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15/10/2016 O belo da cidade | Mike Davis sobre megaeventos – Blog da Boitempo

O belo da cidade | Mike Davis sobre megaeventos

Posted on 03/06/2014 // 0 Comments

(h‰ps://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2014/05/14‑05‑27_mike‑davis_o‑belo‑da‑
cidade_2.jpg)Por Mike Davis (h ps://blogdaboitempo.com.br/category/colaboracoes‑especiais/mike‑davis/).*

No Terceiro Mundo urbano, os pobres temem os eventos internacionais de alto nível – conferências,
visitas de dignitários, eventos esportivos, concursos de beleza e festivais internacionais –, que levam
as autoridades a iniciar cruzadas de limpeza da cidade: os favelados sabem que são a “sujeira” ou a
“praga”  que  seus  governos  preferem  que  o  mundo  não  veja.  Durante  a  comemoração  da
Independência nigeriana em 1960, por exemplo, um dos primeiros atos do novo governo foi murar a
estrada até o aeroporto para que a princesa Alexandra, representante da rainha Elizabeth, não visse
as  favelas  de  Lagos1.  Hoje,  é  mais  provável  que  os  governos  melhorem  a  paisagem  demolindo  as
favelas e despejando da cidade os seus moradores.

Os  manilenhos  têm  horror  especial  a  tais  “campanhas  de  embelezamento”.  Durante  o  domínio  de
Imelda  Marcos  no  governo  da  cidade,  os  favelados  foram  sucessivamente  expulsos  da  rota  dos
desfiles do Concurso de Miss Universo, em 1974, da visita do presidente Gerald Ford, em 1975, e da
reunião  do  FMI‑Banco  Mundial,  em  1976.2  No  total,  160  mil  invasores  foram  removidos  para  fora
do campo de visão da mídia, muitos deles abandonados nos arredores de Manila, a 30 quilômetros

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ou mais dos seus antigos lares.3 O subsequente “Poder Popular” de Corazón Aquino foi ainda mais
impiedoso: cerca de 600 mil invasores foram despejados durante o mandato de Aquino, em geral sem
locais de reassentamento.4

Apesar  das  promessas  de  campanha  de  preservar  a  moradia  dos  pobres  urbanos,  o  sucessor  de
Aquino, Joseph Estrada, continuou os despejos em massa: 22 mil barracos foram destruídos, somente
na primeira metade de 1999.5 Então, durante os preparativos para a cúpula da Associação de Nações
do  Sudeste  Asiático  (Asean),  as  equipes  de  demolição  atacaram,  em  novembro  de  1999,  a  favela
de Dabu‑Dabu, em Pasay. Quando 2 mil moradores formaram uma parede humana, veio uma força
de  elite  armada  com  fuzis  M16  que  matou  quatro  pessoas  e  feriu  vinte.  As  casas  e  seu  conteúdo
foram  completamente  incendiados,  e  os  habitantes  miseráveis  de  Dabu‑Dabu  reassentados  num
lugar  às  margens  de  um  esgoto,  onde  seus  filhos  logo  foram  vítimas  de  doenças  gastrintestinais
fatais.6

Como  presidente  em  um  trono  construído  por  fuzileiros  navais  norte‑americanos  em  1965,  Juan
Balaguer,  da  República  Dominicana,  ficou  famoso  como  “o  Grande  Expulsor”.  Quando  voltou  ao
poder em 1986, o idoso autocrata decidiu reconstruir Santo Domingo como preparação para o quinto
centenário  da  descoberta  do  Novo  Mundo  por  Colombo  e  para  a  visita  do  papa.  Com  o  apoio  de
governos  e  fundações  da  Europa,  iniciou  uma  série  de  projetos  monumentais  sem  precedentes  na
história dominicana: o Farol Colombo, a Plaza de Armas e um arquipélago de novos loteamentos de
classe  média.  Além  de  se  monumentalizar,  Balaguer  também  pretendia  haussmannizar  os  núcleos
tradicionais  de  resistência  urbana.  Seu  principal  alvo  foi  a  imensa  área  de  baixa  renda  de  Sabana
Perdida,  na  cidade  alta  a  nordeste  do  centro  da  cidade.  “O  plano”,  escrevem  pesquisadores  que
trabalhavam  em  Sabana  Perdida,  “era  livrar‑se  de  elementos  incômodos  dos  barrios  operários  da
cidade alta, empurrando‑os para os arredores. A lembrança das revoltas de 1965 e dos distúrbios de
1984 indicou que seria mais sábio eliminar esse centro de oposição e protesto político”.7

