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DOSSIÊ
horizontes da sociologia (semi)periférica contemporânea
Breno Bringel*
José Maurício Domingues**
Este artigo analisa a produção de teoria social na periferia em diferentes eras geopolíticas e fases da mo-
dernidade, com ênfase especial para a sociologia semi(periférica) contemporânea. Argumenta-se que a
agenda de pesquisa atual gira ao redor de um movimento intelectual de crítica destituinte do eurocentris-
mo e da modernidade, sem conseguir, no entanto, criar formulações teórico-metodológicas sistemáticas,
como ocorreu a meados do século XX. Busca-se, portanto, avançar nas bases para a construção de um
movimento instituinte mais propositivo a partir de duas direções: por um lado, recuperando a centrali-
dade de campos autônomos e circuitos agregadores que superem a extroversão intelectual; e, por outro,
analisando, em diálogo com Guerreiro Ramos, as possibilidades de construção de teoria na (semi)periferia
como uma das principais chaves para deslocar, de maneira mais permanente, a hegemonia das teorias dos
países centrais e seu uso habitualmente protocolar fora de seu solo original.
Palavras-chave: Teoria sociológica. Semi(periferia). Modernidade global. Guerreiro Ramos. Epistemologia.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792015000100005 59
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de uma “sociologia indígena” com pretensões rios e de legitimação que acabam nublando a
teóricas e universalistas, visão bem diferente busca de novas articulações teóricas e episte-
à de certa “sociologia endógena”, nativa, parti- mológicas, além de, em alguns casos, descon-
cularista e com uma compreensão baseada em textualizar os aportes de autores periféricos que
espaços de exterioridade da modernidade. são (re)canonizados pelo centro. Uma segunda
De forma paralela a esse levantamento questão é o tratamento pouco rigoroso da noção
tectônico do Sul, emergem várias outras pro- de epistemologia e de sua relação com a teoria e
postas, algumas das quais situadas no Norte a construção de inovações para o entendimento
geográfico e que dialogam com a sociologia da vida social (adiante voltaremos a isso).
central contemporânea, especialmente a partir Ainda assim, contrariando a proposta de
das guinadas (turns) culturalistas, discursi- dar voz aos oprimidos e subalternos, em mui-
vistas, pós-estruturalistas e pós-modernas. As tos casos, há uma leitura pouco indutiva de
teorias do Sul (Connel, 2007; Santos, 2009), práticas, experiências e realidades sociais que
por exemplo, recuperam a sociologia do co- não são estudadas a fundo, mas são utilizadas
nhecimento e tradições sociológicas nacionais e (ou) apropriadas para justificações epistemo-
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lógicas mais amplas. Tal como sugeriu Bringel fragmentada de vozes ao Sul continua sendo a
(2011), é habitual ver como os zapatistas ou o escassez de circuitos regionalizados e de cam-
MST converteram-se, no mundo, em exemplos pos intelectuais relativamente autônomos que
quase obrigatórios para um amplo número de permitam a troca sistemática, a pesquisa con-
autores que se autoidentificam com as inter- junta sobre temas convergentes e o contraste
pretações pós-coloniais e consideram, de ma- de ideias.
neira superficial, esses movimentos como ge-
radores de “outros conhecimentos” e “outras
racionalidades”, ainda que não se aprofunde Autonomia, campos e extroversão:
a análise de como ocorre esse processo, nem bases para um movimento intelectu-
se debata a agência e as contradições. Final- al instituinte
mente, o entendimento limitado, por parte de
alguns desses autores, dos lugares periféricos Na teoria de Pierre Bourdieu (1992), os
como espaços praticamente exteriores à mo- “campos”, embora cada um deles sempre em
dernidade e a rejeição de tudo que provém do comunicação com outros campos e em relações
Norte implicam não reconhecimento do outro e de disputa com eles, são ou devem ser, para
potencialidade das conexões e articulações glo- serem assim adequadamente caracterizados,
bais. Isso acaba gerando, em alguns casos, um capazes de manter sua autonomia de maneira
abandono de qualquer pretensão universalista mais ou menos clara e intensa. Isso significa
e uma criação de novos provincianismos, bem a existência de parâmetros internos próprios.
