem que eu sou da época do Harry Potter. Mas ele foi e muitas adolescentes
achavam que Edward Cullen (ou o lobisomem, dependia do time) era a visão do príncipe
encantado. No começo eu só achei ele um cara com quem eu não teria a paciência de ficar por
duas horas, mas depois eu comecei a achar ele errado. Ele era o cara que dizia que amava a
menina acima de tudo, mas que queria ditar com quem ela falava ou não; que fazia
declarações de amor, mas perseguia a menina mesmo quando não estavam mais namorando;
que posava de honrado, mas tirava o motor do carro da menina para impedir que ela saísse
com um amigo. Esse é o príncipe encantado das minhas alunas.
É indiscutível que existe um conceito bem equivocado de que quando o cara gosta de
você, às vezes ele te maltrata. Tipo o que você ouve falando pras crianças: “ele te empurrou
porque ele está gostando de você”. Muito da literatura do gênero se funda na ideia de um cara
que se interessa por uma menina por quem ninguém se interessa e que faz tudo o que faz
“pelo bem dela” ou porque “sabe o que é melhor para ela”. Não, nenhum desses caras
violenta sexualmente as mulheres. Mas esses homens são manipuladores, agressivos e
possessivos, mesmo que sejam descritos como príncipes encantados. Essa equação resulta
num só lugar: relacionamentos abusivos são normatizados e romantizados. Sabe aquele
incômodo que te surge no fundo do cérebro, que te diz que tem algo errado? Essa literatura dá
conta de neutralizar essa voz e te dizer que está tudo bem. Que o cara parece ruim, mas ele te
ama. Então tudo bem, aceita ele como ele é. Isso é a Cultura do Estupro: o cara faz o que faz
porque sabe melhor do que você o que você mesma quer, mesmo que isso signifique ir contra
a sua vontade.

É curioso que grande parte desses livros tenha como protagonista uma mulher
excêntrica e solitária. Elas são mulheres que não tinham perspectiva nenhuma de
relacionamentos amorosos, porém atraem homens desejados e lindos, muitas vezes por conta
de sua fragilidade. A donzela indefesa atrai. Mas esses livros, em sua maioria, apesar de serem
narrados pelas mulheres, ignoram muitas de suas particularidades. O que acontece quando
você quer contrariar o cara ~maravilhoso~? Você tem coragem de impor sua vontade a esse
cara que te ama tanto apesar dos seus defeitos, da sua falta de beleza padrão ou do seu
temperamento difícil? Pense bem nisso – agora que coloquei nesses termos – e veja como isso
é cruel: nenhum cara quer você, então você tem muita sorte que esse cara te quis. Isso é a
Cultura do Estupro: você tem medo de perder o cara, então faz o que ele quiser, mesmo sem
vontade, pra não correr o risco dele te abandonar.
Mas aí a gente chega num dos livros mais bonitos e mais erroneamente usado em
péssimos momentos do mundo: Lolita. Eu acho que poucos inícios de livro são tão lindos
quanto o início de Lolita. "Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu
pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar,
ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta."

Pena que ele foi escrito para descrever o que sente um homem de meia idade sobre
uma menina de 12 anos. Eu já escrevi sobre pedofilia aqui. Na época, eu pensei que tinha que
falar sobre Lolita, mas me esgotou tanto escrever aquele texto que desencanei um pouco. Mas
vamos lá.
Lolita se tornou uma referência da cultura pop. Sempre que se quer trazer alguma
personagem muito jovem, mas sedutora, se bebe dessa fonte. Há pesquisas que dizem que
grande parte dessa criação do mito não vem do livro, mas sim do filme, que na adaptação
acabou por usar uma atriz mais velha que a personagem descrita no livro, o que suavizou o
choque. Por outro lado, já na época em que foi escrito, Lolita teve críticas que
desconsideravam a diferença de idade entre os dois e o comportamento pedófilo de Humbert,
colocando Lolita numa posição de sedutora.
Humbert é o narrador da história. Como se sabe, não se pode confiar na palavra de um
narrador-personagem. Se a gente pudesse confiar na palavra do narrador, já teríamos certeza
se Capitu traiu Bentinho em Dom Casmurro. Mas não é tão simples assim. Um narrador em
primeira pessoa diz o que é relevante para sua história e como interpretou os fatos que
ocorreram consigo. Então o que temos aqui é que Humbert diz que Lolita o seduziu, que ela o
desejava. Foi, portanto, apenas para que ela se tornasse mais “soltinha” que ele teve que
droga-la quando transaram. Isso é o que Humbert diz.
Além disso, Lolita revela que já teve experiências românticas e sexuais antes de
conhece-lo (com meninos de sua idade, é importante notar), o que para o narrador demonstra
que ela já tem consciência de seus desejos. E ele, como homem, não se controla diante disso.
O que ocorre entre os dois não é considerado um “estupro” por ele, pois ela já fora
hipersexualizada. Isso é a Cultura do Estupro: quando uma mulher sofre algum abuso, buscam-
se diversos sinais e passagens de sua história pregressa que contrariem a tese de que ela foi
forçada a fazer algo que não queria.