Depois  de  enormes  protestos  da  coordenadora  de  direitos  do  barrio,  com  o  apoio  da  Comissão  de
Direitos  Humanos  da  ONU,  a  cidade  alta  foi  salva,  mas  realizaram‑se  demolições  extensas,  que
várias  vezes  envolveram  o  Exército,  no  centro,  sudoeste  e  sudeste  de  Santo  Domingo.  Entre  1986  e
1992,  quarenta  barrios  foram  arrasados,  e  180  mil  moradores  removidos.  Num  importante
relatório  sobre  a  demolição  dos  bairros,  Edmundo  Morel  e  Manuel  Mejía  descreveram  a  campanha
de terror do governo contra os pobres.

“As casas eram demolidas enquanto os habitantes ainda estavam dentro delas, ou quando os donos
estavam fora; tropas de choque paramilitares costumavam intimidar e aterrorizar as pessoas e obrigá‑
las a abandonar seus lares; bens domésticos eram vandalizados ou roubados; as ordens de despejo só
eram entregues no mesmo dia em que a família seria removida; pessoas eram sequestradas; grávidas
e  crianças  eram  submetidas  a  violência  física;  os  serviços  públicos  dos  barrios  eram  cortados,
numa tática de pressão; as famílias eram insultadas e ameaçadas; e a polícia agia como juiz.”8

Os  modernos  Jogos  Olímpicos  têm  uma  história  especialmente  sinistra,  mas  pouco  conhecida.
Durante os preparativos para os Jogos de 1936, os nazistas expurgaram impiedosamente os sem‑teto
e  favelados  de  áreas  de  Berlim  que  talvez  pudessem  ser  avistadas  pelos  visitantes  internacionais.
Embora  os  Jogos  subsequentes,  inclusive  os  da  Cidade  do  México,  de  Atenas  e  Barcelona,
tenham  sido  acompanhados  por  renovação  urbana  e  despejos,  os  jogos  de  Seul,  em  1988,  foram
realmente  sem  precedentes  na  escala  da  perseguição  oficial  aos  pobres,  quer  fossem  donos  de  sua
própria casa, invasores ou locatários: cerca de 720 mil pessoas foram removidas em Seul e Incheon,
levando  uma  ONG  católica  a  afirmar  que  a  Coréia  do  Sul  rivalizava  com  a  África  do  Sul  como  “o
país no qual o despejo à força é mais violento e desumano”.9

Beijing  seguiu  o  precedente  de  Seul  em  seus  preparativos  para  os  Jogos  de  2008:  “350  mil  pessoas
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Beijing  seguiu  o  precedente  de  Seul  em  seus  preparativos  para  os  Jogos  de  2008:  “350  mil  pessoas
serão  reassentadas  para  abrir  espaço  apenas  para  a  construção  de  estádios”.10  A  Human  Rights
Watch  chamou  a  atenção  para  a  ampla  concordância  oculta  entre  incorporadores  e
planejadores  oficiais,  que  manipulam  a  excitação  patriótica  inerente  aos  Jogos  Olímpicos  para
justificar os despejos em massa e a ocupação egoísta de terrenos no coração de Beijing11. Anne‑Marie
Broudehoux,  em  seu  célebre  livro  The  Making  and  Selling  of  Post‑Mao  Beijing  [A  criação  e  venda  da
Beijing  pós‑Mao]  (2004),  afirma  que,  no  capitalismo  de  Estado  da  China,  a  preferência  atual  é
esconder a pobreza por detrás de fachadas do “tipo Potemkin” e não reduzi‑la substancialmente.

Ela  previa  que  o  planejamento  dos  Jogos  Olímpicos  repetiria  a  experiência  traumática  (e,  para  o
operariado,  sombriamente  irônica)  da  comemoração  do  quinquagésimo  aniversário  da  Revolução
Chinesa.