como de propostas muito orientadas para a prá- Tendo isso em vista, pode-se sugerir a hipótese
tica, que acabam descurando da análise teórica. de que, em contrapartida, em países periféri-
Seja como for, a sociologia (semi)perifé- cos e semiperiféricos, bem como dependen-
rica contemporânea – independentemente de tes, isso é muito mais difícil e improvável, ao
suas vertentes temáticas e geográficas, hetero- menos em certas áreas da vida social. Pode-
geneidade e fragmentação – tem contribuído se sugerir ainda que, nesse sentido, o campo
bastante para a negação e a problematização intelectual e acadêmico teria problemas para
de certos consensos e convenções. No entanto, desenvolver uma lógica interna (Miceli, 2005,
em geral, ainda é bastante reativa e destituinte, p.132ss). Trata-se de velho – mas nem por isso
posto que o objetivo último, em muitos casos, desimportante – tema do pensamento latino-
é a crítica ao eurocentrismo, entendida como americano, que se repõe de maneiras sutis e
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dente. Isso significa que o campo seria funda- de pesquisa e de debates internos. Na discus-
mentalmente, ou em grande medida, heterôno- são, apareceram, com destaque, Guerreiro Ra-
mo, com o prestígio que se confere à produção mos, Florestan Fernandes, Gino Germani, Ro-
intelectual e científica ainda em larga medida dolfo Stavenhagen, Pablo González Casanova,
concentrado nos principais circuitos de produ- entre outros. Curiosamente, com o desmonte
ção e publicação europeus e estadunidenses,4 do campo intelectual e do intercâmbio da so-
não obstante esforços para, aqui e ali, romper ciologia latino-americana a partir da ascensão
com essa desigualdade de poder, específica da das ditaduras, a questão retrocedeu na prática,
geopolítica do conhecimento. com algumas exceções.5
Uma vertente francesa de interpretação A relação entre as ditaduras e o desmon-
da África, em oposição a teorias simplistas da te intelectual é, no entanto, ambivalente: por
dependência – que a definem como se exercen- um lado, os regimes militares perseguiram e
do basicamente de fora para dentro, como, no cassaram muitos intelectuais, obrigando-os,
caso, de um modo geral, nas teorias da depen- não poucas vezes, a deixarem seus respectivos
dência, dos poderes ocidentais –, propôs outra países. Alguns dos principais centros regionais
solução para esse tipo de problema (Bayart, de produção da sociologia na América Latina
1989). Fala-se, assim, de extroversão, conceito se mantiveram com dificuldades ou inclusive
por meio do qual se buscou acentuar os ele- fecharam (caso do Centro Latino-americano de
mentos internos que fazem com que um país Pesquisa em Ciências Sociais, CLAPCS, com
esteja voltado para o exterior. Não nos parece sede no Rio de Janeiro6). Por outro lado, de for-
que seja o caso de opor essas duas perspecti- ma paradoxal, o exílio serviu não somente como
vas. Se tomarmos os melhores exemplos das um espaço de luta internacionalista, mas tam-
teorias da dependência e a pensarmos como bém como espaço de convergência intelectual,
sendo, em grande medida, articulada por for- o que rendeu, em alguns casos, colaborações
ças internas (Cardoso e Faletto, 1970), isso se intelectuais importantes, embora sempre pre-
faz compatível com a ideia de extroversão, que sas na fronteira instável da condição do exilado.
não deve descurar, por outro lado, do exercí- Desse modo, a heteronomia – dependên-
cio real das forças externas na determinação cia e extroversão – do campo intelectual lati-
– heterônoma por parte daqueles que as sofrem no-americano aumentou novamente. Embora
– dos países submetidos ao domínio de pode- haja esforços, hoje, para diminuí-la, no Brasil,
res coloniais, imperialistas ou algo do gênero. isso continua sendo forte e o debate intelectual,
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Seus campos seriam assim, ao mesmo tempo e bastante débil. Pouco parece fazer por ele a in-
em função das mesmas relações, dependentes trodução de certas correntes que curiosamente
e extrovertidos, em parte como resultados de se difundem do exterior para cá, mesmo se ca-
processos que têm seu polo dinâmico fora des- pitaneadas por intelectuais latino-americanos,
ses países, em parte pela forma como se estru- na criação de um ambiente intelectual relati-
tura a vida intelectual dentro deles próprios. vamente autônomo, o que, obviamente, não
Em algum momento da segunda metade prescinde de um diálogo intenso com o exterior,
do século XX, esse tema foi visto como pos- em particular com outros espaços periféricos.
