Você está na página 1de 6

141

WACQ
CQU UANT
ANT,, LOÏC. PUNIR OS POBRES: A NO VA GESTÃO DA MISÉRIA NOS
NOV
ESTADOS UNIDOS. RIO DE JANEIR
STADOS O: INSTITUT
ANEIRO O CARIOCA DE CRIMINOL
NSTITUTO OGIA/
RIMINOLOGIA
FREITAS BAST
REITAS OS EDIT
ASTOS ORA, 2001.
DITORA
ANTÔNIO RAFAEL*

Punir os pobres: a nova gestão da a discussão acerca dos objetivos da pena


miséria nos Estados Unidos , juntamente de prisão – neutralização , punição,
com dois outros livros do autor publicados reforma ou reinserção daqueles que
no Brasil no decorrer do último ano, caem em suas malhas – colocando no
compõe uma boa apresentação aos seu lugar uma reflexão política, na
trabalhos de Loïc Wacquant, ao mesmo acepção estrita da palavra, acerca do
tempo que possibilita a divulgação, para sentido da pena e do encarceramento.
u m p ú b l i c o ma is am pl o, de um Trata-se de examinar, sob esta ótica, as
pensamento extremamente vigoroso em conexões existentes entre o surgimento
seu rigor analítico e na profundidade e e a difusão daquilo que o autor nomeia
amplitude de seus argumentos. Essas de “Estado penal” e a desregulação ou
iniciativas devem ser saudadas como um liberalização econômica, como podem
avanço do mercado editorial brasileiro, ser percebidas nos seus principais
especialmente por aqueles que hoje trabalham ve t o r e s : a a s c e n s ã o d o s a l a r i a d o
com a questão criminal. pre c á r i o , o d e s m a n t e l am e n t o o u
Se podemos resumir o tema central retração das políticas de proteção social,
que atravessa essa trilogia (como o a hipertrofia do aparelho punitivo e as
próprio autor nomeia o conjunto destas relações entre as prisões e os “guetos”
publicações), este seria a indagação (no con text o no r te-a meri cano e
proposta no epílogo da obra aqui europeu – casos privilegiados das
considerada: “afinal, para que serve a análises aqui desenvolvidas, mas que
p r i s ã o n o s é cu l o X X I ? ” (1 4 3 ) . A o não as esgotam).
posicionar no centro do debate uma Se o a s s u n t o p r i n c i p a l d e Os
questão freqüentemente aludida pelos condenados da cidade (Rio de Janeiro:
especialistas na matéria, o autor busca Rev a n , 2 0 0 1 ) g i r a e m t o r n o d a
dissolver o jogo de sombras que envolve marginalidade urbana – a análise dos
m od o s d e co m p os i çã o do s se u s
territórios e de suas formas específicas,
firmemente articuladas a um contexto
nacional determinado; sua matriz
* Doutorando, PPGAS - MN - UFRJ
142 ANTÔNIO RAFAEL