Durante  mais  de  dois  anos,  os  pequineses  sofreram  a  desorganização  causada  pelas  diversas
campanhas de embelezamento iniciadas para camuflar as feridas sociais e físicas da cidade. Centenas
de  casas  foram  demolidas,  milhares  de  pessoas  despejadas,  e  bilhões  de  iuanes  dos  contribuintes
foram  gastos  para  construir  uma  fachada  de  ordem  e  progresso.  Para  garantir  que  as  cerimônias
cuidadosamente  planejadas  se  realizassem  com  perfeição,  a  capital  foi  levada  a  uma  paralisação
enquanto  durou  a  semana  de  festividades.  Os  moradores  de  Pequim  receberam  ordens  de  ficar  em
casa  e  acompanhar  a  festa  pela  televisão,  como  fizeram  na  cerimônia  de  abertura  dos  Jogos
Asiáticos.12

No  entanto,  o  programa  mais  orwelliano  de  “embelezamento  urbano”  da  Ásia  em  tempos  recentes
foi, sem dúvida, a preparação de “1996, Ano de visita a Mianmá”, realizada em Yangon e Mandalay
pela  ditadura  militar  da  Birmânia  [Mianmá],  sustentada  pela  heroína.  Um  milhão  e  meio  de
moradores  –inacreditáveis  16%  do  total  da  população  urbana  –  foram  removidos  dos  seus  lares
(frequentemente, por incêndios provocados pelo Estado) entre 1989 e 1994 e enviados para cabanas
de  bambu  e  palha  construídas  a  toda  a  pressa  na  periferia  urbana,  agora  rebatizada  com  o
horripilante  nome  de  “Novos  Campos”.  Ninguém  tinha  idéia  de  quando  chegaria  a  sua  vez,  e  até
mesmos  os  mortos  foram  removidos  dos  cemitérios.  Em  seu  livro  Karaoke  Fascism  [Fascismo  de
karaokê], Monique Skidmore descreve cenas violentas ocorridas em Yangon e Mandalay, que fazem
lembrar  o  famoso  despovoamento  de  Phnom  Penh,  por  Pol  Pot.  “Quarteirões  inteiros  da  cidade
desaparecem  em  questão  de  dias,  a  população  é  carregada  em  caminhões  e  realojada  à  força  nos
novos povoados que o governo criou em campos de arroz fora das principais cidades.”

Os  bairros  urbanos  foram  substituídos  por  projetos  como  o  novo  Campo  de  Golfe  de  Yangon,
destinado a turistas ocidentais e empresários japoneses. “Os generais removeram uma comunidade
que estava no local havia quarenta anos. Aqueles que resistiram foram presos ou levados à força para
um povoado a 24 quilômetros de distância.”13

Skidmore  argumenta  que  esse  deslocamento  espacial  constante  tornou‑se  a  base  da  “política  de
medo”  do  regime.  Com  a  troca  de  nome,  a  reconstrução  e  a  remoção  de  marcos  conhecidos  e  a
forte presença do Exército com seu arsenal, o conselho militar impõe uma nova configuração espacial
a  Yangon  […],  suprimindo  bairros  potencialmente  democráticos,  demolindo  as  partes  pobres  da
cidade e criando novos centros urbanos que imortalizam o princípio do autoritarismo.

Em vez dos bairros tradicionais e dos prédios históricos, a lavagem do dinheiro das drogas financia
arranha‑céus  de  vidro  e  concreto  (“narcoarquitetura”),  hotéis  para  turistas  com  moeda  forte  e
extravagantes condomínios‑pagodes. Yangon tornou‑se um pesadelo que combina uma “terra mágica
budista  para  turistas”,  um  quartel  gigantesco  e  um  cemitério:  é  uma  “paisagem  que  glorifica  o
controle e a visão autoritária dos seus líderes”.14

* Do livro Planeta favela (h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/planeta‑favela)
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* Do livro Planeta favela (h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/planeta‑favela)
(Boitempo, 2006), de Mike Davis.