sivelmente superado pela institucionalização
das ciências sociais nos diversos países da 5
Para discussão suplementar e uma seleção dessas exce-
ções ver, por exemplo, Domingues e Maneiro, 2006
América Latina e pela formação de um campo
6
O NETSAL está realizando, com apoio financeiro da
4
Um exemplo claro disso hoje, no Brasil, mas também em FAPERJ, uma grande pesquisa sobre o CLAPCS e os estu-
boa parte dos países latino-americanos, é o fomento de dos latino-americanos no Brasil. Para um panorama inicial
uma política de internacionalização que não problematiza da pesquisa, cf. Dossiê Temático NETSAL “Sociologia la-
como, para que e para onde se internacionalizar, assumin- tino-americana: originalidade e difusão”, no. 4, dezembro
do os grandes centros e as publicações em inglês como de 2014. Disponível em: http://netsal.iesp.uerj.br/images/
modelo. dossie/Dossie-Netsal_04.pdf
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Como já vimos, tampouco problematiza- específico,7 capaz de levar mais longe o debate
ções em torno de “epistemologias do Sul” pa- próprio ao “mundo das ideias”, que se centra
recem ajudar muito nesse sentido, sobretudo hoje na universidade, e estendê-lo no plano da
quando o próprio significado do termo perma- “esfera pública” e em outras conexões.
nece indefinido (equivocadamente tendendo, Torna-se, portanto, fundamental uma
hoje, a significar conteúdos substantivos em capacidade de dinamização interna mais acen-
que o não ocidental é negativizado, antes que tuada – que pouco tem a ver com os critérios
se referindo a operações lógicas do pensamen- de avaliação, burocratização e normatização
to e aos processos de construção do conhe- das agências governamentais, mas sim com o
cimento). No primeiro caso, pode-se mesmo, próprio debate intelectual –, ainda que sejam
de maneira sutil, reafirmar a heteronomia; no importantes também a permeabilidade às de-
segundo, ou se esquece, ou se desconhece, o mandas da sociedade em geral e a conforma-
que apareceu, por exemplo, nos escritos de ção de redes mais amplas com agentes exter-
Houtondji (1977) sobre a pluralidade das abor- nos ao mundo universitário (com movimentos
dagens fora do Ocidente e, sobretudo, que o sociais, partidos, imprensa – hoje um nó ex-
que importa é a capacidade dos investigadores tremamente problemático –, editoras, etc.). Há
fora do centro de pensarem por conta própria, vários tipos de intelectual, sem dúvida; mas,
produzindo teorias de forma mais ou menos embora haja inúmeros “sistemas peritos” e
autônoma, apropriando-se do que a moderni- aqueles que são “intelectuais orgânicos” dos
dade, de modo geral, produziu, aí incluídas a mais diversos tipos de organizações e movi-
filosofia e as ciências sociais modernas. mentos, essa é uma atividade que tem seus re-
Isso, obviamente, não nos dispensa de quisitos e lógica própria.