histórica de classe e seu sistema em que o autor apresenta o declínio do


hierárquico característico (nesse “Estado caritativo” (esta expressão, no
sentido, e apesar das similitudes seu entendimento, é mais adequada do
aparentes, as favelas no Brasil não que a de Estado-providência, uma vez
d ev e m s e r c on fu n di d as co m as que, no caso americano, parte-se de
poblaciones no Chile, os subúrbios na um a co nc ep ção da p ob re za c omo
França ou os gueto norte-americanos, produto das carências individuais e
para citar alguns exemplos) –, em As (in)ações dos pobres; princípios da
prisões da miséria (Rio de Janeiro: Jorge c o m p a i x ão e d a r e s p o n s a b i li d a d e
Zahar Editor, 2001) é a globalização das individual). Tal declínio foi facilitado
políticas de “tolerância zero” que ocupa por algumas características funcionais
o centro da investigação. Em Punir os e estruturais do aparelho de Estado
pobres , Wacquant procura mapear os americano: o anti-estatismo da cultura
caminhos pelos quais a criminalização política nacional, a descentralização
da miséria e o encarceramento maciço administrativa e a fragmentação do
complementar à insegurança gerada campo burocrático, a ausência de uma
p e l o a d v e n t o do “me nos Es tad o” tradição do serviço público e a
econômico e social internacionalizam- porosidade da divisão entre o público e
se, como esse modelo punitivo que o privado, a divisão estanque da ação
surge nos Estados Unidos (e cujo maior social do Estado entre social insurance
veículo de propaganda é a política de – que se responsabiliza pela gestão dos
segurança implementada na cidade de seguros e direitos trabalhistas – e
Nov a Yor k p elo prefei to Rud olph wellfare – que diz respeito à assistência
Giuliani) estende-se aos países europeus às pessoas dependentes ou na miséria.
e à América Latina (o caso brasileiro Mas foi a partir da era Reagan que o
aparece sinteticamente discutido na recuo da ação do Estado americano
nota introdutória). Podemos dizer que sobre o domínio da proteção social
Punir os pobres e s t á s i t u a d o n a efetuou-se com maior virulência, “a tal
interseção entre as duas obras, uma vez ponto que a ‘guerra contra a pobreza’
que, ao examinar detalhadamente o foi substituída por uma guerra contra
caso americano, conjuga as temáticas os pobres” (24). A reforma dos serviços
presentes tanto em uma quanto em sociais, votada em 1996 e referendada
outra num único quadro analítico – seja pelo governo Clinton, e no seu bojo a
n o q u e s e r e f e re à s u b s t i t u i ç ã o “lei sobre a responsabilidade individual”,
pr o g r e s s i va do “(semi)Estado- é a face mais atual desse movimento,
providência” pelo Estado Penal, seja assunto que é discutido minuciosamente
quando discute as mutações pelas quais no segundo capítulo.
passa o gueto americano. O livro segue com a apresentação de
A primeira parte do livro comporta alguns desenvolvimentos específicos, de
dois capítulos (publicados anteriormente algumas “técnicas de contração” do
como artigos em revistas acadêmicas) Estado caritativo: redução orçamentária

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ANTÔNIO RAFAEL 143

capacitação ineficazes no cumprimento


significativa dos programas de assistência dos seus objetivos expressos, ainda que
dirigidos aos pobres; aumento dos plenamente satisfatórios no que se
obstáculos administrativos e trâmites refere aos seus fins não declarados – a
burocráticos visando desencorajar os fixação da população assistida nos
postulantes ao auxílio, eliminação pura guetos. A segunda modalidade de
e simples de dispositivos e programas exercício dessa “política estatal de
de ajuda social (ação sustentada pelo criminalização das conseqüências da
argumento de que seria necessário miséria de Estado” (27) é o que lhe
intervir diretamente na “dependência confere certamente a sua face mais dura,
patológica” dos pobres), recuo no e também a mais visível: o encarceramento.
d o m í n i o p r i v i l e g i ad o d o social Tal é o assunto que se desenvolve na
insurance – os programas de seguro- segunda parte do livro: os modos pelos
desemprego e seguro de invalidez, por quais se dá a hipertrofia súbita do
exemplo, sofrem cortes expressivos – e, Estado penal, assim como a análise dos
por fim, supressão dos créditos federais custos e lucros gerados pelo
e verbas municipais destinadas aos encarceramento em massa. Partindo de
bairros pobres e aos seus habitantes, uma apresentação introdutória do
normalmente investidos em melhoria e sistema penitenciário americano, e
manutenção da infra-estrutura urbana, fazendo uso de dados estatísticos
no transporte, moradia, saúde e retirados de diversas publicações do
educação. Bureau of Justice Statistics do
Como contrapar te necessária ao Ministério Federal da Justiça (55), ele
desmantelamento da rede de assistência, nos brinda com um quadro valioso
erige-se a malha do Estado disciplinar, a c e r c a d a e x p l o s ã o c a rc e r á r i a n o s
chamado a substituí-la. Essa mudança Es ta do s Uni do s (a pop ul aç ão
t a m b é m p r o d u z e f ei to s ba s ta n te encarcerada quadruplica em duas
concretos. Em primeiro lugar, o autor décadas, chegando a impressionante
irá assinalar a transformação dos cifra de 600 prisioneiros para 100 mil
serviços sociais em instrumentos de habitantes). Isso, como ressalta o autor,
vigilância e controle das populações e m um pe r ío do de e s ta gn a çã o o u
pobres através do condicionamento do m e s m o d e re c u o d o s í n d i c e s d e
acesso à assistência social à adoção de criminalidade. E aqui ele toca no centro
certas normas de conduta, assim como do problema: as prisões não estão cheias
ao cumprimento de algumas obrigações de “predadores violentos”, mas de
previamente estabelecidas, tais como: a c r i m i n o so s não violentos e,
aceitação de qualquer emprego que seja especialmente, da juventude dos guetos,
oferecido, não importando a remuneração apanhada pela campanha de “guerra
e as condições de trabalho e a contra a droga”, para quem o comércio
assiduidade escolar dos filhos ou a e o varejo das drogas é a fonte de
inscrição em programas de formação ou emprego mais direta ou a única possível