Agora, é curioso perceber que a voz de Lolita é muito menos importante que a de
Humbert. É ele quem narra o livro e, apesar do título, é ele também quem é o personagem
principal. Pior que isso, ele é o homem apaixonado, para quem nada é um limite; nem a
preservação do psicológico da menina por quem ele se diz apaixonado. Já falamos muitas
vezes sobre como a cultura pop tende a roubar a voz e o olhar das vítimas de estupro e
deslocar esse foco para o abusador. Há inúmeros exemplos e aqui não é diferente. O ponto de
vista que realmente tem relevância aqui não é o de Lolita, mas o de Humbert. Isso também é a
Cultura do Estupro: a voz do abusador é sempre mais ouvida que a da vítima e sua palavra tem
muito mais peso e credibilidade que a dela.
Eu quero deixar claro que é um livro que eu amo. Nabokov é, para mim, um dos
autores mais incríveis de seu tempo. O problema de Lolita está, assim como em muitos outros
livros, na interpretação que se dá ao livro e não no livro em si. Aliás, o modo como se
interpreta e entende algo diz mais sobre nós mesmos sobre qualquer informação escrita em
um livro. Se você lê um livro em que uma menina de 12 anos se relaciona com um homem de
mais de 40 e não vê nada de estranho, talvez isso diga mais sobre você e sua tolerância a
pedofilia do que sobre o autor. Se há a tese que Lolita de fato seduziu Humbert, porque “está
escrito no livro”, há que se procurar outras coisas lá que provem que nem tudo é o que parece.
Talvez se deva observar que Lolita começa a esconder e guardar dinheiro para conseguir fugir
dele. Por que uma garota apaixonada iria querer fugir de um relacionamento com alguém que
ama? Ou ainda, por que estamos escolhendo olhar para alguns fatos e não para outros? E isso
também é a Cultura do Estupro: muitos de nós escolhemos acreditar na palavra do abusador e
não na da vítima.
Eu poderia citar muitos outros exemplos, mas a mensagem é a mesma: quando
falamos em Cultura do Estupro estamos falando de todo um sistema, reproduzido na
sociedade, que torna a mulher um objeto sexual não dotado de vontade própria ou autonomia
e que, portanto, pode ser violentada ou abusada de diversas maneiras. Na maioria das vezes,
esse ambiente é tão tóxico que a vítima não se sente na liberdade de denunciar seu abusador
porque sente que será culpabilizada pelo fato. A Cultura do Estupro cria um ambiente em que
a vítima não se sente a vontade para dizer não e que sente que se tivesse feito coisas de modo
diferente poderia ter evitado o estupro, como se o erro fosse dela de ter sido violentada. E o
que vemos acontecer é, mesmo diante de diversos livros que denunciam situações de violência
sexual, muitas obras não se dedicam a desconstruir a Cultura do Estupro, mas sim perpetua-la.
E de forma romantizada, ainda por cima. Isso tudo é o mais difícil de reconhecer. Porque
quando há o estupro propriamente dito, é fácil ser contra. Difícil é entender que a Cultura do
Estupro não é alguém te apontado o dedo e dizendo que estuprar é legal. Cultura do Estupro é
um vampiro bonitinho te dizendo “você diz que não, mas eu sei que no fundo você quer”.

Maria Celina Gil para Collant Sem Decote (2016)

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