pensar epistemologicamente nossas teorias As especificidades das áreas de pensa-
e conceitos e a relação que nossas próprias mento e pesquisa precisam ser preservadas e
realidades – latino-americanas ou de qualquer valorizadas, tendo hoje o mundo intelectual
outra parte do mundo – mantêm com as teorias seu centro na própria universidade. Inevita-
e conceitos surgidos na Europa ou nos Estados velmente isso ocorre em seu âmbito e num
Unidos. Mas parece ser na capacidade de au- momento em que a desvalorização do pen-
todeterminação intelectual que se jogam hoje, samento crítico – afora em suas versões mais
em grande parte, os destinos das ciências so- pragmáticas – parece ser uma prioridade da
ciais brasileiras. Em outras palavras, em nossa “racionalização” dos sistemas políticos (inclu-
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cujo legado, de todo modo, não é desprezível.8 gia, em diversos contextos nacionais, sempre
Isso hoje, talvez, seja um imperativo das ciên- apelou para um campo ou circuito “interno”
cias sociais brasileiras, em particular se um (lido, em geral, como sinônimo de nacional) de
campo de debate é mais bem estruturado do produção e circulação das ideias e dos deba-
que o que temos presentemente, não obstante tes. Essas comunidades científicas nacionais
as múltiplas atividades das associações cientí- imaginadas baseiam-se, em primeiro lugar, na
ficas das áreas de ciências humanas. Isso é o língua, embora a existência de uma mesma lín-
que nos facultaria melhor inserção, inclusive gua não implique necessariamente um diálogo
nas discussões públicas. Mas, sobretudo, é im- sistemático entre duas comunidades nacionais
portante ser capaz de, nessa nossa particular (casos, por exemplo, de Brasil e Portugal, ou
situação brasileira de semiperiferia, avançar do Chile e da Espanha). Para além do idioma,
intelectualmente em termos de uma relação importam também a canonização de autores e
mais equilibrada tanto com o centro como com de referências nacionais, as tradições acadêmi-
os demais países semiperiféricos e os propria- cas, as diferentes formas de inserção e relação
mente periféricos. Não se trata apenas de pro- com outras “comunidades imaginadas nacio-
duzir profissionalmente, senão de gerar uma nais”, bem como os circuitos de divulgação
discussão mais ampla sobre nossa trajetória, próprios, como é o caso das revistas e periódi-
inserida em um mundo cada vez mais comple- cos científicos.
xo. Como é sabido, esse é problema que se re- São “imaginadas” pelo caráter de sua
põe. Daí a importância de, por um lado, atuali- construção, mas também pela relativa fragili-
zar, como faremos a seguir, a reiterada discus- dade dos elos de suas cadeias e de sua escassa
são sobre os circuitos internos. E, por outro, coesão interna. Associações científicas e con-
de construir, cumulativamente, nosso próprio gressos nacionais foram criados também para
espaço de debate, em vez de nos rendermos à permitir a socialização, o debate e a divulga-
extroversão ou à dependência, em suas mais ção entre os cientistas sociais desses países,
diversas e inclusive disfarçadas manifestações. conquanto, na atualidade, apresentem-se mais
como uma soma de agendas individuais que
como espaço de debates orientados por uma
Os circuitos internos como comuni- agenda coletiva.
dades nacionais imaginadas Duas observações devem ser feitas so-
bre a criação dessas comunidades científicas
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Como criar um debate intelectual pró- nacionais. Em primeiro lugar, essa delimitação
prio? É possível gerar um circuito interno na ocorreu, muitas vezes, em contato direto com a
sociologia periférica? Ele deveria ser neces- reconfiguração das associações internacionais,
sariamente nacional? Essas são questões cen- ou seja, a partir de demarcações sobre o cará-
trais do debate latino-americano de meados de ter nacional e internacional das disciplinas. A
século XX que ainda ressoam na atualidade. Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), por
A despeito da circulação regional e global, as exemplo, foi criada em 1950, sob forte influên-
ciências sociais foram sendo forjadas nacional- cia de um convite feito em 1949 pela Associa-
mente, desde seus inícios, como “comunidades ção Internacional de Sociologia (ISA) ao então
imaginadas”. A analogia que aqui fazemos ao presidente da Sociedade Paulista de Sociologia
já clássico livro de Benedict Anderson (1991) (SPS), Fernando de Azevedo. A criação dos es-
deve-se ao fato de que a institucionalização de tatutos da ISA em 1949, após sua fundação no
disciplinas como a sociologia ou a antropolo- mesmo ano, sob os auspícios da UNESCO, no
I Congresso Internacional, realizado em Oslo,
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(Bourdieu, 2012, p. 348-51) com referência ao embuste
dos “novos filósofos”. estimulava a afiliação e a criação de associa-
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ções nacionais. Reunido no dia 19 de janeiro em termos de autonomia não pode se con-
de 1950, um grupo de sociólogos pertencentes fundir com um “nacionalismo metodológico”
à SPS decide pela criação da SBS para permitir (Beck, 2003; Chernilo, 2007). Em segundo lu-
o “estabelecimento de contatos entre sociólo- gar, a adoção do nacionalismo como ideologia
gos brasileiros e estrangeiros, bem como dos seria um imperativo sempre contextual (na-
sociólogos brasileiros dentre si”.9Em segundo quele momento conduzido pela primazia da
lugar, o caráter do “nacional” varia muito de lógica populista e desenvolvimentista).
