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Falo do regresso da raça e não das raças. Dito de outra forma, o que me
interessa, mais do que grupos “concretos” (ou supostos como tal, como as
“raças” da antropologia física e cultural do século XIX), é uma ideia, atrás da
qual se perfila uma estrutura. As coisas, sem dúvida, nunca são tão simples
como esta definição possa fazer crer. É difícil imaginar uma “raça” genérica que
não se materialize em oposições e hierarquias de grupos. Mas trata-se aqui de
sugerir que, entre o aspecto estrutural, quase-transcendental do problema, e as
suas manifestações empíricas, as relações se modificaram em relação ao que se
ensinava, ainda recentemente, na história das ideias.
Para os nosso contemporâneos nem a existência, nem o número, nem as
delimitações entre as “raças” têm já qualquer evidência, mas os nomes da raça
continuam a funcionar na identificação de diferenças étnicas e culturais.
Continua-se a falar de “Europeus”, de “Orientais”, de “Árabes” de “Negros” ou
de “Africanos”, etc. Mais que nunca talvez o princípio da raça ou da
“racialização” se imponha social e culturalmente, em particular como princípio
genealógico, assim como representações que relacionam com a origem e a
descendência supostas “mentalidades” ou “atitudes” individuais e colectivas.
Trata-se de racismo no sentido mais amplo do termo – sem que seja oportuno
distinguir, como é sugerido por vezes, entre “racismo” e “racialismo”. Falar de
regresso da raça, é em primeiro lugar insistir no facto de que não só o racismo
neste sentido elementar está sempre presente, mas que adquiriu uma nova
virulência.
Toda a reflexão sobre o regresso da raça apela a uma reflexão simétrica sobre o
futuro do racismo. Melhor: dos racismos, já que o que o torna um problema é
justamente a sua multiplicidade. Vemos então clarificarem-se os dados da
questão: não se trata só de descrever praticamente a resistência inesperada do
fenómeno “racismo” ou do seu ressurgimento na nossa sociedade, mas de
formular hipóteses de investigação sobre o que serão ou poderão ser as formas
futuras do racismo, que tendem a surpreender-nos porque contradizem a
imagem que temos da evolução das nossas sociedades, dos nossos sistemas
políticos e culturais, dos quais temos necessidade para viver, mas que sentimos
confusamente que estão em crise. Trata-se de questionar uma convicção
profundamente enraizada na consciência do progresso da razão e da
democracia: que o racismo e a fortiori a ideia de raça pertencem ao passado e
portanto só podem definhar antes de desaparecer de uma vez por todas. Ao
contrário desta convicção tranquilizadora (tão mais forte que levou a que fosse
pago um preço extraordinariamente elevado num passado ainda recente),
devemos perguntar seriamente se esta representação optimista não é um mero
preconceito ideológico. Qual será o futuro dos racismo e da própria raça:
importante ou limitado? Contingente ou necessário? Mais ou menos semelhante
aos modelos históricos, ou feito de metamorfoses oscilantes entre a
possibilidade de novos racismos e a possibilidade dos que já conhecemos
desembocarem no surgimento de novas formas de violência colectiva, como
sugere a expressão “racismo sem raças” de que se servem muitos antropólogos e
sociólogos? Devemos tentar imaginar para poder enfrentá-lo.
Uma tal questão sem dúvida não surge do nada. É provocada por tendências
destrutivas da conjuntura às quais é difícil escapar. Seria preciso aqui toda uma
análise, e eu tenho de me contentar com uma descrição geral, mas suficiente
espero eu, para indicar um fio condutor. As razões para nos interrogarmos sobre
o regresso da raça e sobre o futuro dos racismos não têm o seu ponto de partida
nem na teoria pura nem numa constatação puramente empírica, mas numa
série de problemas de definição e de interpretação que circulam entre ambos.
Retenho quatro “sinais dos tempos” que procurarei caracterizar insistindo na
sua especificidade, assim como na sua interdependência - ou antes pressupondo
que esta é, em geral, uma característica do curso actual da “mundialização”.