resenhas
144 ANTÔNIO RAFAEL

(alguma similaridade com o caso que será distribuído pelos acionistas,


brasileiro? - resta-nos perguntar). enquanto afirmam-se os projetos para
A população carcerária, dilatada por que os custos sejam socializados entre
medidas como o alongamento das os apenados e seus familiares.
penas, a multiplicação das infrações que O gueto é o alvo privilegiado da
motivam o encarceramento fechado, a intervenção do aparelho de captura e
perpetuidade automática no terceiro observação de que se serve o Estado
crime, a aplicação da legislação criminal penal. E o é na medida em que as
“adulta” para menores de 16 anos, estratégias de contenção e controle
abarrota as cadeias e faz com que a social se deslocam dos guetos para as
preocupação primordial dos gestores do prisões. Efetuando uma leitura histórica
s i s t e m a p e n i t e n c i á r i o s e j a “f a z er acerca das “instituições peculiares”
circular” os detentos e acusados o mais usadas para confinar e controlar os afro-
rápido possível. Assim, o recurso ao americanos – a escravidão, o “sistema
setor privado surge como um dos meios de Jim Crow” e o gueto – o autor
possíveis, senão o único, de conter o apresenta, no capítulo cinco, a quarta
fluxo de prisioneiros e, paralelamente, dessas “instituições”: “o complexo
deter o abismo financeiro que se abre institucional composto por vestígios do
no orçamento carcerário dos estados gueto negro e pelo aparato carcerário ,
com a implementação da política de ao qual o gueto ligou-se por uma
enclaustramento. Pois, se “o crescimento relação estreita de simbiose estrutural
dos meios consagrados ao encarceramento e de suplência funcional” (99; grifos do
s ó f o i p o s s í v e l c o m o co r t e n o autor).
orçamento das verbas sociais, da saúde Todavia, para apreender essa ligação
p ú b l i c a e d o e n s i n o” ( 8 0 ) , e s s a s é necessário desenvolver, segundo a
supressões nem de longe são suficientes ótica do autor, um conceito analítico
para alimentar uma indústria crescente sólido do que seja o gueto, e ele assim
em volume de empregos e negócios. o faz: “(...) um gueto é uma relação
A título de exemplo, diz-nos Loïc etnoracial de controle e fechamento
Wa c q u a n t q u e a s a d m i n i s t r a ç õ e s composta de quatro elementos: estigma,
penitenciárias estaduais são o terceiro coação, confinamento territorial e
maior empregador do país (o que se segregação institucional” (108). Em
reflete no poder de barganha de seus seguida, ressalta que o gueto, desde a
sindicatos – em especial no apoio d é ca d a d e 6 0 , v e m s e t o rn a n d o
oferecido durante os ciclos eleitorais a funcionalmente obsoleto em relação ao
candidatos favoráveis à expansão das c u m p r i m e n t o d a d u p l a t a re f a d a s
prisões) e que o valor das ações das “instituições peculiares”: garantir o
firmas particulares que oferecem a controle da força de trabalho e a
gestão completa dos estabelecimentos manutenção da distância racial expressa
de detenção está entre os que mais através da subordinação de casta. A
sobem no mercado Nasdaq . Um lucro prisão parece tomar agora o seu lugar