acordo com a posição dos países na divisão No tocante ao primeiro elemento, pode-
internacional dos sistemas científicos e do se dizer que, a despeito de seu nacionalismo
trabalho intelectual. Por um lado, a “depen- radical, que tem consequências sérias, inclusi-
dência acadêmica” (reforçada com frequência, ve em sua proposta de “redução sociológica”,
internamente, pelas políticas educativas, pelas Ramos buscou, reconhecendo o caráter con-
instituições de pesquisa e pelo próprio Estado) creto da nação e depois, retrospectivamente,
não pode ser negligenciada em sua capacidade de modo sistemático, não naturalizar o Esta-
de reproduzir assimetrias na produção e difu- do-nação como uma unidade analítica dada,
são da sociologia entre os diversos países (Sa- procurando, ao contrário, observar sua histori-
bea e Beigel, 2014). Por outro, torna-se impor- cidade e sua espacialidade, pois a escala nacio-
tante distinguir, no terreno político, os nacio- nal (assim como qualquer outra escala, seja ela
nalismos do centro dos nacionalismos periféri- local, regional ou global) é uma construção só-
cos, bem como examinar suas implicações em cio-histórica. Por outro lado, deve-se reforçar o
termos intelectuais. Quando o nacionalismo se caráter situacional e instrumental do naciona-
constitui como “identidade periférica”, seja de lismo de Ramos. O próprio autor deixou claro,
uma comunidade política (Beigel, 2004), seja em entrevista concedida a Lucia Lippi, poucos
de uma comunidade científica (Ramos, 1957), meses antes de seu falecimento, que seu na-
as consequências são marcantes. cionalismo era um “nacionalismo de ocasião”
Isso não significa que um circuito inter- (Oliveira, 1995, p.157).
no ou um campo autônomo seja necessaria- Uma consequência interessante disso
mente sinônimo de uma sociologia nacional; é que, embora Ramos (1957) não negasse o
mas tão importante como examinar a posi- caráter universal da sociologia, sugeria que
cionalidade do pesquisador e de seu lugar de a sociologia deveria refletir as circunstâncias
enunciação é analisar as situações específicas (nacionais) de sua produção. Seus argumen-
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ças podem ser encontradas com aportes de ou- de ordem contra o imperialismo e pela uni-
tros destacados sociólogos latino-americanos dade da luta social na América Latina: ¡Por la
dos anos 1950 e 1960 (como o também mexica- descolonización! ¡Abajo el eurocentrismo! Es-
no Pablo González Casanova ou o colombiano cuta-se, logo em seguida, um sussurro irônico
Orlando Fals Borda), e, inclusive, com nomes em português: E vamos colocar o que no lugar?
anteriores do pensamento crítico na região. Com essa anedota, iniciamos esta última parte
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Dentro da atual revitalização do pensamento de Ramos, do presente artigo, indagando sobre as possibi-
uma interessante agenda de pesquisa que se abre seria a lidades de avançar com uma agenda instituin-
análise da recepção do autor na América Latina e, parti-
cularmente, no México, onde influenciou, entre outros, te do pensamento crítico que busque formular
os teóricos da dependência, alguns dos quais haviam sido
seus alunos no Brasil, como foram os casos de Ruy Mauro novas concepções teórico-metodológicas acor-
Marini e Theotônio dos Santos.
des com a realidade dos países periféricos.