Notas

[1] Ben Omiyi, The City of Lagos: Ten Short Essays (Nova York, Vantage Press, 1995), p. 48.
[2] Erhard Berner, “Poverty Alleviation and the Eviction of the Poorest”, International Journal of Urban
and Regional Research, v. 24, n. 3, set. 2000, p. 559.
[3] Drakakis‑Smith, Third World Cities, p. 28.
[4] Berner, Defending a Place, p. 188.
[5] Task Force Detainees of the Philippines (TFDP‑AMRSP), “Urban Poor, Demolition and the Right
to Adequate Housing”, artigo para discussão, Manila, 2000.
[6]  Helen Basili, “Demolition  –  the  Scourge  of  the  Urban  Poor”,  Transitions (boletim do Service for
the Treatment and Rehabilitation of Torture and Trauma Survivors), n. 6, maio 2000.
[7] Morel e Mejía, “The Dominican Republic”, p. 85.
[8] Ibidem, p. 95‑7.
[9]  Catholic  Institute  for  International  Relations,  Disposable  People:  Forced  Evictions  in  South  Korea
(Londres, Catholic Institute for International Relations,1988), p. 56.
[10] Asian Coalition for Housing Rights, Housing by People in Asia (boletim), 15/10/2003, p. 12.
[11] Ver Human Rights Watch, relatório atual, e “Demolished: Forced Evictions and the Tenants’ Rights
Movement in China”, disponível em hrw.org/reports/2004/china.
[12]  Anne‑Marie  Broudehoux,  The  Making  and  Selling  of  Post‑Mao  Beijing  (Nova  York,
Columbia University Press, 2004), p. 162.
[13] Skidmore, Karaoke Fascism, p. 88. Ver também o arquivo sobre a Birmânia (Burma), disponível em
<www.idpproject.org>.
[14] Skidmore, Karaoke Fascism, p. 84‑5, 89, 159‑60.

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(h‰ps://blogdaboitempo.com.br/megaeventos/)

Confira  o  dossiê  especial  sobre  a  Copa  e  legado  dos  megaeventos,  no  Blog  da  Boitempo
(h‰ps://blogdaboitempo.com.br/megaeventos/),  com  artigos  de  Christian  Dunker,  Flávio  Aguiar,
Edson Teles, Jorge Luiz Souto Maior, entre outros!

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(h‰ps://www.facebook.com/events/289556721204379/)

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Dos  livros  de  Mike  Davis  (h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/authors/view/170)  publicados


pela Boitempo, Planeta favela (h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/planeta‑favela) (R$
22,00 aqui  (h‰p://www.travessa.com.br/eBook_PLANETA_FAVELA/eBook/28941165‑def9‑4fc6‑9db2‑
51ab4ce5a240)),  Cidade  de  quar€o  (h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/cidade‑de‑
quarȂo)  (R$  32,00  aqui
(h‰p://www.travessa.com.br/eBook_CIDADE_DE_QUARTZO/eBook/27be8b80‑47a0‑48e6‑8a2d‑
5c9f19cc582b)),  Occupy  (h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/occupy)  (R$  5,00  aqui
(h‰p://www.travessa.com.br/Busca.aspx?d=1&cta=8&‰=occupy&cbo=51))  e  Cidades  rebeldes
(h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/cidades‑rebeldes)  (R$  5,00  aqui
(h‰p://www.travessa.com.br/eBook_CIDADES_REBELDES/eBook/c4d833b0‑2ce0‑435e‑a3c0‑
eb72c8a74ffa)) já estão à venda em versão eletrônica (ebook), por metade do preço do impresso.

***

Mike Davis nasceu na cidade de Fontana, Califórnia, em 1946. Abandonou os estudos precocemente,
aos dezesseis anos, por conta de uma grave doença do pai. Trabalhou como açougueiro, motorista de
caminhão e militou no Partido Comunista da Califórnia meridional antes de retornar à sala de aula.
Aos 28 anos, ingressou na Universidade da Califórnia de Los Angeles (Ucla) para estudar economia e
história. Atualmente, mora em San Diego, é um distinguished professor no departamento de Creative
Writing  na  Universidade  da  Califórnia,  em  Riverside,  e  integra  o  conselho  editorial  da  New  Left
Review. Autor de vários livros, entre eles Ecologia do medo, Holocaustos coloniais, O monstro bate à nossa
porta  (Record),  Planeta  favela  (h p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/planeta‑favela),  Apologia
dos  bárbaros  (h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/apologia‑dos‑barbaros)  e  Cidade  de
quar€o (h‰p://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/cidade‑de‑quarȂo),  os  três  últimos  pela
Boitempo Editorial. 
megaeventos
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