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ANTÔNIO RAFAEL 145

(a população prisional negra foi a que grande volume de dados estatísticos, o


mais cresceu desde a década de setenta), q u e p o d e r i a re s u l t a r n u m t e x t o
com o nítido agravante de que não monótono ou de difícil leitura. Isso
d es e m p e n ha nenhuma função certamente não acontece devido à
econômica positiva no que se refere ao habilidade do autor em conjugar a
recrutamento de mão-de-obra, apenas apresentação desse material com outros,
executando a missão de manter os de cunho qualitativo, e entremear
negros a uma distância segura. Talvez o ambos com o exercício de problematização
pior dos mundos até aqui inventados. do que está sendo apresentado. Além
Os dois últimos capítulos se referem, disso, o livro está composto de maneira
respectivamente, ao panoptismo que que os capítulos podem ser lidos
floresce no seio do Estado penal e que separadamente, como artigos, muito
toma como objeto os delinqüentes embora não apresentem um formato
sexuais e a uma entrevista do autor estanque – existem passagens e
acerca do livro As prisões da miséria . continuidades entre eles, o que também
São ambos bastantes instigantes: o confere uma certa fluidez à leitura. O
primeiro, por desnudar a construção levantamento bibliográfico, e o uso que
d o s m e c a n i s m o s d e “ outing ” d o s dele faz o autor, por si só, já seria motivo
condenados por atentados aos costumes suficiente para a leitura da obra. Ressalte-
ou crimes sexuais (listas com nomes, se, ainda, o cuidado dos editores em
fotos e endereços em sites da internet assinalar, entre as obras do autor, aquilo
dos sex offenders ; obrigatoriedade de que já se encontra publicado no Brasil.
comunicar à vizinhança e à escolas sobre Resta, então, valorar a pertinência
a s u a p r e s e n ç a n as p r oxi mi da de s; de trabalhos como esse para os que
notificação ao público através da lidam com a questão penitenciária no
i m p r e n s a , d e c ar t az es e p a nf l et os Brasil. Se, de fato, não dispomos de
distribuídos pelos organismos policiais dados sistematizados que possibilitem
ou por adesivos colados no pára-choque uma análise do aparato prisional tal
dos veículos dos delinqüentes sexuais; como é desenvolvida no livro para o
castrações previstas em lei etc.); o caso americano, certamente algumas
segundo, que compõe o epílogo da características apresentadas na
obra, por nos reenviar à discussão que explicitação dos mecanismos de que
atravessa o livro, ao mesmo tempo que faz uso a penalidade neoliberal já
a distende em algumas direções, como estão presentes aqui, e com
é o caso da receptividade na imprensa conseqüências ainda mais funestas,
francesa das reflexões desenvolvidas uma vez que aplicadas a um contexto
pelo autor. de forte desigualdade social e
Por fim, vale a pena tecer alguns desprovido de tradição democrática
comentários, em primeiro lugar, sobre ou de instituições capazes de
cer tas características intrínsecas à amor tecer o choque causado pelas
composição do livro. Este apresenta um mutações no mercado de trabalho.

resenhas
146 ANTÔNIO RAFAEL

As constantes rebeliões nos presídios dos cemitérios. Cabe, assim, indagar


(motivadas pelas condições em que se que tipo de sociedade pretendemos
apresentam as cadeias brasileiras, em construir para o futuro, em especial
especial, pela estarrecedora superpopulação quando nos posicionamos diante dos
dos estabelecimentos – abastecidos, de p r o j e t o s d e re f o r m a d o s i s t e m a
igual modo, por uma “guerra às drogas” penitenciário brasileiro. Optamos por
não declarada) conjugadas com a ação lutar contra os pobres ou contra a
letal dos organismos policiais fazem pobre za e a desigualdade? Abrir a
com que, às dimensões dos guetos (no possibilidade desse questionamento é,
nosso caso, das favelas) e das cadeias, sem dúvida, o mérito principal do
tenhamos que adicionar uma outra: a livro.

cader nos de campo · n. 10 · 2002

Você também pode gostar