11
Ramos manteve, no entanto, uma proximidade bastante
mais forte com a intelectualidade africana, sendo a negri- Não há consenso entre as diversas cor-
tude e a mobilização instrumental do discurso nacionalis- rentes coexistentes nas sociologias que con-
ta (caso de Nyerere na Tanzânia, entre outros), e ao mesmo
tempo pan-africanista (Nkrumah, 1965) elementos funda- temporaneamente questionam o entendimento
mentais desses vínculos, que acabaram aproximando-o
também, como é sabido, do movimento negro. do que é teoria, nucleada nos países centrais, e
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nem mesmo de como produzi-la. Para Connell mico”. De resto, vale indagar, o que entender
(2007, capítulo 2; 2012), teoria é aquilo que se por epistemologia? Para muitos aparece como
produz no Norte. Para além desse fundamen- algo concreto; nesse sentido há uma resposta
tal reconhecimento de quem produz e quem clara sobre o que seria uma nova epistemolo-
consume teoria, a autora avança, no entanto, gia nas ciências sociais, alterando-se, então,
na problematização de que a produção de uma os sinais da desvalorização do colonial ou pe-
teoria geral nas metrópoles está vinculada a riférico ante o colonizador ou central (Patel,
certos pressupostos e posicionamentos geopo- 2015). Mas o que importa aqui realmente são
líticos. Se a teoria geral busca propor uma in- as operações lógicas que subjazem à produção
terpretação abrangente da sociedade e oferece do conteúdo, não ele mesmo, embora haja, ine-
conceitos que transcendem uma sociedade es- vitavelmente, uma dialética entre esses dois
pecífica no tempo e no espaço, é, de fato, cru- aspectos: destacam-se, nisso, o papel das “re-
cial avaliar, em sua elaboração, a contingência, presentações” e como se constroem, a relação
a unidade analítica ponderada pela diversida- entre sujeito e objeto, a operação das analogias
de social, o dinamismo, os entrelaçamentos e e das categorias de análise no processo de pro-
correlações de forças e uma perspectiva mais dução do conhecimento, a relação entre con-
relacional das coordenadas espaço-temporais. creto e abstrato, empírico e teórico, explicação
Criar novas fórmulas para pensar a teo- e compreensão, etc. Nesse sentido, é verdade:
ria social, e particularmente a teoria crítica, é a sociologia, embora possa aprender de outras
algo crucial. No entanto, com algumas exce- fontes e possa querer superar a própria moder-
ções, esse não parece ser o propósito central da nidade nas versões radicais da teoria crítica,
maioria das formulações pós-coloniais, muitas segue sendo uma ciência moderna. Mesmo
das quais, de fato, negam a possibilidade de antropólogos ansiosos por aprender com seus
qualquer teoria geral. Por exemplo, Boaventura “objetos” de pesquisa ou sua reconstrução her-
de Sousa Santos, ainda que sociólogo e prati- menêutica terminam por aceitar, com certa
cante da disciplina, de fato, há décadas, nega a torção de seu projeto íntimo, sua inserção no
relevância de construir uma nova teoria geral, universo científico da modernidade.12 Mas, de-
ou, inclusive, outro tipo de ciência social, pois ve-se frisar: ser uma disciplina moderna não
considera que, “sem uma crítica ao modelo de implica, de maneira alguma, uma aliança com
racionalidade ocidental dominante [...], todas um cartesianismo ultrapassado e caricatural,
as propostas apresentadas pelas novas análises pois a modernidade é muito mais plural que
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queles que falam de uma “sociologia indígena” pre perspectiva e situacional, pois o homem é
como referência a uma lógica particular de um “ser em situação”, como costumava dizer
pensamento autóctone, ele utilizava a noção o autor.
de “sociologia indígena” como sinônimo de A construção de uma sociologia crítica
sociologia brasileira que, como toda ciência das sociedades periféricas, deveria fugir de al-
nacional, seria universal, pois acreditava que guns problemas recorrentes da sociologia na
a “universalidade da ciência não impede que periferia: (a) o olhar simétrico e sincrético com
a sociologia se diferencie nacionalmente” (Ra- a produção europeia e norte-americana; b) o
mos, 1995, p.38 e p. 44-45). Segundo Ramos, dogmatismo e a utilização de argumentos de
a teoria social deve estar sempre enraizada no autoridade a partir da justaposição de textos
espaço e no tempo, sendo fundamental o ma- de autores prestigiosos dos países centrais; c)
nejo das teorias estrangeiras, embora não como o dedutivismo, calcado na cópia e na abstra-
norma, critério ou fim em si mesmo, mas como ção da contingência histórica; d) a alienação,
subsídio, ou seja, “como meros pontos de par- carregada de um tom pejorativo, derivada da
tida para novas formulações mais consentâne- ausência de esforços em promover a autodeter-
as com os fatores reais” (Ramos, 1995, p.126). minação das sociedades periféricas; e) a inau-
A relação entre teoria e prática e entre tenticidade, derivada da utilização de marcos
o momento político e a teorização da socieda- pré-fabricados e de conceitos, métodos e técni-
de foi algo eminente para Ramos, motivo pelo cas desenraizadas (Ramos, 1995, p. 38-44). Por
qual, embora sua “sociologia em mangas de ca- trás desses “nãos” há muitos “sins”: contra a
misa” tenha sido frequentemente subestimada coisificação dos fatos sociais, propõe-se a aná-
devido a seu caráter ideológico, sugeriu distin- lise de processos; contra a “transplantação”,
guir entre dois tipos de teorização da realidade tema por excelência da sociologia na periferia,
social: a “teorização ideológica” e a “teorização sugere-se o procedimento crítico-assimilativo
sociológica” (Ramos, 1995, p. 61-64). Enquan- da experiência estrangeira; contra o dedutivis-
to a primeira seria sempre sectária, por expres- mo eurocentrado, apresenta-se o método em-
sar e justificar os interesses particulares de um pírico-indutivo que busque partir da situação
grupo ou de uma classe, a segunda resultaria concreta para o plano teórico.
de uma atitude crítica e autocrítica, nuançada, Há, em Guerreiro Ramos, tanto uma “ati-
que busca sempre, a partir de um condiciona- tude sociológica” como uma proposta de trans-
mento histórico-social, formular uma concep- portar, para o plano abstrato dos conceitos, as
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ção de sociedade atenta a todas suas tendên- realidades históricas efetivas. Essa proposta
cias constitutivas. intelectual se cristaliza, posteriormente, em A
Isso não significa que o engajamento Redução Sociológica, em que ele busca conci-
militante não seja possível entre os sociólogos, liar a crítica epistemológica e a construção teó-
mas simplesmente que há uma diferenciação rico-metodológica. A Redução é uma das mais
interna na concepção de teoria, de acordo com conhecidas contribuições de Ramos no tocante
seus métodos, modalidades e fins. Ramos cul- à construção de uma teoria na periferia. Embo-
tiva apreço pelo método na estruturação do ra existam várias leituras possíveis dessa obra,
pensamento cientifico, mas, para ele, objeto e pode-se afirmar que ela contêm não somente
sujeito se compenetram e a objetividade é sem- uma dimensão político-epistêmica, como
também uma proposta teórico-metodológica.
nos textos Tema da transplantação na sociologia brasileira
(1954), Cartilha brasileira do aprendiz de Sociólogo (1954), Em outras palavras, ele estava preocupado
Enteléquias na interpretação (1954) e Crítica da sociologia com um duplo movimento: por um lado, um
brasileira (1957), presentes em seu livro Introdução crítica
à sociologia brasileira. Utilizamos tanto a versão original movimento destituinte, de crítica à assimilação
de 1957 como a versão reeditada pela Editora da UFRJ em
1995, com prefácio de Clóvis Brigagão. acrítica do “pensamento sociológico alieníge-
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nhe de compromissos com a situação brasilei- BOATCA, Manuela; COSTA, Sérgio; GUTIÉRREZ-
RODRÍGUEZ, Encarnarción (Orgs.) Decolonizing European
ra, ainda que, por outro lado seu nacionalismo, Sociology: trans-disciplinary approaches. Aldershot,
Ashgate, 2010.
até certo ponto justificado para a época, possa
BOURDIEU, Pierre. Le Règles de l’art. Genèse et structure
ser facilmente considerado excessivo. A extro- du champ litéraire. Paris: Seuil, 1992.
versão continua viva, embora o tema de nossa _____. Sur L’État. Cours au College de France, 1989-1992.
Paris: Raison d’agir e Seuil, 2012.
capacidade e desejo de pensar por nós mesmos
BRINGEL, Breno. Ativismo transnacional, o estudo dos
e avançar para além da posição de consumido- movimentos sociais e as novas geografias pós-coloniais.
res intelectuais, especialmente de teorias, ten- Estudos de Sociologia, Recife, v. 16, p. 185-215, 2011.
sione essa localização e essa atitude problemá- _____. Social movements and contemporary modernity:
internationalism and patterns of global contestation. In:
ticas. Eis esforço em que cumpre perseverar. BRINGEL, Breno; DOMINGUES, José Maurício (Orgs.)
Global modernity and social contestation. Londres e Nova
O engajamento conceitual na realidade Déli: Sage, p. 122-138, 2015.
em que vivemos e a interpretação dessa reali- _____; DOMINGUES, José Maurício. Movimentos sociais
e teoria crítica: interseções, impasses e alternativas.
dade pela teoria são imprescindíveis, se qui- In: BRINGEL, Breno; GOHN, Maria da Glória (Orgs.)
sermos atualizar a sociologia em termos glo- Movimentos sociais na era global. Rio de Janeiro/Petrópolis:
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TEORIA SOCIAL, EXTROVERSÃO E AUTONOMIA....
This article analyzes the production of peripheral Cet article analyse la production de la théorie
social theory in different geopolitical eras and sociale dans la périphérie au sein de différentes
stages of modernity, with a special focus on (semi) ères géopolitiques et phases de la modernité,
peripheral contemporary sociology. We argue en mettant tout particulièrement l’accent sur la
that the current research agenda is focused on an sociologie semi(périphérique) contemporaine.
intellectual movement of a criticism that fights On y argumente que la recherche actuelle tourne
Eurocentrism and modernity, however without autour d’un mouvement intellectuel de critique
being able to create systematic theoretical- libre de l’eurocentrisme et de la modernité mais
methodological formulations, as it had occurred in qui n’arrive cependant pas à créer des formules
the middle of the twentieth century. We, therefore, théoriques et méthodologiques systématiques
seek to improve the basis for a more propositional comme ce fut le cas au milieu du XXe siècle. On
instituting movement from two directions: on cherche donc à avancer au niveau de la base pour
the one hand, by recovering the centrality of la construction d’un mouvement instituant qui
autonomous fields and aggregator circuits that may propose plus à partir de deux tendances : d’une part,
overcome intellectual extroversion; on the other en récupérant la centralité de champs autonomes et
hand, by analyzing, in a dialogue with Guerreiro de circuits adjoignants qui dépassent l’extroversion
Ramos, the possibilities of creating a theory in intellectuelle, et, d’autre part, en analysant, à partir
(semi)periphery as one of the main ways to undo d’un dialogue avec Guerreiro Ramos, les possibilités
more permanently the hegemony of theories from de construction d’une théorie dans la (semi)
central countries and its customary use outside its périphérie considérée comme l’une des principales
original place. clés pour déplacer, de manière plus permanente,
l’hégémonie des théories des pays centraux et leur
utilisation habituellement protocolaire en dehors
de leur pays d’origine.
Breno Bringel - Doutor pela Faculdade de Ciência Política e Sociologia da Universidade Complutense
de Madri, onde foi professor. Professor Adjunto do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Coordenador, juntamente com José Mauricio
Domingues, do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL). Editor de DADOS -
Revista de Ciências Sociais e de openMovements, novo projeto de openDemocracy (www.opendemocracy.
net/openmovements). Bolsista PROCIÊNCIA (UERJ), Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ) e bolsista
de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Publicações recentes: Global modernity and social contestation,
editado com José Maurício Domingues. Sage, 2015; O MST e o internacionalismo contemporâneo (Eduerj,
no prelo); Les mobilisations de 2013 au Brésil: vers une reconfiguration de la contestation. Bresil(s), v. 7,
p. 7-18, 2015; Movimientos sociales y gobiernos en América Latina: nuevos escenarios, ejes de conflicto
y tipología de relaciones. Cadernos de Trabalho NETSAL, v. 2, p. 1-21, 2014.
José Maurício Domingues - PhD em Sociologia pela London School of Economics and Political Science.
Professor-pesquisador do IESP-UERJ. Bolsista de Produtividade do CNPq 1B e Cientista do Nosso Estado
– FAPERJ. Suas áreas principais de pesquisa são teoria social, sociológica e crítica, e modernidade global.
Publicações recentes: Modernidade global e civilização contemporânea. Para uma renovação da teoria
crítica. UFMG, 2013; O Brasil entre o presente e o futuro. Mauad, 2013; Global modernity and social
contestation, editado com Breno Bringel. Sage, 2015).
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